HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO
ESPECIAL COMPLEXIDADE
DUPLA CONFORME
Sumário


I. O habeas corpus contra a prisão ilegal por abuso de poder é um procedimento expedito no qual se requer ao Supremo Tribunal de Justiça o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada ou executada por entidade competente, ou por facto pelo qual a lei a não admite, ou que sendo originariamente legal, se se mantem para além do tempo fixado na lei ou em decisão judicial.
II. A especial complexidade do processo para efeitos de fixação do prazo da prisão preventiva, uma vez judicialmente declarada, se não cessar entretanto, vigora até ao trânsito em julgado da decisão final do objeto do processo.
III. O prazo da prisão preventiva estabelecido n.º 6 não derroga os prazos máximos consagrados nas normas dos n.ºs 1 al.ª d), n.º 2 e 3 do art.º 215º do CPP.

Texto Integral


ACÓRDÃO:




*


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, delibera:

I. RELATÓRIO:

O Requerente:

AA, de 48 anos e os demais sinais dos autos, atualmente preso,

arguido no processo em epigrafe, a correr termos no Juízo Central Criminal ..... -Juiz .., invocando o disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. e no artigo 31º da Constituição da República Portuguesa, apresenta a vertente providência de habeas corpus, alegando que a prisão preventiva em que se encontra, se mantem, arbitraria e ilegalmente, para além do prazo máximo legal, peticionando a libertação imediata.

1. a petição:

Para tanto argumenta:

Foi detido nos presentes autos a 28 de maio de 2018.

Apresentado detido a primeiro interrogatório [judicial em] 29 de maio de 2018, foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva.

Encontra-se assim, ininterruptamente, sujeito àquela medida de coação desde 29 de maio de 2018 até à presente data.

Foi condenado, por douto acórdão de fls. 11036 e ss, ainda não transitado em julgado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão e, ainda, em concurso efectivo, pela prática de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artº 368º-A, nºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Nos termos do nº 6 do art. 215º do CPP o prazo máximo da prisão preventiva do requerente é de 3 anos e 3 meses (metade da pena que lhe foi concretamente aplicada).

Fez 3 anos e 3 meses que se encontra em prisão preventiva no passado dia 31 de agosto de 2021, pelo que hoje a sua prisão preventiva é ilegal, devendo o mesmo ser restituído imediatamente à liberdade – o que se requer.

É certo que nos presentes autos foi declarada a especial complexidade dos autos logo no início do julgamento.

Porém, ultrapassada a fase de apuramento da responsabilidade de um imputado crime e tendo sido considerado a necessidade de imposição de uma pena, a lei impõe que, tendo o arguido sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória confirmada em sede de recurso ordinário, o modo de fixar a prisão preventiva se transmute (art. 215.º, n.º 6, do CPP).

A prisão preventiva deixa de estar indexada às fases processuais, para quedar atracada e conexionada à medida da pena que foi estabelecida pelo tribunal.

O legislador quis distinguir e separar os 2 parâmetros de validação da prisão preventiva: no primeiro plano o juízo de culpabilidade e de imposição de um sancionamento penal ainda não está formado e consolidado por um órgão jurisdicional que, apreciada a prova e ouvidas ambas as versões, concluiu pela existência de um facto punível, cuja imputação pode ser feita a um concreto sujeito; no segundo plano, a função revisora do tribunal de recurso assenta já numa reavaliação do juízo de inculpação já formado, funcionando como reconstrutor de uma realidade jurídico-penal que já teve um veredicto positivo e de afirmação de todos os elementos de culpabilidade de um agente. O juízo de necessidade de condenação mantém-se, ainda que, no caso, em termos diferentes e com distinta dimensão/extensão sancionatória.

A lei é clara quando estatui que o prazo máximo da prisão preventiva se eleva para metade da pena que tiver sido fixada, no caso de um arguido ter sido condenado em duas instâncias sucessivas.

Entendemos, portanto, que, no caso de condenação em pena de prisão em 1ª instância e em recurso ordinário para o tribunal superior, o prazo de prisão preventiva passa sempre a ser metade da pena de prisão aplicada por força do nº 6 do art. 215º do CPP e isto é assim independentemente de tal implicar ou não uma elevação do prazo máximo da prisão preventiva que pudesse resultar da aplicação das normas gerais dos nº 1 a 3 do mesmo art. 215º do CPP.

Esta interpretação respeita a intenção do legislador que estabeleceu prazos diferentes para a prisão preventiva consoante a fase processual em que o processo se encontra.

Nada na lei ou na intensão do legislador que nos permita concluir que a norma do nº 6 do art. 215º do CPP só tem aplicação quando não implique um prazo inferior de prisão preventiva ao que resulta da aplicação das normas constantes dos nºs 1, 2, 3 e 4 do CPP.

