SEGREDO DE JUSTIÇA
Sumário

I - No caso em apreciação, o inquérito teve início no dia 05.05.2020, mas só no dia 24.02.2021 se procedeu à detenção de sete arguidos, entre eles o aqui recorrente, que, após interrogatório judicial, ficaram em prisão preventiva. Ora, a experiência diz-nos que o MP (com a colaboração dos OPC) esteve certamente a reunir fortes indícios contra os tais arguidos e, realizadas as detenções, os meios de obtenção de prova que são em regra simultâneos (buscas e revistas) e meios de prova real subsequentes (apreensões) trouxeram certamente novos elementos que implicam mais trabalho de investigação para a solidificação da responsabilidade criminal dos arguidos.
II - Só podemos concordar com uma solução que defina os prazos de segredo de justiça a cada situação - ao tempo – do inquérito. No caso dos autos, se não tem presos, o prazo de segredo de justiça é de 14 meses. Se passou a ter presos, o prazo de 8 meses só começa a contar a partir desta nova situação processual. Porém, sendo óbvio que o arguido não pode ser prejudicado pelo decurso de novo prazo para aceder aos autos, o caminho interpretativo a seguir só pode ser o da doutrina do art.º 297.º, do Código Civil, aplicável aos novos prazos mais curtos fixados por nova lei, pelo tribunal ou por qualquer autoridade.
III - Assim, e adaptando ao caso concreto o artigo 297.º do CC, podemos dizer que a norma legal - 276.º, n.º 2. al. a) – que, face à alteração da situação do inquérito, veio a ser a aplicável, e que prevê um prazo mais curto do que o fixado na norma legal anterior - 276.º, n.º 3, al. a) - é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da situação (prisão) que justifica a aplicação da nova norma legal, a não ser que, segundo a norma legal antiga, falte menos tempo para o prazo se completar. ( Sumário elaborado pelo relator).

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No Juiz 1 do Juízo Central de Instrução Criminal foi proferido o seguinte despacho:
“ (…)
Do adiamento do acesso aos autos nos termos do art.º 89.º - 6 do CPP
Nos presentes autos, foi aplicado o regime de segredo de justiça nos termos provisórios do disposto no art.º 86.º n.º 3 do CPP.
Veio o detentor da acção penal requerer o adiamento do acesso aos autos por três meses, por entender que a publicidade do processo, nesta fase da investigação colocaria em forte perigo toda a actividade probatória em curso e a realizar.
Dispõe o n.º 6 do art.º 89.º do CPP (revisto) que, "Findos os prazos previstos no art.º 276.º o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do art.º1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação".
Compulsados os autos e, atenta a douta promoção antecedente, com a qual se concorda e que aqui se dá por reproduzida, não por falta de ponderação própria da questão, mas por mera economia processual, verifica-se que a presente investigação, não se mostra ainda concluída, nem tão pouco se encontram esgotadas todas as diligências que importa realizar e que se afiguram absolutamente incompatíveis com o imediato conhecimento da sua realização pelos visados.
Atenta a dificuldade e a demora inerente aos actos de investigação que importa ainda realizar, bem como a complexidade da matéria sob investigação nos presentes autos, entendemos que, a publicidade, nesta fase, poderia afectar de modo irremediável a investigação em curso, a eficácia das futuras diligências e, bem assim, a descoberta da verdade material sobre os factos ilícitos sob investigação.
Atento o interesse legítimo e institucionalmente consagrado de defesa dos arguidos e, bem assim, o interesse público na descoberta da verdade e na consequente realização da pretensão punitiva do Estado e da colectividade que este representa, e que, na actual fase processual, em nosso entender, não se mostra menos relevante que o primeiro, entendo deferir ao adiamento do acesso aos autos por um prazo objectivamente razoável para a conclusão da investigação.
Não olvidando o direito dos arguidos à definição da sua situação num prazo razoável, ponderados os interesses em equação, defere-se ao doutamente promovido pelo titular da acção penal, isto é, determino o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses (até 5 de Outubro de 2021), por parte dos demais intervenientes processuais - ex vi do n.º 6 do art.º 89.º do CPP.
Notifique.
D.N ..”
