RECURSO PENAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
ABERRATIO ICTUS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Sumário

Texto Integral


Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Central Criminal ... – Juiz ... no processo comum com intervenção do tribunal coletivo nº 745/19...… foi julgado o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., concelho..., nascido em …-...-1984, solteiro, vendedor, residente em Rua ..., n.º ..., ........., atualmente recluso no Estabelecimento Prisional …., e por acórdão de 09 de outubro de 2020, foi deliberado:

a) Absolver o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n° 1 e 2, alínea h), do Código Penal;

b) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelos artigos 131º do Código Penal, com a agravação enunciada no artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão;

(…)

d) Condenar o demandando AA a pagar aos demandantes DD e EE, as seguintes quantias:

i) € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) pela violação do direito à vida de seu filho FF;

ii) € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) pelos danos decorrentes do sofrimento de seu filho FF até ao seu falecimento;

iii)  E à demandante DD a quantia de €12.000,00 (doze euros), pelos seus danos pessoais, morais, com o falecimento de seu filho FF.

iv) E ao demandante EE a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), pelos seus danos pessoais, morais, com o falecimento de seu filho FF.

1.2. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa e, por acórdão de 10 de fevereiro de 2021 foi deliberado:

Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

1.3. Ainda inconformado com este acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA, que motivou, concluindo nos seguintes termos: (transcrição):

«I – DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA

1. O recorrente suscitou, no geral, algumas temáticas, com algumas questões associadas, sendo que o douto acórdão ora recorrido não se debruçou sobre as mesmas, ou fê-lo de forma manifestamente insuficiente.

2. O recorrente suscita, ponto por ponto, todas as questões que entende serem merecedoras de ponderação, fazendo-o de forma exaustiva e esclarecedora, pormenorizando a sua posição e fundamentos.

3. Impunha-se que o acórdão descesse a cada motivação e conclusão do recorrente e, de forma fundamentada, explicitasse as razões do indeferimento das pretensões do arguido, contrariando, fundadamente, o porquê desse entendimento.

4. Sobre o que se pronunciou, fê-lo de forma absolutamente vaga e genérica, muitas vezes remetendo para aquilo que já foi escrito em sede do acórdão ora recorrido, bem como à própria ponderação que o Ministério Público fez acerca do parecer ao recurso.

5. O recorrente entende que foi cometida a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), via artigo 425.º, n. º 4, ambos do CPP.

II – DA MATÉRIA A APRECIAR

6. Por cautela, entende-se reiterar a matéria que em sede de recurso anterior não foi conhecida e debater as questões insuficientemente respondidas.

III – DO MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU

7. Entende a decisão a quo que o MDE foi correctamente emitido e que não padece de quaisquer enfermidades, por, desde o início, o arguido estar indiciado em um crime de homicídio qualificado.

8. O elemento subjectivo já era conhecido, parecendo ser irrelevante para a decisão, não se apurando se isso teria algum impacto na execução do MDE.

9. Nada disso teria importância se não houvesse a alínea o) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 65/2003, de 23.08 que prevê expressamente que em caso de homicídio, o mesmo deverá ser voluntário.

10. Aquando da emissão do MDE, já havia elementos que levavam a concluir que não era voluntário, pois o arguido não quis matar a vítima.

11. Os factos constantes do MDE, quanto à descrição do sucedido, não correspondem, de forma alguma com o que sucedeu.

12. A Lei que regula o MDE é expressa que, quanto ao homicídio, este deverá ser voluntário e o MP sabia que não seria uma questão linear, pois já tinha elementos que deixavam essa dúvida no ar, encontrando-se numa zona cinzenta.

13. O arguido não mais deseja que transparência nas situações e cumprimento de obrigações processuais, departe a parte, porque é óbvio que o MDE foi incorrectamente formulado.

14. Todos os factos estão interligados e faria sentido serem julgados em conjunto.

15. O acórdão ora recorrido não analisou as questões de emissão do MDE conforme os elementos que foram suscitados, não obstante, também nos parece manifesto que o conteúdo do MDE não é, nem de longe, o mesmo pelo qual o arguido foi acusado, tendo sido o princípio da vinculação temática avassaladoramente esmagado e ignorado, fazendo total sentido que todos os crimes fossem julgados em conjunto.

IV – DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS DO DOLO EVENTUAL VS. NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE

16. Entende a decisão recorrida que não estamos perante qualquer situação de aberratio ictus, atendendo que não há aqui qualquer situação de “não previsibilidade” e mais não se pronuncia quanto à questão da dualidade entre o dolo eventual e a negligência consciente.

17. Por isso, e por cautela, reiteramos todas as questões levantadas quanto a esta problemática.

18. Quanto à questão de aberratio ictus, discordamos atendendo que esse instituto consiste num erro de execução em que vem a ser atingido um objecto diferente daquele que estava no propósito único do autor.

19. E “estar previsto” é nunca passar pela cabeça a previsão, pelo arguido, de atingir qualquer outra pessoa que não o seu propósito.

20.Quanto à pessoa alvo da acção directa é o autor punido por tentativa, enquanto que quanto à outra pessoa, é o autor punido por negligência, porque o arguido nunca vislumbrou a hipótese de poder atingir outra pessoa que não a testemunha GG.

21.O arguido dirigiu o seu disparo à testemunha GG e foi na sequência do disparo que se gerou movimentação de algumas pessoas do local, sendo que manifestamente a vítima FF foi uma das que ao se movimentar, atravessou a trajectória do disparo.

22. O arguido disparou directamente contra a testemunha GG, não o fez “à sorte”.

23. Ao arguido é imputada a prática de um crime de homicídio voluntário sob dolo eventual mas concluímos que sempre estamos perante negligência consciente.

24. Se por um lado o dolo eventual exige a consciência da existência de um perigo concreto, por outro lado, implica que o autor leve a sério esse perigo, implicando que tenha consciência acerca do risco relativamente alto de existir esse perigo, conformando-se com o resultado da acção.

25. Dos factos dados como provados em sede de julgamento, não há nada que indique que o arguido contava com essa possibilidade, quanto mais que a mesma fosse séria.

26. Ao contrário do dolo eventual, a negligência consciente implica que não só o autor reconheça o perigo, como também não tenha consciência da existência do risco concreto por não levar a sério esse perigo.

27. O arguido não representou a possibilidade de a sua conduta provocar a morte da vítima FF, muito menos se conformando com a mesma.

28. Segundo a fórmula de Frank, se o arguido conhecedor do resultado da sua acção, se ainda assim tivesse actuado, estamos perante dolo eventual; se não, estamos perante negligência consciente.

29. As provas produzidas em julgamento apontam no sentido da negligência ou seja, caso o arguido soubesse que com o seu disparo acertaria no FF, não o teria efectuado.

30. O arguido ficou desesperado após constatar que alvejou a vítima FF, em que foi notório que o seu arrependimento foi imediato – o arguido não se conformou, de forma alguma com o resultado.

31. Reitera-se, o arguido nunca deveria ser condenado por homicídio doloso mas sim por homicídio negligente, neste caso consciente.

DA AGRAVANTE DO CRIME DE HOMICÍDIO

32. Quanto a esta questão, o acórdão ora recorrido, repete-se, pronunciou-se de forma insuficiente e, por cautela, também aqui reiteramos as questões que não foram sequer apreciadas mas que foram levantadas.

33. A qualificação do crime de homicídio, por várias vezes foi alterada nas diversas instâncias e o deambular jurídico afecta a estrutura da defesa do recorrente.

34. O recorrente não está a ser julgado por posse de arma e não sendo o seu uso um elemento do crime de homicídio, a agravação pela utilização de uma arma, então, terá de ser vista como um crime autónomo.

35. Sempre teria de se entender que estamos face a uma circunstância modificativa, estando face a um elemento que não faz parte do tipo.

36. Do que resulta, a alteração operada pelo acórdão recorrido traduz-se numa alteração substancial dos factos, devendo o recorrente ser absolvido da agravante.

V – DA PENA

37. Também quanto à medida da pena, foi o douto acórdão muito vago na sua apreciação, tendo basicamente apenas reiterado o que a 1.ª Instância considerou ser importante.

38. O Tribunal não analisou nem ponderou acerca de factos que abonam a favor do arguido, atendendo que a gravidade dos factos não deverão ser os únicos pesos na determinação da pena.

39. Não obstante, é necessário fazer uma abordagem acerca da medida da pena, no que toca à culpa.

40. A pena, justifica-se, dentro do limite imposto pela culpa do arguido, considerando as necessidades de reinserção deste, mas também no que respeita às exigências de prevenção geral.

41. Se a culpa é o pressuposto de aplicação de uma pena, também é o limite da punição porque se assim não fosse, seria o mesmo que punir sem culpa, mas em excesso.

42. É consabido que existe o dolo e a negligência e, dentro daquele, há o dolo eventual, o necessário e o directo.

43. O dolo eventual situa-se num patamar intermédio, sendo o tipo de dolo menos grave dos três, em linha muito ténue com a negligência consciente.

44. Se quanto mais grave é a culpa é, também, necessariamente mais agravante, também quanto menos grave é, mais atenuante será e este critério deverá ter que se ter em conta.

45. Nesse sentido, os Acórdãos do STJ, processo n.º 1057/96, de 97/03/12, processo 37/12.7JACBR.C1.S1, de 27.11.2013 e processo 039201, de 25.11.1987.