No sentido por nós defendido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de julho de 2010, [com o seguinte] sumário:

“II - A excepcionalidade da providência não se refere à sua subsidiariedade em relação aos meios de impugnação ordinários das decisões judiciais, mas antes e apenas à circunstância de se tratar de «providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional», com uma celeridade incompatível com a prévia exaustão dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação.

III - A providência visa, pois, reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.

IV - O peticionante parte do pressuposto de que se encontra em prisão preventiva e que o respectivo prazo máximo está ultrapassado; contudo, o requerente foi já condenado por acórdão da 1.ª instância na pena única de 13 anos e 4 meses de prisão, sendo que o Tribunal da Relação também já julgou pontualmente procedente o recurso interposto pelo arguido daquele outro acórdão, reduzindo-lhe a pena única para 13 anos e 3 meses de prisão; deste último acórdão o arguido interpôs recurso para o STJ.

V - Sendo assim, uma vez que há já condenação (na 2.ª instância), embora não transitada em julgado, a questão que se coloca é a de saber se tem ou não aplicação ao caso em apreço o estatuído no n.º 6 do art. 215.º do CPP.

VI - A regra da “confirmação” em matéria de medidas de coacção não deve ser interpretada nos mesmo termos da regra da “dupla conforme” em matéria de recurso da sentença (que, no caso, até ocorre, estando-se perante confirmação in mellius, pois o Tribunal da Relação, embora tenha alterado a decisão da 1.ª instância, condenou o arguido em pena inferior à anteriormente aplicada).

VII - Com efeito, a finalidade ou objectivo daquelas duas regras é diferente: no caso dos recursos, a “dupla conforme” visa evitar a interposição de recurso para o STJ; no caso das medidas de coacção, a “confirmação” visa alargar o prazo de duração daquelas medidas justamente quando há recurso para o STJ ou para o TC.

VIII - Por isso, deve entender-se que há confirmação de sentença (para efeitos das medidas de coacção, isto é, para efeitos do n.º 6 do art. 215.º do CPP) também quando o tribunal superior aplica uma pena inferior à pena da sentença recorrida (como no caso em apreço), dando provimento “pontual” ao recurso do arguido, reduzindo a pena única aplicada de 13 anos e 4 meses de prisão para 13 anos e 3 meses de prisão.

IX - Neste caso, o prazo máximo da prisão preventiva é o de metade da pena de prisão aplicada pelo tribunal superior (Relação), motivo pelo qual não se mostra o mesmo excedido.”

Nestes termos requer-se a V. Exas. a concessão Imediata da providência de Habeas Corpus, em razão de prisão ilegal do [Requerente], por se encontrar ultrapassado o período máximo da medida de coação de prisão preventiva de 3 anos e 3 meses, e em consequência, V. Exas. determinem a libertação imediata do Arguido/requerente.

Para instruir a petição requereu a junção de cópia das peças processuais seguintes:

• do Auto de Detenção do Arguido em 28 de maio de 2018;

• do Despacho que aplicou ao Arguido a MC de prisão preventiva em 29 de maio de 2018;

• de todos os despachos que mantiveram a prisão preventiva do Requerente;

• do Acórdão final da primeira instância;

• Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….. de 20 abril de 2021.

• Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….. de 15 de junho de 2021.

• recurso interposto para o STJ.

• despacho de não admissão do recurso interposto para o STJ

• reclamação apresentada pelo arguido

1. informação judicial:

A Juíza no Juízo Central Criminal..... –Juiz .., onde o Requerente foi condenado em 1ª instância, à ordem do qual se encontra preso neste processo, elaborou circunstanciada informação, em conformidade com o estabelecido no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sobre as condições em que se mantém a prisão preventiva do requerente, esclarecendo:

Da consulta do histórico do processo na plataforma Citius e do traslado extrai-se que o arguido AA foi detido no dia 28 de Maio de 2018 – cfr. fls. 4 verso do traslado.

No primeiro interrogatório judicial, realizado em 29 de Maio de 2018, foi aplicada, ao arguido, a medida de coacção de prisão preventiva (cfr. auto de primeiro interrogatório junto a fls. 11 e seguintes do traslado). Nessa fase, foi considerada indiciada a prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21.° e 24º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-B, I-C e II-A, anexas ao mesmo diploma, e de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.° A, n.°s 1 e 3, do Código Penal; e a existência de perigo de fuga e de perturbação do decurso do inquérito e, ainda, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Desde então, a sua situação processual manteve-se inalterada.