*
O arguido JT veio recorrer deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. O presente inquérito teve início em 05/05/2020, tendo sido determinado a sujeição dos autos a segredo de justiça, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3 do C.P.P. e, através da promoção datada de 17/06/2021, veio o Ministério Público requerer ao Tribunal a quo o adiamento do acesso aos autos por três meses.
2. Neste seguimento, foi proferido despacho pelo Tribunal recorrido, datado de 18/06/2021, o qual determinou o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses, isto é, até ao dia 05/10/2021, por parte dos demais intervenientes processuais, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º 6 do C.P.P..
3. Com tal decisão não se pode o Recorrente conformar, uma vez que se encontravam já esgotados os prazos máximos de conclusão do presente inquérito.
4. Ora, com a alteração ao Código de Processo Penal no respeitante ao regime do segredo de justiça, passou a vigorar a regra da publicidade do processo desde o instaurar do inquérito, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 86.º do C.P.P., sendo tal regra um princípio essencial no ordenamento jurídico.
5. Estando as exceções à regra geral previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 86.º do C.P.P., segundo as quais o processo fica submetido a segredo de justiça.
6. ln casu, determinou o Tribunal a quo o adiamento do acesso aos autos pelo período de três meses, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 86.º do C.P.P., contudo, o presente inquérito iniciou-se em 05/05/2020 e, tendo em conta os crimes em investigação nos presentes autos, o prazo de duração do inquérito era, nos termos do disposto no artigo 276.º, n.º 2, alínea a) do C.P.P., de oito meses, o que significa que os oito meses terminaram no dia 05/01/2021.
7. Sucede que, apenas no dia 17/06/2021 veio o M.P. requerer o adiamento do acesso aos autos, o que foi deferido pelo despacho recorrido a 18/06/2021, quando já tinha decorrido, há mais de cinco meses, o prazo máximo de duração do inquérito e, consequentemente, de sujeição dos autos a segredo de justiça.
8. Analisando a promoção do M.P., tendo o presente inquérito início em 05/05/2020 e afirmando o M.P. que o prazo previsto no artigo 276.º do C.P.P., sem indicar o respetivo número e alínea aplicável, terminaria em 05/07/2021, está a tomar como assente que seria de 14 meses o prazo máximo de duração do inquérito, o que, apenas poderá corresponder à alínea a) do n.º 3 do referido artigo.
9. Sucede que, as alíneas do n.º 3 do artigo 276.º do C.P.P. têm por referência o prazo de oito meses previsto na parte final do n.º 1 deste artigo para a duração do inquérito quando não existem arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação.
10. Estando o Recorrente preso preventivamente óbvio é que nunca se poderá aplicar o n.º 3 do artigo 276.º do C.P.P., mas sim o n.º 2, por referência à primeira parte do n.º 1, que se refere ao prazo máximo de inquérito nos casos em que existem arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação.
11. Como referido, é de aplicar o artigo 276.º, n.º 2, alínea a) do C.P.P., mas ainda que se pudesse aplicar a alínea b) ou c) deste n.º 2, terminariam os prazos, respetivamente, a 05/03/2021 e 05/05/2021.
12. O que demonstra, inequivocamente, a intempestividade do pedido de prorrogação do segredo de justiça e do despacho que o determina, em qualquer dos cenários possivelmente aplicáveis aos presentes autos.
13. Neste sentido, veja-se que a jurisprudência é unânime ao afirmar que o pedido do Ministério Público, de prorrogação do segredo de justiça, deve ser feito antes de expirado o prazo do inquérito previsto no artigo 276.º do C.P.P..
14. Ademais, nem sequer tem qualquer sentido a decisão do Tribunal a quo de deferir um pedido de prorrogação do segredo de justiça, por entender que a publicidade, nesta fase, poderia afectar de modo irremediável a investigação em curso, a eficácia das futuras diligências e, bem assim, a descoberta da verdade material sobre os factos ilícitos sob investigação", quando durante meses os presentes autos se encontraram completamente disponíveis para a consulta de qualquer interveniente processual.