46. É necessário analisar e aprofundar o grau de culpa do arguido, sabendo de antemão que o mesmo se situa no nível menos grave do tipo de dolo, com diferenças muito subtis e ténues em relação à negligência.

47. Há, além disso, inúmeros factores que ainda mais atenuantes deveriam ser considerados, a nível pessoal do arguido, seja natureza de condenações anteriores, confissão, arrependimento, etc.

48. A compressão efectuada não é espelho de toda a matéria factual provada, muito menos está proporcional ao nível de culpa do arguido, sendo que foi feita uma taxa de compressão de cerca de ½ o que é, consideravelmente, exagerado.

49. Mostra-se desnecessária, desadequada e desproporcional a pena aplicada, perante os factos dados como provados que influenciam directamente a culpa do arguido, sendo de           fixar uma pena substancialmente inferior à aplicada, sempre perto do mínimo legal estabelecido, sendo possível concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento.

50. Pena essa que nunca deveria ultrapassar os 10 (dez anos) de prisão.

NORMAS VIOLADAS

Violaram-se as disposições citadas ao longo da motivação do recurso.

JUNTA

- DUC e Comprovativo de Pagamento do 2.º dia de multa, nos termos do artigo 107.º-A do Código de Processo Penal

- Substabelecimeto com Reserva

Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e julgar-se conforme o direito.

V. EXAS. FARÃO CONTUDO MELHOR JUSTIÇA!».

1.4. No Tribunal da Relação de Lisboa houve Resposta do Ministério Público, que se pronunciou pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos: (transcrição)

«1 - Não se resignou o arguido AA, com o teor do douto Acórdão desta Relação de Lisboa, que decidiu negar provimento ao recurso, mantendo, máxime, a pena de prisão de 16 anos. pela prática de um crime de homicídio, com dolo eventual.

Aceitando a factualidade dada como provada, o recorrente, suscita de novo, as mesmas questões de direito apresentadas para apreciação no Tribunal da Relação de Lisboa, relativas ao conteúdo do Mandado de Detenção Europeu (MDE), ao enquadramento jurídico dos factos e à medida da pena única, alegando ter ocorrido omissão de pronúncia.

É consabido que na motivação de um acórdão não existe uma obrigatoriedade a uma análise aprofundada de todas as deduções das partes, sendo suficientes que, por efeito de uma valoração global daquelas deduções e elementos, aquele explique, de forma lógica e adequada, as razões que determinaram a sua convicção, assim demonstrando que considerou todos os factos decisivos.

Quando assim, ocorre, como in casu sucedeu com o Acórdão recorrido, devem considerar-se desatendidas as deduções da defesa, que ainda que não completamente explicitadas, sejam logicamente incompatíveis com a decisão adoptada.

Porque a matéria de facto mantém-se inalterada e porque as questões de direito já foram objecto de parecer por parte do M°P° de 1ª instância, aqui se renova a concordância com os fundamentos de facto e de direito contidos naquela peça processual.

Aditaremos, no entanto, as seguintes considerações.

Quanto à matéria do MDE:

É princípio estruturante do processo penal o princípio do processo justo.

O M° P° como impulsionador do mecanismo processual legal do MDE deve ser também construtor de um processo justo, necessariamente orientado, de forma linear e objectiva, para a procura da verdade.

Tal princípio não admite pois inscrever no seu perfil a admissibilidade de condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal nos termos sugeridos pelo recorrente, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores.

A questão concreta suscitada é a de saber se os termos em que foram descritos os factos atribuídos ao arguido no MDE, sem alusão ao elemento subjectivo do tipo legal referido, constitui uma violação de uma situação de expectativa no arguido, no sentido de que o cumprimento do mandado o colocou perante uma situação nova, e não esperada, de extensão do mandado, convocando-se assim uma situação de deslealdade processual, porque intencionalmente querido, como sugere aquele.

A resposta é decididamente negativa, pelas razões aludidas na resposta ao recurso apresentada pelo M°P° de 1ª instância e por aquelas doutamente explicitadas no acórdão recorrido.

Em rigor, o arguido no MDE nunca foi confrontado perante situação nova, ou matéria ampliada que não estivesse descrita na factualidade que lhe era atribuída, tendo tido de resto, no processo próprio, dada a possibilidade de exercer os seus direitos.

Quanto ao enquadramento jurídico dos factos:

Conhece-se a dinâmica dos mesmos.

O arguido atingiu, através de um disparo com o revólver que empunhava, pessoa diversa do que pretendia.

Fê-lo, conforme matéria dada como provada, prevendo e aceitando tal possibilidade, o que constitui dolo eventual.

Assim, naturalmente, este erro sobre o objecto, que surge não no processo de formação da vontade, mas na fase em que a vontade se realiza no plano dinâmico, não o afasta da responsabilidade penal de responder, tal como se tivesse praticado o crime contra a pessoa pretendida, como bem decidiu o douto acórdão recorrido.

Quanto à medida da pena única:

Verifica-se que o arguido agiu com dolo eventual.

Na determinação da medida da pena funcionam os critérios do art° 72 do Código Penal, dominado pelo binómio culpa e prevenção, conjugado com as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal, atenuem ou agravem a culpa do arguido.

Demonstrou um firme propósito de ofender corporalmente um ser humano, representando a possibilidade da morte deste e conformando-se com tal possibilidade.

Determinou o momento propício à realização dos seus intentos, com pleno domínio funcional da acção de disparo com arma de fogo, na direcção por onde fugia a -pessoa que queria efectivamente atingir, revelando assim pleno juízo de ânimo e reflexão sobre o meio empregado, que era um revolver, o que assume um acentuado relevo agravativo.

O arguido já tem sete (7) condenações anteriores, tendo cumprido todas as penas, entre estas uma condenação decidida em 2009, por factos ocorridos em 2006. pela prática de homicídio, na forma tentada.

A gravidade do crime cometido, o impacto que tem na comunidade tal crime, e a circunstância de o arguido já ter sido condenado por ilícito da mesma natureza, não obstante na forma tentada, terão, pois, que ser tidos em conta, o que manifestamente ocorreu conforme se lê do douto acórdão recorrido.

Assim, uma vez que se nos afigura realizada a apreciação da necessidade de prevenção reclamada, então a natureza e «quantum» concreto da pena escolhida, de 16 anos de prisão, se deve manter intocada.

EM CONCLUSÃO:

Consequentemente, se pugna pela improcedência do recurso.

Vossas Excelências, porém, apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA».

1.5. Neste Supremo Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos: (transcrição)

«1 - O arguido e ora recorrente AA, foi submetido a julgamento no Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., vindo a ser condenado, por acórdão proferido a 9/10/2020, pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelos artigos 131° do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86°, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão; e também no pagamento de indemnização aos pais da vítima no âmbito do pedido cível deduzido.

2 - Inconformado com essa decisão da mesma interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Arguiu irregularidades na emissão do Mandado de Detenção Europeu que esteve subjacente à sua entrega ao Estado português, designadamente a “manifesta discrepância entre o conteúdo do MDE e da acusação”, irregularidades que entende determinarem a invalidade do MDE e actos subsequentes e a consequente absolvição do crime que lhe é imputado. Argumenta que interpretação “em sentido contrário, nos termos do artigo 2°, nº 2, alínea o) e artigo 7.°, n.º 1 da Lei 65/2003, de 23.08, bem como os artigos 29.° e 30.° do Código de Processo Penal, inquina estas normas de inconstitucionalidade material por desrespeito aos artigos 16.°, 17.°, 18.° e 32.° da Constituição da República Portuguesa”.

Questionou o enquadramento jurídico dos factos, entendendo que está em causa uma actuação negligente e não dolosa, ainda que com dolo eventual e entende, também, que não há lugar ao agravamento decorrente do artigo 86.°, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro. Também quanto a esta parte da decisão invoca a violação do disposto nos arts 16.°, 17.°, 18.° e 32.° da Constituição da República Portuguesa.

Insurgiu-se, ainda, o arguido contra o segmento da decisão relativa à determinação da medida da pena, considerando que a mesma é elevada e manifestamente exagerada.

Porém, aquele Tribunal da Relação, por acórdão de 10/02/2021, julgou totalmente improcedente o recurso e manteve na íntegra a decisão de 1ª Instância.

3 - Ainda inconformado, recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal, dizendo expressamente que: “A divergência do recorrente prende-se, no essencial, sobre a omissão de pronúncia, reiterando as questões levantadas relacionadas com o conteúdo do Mandado de Detenção Europeu, com o enquadramento jurídico dos factos e com a medida da pena única aplicada, que não foram devida e suficientemente alvo de pronúncia”.

4 - O Magistrado do Mº Pº no Tribunal da Relação de Lisboa apresentou resposta ao recurso pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.

5 - Não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP.

Questão Prévia

6 - No entanto, o recurso não pode ter a abrangência pretendida pelo recorrente.

Com efeito, o arguido e ora recorrente pretende ver reapreciadas por este Supremo Tribunal questões decididas em definitivo pelo Tribunal da Relação.

Desde logo as que respeitam à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Como decorre do disposto no art. 434, do CPP “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”, sem prejuízo de se conhecer oficiosamente de qualquer um dos vícios da sentença, previstos no nº 2, do art. 410, do CPP, caso se verifiquem.

Ora, o recorrente reedita perante este Supremo Tribunal questões relativas à decisão sobre a matéria de facto que já suscitara no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em concreto, a questão de saber se o arguido actuou com dolo eventual ou com negligência ao efectuar o disparo que atingiu a vítima FF.