Deduzida a acusação, em 12/11/2018 (fls. 99 e seguintes do traslado), foi o arguido AA acusado da prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21.° e 24º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-B e I-C, anexas ao mesmo diploma, e de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.° A, n.°s 1, 3 e 6, do Código Penal.

Por despacho de 6 de Junho de 2019 – fl. 170 dos autos -, foi declarada a especial complexidade dos autos.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, em 21 de Agosto de 2020, tendo o arguido AA sido condenado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.°,, n.º 1 do D.L. 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-B e I-C anexas (por convolação do artigo 24.°, crime do qual foi absolvido), na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão; e de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.° A, n.°s 1 e 3, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares (artigo 77.º do Código Penal), foi condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Do acórdão condenatório foi interposto recurso para o Tribunal da Relação …...

Por Acórdão proferido em 20 de Abril de 2021, pelo Tribunal da Relação ….. foi decido “negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos, AA (… ) confirmando-se os despachos interlocutórias proferidos em 25 de Setembro de 2019 e em 15 de Janeiro de 2020, assim como o acórdão final recorrido”.

Em 1 de Setembro de 2021, veio o arguido requerer - fls. 645 e 646 - a sua libertação imediata por, no seu entender, estar ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva. Argumenta que por força da aplicação do disposto no artigo 215º, nº 6, do Código de Processo Penal, o prazo máximo da prisão preventiva é de 3 anos e 3 meses, atingido em 31 de Agosto de 2021. Nesse requerimento, argumenta o arguido que o Acórdão condenatório ainda não transitou em julgado, estando em curso o prazo para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.

Na sequência do requerimento apresentado pelo arguido foi solicitada informação sobre o estado dos autos.

Pelo Tribunal da Relação ….. foi junto aos autos a informação que se encontra junta a fls. 653 e de cujo teor resulta que:

Todos os recursos interpostos pelos arguidos recorrentes foram considerados improcedentes (…), por Acórdão de 20 de Abril de 2021, tendo sido ao mesmo arguidas nulidades, igualmente consideradas improcedentes, por Acórdão proferido por este Tribunal da Relação ….. em 15 de Junho de 2021.

O arguido AA, para além de outro, interpôs recurso para o STJ, que não foi por nós admitido, tendo, desse despacho de não admissão de recurso, sido interposta reclamação, que se encontra no Supremo Tribunal de Justiça, local onde se encontram, neste momento”.

Foi junto aos autos cópia da Decisão proferida em 24/8/2021, pelo Supremo Tribunal de Justiça nos autos de reclamação, acompanhada da informação quanto ao trânsito da Decisão. Consta da informação que nos autos de reclamação nº180/16.3GDTVD.L1-A.S1, por Decisão proferida em 24/8/2021, foi indeferida a interposição de recurso (fls. 649 e 650).

Obtida a informação sobre o estado dos autos, por este tribunal foi proferido despacho sobre o requerimento apresentado pelo arguido, no dia 1 de Setembro.

Nesse despacho, foi acolhido o entendimento de que a regra constante do nº6 do artigo 215º do Código de Processo Penal “só vale quando, por via da sua aplicação, o prazo não é inferior ao que resulta da aplicação das restantes regras do artigo. Assim, se metade da pena confirmada for inferior aos prazos estabelecidos nos nºs 1, 2, 3 e 5 deste artigo, serão estes os prazos que prevalecem” (“Código de Processo Penal Comentado”, António Henrique Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henrique da Graça; Almedina, 2014, página 897) e, consequentemente, indeferido o requerimento por se considerar que o prazo máximo da prisão preventiva, decorrente das regras constantes do artigo 215º, nºs 1, alínea d), 2, 3 e 4, do Código de Processo Penal, de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, ainda não se encontra atingido.

De harmonia com o disposto no artigo 215º, nº 1, alínea d), e nº 2, do Código de Processo Penal, o prazo máximo de prisão preventiva é de dois anos, sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

Por força da aplicação da norma constante do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, o prazo máximo de prisão preventiva é de 3 anos e 4 meses, ou seja, superior a metade da pena confirmada pelo Tribunal da Relação …...


Face ao exposto, considera–se que o prazo máximo de prisão preventiva aplicável nesta fase dos autos é o de três anos e quatro meses, previsto no artigo 251º, nºs 1, alínea d), 2, 3 e 4, do Cód. Processo Penal.

Não se encontra, assim, esgotado o prazo máximo de prisão preventiva uma vez que o arguido foi detido em 28 de Maio de 2018 e por decisão proferida em Primeiro Interrogatório Judicial, em 29 de Maio de 2018, foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.


*


A providência vem instruída com os elementos pertinentes.

Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensora do Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

I. FUNDAMENTAÇÃO:

Dos elementos com que vem instruído o processo, com relevância para a decisão do pedido de habeas corpus extraem-se os seguintes:

a) factos:

1. O Requerente, foi detido pelo OPC, pelas 9 horas de 28 de maio de 2018, em cumprimento de mandado de detenção emitido pela Procuradora da República, no âmbito da investigação criminal a que se procedia no processo em epígrafe, então na fase preliminar de inquérito.

2. Apresentado ao Ministério Publico, este, imputando-lhe a prática dos factos narrados no requerimento respetivo e, com isso, o cometimento, em concurso efetivo, de 1 (um) crime de tráfico de substâncias estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º n.º 1 e 24.º alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1 por referência às Tabelas I-B (cocaína), I-C (cannabis) e II-A (MDMA) anexas ao Decreto-lei n.º15/93 de 22 de Janeiro e de um crime de 1 (um) crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 386.º A n.º1 a 3, 6 do Código, fê-lo presente – bem como outros arguidos no mesmo processo, também detidos - à Juíza de instrução para 1º interrogatório judicial e aplicação de medidas de coação.

3. Interrogatório judicial que decorreu nos dias 29, 30 e 31 de maio de 2018, não tendo o Requerente prestado declarações,

4. A Juíza de Instrução criminal, mediante promoção do Ministério Público e contraditório da defesa, por despacho de 31 de maio de 2018, julgou indiciar-se fortemente nos autos ter o arguido cometido os factos descritos no requerimento do Ministério Público e que essa facticidade integra a previsão dos crimes imputados.

5. Julgando existir perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito e, nomeadamente, perigo para a conservação ou veracidade da prova, perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas e, concluindo para insuficiência e adequação de qualquer outra medida coativa menos restritiva da liberdade, determinou que o arguido aguarde os termos do processo em prisão preventiva.

6.  Por despacho judicial de 6 de junho de 2019 foi, na 1ª instância, declarada a especial complexidade do processo.

7. A situação de prisão preventiva do Requerente foi reexaminada em 15 (quinze) despachos judiciais, a primeira vez em 23/08/2018, ainda na fase de inquérito e a última em 6/08/2021, tendo sido mantida, sucessiva e ininterruptamente, a última vez por despacho de 2 do corrente mês de setembro.

8. Contra o Requerente – e outros arguidos – foi, em 13 de novembro de 2018, deduzida acusação pelo Ministério Público, imputando-lhe os factos ali narrados e, em concurso efetivo, os crimes acima referidos.

9. Tendo sido requerida a abertura da instrução, por decisão de 28 de fevereiro de 2019, a Juíza de Instrução pronunciou os arguidos requerentes e quanto ao aqui Requerente, remeteu os autos para julgamento nos exatos termos de facto e de direito constantes da acusação pública, dada ali por reproduzida.

10. Realizado julgamento, o Tribunal coletivo de 1ª instância, por acórdão de 21 de agosto de 2020, absolveu o Requerente do crime de tráfico agravado pelo qual vinha acusado e pronunciado, condenando-o pela prática, em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.°, n.º 1 do D.L. 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-B e I-C anexas, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão; e de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.°-A, n.°s 1 e 3, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.

11.  Em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, condenou-o na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

12. O Requerente pediu a prorrogação, por 30 dias, do prazo de recurso, alegando tratar de processo de especial complexidade, com elevado número de testemunhas e de extensa prova documental.

13. Pretensão deferindo e alargada aos demais arguidos condenados, por despacho judicial de 17/09/2020.

14. No prazo concedido, o Requerente interpôs recurso para a 2ª instância, que foi admitido.

15. O Tribunal da Relação ….., por acórdão de 24 de abril de 2021, julgando improcedente o recuso do requerente, confirmou a decisão condenatória recorrida.

16. Contra o acórdão confirmatório, apresentou recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

17. Recurso que, por despacho judicial, não foi admitido com fundamento na irrecorribilidade da decisão visada.

18. O Requerente reclamou nos termos do art.º 405º n.º 1 do CPP para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

19. A C.ª Juíza Conselheira de turno, por douto despacho de 24 de agosto de 2021, confirmou o despacho da V.ª Juíza Desembargadora de 7.07.2021, que decidiu não admitir o recurso do Requerente para o Tribunal da cúspide do sistema judiciário comum.

20. O Requerente, em 1 de setembro corrente (às 23h57m33s), requereu no tribunal da condenação a libertação imediata invocando como fundamento ter-se esgotado o prazo máximo da prisão preventiva em 31 de agosto último.

21. Invoca, ainda, que o Acórdão condenatório não transitou em julgado, estando em curso o prazo para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.

22.  A Juíza titular do processo na 1ª instância, por despacho de 2 do presente mês de setembro, indeferiu a pretensão do Requerente, fundando-se no entendimento de que o prazo máximo da prisão preventiva é o que decorre do disposto no art, 215º n.º 5 do CPP, sendo no caso, em razão da especial complexidade do processo judicialmente declarada, de 3 anos e 4 meses, não sendo aqui aplicável o estatuído no n.º 6 da mesma norma adjetiva penal.

23.  O Requerente reagiu apresentando o vertente habeas corpus.

24. O Requerente, encontra-se, atualmente, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ......

b) o direito:

1. direito fundamental à liberdade pessoal:

O direito à liberdade pessoal –liberdade ambulatória- é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais), no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[1].

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França, em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [2].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[3].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante do direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo (n.º 2), a privação da liberdade decretada em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão. No caso da prisão as restrições à liberdade “só podem decorrer de sanção penal[4].

Sobressia também “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.

Das providências cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a medida coativa mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência em cada caso dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6) -, e dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do CPP). Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou a obstar a que o arguido se exima à execução da fortemente previsível condenação. 

2. a providência da habeas corpus:

A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[5], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[6].

A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. A prisão é ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido efetuada por forma irregular; ultrapassar a duração da medida de coação aplicada ou da pena concretamente fixada pelo tribunal.

 “Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrária ou gravosas[7].

Entre nós, é na Constituição Republica de 1911[8] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[9] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[10], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[11]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[12] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[13].

A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[14] (remissão eliminada na revisão de 1971[15]).

Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[16], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.

Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se:

“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva e outro, diferenciado, para a prisão ilegal.

Segundo Adriano Moreirao habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.

“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum[17].

No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[18]”.

Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[19], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.

E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.

Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[20].

E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantivo referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.

O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[21] pessoal, permitindo reagir, imediata e expeditamente, “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal” .

No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[22].

3. regime legal e procedimento:

Dando expressão legislativa ao texto constitucional [23], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[24].

Tem sublinhado a jurisprudência deste Supremo Tribunal que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[25].

Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[26].

O habeas corpus contra a prisão ilegal por abuso de poder é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.

É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que o Juiz pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade[27] .

Não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.

Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação[28].

O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição.

Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:

a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;

b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;

c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou

d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.

4. pressuposto da atualidade:

Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[29], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magana Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[30].

A Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unanime[31] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[32] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.

E no Ac de 11/02/2016[33] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.

Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”.  Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.

É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.

Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.

A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.

Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.

4. a prisão preventiva:

A Constituição da República, no art. 28º n.º 2 consagra a excecionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva, estabelecendo que “tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, estabelece que o direito à liberdade pode ser restringido, podendo a pessoa dela ser privada temporariamente “se for preso …, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido” –art.º 5º n.º 1 al.ª b)-, conferindo-lhe o “direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo” – n.º 3.

Por sua vez, o Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no art. 9º dispõe: “a prisão preventiva não deve constituir regra geral, contudo, a liberdade deve estar condicionada por garantias que assegurem a comparência do acusado no acto de juízo ou em qualquer outro momento das diligências processuais, ou para a execução da sentença”.

A prisão preventiva, se admitida e indispensável a assegurar a eficácia do processo penal (e nenhum outro), uma vez determinada só pode manter-se enquanto for justificada pelas necessidades de desenvolvimento regular do procedimento e/ou de assegurar a execução da condenação (futura ou já decretada, mas que ainda não é definitiva) e não pode, em qualquer caso, exceder o tempo que a lei determinar – art. 27º n.º 3 da Constituição da República.

Dando expressão ao comando constitucional citado –art. 28º n.º 3 da CRP -, os pressupostos legais da prisão preventiva estão explicitados no CPP.

Aos pressupostos gerais de qualquer medida coativa, excluindo-se destas, para este efeito, o termo do identidade e residência (TIR). enunciados nos artigos 191º (legalidade), 192º (constituição de arguido; não haver de fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal), 193º (necessidade e adequação às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas) e 204º (fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas) e ainda ao procedimento específico estabelecido no art. 194º, a prisão preventiva exige também a verificação de pressupostos específicos elencados nos arts. 193º n.º 2 (só podem ser aplicada como medida de último recurso, isto é quando nenhuma outra ou outras medidas coativa legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes) e 202º (haver fortes indícios da prática de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; ou  de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta[34]).

A decisão que impuser a prisão preventiva deve estar motivada –art. 205º n.º 1 da CRP - com a indicação da factualidade fortemente indiciada e sua qualificação jurídica e das razões de facto que justificam as exigências cautelares (os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação da investigação ou de perturbação da ordem e da tranquilidade pública) e a inadequação e insuficiências das restantes medidas coativas.

A decisão judicial que impuser a prisão preventiva pode ser impugnada através da interposição de recurso.

Para encurtar a privação preventiva da liberdade – a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação -, ao mínimo requerido pelas finalidades do procedimento penal, impõe-se controlar periodicamente se subsistem ou se, ao invés, se atenuaram ou cessaram as exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, devendo ser revogada ou substituída por outra medida de coação logo que se verifiquem circunstâncias que tal justifiquem, ou se as que a tinham determinado deixaram de subsistir ou simplesmente enfraqueceram ou se atenuaram.

Para tanto, o tribunal procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva sempre que tal lhe seja requerido pelo arguido a ela sujeito ou pelo Ministério Público e, oficiosa –cfr. AUJ n.º 3/1996 -, e obrigatoriamente, no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame, podendo para o efeito “solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização”.

No reexame dos pressupostos da prisão preventiva o juiz decide se ela se mantém ou decreta a sua substituição ou revogação.

Em qualquer altura pode e deve ser revogada “por despacho do juiz”, sempre que se verificar ter sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.

Está sujeita aos prazos legalmente determinados –art. 215º do CPP. Que, com relevância para a presente vertente providência, atentas as fenomenologias criminosas cometidas e o estádio atual do procedimento, são os seguintes: --

1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para (..) dois anos, em casos de (…) criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;

3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para (…) três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos (…) ou ao caráter altamente organizado do crime:

6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.

O Legislador, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X, informada pelo ideário de conciliar a proteção da vítima “e o desígnio de eficácia com as garantias de defesa, procurando dar cumprimento ao n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que associa a presunção de inocência à celeridade do julgamento”, justifica assim a elevação do prazo da prisão preventiva em situações como a do Requerente: “Os prazos de prisão preventiva são reduzidos em termos equilibrados, para acentuar o carácter excepcional desta medida sem prejudicar os seus fins cautelares. Todavia, no caso de o arguido já ter sido condenado em duas instâncias sucessivas, o prazo máximo eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada. Embora continue a valer o princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, a gravidade dos indícios que militam contra o arguido justifica aí a elevação do prazo”.

Ainda que não vindo colocada pelo Requerente, questionou-se na jurisprudência se, em caso de condenação em pena única, esta elevação do prazo máximo da prisão preventiva se deve estabelecer em função da pena conjunta ou, ao invés se vale apenas para a pena aplicada a cada crime (à pena parcelar mais elevada). Tem-se vindo a consolidar o entendimento “no sentido de que estando o arguido condenado numa pena conjunta, a elevação incide sobre essa pena. Com efeito, o n.º 6 refere-se à condenação em «pena» e, no caso de condenação em «pena conjunta», é esta a pena que substancialmente releva uma vez que as concretas penas singulares cominadas, pelos crimes em concurso, perdem autonomia[35]. E bem se compreende que assim tenha de ser porquanto, um dos pressupostos basilares da prisão preventiva é o potencialmente real perigo de fuga do arguido. Evidentemente que se esse perigo existia já, na fase de inquérito, quando foi decretada a aplicação da medida de coação privativa da liberdade ambulatória, acentua-se exponencialmente quando o tribunal de julgamento e o do recurso em 2ª instância, respetivamente, condenam e confirmam a condenação do arguido numa pena de prisão de gravidade e dimensão. A elevação do prazo máximo da prisão preventiva estabelecido no art. 215.° n.º 6 do CPP, justifica-se, precisamente pelo duplo grau condenatório. Não tanto ou não só porque no processo se começa a estabelecer um forte grau de certeza acerca da existência do crime e da responsabilidade criminal do arguido, mas, isso sim, porque se caminha, decisivamente, no sentido de uma certa medida das consequências jurídicas para o agente do crime ou crimes cometidos. O arguido que até então poderia ter expetativas mais ou menos fundadas de poder ver alterada a facticidade provada e com isso, ser absolvido ou ver reduzido o número de crimes, ou baixar a medida das penas parcelares, com o acórdão confirmatório e o funcionamento da dupla conforme, adquiriu um estádio de quase certeza de que a medida da pena, ainda que possa ser reduzida, nunca o será em tal dimensão que permita a aplicação de pena suspensa ou que venha a ficar-se em medida muito abaixo da aplicada. É, pois, a pena conjunta decretada e confirmada que está presente na mente legislativa que presidiu à elevação do prazo máximo da prisão preventiva estabelecido no art.º 215º n.º 6 do CPP.

Aliás, se assim não fosse, o legislador teria ressalvado a sua aplicabilidade ao crime singular ou a algum dos crimes previstos no n.º 2, e não o fez. O único critério é o da pena aplicada na decisão da 1ª instância, com confirmação pela Relação.