15. O despacho recorrido, ao negar o acesso aos autos por mais três meses, não permite ao Recorrente conhecer os detalhes do processo e, consequentemente, impede a preparação da sua defesa, violando assim o preceituado nos artigos 20.º, n.º 4 e 5 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
16. Destarte, verifica-se o ilegal adiamento do acesso aos autos, que tem por base a promoção do M.P. e o despacho recorrido que decretou a prorrogação do segredo de justiça fora do prazo legalmente admissível, ofendendo princípios constitucionalmente consagrados, tais como os atinentes aos direitos de defesa do Arguido bem como o direito a obter uma decisão em prazo razoável e a referida celeridade processual.
17. Face ao exposto, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 86.º, n.º 1 e 89.º, n.º 6 do C.P.P. e nos artigos 20.º, n.º 4 e 5 e 32.º, n.º 1 da C.R.P., pelo que deve ser revogado o despacho recorrido e levantado o segredo de justiça, permitindo-se o imediato acesso aos autos”.
O Ministério Público apresentou Resposta, concluindo do seguinte modo:
“ 1. O presente inquérito, instaurado em 5.05.2020, tem por objecto a investigação da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de associação criminosa, p. e p. pelos arts. 21°,24° e 28° do DL n° 15/93 de 22.01.
2. Por despacho proferido em 5.05.2020 decretou o MP a aplicação do segredo de justiça, nos termos do disposto no art. 86°, nº 3, do CPP,
3. Tal decisão do MP foi validada pelo Mmo. JIC em 6.05.2020.
4. Em 24.02.2021 procedeu-se à realização do primeiro interrogatório de arguido detido, nos termos do art. 141° do CPP, no âmbito do qual foi decretada a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a sete arguidos.
5. Por despacho proferido a fls. 17.06.2021 veio o MP requerer o adiamento do acesso aos autos, por três meses, até ao dia 5/10/2021, aduzindo que o prazo de duração máxima de inquérito, previsto no art. 276°, nº 1 e 3 al. a) do CPP (prazo de catorze meses) terminaria em 5.07.2021.
6. Em 18.06.2021, ao abrigo do disposto no art. 89°, nº 6, do CPP, foi proferido o despacho judicial a quo determinando-se o adiamento do acesso aos autos até 5.10.2021, nos termos requeridos pelo MP.
7. Invoca o recorrente a extemporaneidade do despacho a quo porquanto "O presente inquérito teve início em 5/05/2020 e, tendo em conta os crimes em investigação nos presentes autos, o prazo de duração (máxima) do presente inquérito era, nos termos do disposto no art. 276°, nº 2, al. a) do CPP, de oito meses, o que significa que os oito meses terminaram no dia 05/01/2021, sendo imediatamente aplicável o n° 2 a1. a) do 276° e nunca o seu nº 3 al. a) face à existência de arguidos presos preventivamente nos autos.
8. Falece a argumentação exposta no recurso porquanto,
9. Pretende o arguido fazer retroagir o início da contagem do prazo subsequente (prazo de oito meses aplicável a inquérito com arguidos presos - art. 276°, nº 2, al. a) do CPP) à data (inicial da contagem do prazo de catorze meses aplicável a inquérito contra pessoa determinada e por crimes referidos no n° 2 do art. 215°) em que o inquérito passou a correr contra pessoa determinada, i. e., em 5.05.2020, data na qual não existiam sequer arguidos constituídos nos autos.
10. Ora, o art. 276°, nº 4 do CPP regula o início da contagem do primeiro prazo aplicável ao inquérito mas não o início da contagem dos prazos (sucessivos) que vierem a ser aplicáveis em função da eventual aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação aos arguidos ou da declaração da excepcional complexidade dos autos - previstas no n° 2 e n° 3, als. b) e c) do CPP.
11. Concretizando, decorre que o prazo inicial de duração máxima do inquérito, iniciado na data da instauração do inquérito contra pessoa determinada, decorreu de 5.05.2020 a 5.07.2021 (catorze meses - art. 276°, n° 1, segunda parte e n° 3, al. a) em conjugação com o art. 215°, nº 2 e art. 1°, al. m), todos do CPP) e
12. O prazo subsequente de duração máxima de inquérito, iniciado na data da aplicação da prisão preventiva, decorreu de 24.02.2021 a 24.10.2021, e não retroagindo ao início do inquérito, em 5.05.2020 até 5.01.2020, conforme pretende valer o recorrente.