Com efeito, o recorrente afirma que “o arguido não representou a possibilidade de a sua conduta provocar a morte da vítima FF, muito menos se conformando com a mesma” e que as provas produzidas em julgamento apontam “no sentido da negligência, ou seja, caso o arguido soubesse que com o seu disparo acertaria no FF, não o teria efectuado”.

Ora esta argumentação do recorrente põe em causa os factos dados como provados nos pontos 15 a 17, da decisão de facto, de que consta o seguinte:

“15) O arguido, ao disparar na direcção do local onde se encontravam várias pessoas, nomeadamente o GG, o FF e o HH, pretendia atingir o GG, o que não conseguiu, mas representou como consequência possível da sua conduta atingir qualquer das pessoas que ali se encontravam, nomeadamente o FF no corpo, em zona vital, e dessa forma provocar-lhe a morte, não obstante conformou-se com esse resultado, o que alcançou.

16) O arguido conhecia as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte de qualquer pessoa.

17) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Esta factualidade impõe a conclusão retirada pelo Tribunal da 1ª instância e reafirmada pelo Tribunal da Relação, de que o arguido actuou com dolo eventual e cometeu um crime de homicídio voluntário.

Do mérito

7 - O recorrente alega que a decisão recorrida cometeu “a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), aplicável aos acórdãos proferidos em recurso face ao artigo 425.º, n. º 4, ambos do Código de Processo Penal, porque o douto acórdão agora em crise “deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar”.

Argumenta que o acórdão tinha o dever de se pronunciar sobre todas as questões suscitadas e que não se pronunciou, impedindo o arguido de ver essas questões decididas e que “sobre o que se pronunciou, fê-lo de forma absolutamente vaga e genérica”.

Afigura-se-nos, porém, que lhe não assiste qualquer razão, pois o Tribunal recorrido elencou e pronunciou-se sobre todas as questões colocadas. O sentido dessa pronúncia é que não satisfaz o recorrente.

Acresce que o Tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões, de facto e de direito, relevantes para uma justa decisão, mas não sobre todos e cada um dos argumentos aduzidos pelos recorrentes.[1]

Assim, entendemos que o acórdão em causa não padece de qualquer nulidade e não violou o disposto no art. 379, nº 1, al. c), do CPP

8 - O recorrente insiste que o MDE emitido no inquérito e que determinou a sua entrega ao Estado Português pelas autoridades holandesas enferma de várias irregularidades que determinam a sua invalidade.

Todavia, quer a decisão de 1ª instância quer a decisão recorrida escalpelizaram as questões suscitadas e de forma clara e fundamentada explicaram porque não procede o entendimento e críticas veiculados pelo recorrente.

Subscrevemos inteiramente o decidido naqueles acórdãos quanto a esta questão, e consideramos tal como o Magistrado do Mº Pº no Tribunal recorrido, que não se verifica qualquer irregularidade ou deficiência no MDE emitido, que ponha em causa a sua validade, ou a dos actos subsequentes.

9 - O recorrente questiona o enquadramento jurídico dos factos efectuado pelo Tribunal de 1ª instância e mantido pelo Tribunal recorrido.

Como se referiu atrás, a conclusão de que o arguido e ora recorrente actuou com dolo eventual decorre dos factos dados como provados e na fundamentação da decisão de facto consigna-se o processo lógico-dedutivo que subjaz a essa ilação, afigurando-se-nos que essa apreciação respeita as regras da lógica, da ciência e da experiência e não está inquinada por qualquer um dos vícios previstos no art. 410, nº 2, do CPP, que embora não possam constituir fundamento de recurso, podem ser conhecidos oficiosamente por este Supremo Tribunal caso se verifiquem.

Discorda também o recorrente da agravação da pena do crime de homicídio, nos termos do disposto no art.86, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Mas também neste segmento a decisão recorrida, corroborando a decisão de 1ª instância, é clara e esclarecedora, consignando as razões subjacentes a essa agravação, mormente a diferenciação entre o agravamento da pena decorrente desse normativo e a qualificação do crime de homicídio prevista na al. h), do nº 2, do art. 132º, do Código Penal e que foi afastada naquelas decisões.

10 - O recorrente insurge-se, ainda, quanto à medida da pena aplicada, mas, igualmente sem qualquer fundamento.

E também neste segmento sufragamos o entendimento expresso na resposta apresentada pelo Magistrado do Mº Pº no Tribunal da Relação de Lisboa.

A decisão recorrida observou na determinação do quantum da pena a fixar, os princípios decorrentes nos artigos 40 e 71, do Código Penal, fez uma ponderação das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, valorou correctamente o grau de culpa manifestado, a ilicitude e as exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem, mostrando-se a pena adequada e proporcional, não havendo qualquer fundamento para que a mesma seja reduzida.

Em conformidade com o exposto, o recurso interposto, limitado à decisão de direito, deverá, a nosso ver, ser julgado improcedente».

1.6. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.

1.7. O arguido apresentou resposta mantendo a posição assumida na motivação de recurso.

1.8. Com dispensa de Vistos legais, não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência.


***


2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Nas Instâncias foram dados como provados os seguintes factos: (transcrição):

1) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias ... e ... de Agosto de 2019, o arguido AA deslocou- se ao Juízo de Família e Menores do ... a fim de tratar de assuntos relacionados com a regulação do exercício das responsabilidades parentais do filho que tem em comum com II.

2) Nesse dia, à porta do Tribunal, houve uma troca de palavras não concretamente apuradas entre o arguido e GG, irmão de II.

3) No dia ... de Agosto de 2019, pelas 19.00 horas, o GG encontrava-se nas escadas que vão dar à Praceta …, em …, onde se encontravam igualmente, espalhados pelas referidas escadas e no seu topo o FF, HH, JJ, LL, MM, NN e OO.

4) O arguido dirigiu-se àquele local, levando consigo um revólver, municiado, numa bolsa.

5) O arguido retirou tal arma da bolsa onde o transportava e abordou o GG apontou-lha e perguntou-lhe "e agora?", ao que GG respondeu "e agora o quê?" e voltou-lhe as costas.

6) Ato contínuo, o arguido desferiu uma pancada com a coronha do revólver nas costas de GG.

7) Em resposta, o GG, virou-se de frente para o arguido, e desferiu-lhe um pontapé no corpo, que levou a que o mesmo caísse e largasse a arma que tinha na mão.

8) Ambos fizeram menção de agarrar a arma que estava no chão, mas apercebendo-se de que o arguido conseguiria alcançar primeiro o revólver, o GG desferiu-lhe outro pontapé que levou a que este voltasse a cair, descendo alguns degraus da escada, e não conseguisse de imediato agarrar a arma.

9) Após o GG encetou a fuga subindo as escadas a correr, seguindo no sentido contrário onde estava o arguido, por forma a fugir do local.

10) O arguido agarrou na arma, levantou-se e efectuou dois disparos na direcção do cimo das escadas, no sentido para onde o GG se tinha dirigido.

11) Um dos disparos que o arguido efectuou atingiu o FF na região occipital esquerda, sendo que o FF estava no topo das escadas a dirigir-se para a esquina do prédio, por forma a proteger-se.

12) O outro disparo atingiu HH, que estava sentado no muro existente na parte superior das escadas, ligeiramente à direita destas atento o sentido do disparo. O HH foi atingido na sua região frontal, sofrendo lesões físicas.

13) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, FF sofreu extensas infiltrações hemorrágicas na região fronto-temporo-parietal esquerda do couro cabeludo e no músculo temporal, fratura cominutiva do osso occipital esquerdo, subjacente a ferida contuso-perfurante, com perda de substância óssea, no rochedo temporal esquerdo, laceração da dura-mater e das leptomeninges, hemorragia subdural sob o hemisfério esquerdo, múltiplos focos de contusão no hemisfério esquerdo, laceração do encéfalo em túnel no hemisfério esquerdo e múltiplas esquírolas ósseas espalhadas ao longo do trajeto traumático no hemisfério esquerdo.

14) Estas lesões traumáticas crânio encefálicas-graves foram produzidas pelo projétil da arma de fogo usada pelo arguido e determinaram, directa e necessariamente, a morte de FF ainda no dia 27-08-2019, pelas 21h56m.

15) O arguido, ao disparar na direcção do local onde se encontravam várias pessoas, nomeadamente o GG, o FF e o HH, pretendia atingir o GG, o que não conseguiu, mas representou como consequência possível da sua conduta atingir qualquer das pessoas que ali se encontravam, nomeadamente o FF no corpo, em zona vital, e dessa forma provocar-lhe a morte, não obstante conformou-se com esse resultado, o que alcançou.

16) O arguido conhecia as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte de qualquer pessoa.

17) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Do pedido de indemnização civil:

18) FF, nasceu em .../11/2000, filho de DD e de EE e aquando da morte vivia com a mãe.

19) O FF era um jovem com gosto pela vida, e era considerado e estimado pelos familiares e pelos amigos.

20) O FF era próximo dos seus pais.

21) FF planeava emigrar por forma a melhorar a sua situação económica.

22) Os assistentes, pais do FF, ficaram muito desgostosos e tristes com a morte do seu filho.

23) A assistente, DD, estava em casa, ouviu os tiros saiu de casa e viu o filho caído no chão, baleado.