5. especial complexidade do processo:

Segundo o Requerente, o prazo alargado da prisão preventiva estabelecido no n.º 6, sobrepõe-se aos prazos fixados no n.º 3, ambos do art. 215º do CPP.

Defende a doutrina e tem interpretado e aplicado a jurisprudência que não é assim.

Para o Juiz Conselheiro E. Maia Costa,o nº 6 fala de “elevação” do prazo de prisão preventiva, o que revela que a regra nele contida só vale quando, por via da sua aplicação, o prazo não é inferior ao que resulta da aplicação das restantes regras do artigo. Assim, se metade da pena confirmada for inferior aos prazos estabelecidos nos nºs 1, 2, 3 e 5 deste artigo, serão estes os prazos que prevalecem”[36].

Para o Juiz Conselheiro Manuel J. Braz, no n.º 6 do art.º 215.º do CPP prevê-se que, se o arguido tiver sido condenado em pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória for confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo de prisão preventiva se eleva para metade da pena aplicada” (…)”.

“Mas não se estabelece aqui como prazo máximo de prisão preventiva metade da pena de prisão aplicada em todos os casos de sentença condenatória confirmada em sede de recurso ordinário. Por exemplo, se o arguido for condenado em 1.ª instância, em processo classificado de excepcional complexidade, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes daquele art.º 21.º, n.º 1, na pena de 4 anos e essa condenação for confirmada em recurso, o prazo máximo de prisão preventiva não passa a ser de 2 anos, continuando a ser o que resulta do n.º 3 do art.º 215.º, isto é, de 3 anos e 4 meses”[37].

Também assim interpreta e tem aplicado a jurisprudência deste Supremo Tribunal.

No acórdão de 30/12/2019 sustou-se que “tendo sido declarada desde logo a excecional complexidade do procedimento, o prazo máximo da prisão preventiva será de 3 anos e 4 meses”[38].

No acórdão de 6/112/2018 expendeu-se: “o prazo máximo da prisão preventiva é o correspondente a metade da condenação nos termos do art. 215.º, n.º 6, do CPP sempre que não subsista o prazo mais elevado, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. d), n.ºs 2 e 3, do CPP.”[39].

“No que tange ao prazo máximo de prisão preventiva, a letra do preceito - n.º 6 do art. 215.º do CPP - ao fazer «elevar» os prazos de prisão preventiva para metade da pena confirmada em recurso ordinário, obviamente que o prazo desta só releva se for superior a esses prazos, pois sendo essa metade inferior a tais prazos são estes os aplicáveis”.

Entende-se que essa é a única solução consentânea com a expressão literal da norma em apreço e, consequentemente com uma interpretação declarativa. Rememora-se que a legislador expressou o seu pensamento utilizando, conscientemente, o verbo elevar (máxime: “o prazo da prisão preventiva eleva-se para …). Na significação comum elevar significa aumentar, fazer subir, altear, tornar ou por mais alto. Na expressão jurídica quer dizer alargar. ampliar, prorrogar. Se o legislador tivesse querido que o prazo máximo estipulado no n.º 6 se sobrepunha aos prazos fixados nos n.ºs 1 al.ª d), n.º 2  e n.º 3, jamais adotaria aquele verbo e aquela redação.

No entendimento adotado no acórdão n.º 603/2009 do Tribunal Constitucionala norma do artigo 215º, n.º 6, do CPP consagrou uma prorrogação do prazo máximo da prisão preventiva para o caso em que a sentença condenatória de primeira instância tenha sido «confirmada em sede de recurso ordinário» e definiu a proporção do aumento do prazo em função da «pena que tiver sido fixada».

Há lugar à ampliação do prazo da prisão preventiva quando tenha havido confirmação, pela Relação, da sentença condenatória de primeira instância, e corresponde ao sentido literal da lei (ou, pelo menos, a um dos sentidos literais possíveis) que o prazo máximo se eleve para metade da pena que tiver sido aplicada no tribunal de recurso”.

Este Supremo Tribunal, entende que o prazo máximo da prisão preventiva estabelecido no n.º 6 não derroga os prazos consagrados nas normas dos n.ºs 1 al.ª d), n.º 2 e 3 do art.º 215º do CPP. Que funciona somente quando se tenham esgotado aqueles prazos e o arguido não deva ser libertado porque, em recurso, foi confirmada a sua condenação em pena de prisão, cuja metade é superior ao daqueles prazos que seja aplicável ao caso concreto.

Diferente interpretação subvertia perigosamente o sistema erigido pelo legislador assente “[n]a ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo das sucessivas fases processuais. Dentro de cada fase processual, os prazos de duração máxima de prisão preventiva são ainda pré-determinados segundo a gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento[40].

A especial complexidade do processo para efeitos de fixação do prazo da prisão preventiva, uma vez judicialmente declarada, mantem-se e vigora a partir daí na fase onde foi proferida e nas seguintes, incluindo a fase de recurso ordinário. A confirmação, em recurso, da decisão condenatória da 1ª instância em pena bem superior à do prazo máximo da prisão preventiva em processo declarado de especial complexidade, não extingue essa declaração.  

6. no caso:

Resulta dos dados coligidos nos autos que ao Requerente foi imposta, por despacho de 31 de maio de 2018, da Juíza de Instrução criminal materialmente competente, a medida de coação de prisão preventiva.

Que, em 1ª instância, por despacho de 6 de junho de 2019, foi judicialmente declara a especial complexidade do processo.

Em razão do que o prazo máximo da prisão preventiva do Requerente passou a reger-se pelo disposto no art.º 215º n.º 3 do CPP.

Nos termos do qual a prazo máximo da prisão preventiva é de 3 anos e 4 meses.

Prisão preventiva do Requerente que foi sendo sucessivamente reexaminada e ininterruptamente mantida.

Resulta ainda que o Requerente foi condenado em 1ª instância, com confirmação, em recurso, pela Relação ….., ainda que sem trânsito em julgado, pelos crimes de tráfico de estupefacientes e branqueamento na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

Em conformidade com o exposto, o regime do prazo da prisão preventiva em que se encontra é o estabelecido no art. 215º n.º 3 do CPP., ou seja, de 3 anos e 4 meses de prisão.

Tendo iniciado a execução da prisão preventiva em 31.05.2018, até à presente data – estamos a 15/09/2021 -, decorreram 3 anos 3 meses e 15 dias. Se, entretanto, não transitar em julgado a condenação ou o arguido, aqui Requerente, não apresentar requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, - caso em que o prazo da prisão preventiva do requerente é aumentado, automaticamente, em 6 meses -, está a 15 dias do termo final do prazo máximo – em 30 de setembro de 2021 - legalmente estabelecido para poder continuar preso preventivamente à ordem destes autos.

Assim, conclui-se que o arguido não se encontra, por ora, em situação de prisão ilegal, inexistindo abuso de poder ou qualquer situação suscetível de integrar o disposto no art.º 31º n.º 1 da Constituição da República ou alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal que consagram o regime que delimita o âmbito de admissibilidade e procedência da providência contra a prisão ilegal e arbitrária.

Não se verificando no caso situação fáctica ou jurídica que possa subsumir-se em qualquer daquelas previsões normativas conclui-se pelo indeferimento do habeas corpus em apreço por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a) do Código de Processo Penal.

III. DECISÁO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, delibera:

- indeferir, por falta de fundamento bastante, a petição de habeas corpus, apresentada pelo Requerente.

- condenar o Requerente a pagar as custas da providência, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).


Supremo Tribunal de Justiça, 15 de setembro de 2021.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[41] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)


António Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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[1] GRAND CHAMBER, CASE OF AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Application no. 27021/08). JUDGMENT, in 7 July 2011
[2] GRANDE CHAMBRE, AFFAIRE KAFKARIS c. CHYPRE. (Requête n.º 21906/04), ARRÊT du 12 février 2008.
[3] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - n.º 29 – 2016, pag. 223.
[4] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 480.
[5] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[6] Autores e obra citada, pag. 508.
[7] Autores e obra citada, pag 508.
[8] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[9] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[10] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[11] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[12]  Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[13] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[14] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial
[15] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[16] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[17] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[18] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[19] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[20] Funcionando a secção do STJ com todos os Juizes em exercício.
[21] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[22] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[23] Ao art. 31º da Constituição da República.
[24] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[25] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[26] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[27] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[28] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[29] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[30] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[31] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[32] 211/12.6GAMDB-A.S1. in www. Dgsi.pr
[33] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[34] Ou das restantes situações ali enunciadas.
[35] Ac. Stj de 23/04/2015, proc. 8/13.6MACSC-E.S1, in www.dgsi.pt.
[36]  (“Código de Processo Penal Comentado”, de A. Henrique Gaspar, J. Santos Cabral, E. Maia Costa, A. Oliveira Mendes, A. Pereira Madeira e A. Pires da Graça; Almedina, 3ª edição, 2021, página 838.
[37] As medidas de coacção no Código Processual Penal Revisto – Algumas notas, CJ, Ano XXXII, IV/2007, pág. 5
[38] Proc. 1/16.7P3LSB-H.S1, in www.dgsi.pt.
[39] proc. 1496/15.1T9SNT-Q.S1, ibidem
[40] Acórdão n.º 2/2008 do Tribunal Constitucional.
[41]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.