13. Efectivamente, sucedendo-se dois prazos aplicáveis a um mesmo inquérito, sendo um prazo (inicial - instauração de inquérito) relativo a inquérito sem arguidos presos e sendo outro prazo (subsequente - aplicação da prisão preventiva) relativo a inquérito com arguidos presos,
14. deve-se considerar esgotado o prazo (geral de duração máxima do inquérito) logo que se tenha atingido o termo final de qualquer um dos prazos em curso (inicial e subsequente), por aplicação da regra geral do art. 297°, nº 1 do Código Civil.
15. Pelo que, na correcta interpretação do art. 276°, nº 4 do CPP, impõe-se concluir que, atento o princípio geral consagrado no art. 297° do Cód. Civil, o prazo máximo do presente inquérito atingiu o seu termo em 5.07.2021 uma vez que o novo (subsequente) prazo de inquérito (8 meses) aplicável - resultante da sujeição dos arguidos à prisão preventiva determinada em 24.02.2021 – implicaria fixar o termo do prazo em data anterior ao próprio facto processual novo que lhe deu origem ( a prisão preventiva).
16. Tal entendimento foi defendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido em 8/10/2015, no âmbito do proc. n° 3902/13.0JFLSB-N.L1-9, disponível em www.dgsi.pt:
"I - O segredo de justiça interno não pode ir além dos prazos máximos do inquérito previstos no artº 276º do C.P.P., acrescidos do adiamento por um prazo máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado.
II - Na norma do artigo 276º- 1 do C.P.P., o legislador quando se refere aos prazos máximos do inquérito, não quis fixar vários prazos independentes, consoante o aparecimento de novos sujeitos ou das suas situações processuais. Daí a expressão "ou" e não "e".
III - Sucedendo-se os prazos, deve aplicar-se a regra do processo civil, prevista no artigo 290 do respectivo diploma”.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II –  Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões (já supra mencionadas) da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância – artigos 403º e 412º, nº 1, do Código do Processo Penal.
Fundamentalmente, sustenta o recorrente que foi ilegal o adiamento do acesso aos autos, que tem por base a promoção do M.P. e o despacho recorrido que decretou a prorrogação do segredo de justiça, por que fora do prazo legalmente admissível.
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III – Fundamentação
O inquérito teve início no dia 5 de Maio de 2020 (pacífico entre os intervenientes), data em que começou a correr contra pessoa determinada e o Ministério Público determinou a aplicação do segredo de justiça, decisão validada pelo juiz de instrução criminal, no dia seguinte (06.05.2020), tudo em conformidade com o art.º 86.º, n.º 3, do CPP.
O recorrente está em prisão preventiva desde o dia 24 de Fevereiro de 2021. Sustenta que, decorrendo o inquérito com arguido preso, o prazo máximo de duração seria de oito meses, ao abrigo do art.º 276.º, n.º 2, al. a), do CPP. E, assim, face ao exposto no art.º 89.º, n.º 6, do mesmo diploma legal, o segredo de justiça não se podia estender para além desses oito meses. Ora, in casu, oito meses depois de 05.05.2020 corresponde ao dia 05.01.2021, ou seja, em data anterior à prisão preventiva do recorrente.
Apreciando, não havendo presos até 24.02.2021, o prazo de duração máxima do presente inquérito seria, pelo menos até então, o de 14 meses, ao abrigo do art.º 276.º, n.º 3, al. a), do CPP – o crime investigado é o de tráfico de estupefacientes agravado e de associação criminosa, punidos com pena de prisão de máximo superior a oito anos, pelo que está incluído no elenco do n.º 2, do art.º 215.º, do CPP.
A questão que se coloca neste recurso é, pois, a de saber se a prisão do recorrente faz retroagir os efeitos do prazo máximo da duração do inquérito, que teria sido atingido no dia 05.01.2021, in casu antes da própria prisão. Ou se o prazo de oito meses só começa a contar a partir da prisão preventiva, valendo até lá o prazo de 14 meses, a terminar no dia 05.07.2021.
A doutrina consagrada no art.º 9.º, do Código Civil continua a servir de guia à interpretação judicial. Diz tal normativo, nos seus diversos números, que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, sendo certo que não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Resta dizer que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Claro que, para a questão que aqui nos ocupa, o prazo máximo do inquérito só interessa para o segredo de justiça.