24) Os assistentes recordam diariamente o desaparecimento do seu filho. Mais se provou que:

25) O arguido foi condenado:

a) Por sentença proferida em 30-06-2004, transitada em julgado em 14-07-2004, no processo sumário 1031/04……. Juízo Criminal ..., na pena de 75 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-06-2004. A pena foi declarada extinta pela prescrição;

b) Por sentença proferida em 27-04-2007, transitada em julgado em 05-07-2007, no processo comum singular 45/04……… Juízo Criminal…, na pena única de 220 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por factos de ...-01-2004. A pena foi declarada extinta por prescrição;

c) Por acórdão proferido em 02-03-2009, transitada em julgado em 01-04-2009, no processo comum coletivo 1096/06… do Juízo Central Criminal …... - Juiz …, na pena de 4 anos de prisão, suspensa pelo mesmo período com regime de prova, pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, por factos de ...-10-2006. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento;

d) Por acórdão proferido em 30-04-2010, transitado em julgado em 12-11-2010, no processo comum coletivo 40/06……… Juízo Criminal ..., na pena de 9 meses de prisão, suspensa por um período de um ano, pela prática de um crime de falsidade de depoimento, por factos de ...-032006. A pena foi declarada extinta;

e) Por sentença proferida em 11-10-2012, transitado em julgado em 01-09-2014, no processo sumário 1135/12…… Juízo Criminal ……, na pena de 7 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por um ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-10-2012. A pena foi declarada extinta;

f) Por sentença proferida em 18-11-2015, transitado em julgado em 18-12-2015, no processo comum singular 6/12… do Juízo Local Criminal ...… - Juiz …, na pena de 120 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-04-2011. A pena foi declarada extinta.

g) Por sentença proferida em 22-11-2011, transitado em julgado em 21-01-2019, no processo sumário 1976/11… do Juízo Local de Pequena Criminalidade ......, na pena de 6 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-10-2011. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

26) O desenvolvimento de BB decorreu no contexto de uma dinâmica familiar funcional, tendo, alegadamente, existido um acompanhamento educativo e afetivo por parte dos pais. Contudo, desde idade precoce, o arguido foi exposto a um contexto social de violência e marginalidade. O arguido tem consciência de que no bairro, onde cresceu, grassa uma sub-cultura marginal com regras e valores específicos, os quais aprendeu a conhecer bem.

27) Em termos escolares, o arguido descreveu-se como tendo sido um aluno pouco investido, que a partir do 5° ano sofreu retenções consecutivas associadas a elevado absentismo, não justificado, fraco aproveitamento e desinteresse pelas matérias escolares. Em vez da escola, o arguido manifestou, de forma consistente, a preferência pelas vivências de rua, pelos comportamentos desviantes, tendo afiliando-se a grupo de pares formados por jovens, do seu bairro, com idênticos estilos de vida. O arguido conseguiu concluir, com dificuldade o 6° ano.

28) Aos 14 anos, BB começou a trabalhar com o pai na construção civil, área na qual foi desenvolvendo atividade, apesar de ter tido, ao longo do seu percurso de vida, vários e, alguns longos, períodos de desocupação que facilitaram a emergência de rotinas socialmente desajustadas.

29) Aos 24 anos, o arguido autonomizou-se do seu agregado de origem.

30) BB manteve relacionamento com PP, com quem tem um filho, QQ, de 11 anos. A relação terá tido um carácter fortuito e conflituoso. O arguido afirmou, neste contexto, que lhe foi sendo dificultado, ao longo do tempo, os contactos com o filho menor, atribuindo a PP a responsabilidade pela agressividade existente.

31) Neste contexto, o arguido referiu que, antes dos alegados fatos subjacentes ao presente processo, terão existido episódios de violência, com recurso a armas de fogo, tendo BB adotado um discurso vitimizado. O seu filho QQ terá sido exposto a estas situações, não tendo o arguido avaliado o impacto que de tal adveio, em termos emocionais, para este, adotando um discurso autocentrado e sem capacidade de censura pessoal. O arguido não foi capaz de apresentar estratégias que teriam sido alternativas socialmente adequadas ao comportamento violento, parecendo considerar que o padrão de comunicação e de resolução de problemas, adotado por si, era o único possível.

32) O arguido estabeleceu, há cerca de 11 anos, relacionamento afetivo com RR (... anos), com quem tem um filho, SS, atualmente com 6 anos. O arguido descreveu, esta relação, como emocionalmente gratificante. O casal residiu, inicialmente, em ... da ..., posteriormente, em ... e, mais recentemente na ..., sendo que o arguido se deslocaria, com frequência ao seu bairro de origem para visitar, o filho QQ, familiares e amigos. Em termos habitacionais e financeiros, o casal dispunha de uma situação estável e adequada às suas necessidades.

33) BB, procurando transmitir uma imagem que considerou positiva e adequada ao contexto.

34) Relativamente ao presente processo, o arguido manifestou, ao nível do discurso, consciência da gravidade dos alegados factos, tendo procurado justificar, racionalmente, a sua conduta.

35) No Estabelecimento Prisional e, até à presente data, o arguido, tem vindo a cumprir, de forma geral, as regras e normas institucionais, estando inscrito na Escola. Em termos de visitas, BB tem vindo a receber apoio regular de familiares e amigos.

36) O arguido apresenta um défice de competências pessoais e sociais (controlo de impulsos, comunicação, resolução de problemas), e tem uma atitude de tolerância face ao desvio, à sua propensão para atribuição externa da responsabilidade, às suas fragilidades de censura pessoal e inabilidade para delinear estratégias alternativas socialmente adequadas ao comportamento violento.


***


3. O DIREITO

3.1. O objeto do presente recurso atentas as conclusões da motivação do recorrente, que delimitam o objeto do recurso, prende-se com as seguintes questões:

- O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), e artigo 425.º, n. º 4, ambos do CPP, por omissão de pronúncia;

- O MDE emitido no inquérito e que determinou a sua entrega ao Estado Português pelas autoridades holandesas enferma de várias irregularidades que determinam a sua invalidade.

- o enquadramento jurídico-penal dos factos, mormente quanto à agravação do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, conjugado com o disposto no artigo 86º, nº 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, e no caso se verifica uma situação de aberratio ictus;

- a dosimetria da pena.


3.1.1. Por seu turno a Exmª PGA neste Supremo Tribunal de Justiça, suscita a questão prévia, da inadmissibilidade do recurso quanto à matéria de facto, alegando o seguinte:

«O arguido e ora recorrente pretende ver reapreciadas por este Supremo Tribunal questões decididas em definitivo pelo Tribunal da Relação.

Desde logo as que respeitam à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Como decorre do disposto no art. 434º, do CPP “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”, sem prejuízo de se conhecer oficiosamente de qualquer um dos vícios da sentença, previstos no nº 2, do art. 410, do CPP, caso se verifiquem.

Ora, o recorrente reedita perante este Supremo Tribunal questões relativas à decisão sobre a matéria de facto que já suscitara no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em concreto, a questão de saber se o arguido atuou com dolo eventual ou com negligência ao efetuar o disparo que atingiu a vítima FF.

Com efeito, o recorrente afirma que “o arguido não representou a possibilidade de a sua conduta provocar a morte da vítima FF, muito menos se conformando com a mesma” e que as provas produzidas em julgamento apontam “no sentido da negligência ou seja, caso o arguido soubesse que com o seu disparo acertaria no FF, não o teria efectuado”.

Ora esta argumentação do recorrente põe em causa os factos dados como provados nos pontos 15 a 17, da decisão de facto, de que consta o seguinte:

“15) O arguido, ao disparar na direcção do local onde se encontravam várias pessoas, nomeadamente o GG, o FF e o HH, pretendia atingir o GG, o que não conseguiu, mas representou como consequência possível da sua conduta atingir qualquer das pessoas que ali se encontravam, nomeadamente o FF no corpo, em zona vital, e dessa forma provocar-lhe a morte, não obstante conformou-se com esse resultado, o que alcançou.

16) O arguido conhecia as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte de qualquer pessoa.

17) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”

Esta factualidade impõe a conclusão retirada pelo Tribunal da 1ª instância e reafirmada pelo Tribunal da Relação, de que o arguido actuou com dolo eventual e cometeu um crime de homicídio voluntário».

Vejamos:

O Supremo Tribunal de Justiça tem a natureza de um tribunal de revista, versando os recursos que lhe sejam dirigidos exclusivamente matéria de direito.

Com efeito, consagra o art. 434º, do CPP, relativamente aos poderes de cognição «Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito».

No que respeita à matéria de facto compete ao Tribunal da Relação, nos termos do art. 428º, do CPP, «As relações conhecem de facto e de direito».

Assim sendo quanto à alteração da matéria de facto não é da competência deste Supremo Tribunal.

O Tribunal da Relação de Lisboa apreciou e examinou a matéria de facto impugnada pelo recorrente, nos termos do citado art. 428º, do CPP.

Assim sendo, quanto à matéria de facto, o recurso é rejeitado, por inadmissibilidade legal do conhecimento da matéria de facto, nos termos do art. 420º, n.º 1 b), 414º n.º 2 e 434º do CPP.


3.1.2. Conhecendo agora do objeto do recurso do arguido:

Vejamos se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), via artigo 425.º, n. º 4, ambos do CPP, por omissão de pronúncia.

De harmonia com o disposto no art. 379º, nº1, do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do art. 425º, nº4, do mesmo compêndio normativo, «É nula a sentença: (...)

