RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO
INCONCIABILIDADE DE DECISÕES
Sumário


I. O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter um novo julgamento da causa.
II. Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário e no regime, substantivo e procedimental, especial.
III. O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos taxativamente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.
IV. O fundamento consistente na inconciliabilidade dos factos provados na decisão condenatória e em outra, exige que a realidade “retratada” numa e na outra sentença seja antagónica, reciprocamente excludente.
V. A inconciliabilidade tem de referir-se a factos “que façam parte da arquitetura típica do crime, na vertente objetiva ou subjetiva” e à participação do condenado na sua prática.
VI. Exige-se, cumulativamente, que dessa incompatibilidade resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
VII. Dúvidas sérias e graves capazes de evidenciar a injustiça da condenação são aquelas que demonstram que o arguido deveria ter sido absolvido

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em conferência, acorda:



A -  RELATÓRIO:

a) a condenação:

No Juízo Local Criminal .... – Juiz ..., mediante acusação do Ministério Público deduzida no processo comum supra identificado, foi o arguido:

- AA, de 47 anos e os demais sinais dos autos,

julgado e, por sentença de 10 de novembro de 2020, transitada em julgado em 10.12.2020, condenado pela prática em de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 5 (cinco) meses de prisão.

Foi ainda condenado em custas, fixando-se a taxa de justiça em 2UCs.

b) o recurso:

O Ministério Público junto do tribunal da condenação apresentou o vertente recurso extraordinário de revisão invocando o disposto no artigo 449º n.º 1 al.ª c) do Código de Processo Penal/CPP, com o escopo de permitir que, em novo julgamento, se possa alterar a modalidade de execução da pena aplicada de prisão efetiva para obrigação de permanência na habitação com VGE .

Resumiu a alegação nas seguintes conclusões:

1. O fundamento de revisão previsto na alínea c), do artigo 449.º, do CPP, demanda a verificação cumulativa de dois pressupostos: a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença (ou em despacho que tenha posto fim ao processo) e, que da oposição resultem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

2. Por sentença de 10.11.2020, proferida no processo comum singular n.º 699/20.1...., transitada em julgado em 10.12.2020, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 5 (cinco) meses de prisão.

3. Para determinação da medida daquela pena, fundou-se o tribunal, para além do mais, nas condenações do arguido elencadas nas alíneas a) a l) do ponto 5. da matéria de facto provada.

4. Especificando, ponderou, de modo relevante e expresso, a condenação elencada na alínea j), do ponto 5. da matéria de facto provada: «No processo n.º 462/19....... foi condenado por decisão datada de 3.03.2020, e transitada em julgado aos 29.6.2020, pela prática, aos 2.05.2019, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.º 1 do DL 2/98 de 3.1. e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, do CP, na pena única de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova e condições/deveres/regras de conduta; e, na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 1 ano e 2 meses».

5. E ponderou na escolha da pena, para a determinação do quantum da pena e para afastar a aplicação de qualquer pena de substituição.

6. «Os factos que serviram de ‘fundamento à condenação’ são os factos provados na sentença criminal que respeitam à imputação do crime e à determinação das sanções principais e acessórias (…)» - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed. Atualizada, página 1207.

7. Após o trânsito em julgado (em 10.12.2020) da sentença condenatória revidenda sobreveio notícia de que no aludido processo n.º 462/19....... – cuja condenação lhe servira de fundamento – foi proferido despacho judicial que determinou a eliminação da eficácia do caso julgado que aí se havia consolidado em 29.6.2020.

8. No processo comum singular n.º 462/19......., após a condenação aí proferida, foi proferido despacho judicial onde, após se julgar verificada a exceção do caso julgado por violação do princípio ‘ne bis in idem’ - em causa estavam as condenações do processo n.º 462/19....... e do processo n.º 348/19......., ambos a correr termos na Instância Local Criminal ......., o primeiro no juiz .. e o segundo no juiz .. – se determinou a eliminação da condenação ocorrida nesses autos (n.º 462/19.......), porquanto transitou em julgado após o trânsito em julgado da decisão proferida no aludido processo n.º 348/19......., em aplicação da norma do artigo 625º, n.º 1, do CPC, e se determinou a retificação do registo criminal, cancelando-se a inscrição dessa condenação.

9. Tal foi concretizado por simples despacho judicial, de acordo com o preceituado no artigo 625º do CPC, proferido e transitado em julgado em 09.04.2021; e que traduz uma decisão de mérito e é o despacho que definitivamente põe fim a esse mesmo processo, devendo, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 449.º, do CPP, ser equiparado à sentença para os efeitos previstos no n.º 1, do mesmo artigo.

10. Os factos de um processo – 699/20.1.... – e de outro processo – 462/19....... – são inconciliáveis, antagónicos, excludentes; uma vez que no primeiro se funda a condenação no facto provado de o arguido ter já sido anteriormente condenado no processo 462/19......., e neste outro processo, e já posteriormente ao trânsito em julgado do primeiro, veio a dar-se como assente que, afinal, a condenação aí sofrida não produz efeito por ter sido eliminada.

Das duas uma – ou a condenação do processo n.º 462/19....... existe ou não existe, ou produz efeitos ou não produz.

11. Mesmo que o tribunal não contasse com a condenação do [arguido no] processo n.º 462/19......., quer o juízo que foi dirigido à escolha da espécie da pena, quer o juízo que foi dirigido à determinação do quantum da pena, com razoável probabilidade, se manteriam ambos válidos.

12. A dúvida que entendemos como grave quanto à justiça da condenação é aquela que se dirige ao juízo que foi formulado em relação à decisão de não substituir a pena de prisão em meio prisional pela pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos no artigo 43.º, do CP – caso o tribunal não contasse com a condenação do processo n.º 462/19....... no seu certificado de registo criminal.

13. Os efeitos da condenação sofrida no processo n.º 462/19....... – que veio a ser posteriormente considerada sem efeito – trouxe ao juízo de condenação final do processo nº 699/20.1...) – de uma pena de  5 (cinco) meses de prisão efetiva, em meio prisional – um valor acrescentado a tal decisão, especialmente, no momento em que o julgador se defronta com a possibilidade de aplicar a pena de substituição prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância; não se mostrando aqueles efeitos simplesmente diluídos no conjunto das condenações que o condenado já sofrera.

14. Se não existisse como referente mais próximo no horizonte do julgador essa conduta anterior aos factos descrita no processo n.º 462/19......., o julgador teria como referente mais próximo, em sede da ponderação das tais exigências de prevenção especial, a condenação numa pena única de 10 meses de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica sofrida no proc. n.º 348/19........

15. Perante tal situação hipotética – a ineficácia da condenação do processo 462/19....... – teria o julgador da 1.ª instância que ponderar de forma relevante ainda com o facto de, à data da prática dos factos destes nossos autos – 23.09.2020 – o arguido não se encontrar ainda em efetiva execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação; tal início só ocorreu com a instalação dos equipamentos de vigilância eletrónica – em 19.10.2020.

16. Ainda seria oportuno ajuizar que aquelas necessidades de socialização não obstariam à aplicação do regime previsto no artigo 43.º, do CP.

17. A prática do crime dos autos sob revisão antes daquele início da execução do RPH, mas depois da condenação definitiva, não foi sequer fundamento bastante para a revogação da pena do processo n.º 348/19......., nos termos previstos no artigo 44.º, do CP, podendo autorizar nova condenação em pena de prisão sob igual regime de permanência na habitação no âmbito dos autos n.º 699/20.1GAVNF cuja sentença está posta em crise.

Peticiona que se:

a. autorize a revisão da sentença penal proferida no processo n.º 699/20.1GAVNF, com o fundamento previsto na alínea c), do n.º 1, do artigo 449.º, do CPP,

b. determine a suspensão dos efeitos da sentença sob revisão, concretamente, da pena de prisão que, à data da autorização, esteja em execução (artigo 457.º, n.º 2, do CPP);

c. determine o reenvio do processo ao tribunal de categoria e composição idêntica às do

tribunal que proferiu a decisão a rever.

3. o arguido não respondeu.

4      informação do tribunal:

O Tribunal da condenação, observando o disposto no artigo 454.º do CPP, cingiu-se a dizer que “pelos motivos aduzidos no requerimento do pedido de revisão realizado pelo Ministério Público, e os meios de prova que acompanham aquele pedido”, entende “haver fundamento para a revisão”.

5. parecer do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal na vista a que alude o artigo 455.º do CPP, emitiu douto parecer, pronunciando-se pela autorização da revisão, argumentando:

O recurso extraordinário de revisão é um direito reconhecido constitucionalmente no n.º 6 do art.º 29 da Constituição aos “cidadãos injustamente condenados”.

No conflito frontal entre o valor da certeza e da segurança jurídicas, assegurado pelo caso julgado, valor esse que é condição fundamental da paz jurídica comunitária que todo o sistema judiciário prossegue, e as exigências da verdade material e da justiça, que são também pressuposto e condição de aceitação e legitimidade das decisões jurisdicionais, o recurso de revisão pretende encontrar um ponto de equilíbrio, uma solução de concordância prática que concilie até onde é possível esses valores essencialmente contraditórios.

… esse equilíbrio é conseguido a partir do reconhecimento de que o caso julgado terá de ceder, em casos excepcionais e taxativamente enumerados, perante os interesses da verdade e da justiça.”

O caso julgado concede estabilidade à decisão, servindo por isso o valor da segurança na afirmação do direito, segurança que é um dos fins do processo penal. Mas o fim do processo é também a realização da justiça. Por isso se não confere valor absoluto ao caso julgado, que deve ceder em situações de gravíssima e comprovada injustiça. O recurso de revisão representa, pois, a procura do adequado equilíbrio entre aqueles dois valores.

A lei processual penal vigente, densificando o comando normativo ínsito no art.º 29.º, n.º 6 da CRP, regula esta concreta matéria nos seus arts. 449.º e segs, elencando precisamente no preceito citado, de forma taxativa, os fundamentos da revisão.

In casu- o fundamento do recurso de revisão invocado é o constante da alínea c) do n º 1, do artigo 449.º do CPP, que constitui um dos fundamentos pro reo, na medida em que visa a protecção do condenado contra situações de erro judiciário clamoroso, ou seja, de erro que suscite graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

O fundamento de revisão previsto na alínea c) do n.º 1 do art.º 449º contém dois pressupostos, substantivos de verificação cumulativa: por um lado, a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença e, por outro lado, que dessa oposição resultem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

Só existe inconciliabilidade relevante entre os factos provados da sentença condenatória a rever e os factos dados também por provados na outra decisão, quando respeitem à imputação do crime, aos seus elementos constitutivos ou à escolha e medida das sanções principais ou acessórias. Com efeito, para efeitos da alínea c), do n ° 1, em referência, relevam tanto as dúvidas que respeitam à condenação ou não do arguido como as que conduzam ou não à redução da pena (acórdão do STJ, de 9.10.2003, in CJ, Acs. do STJ, XI, 3, 204). Como relevam os factos dados como provados "noutra sentença seja ela absolutória ou condenatória, proferida em processo criminal ou noutro e antes ou depois dela", quer ela tenha sido proferida antes da sentença criminal condenatória quer ela tenha sido proferida depois desta. A única condição essencial é a de que "a outra sentença" já tenha transitado, pois só então se pode verdadeiramente considerar que estão "provados" factos inconciliáveis com os factos que serviram de fundamento à condenação.

O quadro legal e jurisprudencial que vimos de traçar, permite-nos concluir, na senda do que aliás é defendido pela Sr.ª Juíza titular do processo e da Sr.ª Magistrada do Ministério Público na 1 a instância, que estamos perante e uma inconciliabilidade de decisões que pode fundar a revisão.

Com efeito, o tribunal na sentença recorrida deu como provado que o arguido já tinha sido condenado” no processo n.º 462/19....... foi condenado por decisão datada de 3.03.2020, e transitada em julgado aos 29.6.2020, pela prática, aos 2.05.2019, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.º 1 do DL 2/98 de 3.1. e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º, do CP, na pena única de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova e condições/deveres/regras de conduta; e, na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 1 ano e 2 meses.

E ponderou essa mesma condenação, na operação de escolha da pena bem como na de determinação concreta do quantum desta e para afastar a aplicação de qualquer pena de substituição [referindo que: “No caso em apreço, o arguido já foi condenado 4 vezes pelo mesmo tipo de ilícito – condução de veículo sem habilitação legal e 3 vezes pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em penas de multa prisão substituída por trabalho a favor da comunidade, pelo que são elevadas as necessidades de prevenção especial. Nesta decorrência, tendo em conta as sucessivas condenações sofridas pelo arguido, não subsistem quaisquer dúvidas de que a aplicação de uma pena não detentiva não surtirá efeitos e não obstará à prática de futuros delitos pelo arguido e, por isso, o Tribunal opta pela pena de prisão, por ser pena adequada e suficiente às finalidades da punição.]

Ora, posteriormente à condenação que o arguido sofreu no processo 462/19......., foi proferido despacho judicial transitado em julgado em 09.04.2021, cuja determinação expressa é a eliminação da eficácia do caso julgado que aí (no processo n.º 462/19.......) se verificava porquanto se considerou ocorrer uma duplicação de processos, que conduziu a uma dupla condenação do mesmo arguido pelo mesmo facto.

Ora, como já referimos, a inconciliabilidade de decisões que pode fundar a revisão, nos termos do artigo 449.°, n ° 1, alínea c), do CPP, tem de referir-se aos factos que fundamentam a condenação e os factos dados como provados em outra decisão, de forma a suscitar dúvidas graves sobre a justiça da condenação, o que significa que é necessário que entre esses factos exista uma relação de exclusão, no sentido de que, se se tiverem por provados determinados factos numa outra sentença, não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiros os tidos por provados na sentença revidenda.

É esta a situação que manifestamente se nos depara no caso sub judice: a decisão relativamente à qual incide o pedido de revisão colide, de forma insofismável, no atinente à factualidade essencial, com posterior decisão. E também não subsistem quaisquer dúvidas de que, do confronto entre uma e outra das decisões, resultam graves dúvidas sobre a justiça da condenação que assentou, designadamente no que se refere à pena concreta, que foi aplicada ao arguido.

«»

O Ministério tem legitimidade para requerer a revisão de qualquer sentença ou despacho judicial transitados em julgado (artigo 450.º, n.º 1, al. a), do CPP).

O recurso encontra-se motivado e instruído (artigos 451.º, n.º 3, e 454.º do CPP). Este Tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP).

Nada obsta ao conhecimento do recurso.

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO:

a) o caso julgado penal:

A decisão judicial[1], a partir do momento em que não pode ser contestada ou impugnada através dos procedimentos ordinários legalmente previstos, torna-se firme, regulando definitivamente o caso concreto na ordem jurídica. Na expressão de Manuel de Andrade a sentença constitutiva (que julga procedente uma ação) transitada em julgado (caso julgado material) traz o direito para a evidência[2].

O Código de Processo Penal não contém qualquer normativo do qual possa extrair-se, diretamente, a definição do trânsito em julgado das sentenças penais. Remete-nos – art. 4º - para o direito processual subsidiário, o Código de Processo Civil. Neste diploma, o art. 628º estabelece: “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”[3].

No entender de J. Figueiredo Dias também a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “o que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania[4].

Para J. Alberto dos Reis, “o recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”[5].

O instituto do caso julgado é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais[6], evitando a contradição prática de decisões.

A favor do caso julgado em processo penal, invoca-se também o efeito nefasto da reabertura em relação ao co-arguido e às vítimas, que seria potenciado pelas circunstâncias emergentes do distanciamento em relação ao material probatório derivado da passagem do tempo.

b) o recurso de revisão:

Na expressão de M. Cavaleiro de Ferreira “a irrecorribilidade das decisões judiciais irrevogáveis tem por efeito a sua definitividade e a sua exequibilidade. Quer dizer, esgotou-se no respetivo processo quanto à matéria da decisão o poder jurisdicional, e ficou autorizada a execução da decisão[7]”.

Contudo “o princípio res judicata pro veritate habetur não confere ao caso julgado, ainda que erga omnes, uma presunção juris et de jure, de que a decisão consagra justiça absoluta, perenemente irreparável, e por isso irrevogável”.

Certamente que toda a revisão, qualquer que seja a sua génese, será sempre uma violação da segurança do caso julgado que é justificada em função de razões de justiça[8].

Todavia, socorrendo-nos das justificações do Tribunal Supremo de Espanha: “o problema político-social que se produz pelo facto de que sendo as decisões judiciais um ato humano não se deve cerrar o passo definitivamente à consideração de que possam estar equivocadas. O intérprete do sistema legal tem que sopesar se num momento determinado o valor da segurança jurídica deve sobrepor-se ao valor da justiça. Um Estado democrático deve buscar saídas e soluções para resolver os problemas que afetam a liberdade e os direitos individuais[9].

O recurso extraordinário de revisão, assenta na ideia de que as sentenças judiciais condenatórias firmes, embora esmagadoramente correspondam à verdade prático-jurídica, todavia podem não ser infalíveis, mas também não podem estar permanentemente abertas a qualquer reapreciação do julgado. É, na essência, um remédio que, atentando contra o efeito preclusivo do caso julgado e a inerente segurança e paz, cuida de manter o equilibro necessário entre o valor da certeza jurídica que lhe é imanente e a justiça material.

Por isso, somente se admite a revisão quando o Supremo Tribunal se depara com um caso de condenação notoriamente equivocada, enquadrável em algumas das situações que o legislador taxativamente erigiu como podendo justificar a revogação da sentença condenatória transitada em julgado.

O recurso ordinário da sentença eleva a tramitação a outra etapa do processo penal, a fase destinada ao reexame da decisão.

O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. Não é uma fase normal de impugnação da sentença penal. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter um novo julgamento e, por essa via, rescindir una sentença condenatória firme.

No entendimento seguido no Ac. n.º 376/2000 do Tribunal Constitucional, “no novo processo não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou com a decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário”, “os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são indício indispensável à admissibilidade de um erro judiciário carecido de correção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento[10].

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), Protocolo 7, no artigo 3º (direito a indemnização em caso de erro judiciário) alude a “condenação penal definitiva” “ulteriormente anulada” “porque um facto novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro” de julgamento. E no artigo 4º estatui-se que a sentença definitiva não impede “a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento”.

Nesta linha, a Constituição da República, no artigo 29º, n.º 5, “obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto[11] e (n.º 6) atribui à pessoa injustamente condenada o direito à revisão da sentença, nos termos que a lei prescrever

A violação do caso julgado, permitida pela Constituição da República, e pela CEDH, visa a salvaguarda do elementar direito à liberdade e o direito a uma condenação justa de acordo com as regras constitucionais e do processo penal.

Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário[12] e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica –art.11º do Código Civil.

Como se sustenta no Ac. de 26-09-2018, deste Supremo Tribunal, “do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”.

c) regime legal:

Em execução daquele comando constitucional (e do referido preceito da CEDH), o Código de Processo Penal, consagra, e regula o recurso extraordinário de revisão, estabelecendo no artigo 449º (fundamentos e admissibilidade da revisão) n.º 1 do CPP:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

No n.º 2 estatui que para efeitos de revisão à sentença equipara-se o despacho que tiver posto fim ao processo.

E, no n.º 3 estipula:

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

Por sua vez, o art. 451º (formulação do pedido), no n.º 2 exige que do requerimento conste a exposição circunstanciada dos fundamentos da revisão.

Exige-se também que o requerimento venha instruído com cópia autenticada da decisão revidenda e a certificação do seu trânsito em julgado (n.º 3). E, fundando-se a revisão em outra decisão judicial, o requerimento tem de vir instruído com a mesma, com a definitividade devidamente certificada, por se tratar de documentos absolutamente indispensáveis à instrução do pedido  

Com o requerimento, apresentado no tribunal da condenação, inicia-se o procedimento destinado à verificação dos requisitos formais e dos pressupostos substantivos para poder ser formulado um juízo rescindente, da competência exclusiva do STJ.

O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos constitucional ou legalmente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.

Não estando presente todos os requisitos ou não existindo ou não se demonstrando os fundamentos invocados, ou se, alicerçando-se em novos factos ou novos elementos de prova, visa corrigir a medida da pena, a revisão deve ser negada – art. 456º.

Sendo autorizada, inicia-se a fase do juízo rescisório, a processar na 1ª instância territorialmente competente.

d)  factos inconciliáveis:

A norma processual penal convocada pelo recorrente - a al.ª c) do n.º 1 do art. 449º do CPP (única que importa ao vertente recurso extraordinário) – estabelece que “a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando;

“c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação

Fundamento de larga historia, consagrado no CPP de 1929, no respetivo art. 673º n.º 1, vale somente para sentenças condenatórias.

Ademais daquele requisito – decisão revidenda condenatória -, na lei e na jurisprudência deste Supremo Tribunal está estabilizada a necessidade da verificação cumulativa dos dois pressupostos que integram este fundamento da revisão extraordinária:  - a inconciliabilidade dos factos que sustentam a condenação com os factos julgados provados noutra sentença; - que essa oposição gere graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Entre outros, assim mesmo se sustenta nos seguintes acórdãos deste Supremo Tribunal: Ac, de 2-04-2008, proc. n.º 3182/07 -3.ª sec., Ac. de 8/05/2008, proc. 08P1122, Ac. de 3/03/2010, proc. 2576/05.7TAPTM-A.S1, Ac. 10/04/2013, proc. 209/09.1TAIRA-A.S1 Ac. de 1/06/2016, proc. 4262/OO.5TDLSB-A. Ac. de 18/01/2017, proc.  9967/08.0TDPRT-A.S1, Ac. de 29/03/2017, 89/06.9IDSTR-A, e Ac. de 17/01/2019, proc. 209/17.8T8VVD-A.S1.

Não é suficiente que entre os factos que fundamentam a condenação e os que foram provados em outra sentença se verifique mera divergência. Exige-se que sejam inconciliáveis, que a realidade “retratada” numa e na outra sentença seja antagónica, reciprocamente excludente. Pelo que se a facticidade provada na outra sentença narrar, com autenticidade, o acontecimento da vida sobre que versou, não podem ser também verdadeiros os factos provados na sentença condenatória. Do antagonismo das duas narrações factuais do mesmo pedaço da vida, resulta que alguma delas não pode ser verdadeira

Como no Ac. de 28/02/2019, deste Supremo Tribunal, também se entende que a inconciliabilidade tem de referir-se a factos “que façam parte da arquitetura típica do crime, na vertente objetiva ou subjetiva” e à participação do condenado na sua prática.

É jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que a inconciliabilidade haverá de resultar dos factos provados numa e na outra sentença. Sendo irrelevante para este efeito a divergência entre os factos provados na sentença e os factos não provados em outra sentença. Efetivamente não pode haver qualquer contradição entre um facto provado e um facto não provado. Não há inconciliabilidade entre um facto julgado provado na sentença condenatória e a não prova do mesmo facto em outra sentença. A razão de numa sentença se ter dado como certo um determinado acontecimento e em outra sentença se não considerar provado o mesmo acontecimento, radica no diferente acervo probatório produzido num e no outro julgamento ou na diversidade do critério valorativo de um e do outro tribunal.

Como se sustenta no acórdão ora em citação, também “questões relacionadas com a fundamentação da matéria de facto, quer no acórdão condenatório quer na sentença absolutória não têm que ser convocadas em sede de recursos de revisão”.

No ac. de 17/01/2019, deste Supremo, sustenta-se que “a revisão é inadmissivel quando visa corrigir a medida da pena (o quantum da sanção), mas também, por maioria ou identidade de razão quando tiver como único fim a correção da escolha da espécie da pena[13]”.   

Exige-se, cumulativamente, que dessa incompatibilidade resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Por outro lado, inscrevendo-se o direito à revisão extraordinária da condenação no elenco dos direitos fundamentais dos cidadãos injustamente condenados, sem dúvida que a segurança e a paz jurídicas devem ceder perante a necessidade de reafirmar o valor da justiça de modo a que sentença condenatória transporte para os autos e traduza no processo a realidade da vida. Nas palavras de M. Cavaleiro de Ferreira, no processo penal, “a justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações. O direito não pode querer e não quer a manutenção de uma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais, a garantia dum mal invocando prestígio ou infalibilidade do juízo humano, à custa da postergação de direitos fundamentais do cidadão, transformados cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada … da lei e do direito”[14].

No entendimento do Tribunal Constitucional exposto no Ac. 376/00 de 13/07/2000:

O recurso de revisão é estruturado na lei processual penal em termos que não fazem dele uma nova instância, surgida no prolongamento da ou das anteriores. (…).

Trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar.

Compreende-se a esta luz que a lei não seja permissiva, ao ponto de banalizar e consequentemente desvalorizar a revisão, transformando-a na prática em recurso ordinário, endo-processual neste sentido – a revisão não pode ter como fim único a correção da medida concreta da pena (nº 3 do artigo 449º) e tem de se fundar em graves dúvidas lançadas sobre a justiça da condenação. É nesta ordem de considerações que a Constituição consagra no nº 6 do artigo 29º o direito dos cidadãos injustamente condenados, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença". Esta é a norma constitucional que mais próxima e diretamente disciplina a matéria, (…).

Como se referiu, a abertura e amplitude da revisão da sentença condenatória não pode deixar de ser informada pela ideia de excecionalidade porque só assim se poderá manter, na medida do possível, o necessário equilíbrio entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança jurídica.

O recurso de revisão não pode ser complacente com defesas estrategicamente orientadas no sentido de desacreditar o laborioso esforço do tribunal em plasmar a verdade material em cada decisão condenatória.

O arguido não é obrigado a contribuir para a descoberta da verdade. “Mas, em contrapartida, não pode beneficiar da sua “deslealdade” (…) quando essa estratégia de defesa fracassa”. Assim, se o arguido, por inércia, negligência ou por total indiferença perante a ação da justiça, não comparece na audiência de julgamento para apresentar a sua versão dos factos, se defender da acusação e, sendo condenado, não impugna a decisão que tem por assente em provas não completamente fiáveis, não deve poder valer-se, de um recurso excecional, que se destinaria, afinal, nesse caso, a permitir o suprimento de deficiências imputáveis exclusivamente, a ele e à sua defesa.

Quanto ao segundo requisito, conforme decorre do acima exposto e é jurisprudência pacifica deste Supremo, dúvidas sérias e graves capazes de evidenciar a injustiça da condenação são aquelas que demonstram que o arguido deveria ter sido absolvido.

Conforme sustentado no Ac. STJ de 25/02/2021, por um lado a dúvida grave “situa-se para além da dúvida ‘razoável’, pois, mais do que razoável, deve ser uma dúvida ‘grave’, pois só essa poderá justificar a revisão do julgado”.  Concomitantemente terá de decorrer sob a égide da alternativa condenação/absolvição, que afinal plasma e condensa o binómio condenação justa (a manter), condenação gravemente injusta (a rever)[15].

Conforme sustentado no Ac. STJ de 17/03/2021 - (relatado pelo Juiz Conselheiro aqui adjunto) -, “mesmo a considerar-se que as factualidades provadas nos dois processos têm algumas interceções”, todavia, para haver inconciliabilidade dos factos provados exige-se “que dessa incompatibilidade tivessem resultado soluções jurídicas opostas”. Consequentemente “é sempre aos factos provados e não aos juízos, que devemos reportar-nos nesta situação” porque “não se trata, de avaliar, por esta via, a justeza” da condenação[16]. Nem, evidentemente, da espécie e da medida da pena aplicada.   

e) no caso:

Na economia do vertente recurso extraordinário, o facto julgado provado na sentença condenatória revidenda que que está em oposição com o despacho judicial que veio a ser proferido no processo n.º 346/ tem ali a seguinte redação:

5. O arguido já sofreu as seguintes condenações: (…)

j) No processo n.º 462/19....... foi condenado por decisão datada de 3.03.2020, e transitada em julgado aos 29.6.2020, pela prática, aos 2.05.2019, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.º 1 do DL 2/98 de 3.1. e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, do CP, na pena única de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, sujeita a regime de prova e condições/deveres/regras de conduta; e, na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 1 ano e 2 meses».

O Ministério Público, aqui recorrente, dá por assente que o tribunal, mesmo não ponderando a condenação anterior no processo n.º 462/19......., - entretanto eliminada, porque repetida -, “com razoável probabilidade”, condenava o arguido em pena da mesma espécie e com igual medida, porque os correspondentes juízos decisórios “se manteriam ambos válidos”.

Afirma, assim, implicitamente, que a condenação do arguido decretada na sentença revidenda, não é injusta porque o facto provado, que pretende ver dela eliminado, não alterava, parece-lhe, nem a espécie – prisão – nem a medida – 5 meses - da pena aplicada.

Para o recorrente, a injustiça da condenação radicaria apenas no afastamento da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância (VGE). Não tanto porque entenda que seria necessariamente decretada se o tribunal não tivesse considerado a condenação eliminada, mas tão-somente porque sem ela, parece-lhe, seriam menos intensas as “necessidades de socialização”. Em face do que, alega, “seria oportuno ajuizar” de forma diferente “da aplicação do regime previsto no artigo 43.º, do CP”. Dito de outra maneira, não só não haveria que alterar a decisão condenatória, a pena aplicada, como nem tão-pouco tem por fortemente provável que, em novo julgamento, viesse a ser determinado o cumprimento da pena – que tem por justa – no regime de permanência na habitação com VGE.

Conforme se advertiu, da decisão do STJ que, na fase rescindente, autoriza a revisão da sentença ou acórdão, não decorre nem a absolvição do condenado nem a modificação da espécie ou da medida da pena nem, evidentemente, a modificação do regime de execução. Autorizada a revisão, será o tribunal de 1ª instância que, em novo julgamento, decide se condena ou absolve o arguido e, condenando-o, escolhe a pena, fixa a respetiva medida e, quando couber, determina o respetivo regime de execução.

Assim, autorizada que fosse a revisão da sentença condenatória proferida nos autos, o efeito seria a realização de novo julgamento, com a prolação de nova sentença, necessariamente condenatória – porque os factos constitutivos do crime e da responsabilidade do arguido não vêm questionados – e que, segundo o recorrente, a pena e a respetiva medida deveriam igualmente manter-se.

Sendo assim, logo se conclui, que da inconciliabilidade de um pequeno segmento dos factos provados na sentença condenatória respeitante à história criminal registada do arguido, com o efeito jurídico decorrente da eliminação da sentença revidenda daquela condenação (que veio a apurar-se, repetir a que pelos mesmos factos foi decretada no processo 348/19.......), jamais poderia decorrer a absolvição do condenado.

Ainda segundo o recorrente, também não deveria decorrer a modificação da espécie e da medida da pena que na sentença revidenda foi aplicada ao arguido.

Pelo que não resta senão concluir que falece, desde logo, o primeiro dos pressupostos exigidos pela norma legal à qual o recorrente pretende amparar o vertente recurso extraordinário.

Ademais da inconciliabilidade meramente residual dos factos – sem qualquer efeito na condenação, na pena aplicada e na sua medida concreta -, acresce que não seria possível certificar a existência de dúvida grave e séria sobre a justiça da condenação do arguido decretada nestes autos. 

O arguido foi condenado na sentença revidenda pela prática, em ... .09.2020, de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 5 anos de prisão.

Do histórico criminal do arguido vertido nos factos provados consta que anteriormente sofreu condenações em dez processos: duas em pena de multa; uma de quatro anos de internamento com execução suspensa; três em pena de prisão  - respetivamente de 3 meses, 5 meses, 9 meses - substituídas pela prestação de trabalho a favor da comunidade; duas em pena de prisão - 2 anos e 3 meses; 4 meses - com execução suspensa; uma na pena (única) de 6 meses de prisão; uma na pena (única) de 10 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação com controlo através de vigilância eletrónica.

A referida em último lugar decretada no processo n.º 346/19......., por sentença de 11 de maio de 2020, transitada em julgado em 18 de maio do mesmo mês pela prática dos crimes de condução sem habilitação legal e por condução de veículo rodoviário em estado de embriaguez.

 Por conseguinte, quando cometeu os factos e crime pelo qual foi condenado nestes autos e, bem assim, quando foi julgado e proferida a sentença revidenda,    o arguido tinha uma condenação firme anterior em pena de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação.

Ainda que não constando dos factos, está certificado nos elementos com que vem instruído o recurso extraordinário que o arguido, tendo iniciado, em 19 de outubro de 2020 a execução daquela pena de prisão no regime de permanência na habitação controlada através de vigilância eletrónica, logo no dia imediato violou aquela obrigação e que no 3ª dia rompeu o sistema de controlo[17]. Incumprimento de que resultou, por decisão do TEP, a revogação daquele regime, decretando a execução do remanescente da pena de prisão em regime carcerário contínuo, que o arguido atualmente cumpre.

Não restam, pois, dúvidas que se o Supremo Tribunal de Justiça rescindisse a sentença revidenda e autorizasse a revisão, o tribunal, no novo julgamento dos factos, sobre os mesmos elementos e os demais que se acabam de referir, não podia desconsiderar a sequência factual, e retirar dela as consequências jurídicas devidas para ponderar, como ajuizou, da verificação dos pressupostos da aplicação do regime jurídico consagrado no art.º 43º do Cód. Penal. Em que é requisito indispensável que o tribunal possa concluir que a execução da pena de prisão, naquele regime fechado, mas não carcerário, realize de forma adequada e suficiente as finalidades da pena de prisão aplicada, isto e, reafirme, adequadamente e proporcionalmente, o sentimento comunitário de validade e vigência do bem jurídico violado. Não seria facilmente aceitável que a violação, 20 dias antes da sentença condenatória, do regime com a quebra do sistema de controlo, fosse desconsiderada na determinação do regime de cumprimento da pena aplicada.

Do exposto resulta não haver dúvida séria e fundada, e muito menos grave ou qualificada, sobre a justiça da condenação, nestes autos, do arguido, nem da pena aplicada e da respetiva medida concreta, nem do regime de execução em estabelecimento prisional, onde, presentemente se encontra (mas, ainda não em cumprimento da pena de prisão aplicada na sentença condenatória revidenda).

Conclui-se, assim, que não resultam preenchidos os pressupostos exigidos pela norma adjetiva invocada pelo recorrente -. art. 449º n.º 1 al.ª c) do CPP – para que pudesse autorizar-se a revisão da sentença condenatória revidenda.

Neste conspecto, por infundada, improcede a argumentação do recorrente e com ela, o recurso sub judicio.

C. DECISÃO:

Termos em que o Supremo Tribunal de Justiça, em conferência da 3ª Secção Criminal, acorda em: ----

a)  negar a revisão da sentença condenatória do recorrente.

b) Sem custas, por isenção do recorrente – art. 522º do CPP.


*


Lisboa, 15 de setembro de 2021


Nuno A. Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do Exmº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[18]

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro presidente)

_______

[1] Nos termos do art. 449º do CPP, para efeitos de revisão “à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo”.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, pag. 335.
[3] A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpressão), Almedina, 1983, pág. 302.
[4] Direito Processual Penal, 1º vol. pag 44.
[5] Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158.
[6] Eduardo Correia, ob citada, pag. 403.
[7] Curso de Processo Penal, III, edição da AAFDL, 1963, págs. 35.
[8] J. H. Santos Cabral, “A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais
supremos-efeito directo e reabertura do processo”, pag. 9 e pag. 17.
[9] Sentencia de 22/11/1996.
[10] DRE II série de 13/12/2000.
[11] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4º ed., pag. 497.
[12] Extraordinário é o que é fora do comum, raro, que sucede em circunstancias excecionais.
[13] Proc 209/17.8T8VVD-A.S1, in www.dgsi.pt.
[14] Scientia Iuridica, tomo XIV, n.ºs 75/76, pag. 520/521.
[15] Proc. n.º 1482/15.1PBSTB-A.S1, in www.dgsi.pt.
[16] Proc. n.º 106/16.4GCTND-A.S1 in www.dgsi.pt.

[17] Da decisão do TEP (de 28.01.2021) consta: “o condenado se ausentou do local de vigilância sem autorização no dia 20/10/20220 e no dia 22/10/2020, tendo neste último dia, adulterado o DIP (dispositivo de identificação pessoal) e a UML (unidade de monitorização local), foi instaurado o presente incidente de incumprimento.

O Ministério Público pronunciou-se pela revogação do regime de cumprimento da pena de prisão em permanência na habitação”.
[18]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.