Por isso, importa apreciar o processo legislativo que deu origem à Lei n.º 48/2007, que veio alterar o art.º 89.º, n.º 6, do CPP. Matéria exaustivamente ponderada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 428/2008, publicado no DR Série II, de 30.09.2008, com referências minuciosas à Proposta de Lei do Governo e Anteprojectos apresentados pelos diversos grupos parlamentares, para se concluir o seguinte, relativamente à versão da Lei que veio a ser aprovada:
“ Como salienta Pedro Maria Godinho Vaz Patto ("O regime do segredo de justiça no Código de Processo Penal revisto", Revista do CEJ, n.º 9, 2008, pp. 43-67, no prelo), a versão que veio a ser aprovada diferencia-se das constantes dos referidos Anteprojecto e Proposta de Lei: "A regra passa a ser a publicidade do processo mesmo na fase de inquérito. A regra do carácter secreto do inquérito, consignada no artigo 86.º, n.º 2, da Proposta de Lei e do Anteprojecto desapareceu. Esse carácter secreto passa a ser a excepção. O Ministério Público pode afastar essa regra, mas, para tal, carece da concordância do juiz de instrução. Estatui o n.º 3 do artigo 86.º: «Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas». Neste caso, o Ministério Público poderá determinar, posteriormente e em qualquer momento do inquérito, o levantamento do segredo de justiça, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido (n.º 4 do mesmo artigo). Esse levantamento também pode ser decidido pelo juiz de instrução, mediante despacho irrecorrível, no caso de o arguido, o assistente ou o ofendido o requererem mesmo contra a posição do Ministério Público (n.º 5 do mesmo artigo). Assim, por um lado, passa a ser possível, ao contrário do que decorreria do regime do Anteprojecto e da Proposta de Lei, determinar a publicidade do processo na fase de inquérito mesmo contra a vontade do arguido: se o Ministério Público não requerer a sujeição do mesmo a segredo de justiça (não é essa a regra e pode entender que os direitos dos sujeitos processuais não justificam o afastamento dessa regra) e se o juiz não deferir o requerimento do arguido nesse sentido. Por outro lado, também pode suceder (o que não sucederia no regime decorrente do Anteprojecto e da Proposta de Lei) que o processo se mantenha público e não fique sujeito ao regime de segredo de justiça contra a posição assumida pelo Ministério Público e mesmo que não haja requerimento do arguido (ou também do assistente ou do ofendido) nesse sentido. Tal sucederá se o juiz de instrução não validar a decisão do Ministério Público de afastar a regra da publicidade, nos termos do n.º 3 do referido artigo 86.º”.
No citado ac. do TC consta ainda o seguinte:
“ A regulação do segredo de justiça em processo penal - quer na vertente interna, respeitando aos participantes processuais directamente envolvidos na concreta relação processual, quer na vertente externa, reportado à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual - convoca, com particular acuidade, "a tarefa de concordância prática das finalidades, irremediavelmente conflituantes, apontadas ao processo penal: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada" (Maria João Antunes, "O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção", em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 1237-1268)”.
Por conseguinte, a situação in casu tem que ser apreciada tendo em conta a lei em vigor e a dialética entre a realização da justiça e a protecção do direito de defesa do recorrente.
Voltamos a referir que a duração do inquérito, só por si, não é relevante, por ser pacificamente considerado que o não cumprimento de tal prazo não acarreta qualquer consequência processual. Os prazos máximos de inquérito previstos na lei visam certamente salvaguardar o direito dos cidadãos arguidos a ser investigados num prazo razoável, não se justificando que tal decorra ad aeternum, sem fim à vista. Já peremptórios são obviamente os prazos das medidas de coação (em particular as privativas da liberdade) e de restrição do segredo de justiça.
No caso em apreciação, o inquérito teve início no dia 05.05.2020, mas só no dia 24.02.2021 se procedeu à detenção de sete arguidos, entre eles o aqui recorrente, que, após interrogatório judicial, ficaram em prisão preventiva. Ora, a experiência diz-nos que o MP (com a colaboração dos OPC) esteve certamente a reunir fortes indícios contra os tais arguidos e, realizadas as detenções, os meios de obtenção de prova que são em regra simultâneos (buscas e revistas) e meios de prova real subsequentes (apreensões) trouxeram certamente novos elementos que implicam mais trabalho de investigação para a solidificação da responsabilidade criminal dos arguidos.