«c) Quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»

Tal normativo prevê a nulidade da sentença ou do acórdão proferido em recurso, por omissão ou excesso de pronúncia.

O recorrente alega que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora não se pronunciou sobre todas as questões por si suscitadas, no recurso que interpôs da decisão proferida em 1ª Instância; impunha-se que o acórdão descesse a cada motivação e conclusão do recorrente e, de forma fundamentada, explicitasse as razões do indeferimento das pretensões do arguido, contrariando, fundadamente, o porquê desse entendimento. Sobre o que se pronunciou, fê-lo de forma absolutamente vaga e genérica, muitas vezes remetendo para aquilo que já foi escrito em sede do acórdão ora recorrido, bem como à própria ponderação que o Ministério Público fez acerca do parecer ao recurso, pelo que que deverá ser considerado nulo, por padecer do vício de omissão de pronúncia, tendo sido violado o art. 379º, nº1, al. c), do Código Proc. Penal, e o art. 205º da CRP».


Analisando o acórdão recorrido, verifica-se que o mesmo conheceu das questões de facto e de direito suscitadas nas conclusões do recurso, ou seja, do objeto do recurso, designadamente as invocadas irregularidades do MDE, a matéria de facto impugnada pelo recorrente, o enquadramento jurídico-penal, a medida da pena.

Como salienta a Exmª Procuradora Geral Adjunta, o Tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões, de facto e de direito, relevantes para uma justa decisão, mas não sobre todos e cada um dos argumentos aduzidos pelos recorrentes.[2]

No caso subjudice, é manifesto que o acórdão recorrido não enferma da nulidade por omissão de pronúncia invocada pelo recorrente, não se mostrando violado o art. 379º, nº 1, al. c), do Código Proc. Penal, nem o art. 205º da CRP, pelo que improcede nesta parte o recurso do arguido.


3.1.3. Conhecendo da segunda questão suscitada, ou seja: o MDE emitido no inquérito e que determinou a sua entrega ao Estado Português pelas autoridades holandesas enferma de várias irregularidades que determinam a sua invalidade.

O Tribunal “a quo” fundamentou da seguinte forma as invocadas irregularidades do MDE:

«Relativamente ao MDE verificamos facilmente pela leitura do mesmo que se refere a um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e 142º nº 1 e 2 e) e h) CP – com pena de prisão de 12 a 25 anos e que, do mesmo, consta a descrição dos factos - data e hora referência a uso de arma de fogo de tipo ainda não concretamente apurado na altura com a qual deferiu um despacho na direção do FF atingindo-o na zona temporo parietal esquerda com resultado morte. Do mesmo consta que agiu com o propósito de lhe tirar a vida de forma livre deliberada e consciente. Sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Consta ainda que o arguido se colocou em fuga.

Tudo isto em pormenor consta do despacho do MP datado de 14.10.19 e do Mandado com a mesma data assinado pelo Mmº JIC.

Até da Proposta do Gabinete Nacional Sirene consta o crime e o artigo correspondente.

Também resulta do auto de 1º Interrogatório que o arguido foi identificado e informado dos factos que o trouxeram á presença do JIC coincidindo o despacho final com o crime de homicídio qualificado ppp artº 131º e 132º nº 1 e 2 e) e h) CP pelo que ficou sujeito á medida de coação de prisão preventiva.

O despacho de acusação resulta que o arguido pretendia atingir o GG vindo com o seu disparo a tingir o FF. Da mesma resulta que estavam várias pessoas no local e toda descrição do elemento subjectivo.

Acusado foi por um crime de homicídio qualificado na forma tentada

Um crime de homicídio qualificado na forma consumada – artºs 131 e 132º nº 1 e 2 h) CP.

Um crime de ofensa à integridade física 143º nº 1 e 145º nº 1 a) e nº 2 com referência ao artº 132º nº 2 b).

Um crime de detenção de arma proibida.

Do MDE deve resultar de acordo com a lei nº 65/2003 – artº 3º nº 1 –

a) Identidade e nacionalidade da pessoa procurada;

b) Nome, endereço, número de telefone e de fax e endereço de correio electrónico da autoridade judiciária de emissão;

c) Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1.º e 2.º;

d) Natureza e qualificação jurídica da infracção, tendo, nomeadamente, em conta o disposto no artigo 2.º;

e) Descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção da pessoa procurada;

f) Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado membro de emissão para essa infracção;

g) Na medida do possível, as outras consequências da infracção.

2 - O mandado de detenção deve ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro de execução ou noutra língua oficial das instituições das Comunidades Europeias aceite por este Estado, mediante declaração depositada junto do Secretariado-Geral do Conselho.

De acordo com o artº 2º do mesmo diploma

1 - O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses.

2 - Será concedida a extradição com origem num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as seguintes infracções, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos:

a) Participação numa organização criminosa;

b) Terrorismo;

c) Tráfico de seres humanos;

d) Exploração sexual de crianças e pedopornografia;

e) Tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas;

f) Tráfico ilícito de armas, munições e explosivos;

g) Corrupção;

h) Fraude, incluindo a fraude lesiva dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, na acepção da convenção de 26 de Julho de 1995 relativa à protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias;

i) Branqueamento dos produtos do crime;

j) Falsificação de moeda, incluindo a contrafacção do euro;

l) Cibercriminalidade;

m) Crimes contra o ambiente, incluindo o tráfico ilícito de espécies animais ameaçadas e de espécies e essências vegetais ameaçadas;

n) Auxílio à entrada e à permanência irregulares;

o) Homicídio voluntário e ofensas corporais graves;

p) Tráfico ilícito de órgãos e de tecidos humanos;

q) Rapto, sequestro e tomada de reféns;

r) Racismo e xenofobia;

s) Roubo organizado ou à mão armada;

t) Tráfico de bens culturais, incluindo antiguidades e obras de arte;

u) Burla;

v) Extorsão de protecção e extorsão;

x) Contrafacção e piratagem de produtos;

z) Falsificação de documentos administrativos e respectivo tráfico;

aa) Falsificação de meios de pagamento;

bb) Tráfico ilícito de substâncias hormonais e outros factores de crescimento;

cc) Tráfico ilícito de materiais nucleares e radioactivos;

dd) Tráfico de veículos roubados;

ee) Violação;

ff) Fogo posto;

gg) Crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional;

hh) Desvio de avião ou navio;

ii) Sabotagem.

3 - No que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação.

Verificamos pois que não há qualquer uso ardiloso do MDE enviado nem qualquer choque com a matéria pela qual o arguido veio a ser acusado, julgado e condenado.

Indicia-se um homicídio qualificado desde o início e é sempre isso que vai constando nos autos. O MDE não se encontra contaminado por nada, antes contendo em si os elementos necessários a dar conhecimento à entidade a quem é pedido cumprimento do MDE - art 3°, 1, a), d), e) e g), RJMDE e a referida DQ do Conselho, 2002, 584/JAI, 13.06. Das razões pelas quais o mesmo é solicitado podendo e devendo a mesma dar ao visado, o conhecimento do que sobre ele recai sabendo desde logo a que factos irá responder e de que que factos deverá e poderá defender-se.

Acresce que não tem o MP de, antes da terminar a investigação delinear todos os elementos indiciados com o mínimo pormenor o que terá e deverá, contudo, fazer na dedução da acusação de acordo com o disposto nos artigos artºs 141°, 283°, 307° ou 374°, CPP.

Num MDE a entidade a quem é solicitado o seu cumprimento não tem de questionar factos indícios ou matéria a provar. Apenas tem de comunicar o ilícito pelo qual se pede o cumprimento do mesmo.

Todos os direitos de defesa necessários á diligência foram garantidos e nem o arguido argumentou no acto que não tivessem sido, nem o seu defensor.

Por fim, quanto à validade dos MDE, e como muito bem refere o MP na sua resposta, ao pedir a emissão do mesmo, ancorou-se na informação sobre os indícios que já possuía e que até apontava para a forma intencional, artº 14°,1, CP, e que depois foi corrigida na acusação para a modalidade menos intensa, do artº 14°, 3, CP) um mês após os factos.

O recorrente começa por discutir o conteúdo do MDE para depois colocar em causa a factualidade discutida e apurada em audiência passando a tentar introduzir uma aberratio ictus argumentando “que já se sabia que o disparo era para a testemunha GG e que os disparos poderiam ter sido acidentais.”

As autoridades holandesas não tinham de ser confrontadas com um julgamento que ainda nem tinha tido lugar, tinham apenas de dar cumprimento ao MDE e observar o que lhes era pedido para que o arguido fosse sujeito ao sistema de Justiça Português, pelos factos indicados.

Se entende que “em vários países o nosso dolo eventual não é mais que negligência grosseira e o MDE poderia não ter sido executado” é estranho que não avance afirmando que assim é na Holanda e fundamente com a lei existente.

Pergunta-se pelo princípio da especialidade do qual nem o recorrente sequer fala. Há que não esquecer que, na parte em que a acusação extrapolava o teor do que constava do mandado de detenção europeu, e por essa via, não poderia ser decidido nos presentes autos sob pena de violação do princípio da especialidade a que alude o artigo 7.° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, foi determinada a separação de processos, nos termos do disposto no artigo 30.° CPP, referente a todos os factos e qualificação jurídica que excedam aquele que consta do teor do aludido mandado.

E em nome do princípio da especialidade, a separação processual e depois da adesão do M°P° e do deferimento pelo Colectivo, foi respeitada até ao final do processo em qualquer oposição do arguido ou do seu defensor o que parece agora não coincidir com o que consta do recurso interposto».


O MDE não enferma de qualquer nulidade ou irregularidade, e, como bem salienta o Ministério Público na Resposta à motivação de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, «o arguido nunca foi confrontado perante situação nova, ou matéria ampliada que não estivesse descrita na factualidade que lhe era atribuída, tendo tido de resto, no processo próprio, dada a possibilidade de exercer os seus direitos».

Neste sentido, improcede nesta parte o recurso do arguido.


3.1.4. Conhecendo do enquadramento-jurídico-penal da conduta do arguido.

O recorrente vem de novo suscitar a questão do enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, mormente quanto à agravação do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, conjugado com o disposto no artigo 86°, nº 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, alegando que se verifica uma situação de aberratio ictus;

Vejamos:

Relativamente à questão de se verificar uma situação de aberratio ictus, como supra se referiu constitui matéria de facto, pelo que este Supremo Tribunal não pode conhecer da mesma, uma vez que conhece apenas de direito, sendo que o Tribunal da Relação de Lisboa, conheceu de tal questão.


Quanto à agravação do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131° do Código Penal, conjugado com o disposto no artigo 86°, n° 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.

Alega o recorrente que «33. A qualificação do crime de homicídio, por várias vezes foi alterada nas diversas instâncias e o deambular jurídico afecta a estrutura da defesa do recorrente.

34. O recorrente não está a ser julgado por posse de arma e não sendo o seu uso um elemento do crime de homicídio, a agravação pela utilização de uma arma, então, terá de ser vista como um crime autónomo.

35. Sempre teria de se entender que estamos face a uma circunstância modificativa, estando face a um elemento que não faz parte do tipo.

36. Do que resulta, a alteração operada pelo acórdão recorrido traduz-se numa alteração substancial dos factos, devendo o recorrente ser absolvido da agravante».

Antes do mais importa ter presente que o Tribunal Coletivo, conforme resulta do acórdão da 1ª Instância na audiência de julgamento, após o confronto entre o teor da acusação e do mandado de detenção europeu, confirmou-se que o mesmo apenas fazia menção aos factos que levaram ao falecimento de FF e à qualificação jurídica daí decorrente (prática de um crime de homicídio qualificado), pelo que reconhecendo-se que a acusação extrapolava o teor do que constava do mandado de detenção europeu, e por essa via, não poderia ser decidido nos presentes autos sob pena de violação do princípio da especialidade a que alude o artigo 7.º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, foi determinada a separação de processos, nos termos do disposto no artigo 30.º do Código de Processo Penal, referente a todos os factos e qualificação jurídica que excedam aquele que consta do teor do aludido mandado.

Assim, os presentes autos continuaram para julgamento do arguido quanto à prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na qual a vítima é FF e para apuramento da responsabilidade civil do arguido daí decorrente.

Em sede de audiência de julgamento foi comunicada a suscetibilidade de os factos integrarem a prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, conjugado com o artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro».

O Tribunal Coletivo fundamentou da seguinte forma o enquadramento jurídico-penal

«O arguido encontra-se acusado pela prática, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 131° e 132°, n.º 1 e 2, alínea h), do Código Penal, tendo de ser equacionada a possibilidade de, caso não se mostre preenchido o elemento qualificativo a que alude o artigo 132° ser a pena agravada nos termos do disposto no artigo 8°, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Comete o crime de homicídio quem matar outra pessoa - artigo 131º do Código Penal.

A acção objectiva neste tipo de crime é matar outra pessoa, sendo a vida humana um direito constitucional e penalmente protegido.

O arguido desferiu um tiro com uma arma de fogo cuja bala acertou no corpo do FF e que lhe causou lesões que lhe determinaram a morte.

Não há dúvidas que a actuação do integrou prática, em autoria material, de factos objectivos subsumíveis ao crime de homicídio tal como o mesmo se mostra descrito no artigo 131º do Código Penal.

A acção subjectiva pode ser realizada com qualquer das modalidades de dolo, no caso em apreço teremos de considerar que a acção foi realizada com dolo eventual - artigo 14° do Código Penal.

O arguido apontou uma arma de fogo para um local em que sabia encontrarem-se várias pessoas, representando como consequência possível de disparar dois tiros com a sua conduta atingir qualquer das pessoas que ali se encontrava, embora pretendendo inicialmente atingir o GG, e conformando-se com esse resultado, efectuou tais disparos. Com essa actuação acabou mesmo por matar o FF.

(…)

Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade a pena é agravada, como resulta do disposto no artigo 132° do Código Penal.

É susceptível de revelar essa especial censurabilidade o agente praticar o facto:

h) praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum.

Esta especial censurabilidade terá de resultar de um comportamento que possa ser incluído nos exemplos padrão do n.° 2 do artigo 132° do Código Penal já que os mesmos enunciam acções que têm em si um maior desvalor ético-jurídico, que pode decorrer da acção externa (instrumento utilizado, tipo e numero de lesões, dinâmica do evento) ou dos aspectos relacionados com os motivos e objectivos que presidiram à acção (factos psíquicos)[3].

A integração do comportamento num dos exemplos padrões não é motivo de imediata qualificativa, pois sempre se terá de apurar se existe, em concreto, uma especial censurabilidade na conduta do agente.

Nos termos da alínea h), a qualificativa decorre de o agente praticar o facto utilizando meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum;

Quanto ao meio particularmente perigoso, no caso concreto é a utilização de uma arma de fogo. Entendemos, no entanto, que no caso não se mostra preenchida esta circunstância qualificativa. O arguido utilizou uma arma de fogo, mas tal instrumento era o necessário para conseguir alcançar o seu desiderato. A arma de fogo era o objecto necessário a conseguir o objectivo que admitiu como possível - tirar a vida - sem a mesma não o poderia fazer, razão pela qual tal circunstância não pode ser considerada como agravante da sua conduta, pois faz parte do preenchimento do próprio tipo do crime.

Não entendemos assim que esteja preenchida a presente qualificativa.

Não existindo uma agravação decorrente da utilização da arma de fogo na ilícita base - o crime de homicídio - teremos de apurar se será de aplicar a agravação da pena a que alude o artigo 86° da Lei 5/2006.

Dispõe o artigo 86.° da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, que:

«3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.0 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

A arma do arguido era uma arma de classe B, já que era uma arma de fogo, um revolver, desconhecendo-se o calibre.

Pelo exposto, teremos de fazer operar a agravação a que alude o artigo 86.°, n.° 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Assim, e pelo supra exposto, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio, pelo que terá o arguido de ser condenado, em autoria, pelo crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal, conjugado com o disposto no artigo 86.°, n.° 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.


Por seu turno o Tribunal da Relação de Lisboa, corroborou este enquadramento, concluindo que: «Nada há de errado na decisão proferida, nem nenhuma inconstitucionalidade se encontra devendo o enquadramento correcto dos factos ser feito como autoria, de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.° CP, conjugado com o disposto no artigo 86.°, n° 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro»


Vejamos:

«O legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e até certo ponto, neste domínio original (…): a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (…) Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: «especial censurabilidade ou perversidade» do agente referida no nº1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº2 (…) Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…), que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º, nº 2” [4]

Acrescenta ainda o Professor Figueiredo Dias, [5] que “É exato (…) que muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º- 2, em si mesmo tomados, não contendem diretamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da ação e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda, nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada”, e a pág. 29, “o pensamento da lei é, na verdade, o pretender imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas”.

Ou seja, a verificação daqueles «exemplos-padrão» não funciona automaticamente, em termos de logo se dar por demonstrada a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como elementos da culpa implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar (ou não) aquela conclusão [6].

O Tribunal Constitucional no AC nº 852/2014, de 10DEZ14, publicado in DR 48/2015, Série II de 2015-03-10, também já se pronunciou no sentido de «Julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».


Decorre do artigo 132º, nºs 1 e 2, do Código Penal que o homicídio será qualificado “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”, caso em que o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos”, sendo suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente:

(…)

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime comum”.

Relativamente à al. h) escreve o Prof Figueiredo Dias: “utilizar meio particularmente perigoso é, como acaba de pôr-se em relevo, servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam suscetíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes”.

E continua afirmando: “deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio prevê matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado — e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes — resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente”[7].


No caso subjudice, como se viu o Tribunal Coletivo afastou a qualificativa prevista na alínea h), do art. 132º, nº 2, do Código Penal, fazendo, porém, operar a agravação a que alude o artigo 86º, nº 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, condenando o arguido pela prática do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, conjugado com o disposto no artigo 86º, nºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.


Retomando a matéria de facto provada:

1) Em data não concretamente apurada, mas entre os dias ... e ... de agosto de 2019, o arguido AA deslocou- se ao Juízo de Família e Menores do ... a fim de tratar de assuntos relacionados com a regulação do exercício das responsabilidades parentais do filho que tem em comum com II.

2) Nesse dia, à porta do Tribunal, houve uma troca de palavras não concretamente apuradas entre o arguido e GG, irmão de II.

3) No dia ... de Agosto de 2019, pelas 19.00 horas, o GG encontrava-se nas escadas que vão dar à Praceta …, em …, onde se encontravam igualmente, espalhados pelas referidas escadas e no seu topo o FF, HH, JJ, LL, MM, NN e OO.

4) O arguido dirigiu-se àquele local, levando consigo um revólver, municiado, numa bolsa.

5) O arguido retirou tal arma da bolsa onde o transportava e abordou o GG apontou-lha e perguntou-lhe "e agora?", ao que GG respondeu "e agora o quê?" e voltou-lhe as costas.

6) Ato contínuo, o arguido desferiu uma pancada com a coronha do revólver nas costas de GG.

7) Em resposta, o GG, virou-se de frente para o arguido, e desferiu-lhe um pontapé no corpo, que levou a que o mesmo caísse e largasse a arma que tinha na mão.

8) Ambos fizeram menção de agarrar a arma que estava no chão, mas apercebendo-se de que o arguido conseguiria alcançar primeiro o revólver, o GG desferiu-lhe outro pontapé que levou a que este voltasse a cair, descendo alguns degraus da escada, e não conseguisse de imediato agarrar a arma.

9) Após o GG encetou a fuga subindo as escadas a correr, seguindo no sentido contrário onde estava o arguido, por forma a fugir do local.

10) O arguido agarrou na arma, levantou-se e efetuou dois disparos na direção do cimo das escadas, no sentido para onde o GG se tinha dirigido.

11) Um dos disparos que o arguido efetuou atingiu o FF na região occipital esquerda, sendo que o FF estava no topo das escadas a dirigir-se para a esquina do prédio, por forma a proteger- se.

12) O outro disparo atingiu HH, que estava sentado no muro existente na parte superior das escadas, ligeiramente à direita destas atento o sentido do disparo. O HH foi atingido na sua região frontal, sofrendo lesões físicas.

13) Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, FF sofreu extensas infiltrações hemorrágicas na região fronto-temporo-parietal esquerda do couro cabeludo e no músculo temporal, fratura cominutiva do osso occipital esquerdo, subjacente a ferida contuso-perfurante, com perda de substância óssea, no rochedo temporal esquerdo, laceração da dura-mater e das leptomeninges, hemorragia subdural sob o hemisfério esquerdo, múltiplos focos de contusão no hemisfério esquerdo, laceração do encéfalo em túnel no hemisfério esquerdo e múltiplas esquírolas ósseas espalhadas ao longo do trajeto traumático no hemisfério esquerdo.

14) Estas lesões traumáticas crânio encefálicas-graves foram produzidas pelo projétil da arma de fogo usada pelo arguido e determinaram, direta e necessariamente, a morte de FF ainda no dia 27-08-2019, pelas 21h56m.

15) O arguido, ao disparar na direção do local onde se encontravam várias pessoas, nomeadamente o GG, o FF e o HH, pretendia atingir o GG, o que não conseguiu, mas representou como consequência possível da sua conduta atingir qualquer das pessoas que ali se encontravam, nomeadamente o FF no corpo, em zona vital, e dessa forma provocar-lhe a morte, não obstante conformou-se com esse resultado, o que alcançou.

16) O arguido conhecia as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte de qualquer pessoa.

17) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


Resulta da matéria de facto provada que o crime de homicídio foi cometido através do uso de uma arma de classe B, já que era uma arma de fogo, um revolver, desconhecendo-se o calibre.

A norma do nº 3 do artigo 86º da Lei nº. 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei nº. 17/2009, de 6.05 (de ora em diante denominado RJAM) é uma norma geral e prevê que: "As penas aplicáveis a crimes cometidos com a arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma".

Nos termos do disposto no art. 86º, nº. 4 do mesmo diploma legal "para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº. 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente".

A agravação resultante da aplicação da norma em apreço encontra fundamento num maior grau de ilicitude e tem sempre lugar se o crime for cometido com arma. Ou seja, agrava-se a conduta do agente em face do maior perigo decorrente da detenção de armas no momento da realização de factos ilícitos. Só assim não ocorrerá se o uso ou porte de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou de lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada.

Ora, o uso da arma não é elemento do crime de homicídio previsto no art. 131º e no caso presente tal circunstância não levou ao preenchimento do tipo qualificado previsto no art. 132º do Código Penal.

Do exposto se conclui que se mostra verificada a agravante prevista no citado art. 86º, nº 3 do RJAM, que já vinha indicada na acusação ainda que em concurso aparente (face à qualificativa da al. h) do nº 2 do art. 132º do Código Penal), tal como se afirma no acórdão da 1ª Instância, corroborado pelo acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa.

Neste sentido, improcede nesta parte o recurso.


3.1.5 Analisando a dosimetria penal.

Insurge-se o recorrente quanto à medida da pena, pugnando pela sua redução, para 10 (dez) anos de prisão, alegando, em síntese, que, «O Tribunal não analisou nem ponderou acerca de factos que abonam a favor do arguido, atendendo que a gravidade dos factos não deverão ser os únicos pesos na determinação da pena.

O dolo eventual situa-se num patamar intermédio, sendo o tipo de dolo menos grave dos três, em linha muito ténue com a negligência consciente.

Inúmeros fatores que ainda mais atenuantes deveriam ser considerados, a nível pessoal do arguido, seja natureza de condenações anteriores, confissão, arrependimento, etc.

A compressão efetuada não é espelho de toda a matéria factual provada, muito menos está proporcional ao nível de culpa do arguido, sendo que foi feita uma taxa de compressão de cerca de ½ o que é, consideravelmente, exagerado.

Mostra-se desnecessária, desadequada e desproporcional a pena aplicada, perante os factos dados como provados que influenciam directamente a culpa do arguido, sendo de fixar uma pena substancialmente inferior à aplicada, sempre perto do mínimo legal estabelecido, sendo possível concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento.

50. Pena essa que nunca deveria ultrapassar os 10 (dez anos) de prisão».


O arguido AA, foi condenado pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelos artigos 131º do Código Penal, com a agravação enunciada no artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão;

A moldura penal abstrata prevista para o crime de homicídio simples, agravado, pela circunstância do uso da arma de fogo, corresponde a moldura penal abstrata de pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses - artigo 131º do Código Penal e artigo 86º, nº 3, do Código Penal.


A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº 1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[8], a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».


O Tribunal da Relação fundamentou a manutenção da pena aplicada ao arguido, nos seguintes termos: (…)

«Por seu turno o Tribunal fundamentou a escolha da pena e teve em conta a medida da culpa, à qual deve corresponder a medida da pena, ponderou as exigências de prevenção geral e especial, assim como a necessidade de o arguido não perder o seu fio condutor á Sociedade para a reinserção necessária. Não esqueceu a ilicitude e a forma como o ilícito se desenrolou.

Tendo em conta que ao crime de homicídio simples, agravado pelo circunstância do uso da arma de fogo, corresponde a moldura penal abstrata de pena de prisão de 10 anos e 8 meses 21 anos e 4 meses - artigo 131.° do Código Penal e artigo 86.° n ° 3, CP, o tribunal ponderou que foi o arguido quem iniciou uma discussão e agressões físicas, considerando que a ilicitude da sua conduta é superior à média, com intensidade igualmente superior à média, numa atitude de resposta e provocação, de afirmação perante um grupo de pessoas, perante as quais estavam a ocorrer os factos.

Não deixou de ter em conta as condições pessoais do arguido, a sua situação económica, os seus 35 anos de idade, a companheira, e dois filhos.

Não esqueceu também as condenações anteriores - 7 - sendo uma delas um crime de homicídio na forma tentada o que revela, sem dúvida, o seu perfil conflituoso e irreflexão, impulsividade e desrespeito pela paz social e pelo Outro.

Teve ainda em conta a idade da vítima de 18 anos Considerou, pois, justa a pena efetiva de 16 anos de prisão.

Todo o homicídio tem na sua actuação uma carga de desvalor que nos leva a interrogarmo-nos sobre se não será todo ele qualificado logo que é homicídio.

Existe na actuação do agente, uma desproporção manifesta entre o comportamento da vítima e a intensidade da atuação do agente que, completamente descontrolado vai atingir alguém que nada tinha a ver com o motivo da sua agressividade.

Verifica-se, pois, como muito bem concluiu o tribunal a quo, a prática de homicídio com a agravante aplicada.

Nestes termos, nada há a censurar à decisão recorrida que está devidamente fundamentada, não padecendo de qualquer vício ou excesso na determinação da medida da pena.


O Tribunal Coletivo fundamentou a pena aplicada ao arguido atendendo aos critérios norteadores dos arts 40º e 71º, do Código Penal, nos seguintes termos:

- o grau de ilicitude dos factos e o modo de execução do mesmo, bem como a gravidade e consequências da conduta do arguido:

O arguido inicia uma discussão e uma agressão física com um terceiro que determina que acabe essa sua interacção com um disparo que leva ao falecimento de uma pessoa que nada tem que ver com essa discussão, pelo que não poderemos deixar de concluir que a ilicitude da sua conduta é superior à média, com intensidade igualmente superior à média, pois que o arguido manifestou desprezo pela vida de terceiros quando confrontado com o seu desejo de vincar a sua posição de domínio perante alguém que lhe tinha batido, e por isso humilhado à frente de várias pessoas do bairro.

- a intensidade do dolo - o arguido atuou com dolo eventual, e a intensidade do mesmo é mediana.

- os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes:

Os factos resultaram manifestamente da falta de capacidade do arguido de controlar os seus impulsos e inabilidade de delinear estratégias alterativas ao comportamento violento, e visou manifestamente manter a sua posição social dentro de um grupo de pares, como era o grupo onde estavam a ocorrer os factos.

- as condições pessoais do arguido, a sua situação económica e a conduta anterior e posterior aos factos:

O arguido tem 35 anos de idade, tem uma companheira, e dois filhos, tem uma estrutura familiar, que continua presente na sua vida ainda que o mesmo esteja em reclusão, e tem uma situação financeiramente estável, desconhecendo-se qual a sua situação profissional.

Tem, no entanto, sete condenações anteriores, punidos com pena de multa e com pena de prisão, cuja execução foi suspensa, sendo que cumpriu todas as penas. Para além de crimes estradais, nomeadamente condução sem habilitação legal, o arguido tem uma condenação por falsidade de depoimento, e uma condenação, por factos de 2006, e decisão de 2009, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada. Esta pena, ainda que tenha sido cumprida manifestamente não o impediu de voltar a realizar factos contra a vida.

As necessidades de prevenção geral e especial são as mais relevantes sendo de referir que este tipo de crime é dos que maior sensação de insegurança geral na população, por ser o crime por excelência.

Para além da gravidade intrínseca do acto que praticou, que determina na comunidade uma especial incredibilidade e uma necessidade de reafirmação da norma para o restabelecimento de uma ordem comunitária, até para que não exista sentimento na comunidade que este tipo de comportamento é pouco grave, e por outro lado há também de prevenir futuros comportamentos do arguido que embora tivessem uma vida aparentemente estruturada e um ambiente securizante nos últimos anos demonstrou que não interiorizou regras básicas de respeito pela vida alheia».


Relativamente às condições pessoais e antecedentes criminais do arguido consta da matéria de facto provada o seguinte:

O arguido foi condenado:

a) Por sentença proferida em 30-06-2004, transitada em julgado em 14-07-2004, no processo sumário 1031/04…… Juízo Criminal …...., na pena de 75 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-06-2004. A pena foi declarada extinta pela prescrição;

b) Por sentença proferida em 27-04-2007, transitada em julgado em 05-07-2007, no processo comum singular 45/04…… Juízo Criminal …..., na pena única de 220 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por factos de ...-01-2004. A pena foi declarada extinta por prescrição;

c) Por acórdão proferido em 02-03-2009, transitada em julgado em 01-04-2009, no processo comum coletivo 1096/06… do Juízo Central Criminal ... - Juiz …, na pena de 4 anos de prisão, suspensa pelo mesmo período com regime de prova, pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, por factos de ...-10-2006. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento;

d) Por acórdão proferido em 30-04-2010, transitado em julgado em 12-11-2010, no processo comum coletivo 40/06…… Juízo Criminal ..., na pena de 9 meses de prisão, suspensa por um período de um ano, pela prática de um crime de falsidade de depoimento, por factos de ...-03-2006. A pena foi declarada extinta;

e) Por sentença proferida em 11-10-2012, transitado em julgado em 01-09-2014, no processo sumário 1135/12……… Juízo Criminal ......, na pena de 7 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por um ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-10-2012. A pena foi declarada extinta;

f) Por sentença proferida em 18-11-2015, transitado em julgado em 18-12-2015, no processo comum singular 6/12…… do Juízo Local Criminal … -J…, na pena de 120 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-04-2011. A pena foi declarada extinta.

g) Por sentença proferida em 22-11-2011, transitado em julgado em 21-01-2019, no processo sumário 1976/11…… do Juízo Local de Pequena Criminalidade …,…. na pena de 6 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de ...-10-2011. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

26) O desenvolvimento de BB decorreu no contexto de uma dinâmica familiar funcional, tendo, alegadamente, existido um acompanhamento educativo e afetivo por parte dos pais. Contudo, desde idade precoce, o arguido foi exposto a um contexto social de violência e marginalidade. O arguido tem consciência de que no bairro, onde cresceu, grassa uma subcultura marginal com regras e valores específicos, os quais aprendeu a conhecer bem.

27) Em termos escolares, o arguido descreveu-se como tendo sido um aluno pouco investido, que a partir do 5° ano sofreu retenções consecutivas associadas a elevado absentismo, não justificado, fraco aproveitamento e desinteresse pelas matérias escolares. Em vez da escola, o arguido manifestou, de forma consistente, a preferência pelas vivências de rua, pelos comportamentos desviantes, tendo afiliando-se a grupo de pares formados por jovens, do seu bairro, com idênticos estilos de vida. O arguido conseguiu concluir, com dificuldade o 6° ano.

28) Aos 14 anos, BB começou a trabalhar com o pai na………, área na qual foi desenvolvendo atividade, apesar de ter tido, ao longo do seu percurso de vida, vários e, alguns longos, períodos de desocupação que facilitaram a emergência de rotinas socialmente desajustadas.

29) Aos 24 anos, o arguido autonomizou-se do seu agregado de origem.

30) BB manteve relacionamento com PP, com quem tem um filho, QQ, de 11 anos. A relação terá tido um carácter fortuito e conflituoso. O arguido afirmou, neste contexto, que lhe foi sendo dificultado, ao longo do tempo, os contactos com o filho menor, atribuindo a PP a responsabilidade pela agressividade existente.

31) Neste contexto, o arguido referiu que, antes dos alegados fatos subjacentes ao presente processo, terão existido episódios de violência, com recurso a armas de fogo, tendo BB adotado um discurso vitimizado. O seu filho QQ terá sido exposto a estas situações, não tendo o arguido avaliado o impacto que de tal adveio, em termos emocionais, para este, adotando um discurso autocentrado e sem capacidade de censura pessoal. O arguido não foi capaz de apresentar estratégias que teriam sido alternativas socialmente adequadas ao comportamento violento, parecendo considerar que o padrão de comunicação e de resolução de problemas, adotado por si, era o único possível.

32) O arguido estabeleceu, há cerca de 11 anos, relacionamento afetivo com RR (... anos), com quem tem um filho, SS, atualmente com 6 anos. O arguido descreveu, esta relação, como emocionalmente gratificante. O casal residiu, inicialmente, em ... ..., posteriormente, em ... e, mais recentemente na ..., sendo que o arguido se deslocaria, com frequência ao seu bairro de origem para visitar, o filho QQ, familiares e amigos. Em termos habitacionais e financeiros, o casal dispunha de uma situação estável e adequada às suas necessidades.

33) BB, procurando transmitir uma imagem que considerou positiva e adequada ao contexto.

34) Relativamente ao presente processo, o arguido manifestou, ao nível do discurso, consciência da gravidade dos alegados factos, tendo procurado justificar, racionalmente, a sua conduta.

35) No Estabelecimento Prisional e, até à presente data, o arguido, tem vindo a cumprir, de forma geral, as regras e normas institucionais, estando inscrito na Escola. Em termos de visitas, BB tem vindo a receber apoio regular de familiares e amigos.

36) O arguido apresenta um défice de competências pessoais e sociais (controlo de impulsos, comunicação, resolução de problemas), e tem uma atitude de tolerância face ao desvio, à sua propensão para atribuição externa da responsabilidade, às suas fragilidades de censura pessoal e inabilidade para delinear estratégias alternativas socialmente adequadas ao comportamento violento.


Por seu turno a vítima FF à data dos factos era um jovem de 18 anos, nasceu em ... de novembro de 2000, com gosto pela vida, e era considerado e estimado pelos familiares e pelos amigos. FF era próximo dos seus pais, planeava emigrar por forma a melhorar a sua situação económica.

No que se refere à proteção de bens jurídicos, que constitui uma das finalidades das penas (art. 40º, nº 1, do CP), no caso o bem jurídico protegido no tipo em causa é a vida humana, bem supremo que a Constituição da República Portuguesa declara inviolável no seu art.º 24º. Por isso, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas.

As exigências de prevenção especial – têm particular relevo atendendo aos antecedentes criminais do arguido, designadamente já sofreu uma condenação pela prática de um crime contra a vida.


Na determinação da medida da pena o modelo mais equilibrado é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente[9].

Assim sendo, considerando que a medida da concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», «cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal abstrata prevista para o crime de homicídio, p. e p. pelos artigos 131° do Código Penal, com a agravação enunciada no artigo 86.°, n 3, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, mostra-se justa, necessária, adequadas e proporcional, a pena de 16 (dezasseis) anos de prisão, aplicada ao arguido AA.

Neste sentido improcede na totalidade o recurso.


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4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso do arguido AA.

Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 15 de setembro de 2021


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

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[1] É uniforme a jurisprudência neste sentido, v.g., acórdãos do STJ de 2/03/2006 – proc. 461/06-5; e de 5/05/2011, in www.dgsi.pt.

[2] É uniforme a jurisprudência neste sentido, v.g., acórdãos do STJ de 2/03/2006 – proc. 461/06-5; e de 5/05/2011, in www.dgsi.pt.

[3] Vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/04/2017, no processo 2612/15.9JAPRT.P1, relatado pelo Juiz Desembargador Renato Barroso, disponível in www.dgsi.pt
[4] Vide Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 25-26; Teresa Serra, in Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa Medida da Pena, 1990, pág. 50.
[5]Ob. cit. pág. 27.
[6]Ac. do STJ de 07DEZ99, in CJ Acs. do STJ de 1999, Tomo III, pág. 235 e Acs. aí citados.
[7] Comentário Conimbricense do Código Penal, T.I, p. 37.
[8] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244
[9]Figueiredo Dias, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3º, Abril/Dezembro, pág. 186.