O segredo de justiça foi fundamental na fase de investigação até à detenção dos arguidos. Não se entenderia que os arguidos soubessem dos passos da investigação. E o MP trabalhava, até então e sem presos, com um prazo de 14 meses de segredo de justiça, que se iniciou no dia 05.05.2020.
O prazo mais reduzido de segredo de justiça em caso de arguidos presos justifica-se pela extrema gravidade da medida de coacção, em que os direitos fundamentais estão muito mais restringidos. Privado da liberdade e sem acesso aos autos, a defesa do arguido fica muito vulnerável, daí que se justifique a redução do prazo do segredo de justiça, para, o mais cedo possível (sem atingir o cerne da investigação), o arguido possa organizar a sua defesa e processualmente combater a sua privação da liberdade, em conformidade com a presunção de inocência e os princípios constitucionais consagrados nos artigos 27.º, n.ºs 3 e 4 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 7, ambos da Constituição.
A pretensão do arguido – o prazo máximo do inquérito é de 8 meses a partir de 05.05.2020 –  e, com isso, o levantamento do segredo de justiça assim que se procedeu à prisão do recorrente por se mostrar ultrapassado tal prazo, não protege a realização da justiça e seria de todo incompreensível. Em primeiro lugar, a decisão de detenção do arguido obedece ao desenvolvimento da investigação e só se verificou quando o MP entendeu ter reunido os meios de prova necessários para os fortes indícios contra o recorrente. O segredo de justiça, sendo um elemento importante, não pode, é certo, definir o tempo processual da actuação do MP. O MP deve actuar em função da prova produzida e não estritamente do prazo do segredo de justiça. E, depois, seria incompreensível obrigar o MP a vir requerer a prorrogação do segredo de justiça, antes dos oito meses de inquérito, só para prevenir uma hipótese incerta de futuro preso à ordem do inquérito.
Aqui chegados, só podemos concordar com uma solução que defina os prazos a cada situação - ao tempo – do inquérito. No caso dos autos, se não tem presos, o prazo é de 14 meses. Se passou a ter presos, o prazo de 8 meses só começa a contar a partir desta nova situação processual. Porém, sendo óbvio que o arguido não pode ser prejudicado pelo decurso de novo prazo para aceder aos autos, o caminho interpretativo a seguir só pode ser o da doutrina do art.º 297.º, do Código Civil, aplicável aos novos prazos mais curtos fixados por nova lei, pelo tribunal ou por qualquer autoridade.
No caso dos autos, é certo, a redução do prazo não advém de lei nova na ordem jurídica, mas de alteração da situação processual do inquérito – passou a ter presos – e, com isso, há uma nova norma legal aplicável, que determina redução do prazo de segredo de justiça. A norma agora aplicável é a prevista no art.º 276.º, n.º 2, al. a) e já não a do n.º 3, al. a), do mesmo artigo do CPP.
Assim, e adaptando ao caso concreto o artigo 297.º do CC, podemos dizer que a norma legal - 276.º, n.º 2. al. a) – que, face à alteração da situação do inquérito, veio a ser a aplicável, e que prevê um prazo mais curto do que o fixado na norma legal anterior - 276.º, n.º 3, al. a) - é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da situação (prisão) que justifica a aplicação da nova norma legal, a não ser que, segundo a norma legal antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
Por conseguinte, sendo o recorrente preso no dia 24.02.2021, o prazo de oito meses só terminaria no dia 24.10.2021, pelo que beneficia da circunstância do anterior prazo (14 meses) aplicável ao inquérito sem preso, terminar no dia 05.07.2021 (o inquérito teve início no dia 05.05.2020).
Face ao exposto, o despacho recorrido (que veio prorrogar o segredo de justiça) de 18.06.2021 foi prolatado antes do fim do prazo do segredo de justiça, que, como vimos, só ocorreria no dia 05.07.2021.
Andou bem o tribunal a quo e improcede o presente recurso.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s.
Lisboa, 14 de Setembro de 2021

Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira