SEGUNDA PERÍCIA
SUPRIMENTO DO CONSENTIMENTO
Sumário

I – No processo de acompanhamento de maior, dada a natureza dos poderes atribuídos ao juiz em sede de instrução, nos termos do art.891º/1 e art.897º CPC, a realização de segunda perícia, ao abrigo do art. 487º CPC, ou a realização de outra perícia permanecendo dúvidas, nos termos do art. 899º/2 CPC, fica sempre dependente do juízo de conveniência por parte do juiz.
I - Não se justifica o suprimento do consentimento do beneficiário, ao abrigo do art. 141º CC, quando os factos provados e concretas circunstâncias não revelam que o beneficiário se encontre impedido de livre e conscientemente dar o consentimento para a ação e os argumentos apresentados não constituírem um fundamento atendível, por não terem sustentação nos factos provados.

Texto Integral

Acompanhamento Maior-RMF-2487/10.9T8VFR.P1

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação especial de acompanhamento de maior, em que figura como:
- REQUERENTE: B…, residente na Avenida …, n.º …, ….-… Amarante; e
- REQUERIDOS: MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do beneficiário (após aperfeiçoamento da petição);
C…, residente na rua …, n.º …, …, ….-… Santa Maria da Feira,
formulou a requerente o seguinte pedido:
- que seja suprida a autorização da beneficiária, nos termos do disposto no artigo 141.º n.º 2 e 3 do CC;
- decretado o acompanhamento, por razões de saúde, de C…, sendo nomeada sua acompanhante sua única filha B…, aplicando-se as medidas de representação geral, com dispensa da constituição do Conselho de Família, nos termos do disposto no artigo 145 n.º 4 do CC, administração total dos bens e das contas bancárias, seguros e aplicações financeiras, e limitação do direito pessoal a testar, nos termos requeridos.
- seja decretada a medida provisória e urgente que determine a inibição da requerida de movimentação da conta n.º ……………….., do Banco O…, bem como todos os seguros e as aplicações financeiras de que seja titular e cotitular nessa instituição bancária;
- para exercer as funções de acompanhante, indica a requerente B…;
- caso a constituição do conselho de família não venha a ser dispensada, indica-se, para integrarem o conselho de família, por terem uma relação mais próxima com a requerida, indica-se como vogais:
- D…, único genro da requerida e marido da requerente, residente na Avenida …, n.º …, ….-… Amarante;
- E…, única neta da requerida e única filha da requerente, residente na Avenida …, n.º …, …..-… Amarante.
Alegou, em síntese, que a requerida nasceu em 05/07/1948, é viúva desde 13/07/2016. A requerente é filha da requerida, não tendo a requerida outros filhos.
A requerida encontra-se a ser seguida no Serviço de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar …, E.P.E, Unidade …, Penafiel, desde Fevereiro de 2017.
Nesse período, foi-lhe diagnosticado Síndrome Demencial, traduzido a nível imagiológico por “área de atrofia focal periventricular frontal esquerda” e a nível neuropsicológico por “a avaliação do índice de deterioração mental aponta para percentis situados no nível muito deficiente, sugerindo uma clara indicação de deterioração mental”, apresentando ainda “défices cognitivos ao nível da atenção e orientação, memória, fluência verbal, linguagem e capacidade espacial, num patamar de demência ligeira a moderada”, bem como, “atividade delirante de teor persecutório e de prejuízo muito direcionados a familiar diretos, esbatidas com a introdução de medicação antipsicótica”, encontrando-se já muito dependente de terceiros para as suas atividades da vida diária que eram cumpridos pela requerente.
Por força de tal patologia mental de que sofre a requerida, foi determinado tratamento medicamentoso à requerida e acompanhamento por médico psiquiatra.
Na verdade, após o falecimento do marido em 13/07/2016, a requerida foi viver com a requerente. A requerente sempre zelou pelos cuidados de saúde de que a requerida necessitava, marcando-lhe consultas e acompanhando-a nas mesmas, assegurando-se que a requerida tomasse a medicação, observasse horários regulares para a tomada de refeições e para o descanso.
Porém, a requerida não aceitava as indicações da requerente quanto à tomada de medicação, horários de refeições e descanso e quanto a outros atos da vida diária, considerando a atenção e cuidados que lhe dispensava a requerente como uma ingerência na sua autonomia.
Assim, em Maio de 2018, a requerida decidiu voltar para a sua residência em Santa Maria da Feira, onde vive sozinha até à presente.
Não obstante, a requerida continuou a dar-se com a requerente, e a requerente continuou a zelar pelos cuidados de saúde da requerida, marcando-lhe consultas médicas, deslocando-se a Santa Maria da Feira para levar a requerida às consultas nas unidades de saúde onde a requerida se encontra a ser acompanhada sitas no Porto e em Amarante, e para passar temporadas de 2 ou 3 semanas em casa da requerente, e visitando-a e telefonando-lhe.
Sucede, porém, que a requerida, contra as recomendações da requerente, deixou de tomar a medicação em Abril/Maio de 2019. Por força disso, o estado de saúde mental da requerida tem vindo a degradar-se.
Confrontada pela requerente quanto à recusa da medicação, a requerida insiste que não tem problemas, que os outros é que são loucos, que os medicamentos são caros. Ora, sem a tomada da medicação agrava-se a tendência da requerida para a ausência de rotinas e horários, fazendo refeições e dormindo a qualquer hora, o que tudo deteriora a sua saúde mental e agrava a diabetes de que sofre a requerida.
E agravam-se os pensamentos persecutórios e desconfianças em relação à requerente, sua única filha e principal cuidadora.
Acresce que a requerida nunca lidou com questões bancárias, sendo estas tratadas pelo seu marido e, após o falecimento deste, pela requerente, a pedido da requerida. Sucede que, no dia 08/07/2019, a requerida dirigiu-se ao banco F…, sito em São João da Madeira, acompanhada de um indivíduo. Aí a requerida vendeu obrigações, procedeu ao levantamento de quantias por meio de cheques e a transferências bancários, num valor global de cerca de € 203.000,00, pagando cerca de € 800,00 em custos e comissões. Desconhece a requerente que destino a requerida terá dado ao dinheiro, temendo que a requerida proceda à delapidação do seu património, o qual é composto por outras contas bancárias e aplicações financeiras de dezenas de milhares de euros e por uma casa de habitação.
Em 09/07/2019, a requerente entrou em contacto com G…, uma conhecida da requerida, a fim de lhe perguntar se o marido desta, H…, tinha acompanhado a requerida ao banco para fazer as supra descritas movimentações, dado que são pessoas próximas da requerida, residindo os mesmos também na freguesia …, do concelho de Santa Maria da Feira, na rua …, n.º …. Nessa conversa, e apesar de ser sabedora que a requerida tinha acompanhamento psiquiátrico, a referida G… disse à requerente que a requerida não tinha problemas psiquiátricos, que era uma pessoa normal e que não precisava de medicação, sendo que a requerente e o marido estavam a “pô-la maluca”.
Mais alegou ser manifesto que a requerente não está no pleno gozo das suas faculdades mentais e se encontra a ser incentivada e apoiada por terceiros na recusa de tratamento medicamentoso e médico, desconhecendo-se qual o objetivo destes, o que prejudica a saúde física e mental da requerida e põe em risco o seu património.
A doença psiquiátrica de que padece a requerida determina a impossibilidade de a mesma se governar pessoal e patrimonialmente.
A requerida depende de acompanhamento e cuidados constantes de terceiros. Carece de supervisão e incentivo para tomar a medicação necessária à sua condição de saúde, para comparecer nas consultas médicas, e para fazer refeições e descansar regularmente.
Considera, por fim, que se mostra absolutamente necessário o acompanhamento de C…, uma vez que, por razões de saúde, se encontra impossibilitada de exercer de forma plena, pessoal e consciente os seus direitos e cumprir os seus deveres, sendo indispensável proceder à nomeação de quem acompanhe a sua pessoa e os seus bens, providencie pelos seus cuidados e legalmente a represente.
Considerando o alegado quadro factual e clínico, entende adequada a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento:
- representação geral, com dispensa da constituição do Conselho de Família;
- administração total dos bens e das contas bancárias, seguros e aplicações financeiras;
- limitação do direito pessoal a testar.
Não há notícia de que o beneficiário tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses e indica para exercer a função de acompanhante a requerente.
Em relação ao suprimento de consentimento, [sublinhado nosso] alegou que a requerida não lhe deu autorização para intentar a presente ação, pois sofre de doença mental (síndrome demencial) que a impede de ajuizar corretamente a realidade e de agir de acordo com os seus interesses, julgando erradamente estar lúcida, não necessitar de tratamento e poder sozinha determinar-se quanto às medidas a tomar quanto à sua saúde e seu património. Ora, a síndrome demencial de que padece e que a requerida não quer tratar, faz com que a requerente não tenha condições mentais para prestar autorização à requerente para o acompanhamento aqui requerido.
Alegou os factos que fundamentam a aplicação de uma medida provisória.
Juntou certidão de assento de nascimento da requerente e da requerida e declaração médica.
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Apresentados os autos com conclusão, foi proferido o seguinte despacho de aperfeiçoamento:
“Ao abrigo do preceituado no art. 141.º do Código Civil, na atual redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, o acompanhamento deverá ser requerido pelo próprio ou pelo cônjuge, unido de facto, ou por qualquer parente sucessível, dependendo, contudo, de autorização do acompanhado, ou, independentemente desta autorização, pelo Ministério Público.
A autorização poderá, ainda, ser suprida pelo tribunal quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente.
No caso concreto, constata-se que o acompanhamento é requerido pela filha da requerida, assumindo, assim, a qualidade de parente sucessível (cfr. art. 2132.º e 2133.º, n.º 1, al. a) do Código Civil), sem que, todavia, se mostre junto aos autos qualquer autorização por parte da acompanhada.
Por outro lado, quando a ação for proposta pelo beneficiário ou por alguém em sua substituição, entende-se que deve figurar como requerido nessa ação o Ministério Público, porquanto é a quem incumbe representar os incapazes (art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Estatuto do Ministério Público), devendo ser chamado a intervir no processo como parte principal (art.º 5.º, n.º 1, al. c), do mencionado Estatuto).
Nesta conformidade, notifique a Requerente para, no prazo de dez dias, apresentar nova petição inicial, a qual deve ser dirigida contra o Ministério Público, em representação da beneficiária, e instruída de autorização do acompanhado ou, na hipótese de o beneficiário não a poder dar livre e conscientemente, requerer o seu suprimento judicial, nos termos dos n.ºs 1 e 2, do Código Civil, na nova redação aplicável aos autos”.
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A requerente apresentou nova petição, identificando o Ministério Público como parte.
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Proferiu-se despacho que determinou a citação dos requeridos para os termos do incidente de suprimento do consentimento, nos termos do art. 1001º CPC.
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No mesmo despacho considerou-se não ser de aplicar liminarmente qualquer medida provisória, por não estar determinada a legitimidade da requerente e não constar da petição documentos que indiciem os alegados movimentos bancários, que justificam o pedido formulado.
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Procedeu-se à citação do Ministério Público, nos termos do art. 21º do CPC.
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A requerida C… foi citada pessoalmente, por mandado e constituiu advogado nos autos, juntando a respetiva procuração.
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A requerida C… veio contestar, alegando, que não é verdade que a requerida seja seguida no Serviço de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar …, E.P.E.. Apenas foi lá seguida em algumas consultas durante o período em que viveu com a sua filha, ora requerente, em Amarante e por se sentir muito abatida pelo recente falecimento do seu marido.
Alegou que casou catolicamente com o seu cônjuge em 5 de Julho de 1973 e dessa relação matrimonial nasceu a requerente. No entanto, a requerente B… apenas viveu com os seus pais até os seus 7 anos de idade, porque como a requerida se encontrava emigrada com o seu marido na Alemanha, optaram por deixar a requerente com as suas cunhadas solteiras (tias da requerente) em Amarante, para a requerente seguir a escola Portuguesa. A filha da requerida, B…, foi criada e educada pelas suas tias, tendo vivido com elas, até se casar com o seu atual marido. A requerente B… cresceu, estudou e viveu sempre em Amarante desde os seus sete anos de idade. A requerida estava apenas com a sua filha, aqui requerente, quando vinha passar férias a Portugal. Mesmo depois da requerida regressar da sua vida dura de trabalho na Alemanha, com o seu falecido marido em meados de 2011, a convivência entre a requerente e a requerida era escassa, porque a requerida veio viver com o seu falecido marido para …, onde sempre viveu até a morte do seu marido, enquanto que a requerente vivia em Amarante.
A requerida e a requerente não deixam de ser mãe e filha, havendo por isso, uma relação de respeito entre ambas. Contudo a relação da requerente com os seus pais, nunca foi uma relação normal como habitualmente sucede, não nutrindo a requerente o carinho que habitualmente sucederia se tivesse sido criada pelos seus progenitores.
Com o falecimento do marido da requerida, em 13-07-2016, a requerente e o seu marido obrigaram a requerida a ir viver com eles em Amarante. Não obstante, não corresponder a vontade da requerida, esta não tinha forças para recusar porque se encontrava muito abatida e abalada com o falecimento do seu cônjuge, pessoa com quem viveu 43 anos.
A requerida residiu até Maio de 2018 com a sua filha e o seu genro, data em que foi “despejada” por aqueles na sua habitação em …, onde reside atualmente até agora.
Mais alega que a instauração da presente ação visa iludir o tribunal para esconder o que aconteceu quando a requerida tomou conhecimento das alterações no seu património e que estava a tentar recuperar os seus bens, o que motivou a participação crime contra a requerente e o seu genro.
A requerida quis voltar para sua casa porque foi alvo de maus tratos por aqueles.
Alegou, ainda, que a requerente não continuou a zelar pelos cuidados de saúde da requerida, marcando-lhe consultas médicas. Desde que a requerida regressou à sua casa em …, a requerente nem a sua família visitaram a requerida, ou procuraram saber se esta precisou de alguma coisa. Nem a requerida voltou à casa da requerente em Amarante. Desde o seu regresso, a requerida falou apenas uma ou duas vez com a requerente nas respetivas datas de aniversário e quando a requerente recebeu a carta da advogada da requerida. A requerida já não vê a requerente nem a sua família há mais de um ano. No natal do ano de 2018, a requerida passou o Natal com os seus amigos, não com a requerente. Desde que a requerida regressou, tem sido acompanhada pela sua amiga I… e o seu filho J….
Tem sido a sua amiga I… que visita diariamente a requerida e que a acompanha no que a requerida necessitar, designadamente, nas consultas médicas, como assim, sucedeu, junto do IPO no dia 6 de junho de 2019 e no dia 22 de Outubro de 2019 pelas 10h45. Não é verdade que a requerida deixou de tomar a medicação que necessita. A requerida é acompanhada pelo seu médico, Dr K…, o qual receita a medicação que ela necessita. A ora requerida toma toda a medicação que necessita.
Mais alegou que recebe todas as refeições através do Centro Social … e que por isso, almoça todas as refeições e às horas. Não sendo verdade que o estado de saúde da ora requerente se tem deteriorado, nem os diabetes.
Descreve os bens que compunham o património do casal à data do óbito do marido e as alterações que ocorreram na sequência da escritura de partilhas e escritura pública de compra e venda celebradas por iniciativa da requerente e seu marido, sem que a requerida se tenha apercebido dos efeitos de tais atos, porquanto aproveitando-se do estado fragilizado e submisso, da requerida por força do óbito do seu cônjuge e do tratamento oncológico que esta se encontrava a realizar, aliada ao facto daquela não estar familiarizada e habituada a tratar de papéis, obrigaram-na a assinar diversos documentos sem saber o que se tratava.
Aleou que se deslocou ao banco com um amigo de longa data e com a colaboração da gestora de conta transferiu o dinheiro para uma conta por si titulada, para evitar que tal dinheiro fosse movimentado pela requerente e marido.
A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha, apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade (71 anos), sendo uma pessoa autónoma. É a própria que se veste sozinha, trata da sua higiene pessoal e dos afazeres do lar! Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva. Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro. Quanto ao valor das coisas, a requerida é capaz de reger o seu património, sendo a requerida bastante poupada. A requerida desloca-se sozinha para tratar dos seus afazeres do dia-a-dia e quando necessita, tem o auxilio da Sra I… e do Sr H…. A requerida desde que vive sozinha, nunca praticou quaisquer excessos patrimoniais, sempre foi contida nos seus gastos quotidianos. Tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
A requerida C… não padece atualmente, de qualquer anomalia mental ou psíquica que dissimule o seu querer ou distorce a sua vontade.
Tem alguns lapsos de memória momentâneos, mas perfeitamente normais, e aliás, como não raras vezes acontece a qualquer cidadão analisado à luz do critério do Homem médio.
Tem a 4º classe como escolaridade e apresenta as dificuldades associadas a tal lacuna formativa. Sempre que a requerida necessita, tem o auxílio da Sra I… e do Sr H…, nomeadamente para deslocações mais longínquas porque a requerida não tem carta de condução.
Não resulta, prova capaz de indicar que a requerida deva ser acompanhada, pois, as conclusões do relatório, não se revelam claras nem suficientes, além de já ter algum tempo, por ter sido elaborado em novembro de 2017. Não existe assim, fundamento para que seja decretado o acompanhamento.
Alegou, por fim, que caso seja decretado o acompanhamento ou qualquer outra medida provisória, opõe-se à nomeação das pessoas propostas pela requerente e indicou quem deve ser nomeado, por serem pessoas da sua confiança e com quem habitualmente convive.
Termina por pedir a suspensão da instância até decisão final no processo crime.
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A requerente veio exercer o contraditório em relação aos documentos juntos pela requerida com a contestação.
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A requerida veio opor-se à admissão de tal articulado.
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Proferiu-se despacho que indeferiu a suspensão da instância e determinou-se a realização de exame pericial à requerida a fim de aferir se a mesma tem capacidade para livre e conscientemente dar autorização para a propositura de uma ação de acompanhamento de maior, ou se, não o sendo, carece de medidas de acompanhamento que justifiquem a presente ação.
Procedeu-se à nomeação de perito.
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A requerida veio esclarecer e indicar os elementos de prova que pretendia produzir no âmbito do incidente.
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A requerente veio apresentar requerimento no qual enuncia um conjunto de factos relacionados com o comportamento da requerida no período compreendido entre o final do ano de 2019 e início do ano de 2020.
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A requerida veio impugnar tal matéria.
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O perito veio dizer que realizou um exame médico no dia 10-01-2020, solicitando após informações clínicas as quais foram recebidas muito tempo após atento o contexto pandémico. Nesta sequência, afigurou-se-lhe relevante uma segunda avaliação da requerida para esclarecimento de alguns aspetos, o que sucedeu, em 10 de agosto de 2020, vindo mais tarde a ser junto o relatório.
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Notificadas as partes do relatório pericial, veio a requerente requerer a realização de segunda perícia, nos termos do art. 899º/2 CPC, o que mereceu a oposição da requerida.
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Designou-se data para tomada de declarações à requerida, requerente, perito e I…, para habilitar o tribunal a tomar uma decisão sobre a necessidade de 2ª perícia ou realização de outras diligências.
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Procedeu-se à audição das pessoas designadas.
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O Ministério Público proferiu o seguinte parecer:
“Conforme foi diretamente percecionado pelo Tribunal aquando da audição da requerida, e foi confirmado pelo relatório pericial, a mesma não padece de qualquer doença e/ou incapacidade que a limite na gestão da sua vida, nem da sua pessoa, pelo que, o M.P. promove se indefira na íntegra o peticionado no requerimento inicial”.
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O tribunal considerou que os autos reuniam todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, pelo que concedeu prazo para alegações escritas.
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A requerente e a requerida vieram apresentar as suas alegações.
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A requerente veio requerer a junção de imagens e relatório de ressonância magnética e ainda, um relatório elaborado por neuropsicóloga, após consulta à requerida, requerendo prazo para juntar novo relatório a elaborar por médico da especialidade de neurologia.
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A requerida veio opor-se ao requerido, por não ser legalmente admissível.
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Apresentados os autos com vista, veio o Digno Ministério Público renovar a anterior promoção.
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Proferiu-se sentença, com as seguintes decisões:
“[…]a requerente junta documentos clínicos e pede prazo para juntar mais documentos.
Ora, para além da prova já ter sido produzida, como a requerente bem sabe, não lhe basta juntar documentação para demonstrar o que quer que seja. Por outro lado, os elementos constantes dos autos são cabais, pelo que indefiro a prorrogação de prazo, bem como o pedido de nova perícia.
Assim, a audição, o exame e os documentos juntos aos autos são elementos suficientes, pelo que passo a proferir decisão.”
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[…]
Pelo exposto, decido indeferir o pedido de suprimento, extinguindo assim a presente instância.
Sem custas – cfr. art. 4.º, n.º 2, h), do RCP.
Valor do processo: €30.000,01”.
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A Autora veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso.
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Apenas o Digno Ministério Público veio apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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Termina por pedir a manutenção da sentença.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
a) Apelação do despacho que recaiu sobre o requerimento de provas
- se deve ser realizada segunda perícia.
b) Apelação da sentença
- reapreciação da decisão de facto;
- saber se estão reunidos os pressupostos para suprir o consentimento.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
a)A requerida nasceu em 05/07/1948.
b) É viúva desde 13/07/2016.
c) A requerente é filha da requerida, não tendo a requerida outros filhos.
d) Na sua vida, a requerida sofreu de duas depressões graves sendo uma após um aborto na década de 80 e outra na sequência da morte do marido.
e) Esta última implicou repercussões cognitivas que apontaram para uma síndrome demencial mas que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes.
f) A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha, apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade.
g) A requerida C… é uma pessoa autónoma.
h) Veste-se sozinha, trata da sua higiene pessoal e dos afazeres do lar.
i) Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva.
j) Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro.
k) A requerida desloca-se sozinha para tratar dos seus afazeres do dia-a-dia.
l) A requerida desde que vive sozinha sempre foi contida nos seus gastos quotidianos.
m) A requerida tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
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- Factos não provados
A requerida padece atualmente de síndrome demencial que a impede de ajuizar corretamente a realidade e de agir de acordo com os seus interesses, julgando erradamente estar lúcida, não necessitar de tratamento, e poder sozinha determinar-se quanto às medidas a tomar quanto à sua saúde e seu património.
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3. O direito
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-Apelação do despacho que indeferiu a realização de segunda perícia –
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Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a XIII, a apelante insurge-se contra o despacho que precedeu a sentença, no qual se indeferiu a realização da segunda perícia, por se considerar que o processo reunia os elementos de prova suficientes para tomar uma decisão.
Considera a apelante que as dúvidas que se suscitam na análise do relatório elaborado pelo perito, em confronto com elementos clínicos que constam os autos, revelam ser necessário proceder à realização de uma segunda perícia.
A questão a apreciar consiste em determinar se deve ser ordenada a realização de segunda perícia.
Situando a questão.
A apelante notificada do relatório pericial veio em 03 de setembro de 2020 requerer a realização de segunda perícia com fundamento no art. 487º CPC, com os fundamentos que se passam a transcrever:
“1. Como refere o Tribunal no despacho que ordenou a perícia, o Tribunal supre a autorização em duas situações:
- quando o beneficiário não possa livre e conscientemente dar autorização, isto é, não reúna condições físicas e/ou cognitivas que lhe permitam exprimir e/ou compreender o alcance da autorização para a propositura de uma ação de uma ação de acompanhamento de maior;
- quando se verifica um fundamento atendível, cláusula geral que aponta para situações não acolhidas na hipótese anterior mas em que, ainda assim, a ação de acompanhamento se mostra necessária, por exemplo, por o beneficiário carecer de medidas de acompanhamento mas, em consequência do seu estado de saúde, não o aceitar, entendendo que delas não precisa.
2. Foi então fixado o objeto da perícia no seguinte: aferir se a beneficiária tem capacidade para livre e conscientemente dar autorização para a propositura de uma ação de acompanhamento de maior, ou se, não o sendo, carece de medidas de acompanhamento que justifiquem a presente ação.
3. Relembra-se antes de mais que, como dispõe o artigo 138.º do Código Civil, que o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
4.Pelas razões que infra se exporão, cremos que o parecer do Sr. Perito oferece legítimas dúvidas que impõem a realização de uma segunda perícia.
5.Conclui o relatório pericial que:
1- A examinanda não apresenta doença ou deficiência, nomeadamente alterações cognitivas, que atinjam grave e globalmente as suas funções psíquicas.
2- Constata-se assim que não existe à data dos exames médicos uma limitação grave de faculdade de discernimento da Examinanda.
3- À luz dos conhecimentos médicos atuais pode ainda melhorar, como se tem verificado, sobretudo se também forem melhorados os cuidados médicos, nomeadamente no controlo de diabetes; pode também piorar, se a diabetes e também a doença oncológica tiverem algum agravamento e também com o processo de envelhecimento.
5- A deficiência constatada não limita séria e permanentemente as capacidades da Examinanda, não a impedindo de gerir a sua pessoa e os seus bens, tendo em conta os dados disponíveis e a situação clínica à data dos exames médicos.
6- Nestes termos, entendo o perito que a examinanda não se encontra à data dos exames médicos condicionada no exercício dos seus direitos pessoais, bem como, para celebrar negócios da vida corrente, por razões de saúde ou deficiência. Pelos dados clínicos disponíveis, pode concluir-se também ter havido períodos no passado, em que, por razões de saúde, teve necessidade de apoio na administração dos bens pessoais e patrimoniais, também nas atividades simples da vida diária e na utilização dos recursos da comunidade, nomeadamente, nos cuidados de segurança e sobretudo nos cuidados de saúde.
6. Apesar do historial clínico da requerida marcado por doença psiquiátrica com respetivo acompanhamento psiquiátrico e tratamento medicamentoso, há mais de 35 anos, o presente relatório veio agora declarar a súbita reversão do Síndrome Demencial da requerida.
7. Com efeito como resulta de fls 3 do próprio relatório, desde os 39 anos de idade, a requerente sofre de doença mental que impôs o seu internamento, tendo-lhe sido diagnosticado depressão com quadro paranoide, tendo mantido sempre desde então tratamento medicamentoso – e recorde-se em ainda em 2016 estava medicada para combater alucinações auditivas – e seguimento psiquiátrico que deixou há 5 anos, tendo passado a ter consultas apenas para ajuste terapêutico e esclarecimento diagnóstico.
8. Recorda-se que em Novembro de 2017, como consta do relatório médico lavrado pela médica psiquiatra, junto com a petição inicial, foi diagnosticado à requerida Síndrome Demencial, num patamar de demência ligeira a moderada.
9. Tal diagnóstico teve por base profundos exames médicos, nomeadamente, a realização de um TAC.
10. Recorda-se que a última consulta psiquiátrica ocorreu no ano de 2018, tendo sido determinada a necessidade de prosseguir o tratamento medicamentoso e de ser realizada nova consulta em 2019, tendo a requerido decidido deixar de comparecer.
11. Nenhum médico psiquiatra fez qualquer novo TAC cerebral que revelasse que os sinais físicos do Síndrome Demencial já não estão presentes, nem nenhum médico psiquiatra determinou que a requerida cessasse o tratamento medicamentoso.
12. Ora, não se compreende que, tendo sido o Síndrome Demencial diagnosticado através de TAC cerebral, venha agora o Sr. Perito diagnosticar a reversão de tal doença sem para tanto se sustentar na realização de um TAC atualizado e esquecendo os diagnósticos dos seus colegas de profissão que acompanharam a requerida ao longo de 35 anos.
13. Cremos pois que fá-lo de forma leviana, baseado tão só em duas entrevistas de 1 hora, o que não se compadece com a gravidade dos factos em causa.
14. Com efeito, tal reversão da doença psiquiátrica não vem apoiada em nenhum outro elemento dos autos, nomeadamente, nenhum registo clínico sugere que ocorreu uma reversão da doença.
15. Na verdade, o Sr. Perito decreta a reversão do Síndrome Demencial da requerida sem fornecer qualquer explicação aprofundada, e que se impunha tendo em conta o incomum das suas conclusões.
16. Com efeito, sempre foi dito a requerente pelos médicos que trataram a requerida que o estado de saúde mental da requerida não poderia sofrer uma reversão, mas apenas ser controlada a sua evolução com medicação, sendo certo que o mesmo tenderia a agravar-se com o tempo e com o envelhecimento.
17. Pelo exposto, é legítimo que o parecer suscite dúvidas quanto ao seu acerto.
18. E assim, impõe-se, nos termos do disposto no artigo 899.º n.º 2 do CPC, que a requerida seja sujeita a nova perícia médica, com realização de novo TAC cerebral, e com o mesmo objeto da primeira.
19. Cremos que tal perícia deve ser levada a cabo por 3 médicos psiquiatras, sendo um deles a Sra. Dra. L…, médica psiquiatra no Hospital … e que tratou a requerida em 2017 e 2018.
20. Acrescem outras incongruências que conferem pouca credibilidade ao parecer e que se passam a elencar e justificam uma segunda perícia.
21. O Sr. Perito fala-nos de uma reversão do Síndrome Demencial mas na sua conclusão 3 acaba por reconhecer que tal alegada reversão está sujeita um elevado grau de instabilidade e que a mesma depende de certos fatores, nomeadamente, nos cuidados de saúde, e no tratamento da diabetes – note-se que não preconiza o Senhor Perito qualquer acompanhamento ou tratamento psiquiátrica para favorecer a saúde mental da requerida.
22. Ora, como resulta dos registos clínicos dos centros de saúde juntos aos autos, a requerida não é capaz de por si criar tais fatores: não faz uma alimentação adequada, e não executa devidamente o seu tratamento de insulina, pelo que é completamente irrealista da parte do Senhor Perito esperar que subitamente a requerida decida de por si passar a controlar a diabetes.
23. Quanto à falta de profundidade do parecer do Sr. Perito, refere a fls. 6 do relatório que “não se deteta nenhuma atividade delirante e/ou alucinatória; faz acusações à filha e ao genro que parecem relacionar-se com acontecimentos relacionados com dinheiros e bens, não parecendo tratar-se de interpretações delirantes de prejuízo; porém só o apuramento dos factos poderá confirmar ou desmentir este entendimento.”
24. Note-se que a médica psiquiatra que diagnosticou e acompanhou a requerida, refere no seu relatório de Novembro de 2017 que a requerida sofre de “atividade delirante de teor persecutório e de prejuízo muito direcionado a familiares diretos, estabilizada com a introdução de medicação antipsicótica”.
25. Ora, não há de ser o arquivamento dos autos do processo crime despoletado com a queixa da requerida que há de determinar se a mesma sofre de actividade delirante, como preconiza o Sr. Perito.
26. A própria medicina há de ser capaz de estabelecer tal diagnóstico.
27. Além disso, a indiciar a atividade delirante de teor persecutório e de prejuízo muito direcionado a familiares diretos, temos nos autos o facto de a mesma pretender entregar a gestão da sua pessoa e dos seus bens a pessoas estranhas ao seu círculo familiar, que conhece há alguns meses, e cuja relação se sustenta numa relação de prestação de serviços, na medida em que mesma não designa, na sua contestação, nenhum familiar – quando a mesma tem uma filha, irmãos e sobrinhos - para exercer a função de acompanhante ou vogal do conselho de família, mas ao invés designa uma empregada que vai a sua casa algumas horas por semana e o filho desta!
28. Por outro lado, o Sr. Perito parece bastar-se com as próprias afirmações da requerida quanto ao cumprimento do seu tratamento médico, até da insulina, quando resulta à saciedade dos registos clínicos que a requerida não cumpre o tratamento de insulina adequadamente e não tem cuidados com a sua alimentação.
28. Do próprio relato da requerida de fls. 6 se percebe que a requerida não cumpre as necessárias horas de descanso, o que é imprescindível tendo em conta a sua condição de saúde, reconhecendo nem 3 horas dormir por noite às vezes.
29. É pois manifesto que a requerida não reconhece as suas patologias, nem a importância dos inerentes cuidados de saúde, nem as potenciais consequências para o seu incumprimento.
30. Outrossim, é a própria requerida que, como consta de fls. 6 do relatório, afirma que não controla muito bem a cabeça às vezes.
31. Quanto à gestão dos bens da requerida, do próprio relato da requerida explanado no relatório, designadamente a fls. 6, resulta que a mesma não tem condições psicológicas para gerir os seus bens, nomeadamente quando reconhece que nem sabe o código do seu cartão multibanco e que o entrega a sua empregada para fazer levantamentos.
32. Ora, a requerida não controla levantamentos de dinheiro, sendo que apenas agora por insistência da filha e de um amigo seu passou a solicitar que lhe sejam entregues os talões do multibanco aquando dos levantamentos.
33. Na verdade, a requerida não sabe muitas vezes identificar em que foi gasto o dinheiro levantado, o que indicia que a mesma não tem capacidade para controlar o destino do levantamento do dinheiro.
34. É manifesto que a requerida não pode ficar entregue sozinha à gestão da sua fortuna de dezenas e centenas de milhares de euros, uma vez que como a própria reconhece “não controla a cabeça muito bem” as vezes, e é manifesto que não tem capacidade de gestão e demonstra ter alguma credulidade com terceiros e desconfiança com familiares.
35. Não obstante todos os factos supra explanados constarem do relatório do Senhor Perito, não se compreende como pode o mesmo não concluir que a requerida necessita de alguma medida de acompanhamento que proteja a sua pessoa e os seus bens, quando a própria reconhece que não controla bem a cabeça as vezes e que precisa de apoio na movimentação do seu dinheiro.
36. A requerente é pois um alvo fácil e apetecível para oportunistas, impondo-se que o Tribunal lhe conceda algum tipo de proteção.
37. Dispõe o artigo 145.º n.º 2 do Código Civil que “Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.”
38. Sendo decidido que é a medida de representação geral que se adequa ao estado de saúde mental da requerida, nada se opõe a nomeação de conselho de família.
39. Caso o Tribunal entendesse que tal medida excede as necessidades da requerida, sempre deveria ser decretada uma das medidas menos invasivas como a administração dos bens ou a autorização prévia para a prática de atos, ou intervenções de outro tipo que assegurem que a requerida não se veja despojada do seu património.
40. Nomeadamente, por exemplo, impõe-se que a requerida não possa alienar ou onerar bens imóveis sem prévia autorização judicial, que a movimentação mensal de contas bancárias em valor superior a € 2.500,00 ou a quantia que o Tribunal reputar adequada, seja sujeita à prévia autorização de acompanhante, que a acompanhante tenha pelo menos acesso à consulta das movimentações bancárias da requerida.
41. Não se concebe também que a requerida que tem uma única filha que cuidou dela durante 2 anos em sua casa e continua a ser a única pessoa a zelar pela saúde da mãe, marcando consulta, indo de Amarante até Santa Maria da Feira buscar a mãe para se assegurar que a mesma comparece nas suas consultas, e a quem a requerida já confiou a gestão das suas contas cujos saldos sempre se mantiveram enquanto estiveram aos seus cuidados, seja acompanhada por outra pessoa que não seja a única filha.
42. Tem um irmão mais novo, M…, e outros membros da sua família que a conhecem desde sempre e nutrem por ela afeto e poderiam integrar o conselho de família.
43. Pelo exposto, face ás inúmeras dúvidas suscitadas pela presente perícia, requer a V.ª Ex.ª se digne ordenar que a requerida seja sujeita a uma segunda perícia nos termos supra expostos.
44. Caso assim não se entenda – o que não se concebe mas por mera hipótese de raciocínio se concebe -, não obstante as conclusões contraditórias do senhor perito, o teor do mesmo indicia que a requerida necessita de medidas de acompanhamento.
45. O decretamento de medidas de acompanhamento não requer necessariamente uma patologia mental incapacitante – e temos sérias dúvidas que a requerida dela não padeça -, pois que o artigo 138.º do CC também admite o decretamento de medidas com base no comportamento do beneficiário”.
Posteriormente, veio renovar o pedido, em sucessivos requerimentos, apresentando novos meios de prova.
Nas conclusões de recurso considera que perante o relatório pericial se suscitam dúvidas e no confronto com a prova que indica, considera que a decisão recorrida violou o disposto no art. 487º, 891º/1, 897º/1, 899º/2 e 986º/2 CPC.
A apelante discorda das conclusões do relatório de peritagem e que se passam a transcrever:
“[…]


Pretende com a realização de nova perícia, com fundamento no art. 487º CPC ou 899º/2 CPC, demonstrar que a requerida padece de síndrome demencial permanente e atual, que não se verifica qualquer situação de reversão na doença de que padece e que a incapacita de reger a sua pessoa e bens e de expressar o seu consentimento para a promoção da presente ação.
O presente processo de acompanhamento de maior, encontra-se na sua fase inicial, porque a requerente-apelante não dispunha do consentimento da beneficiária para a instauração da presente ação e requereu o suprimento do consentimento (art. 1001º CPC).
O incidente de suprimento do consentimento, enxertado no processo de acompanhamento de maior, não tem uma tramitação específica[2].
Contudo, integra formal e estruturalmente, o próprio processo especial de acompanhamento de maior. O regime definido para o processo abrange tudo o que o integra.
Como refere o Professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA “estes poderes inquisitórios sobre matéria de facto e sobre provas valem tanto para o processo de acompanhamento de maiores, como para qualquer dos seus incidentes”[3].
Ao processo de acompanhamento de maior aplica-se com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz (art.891º CPC).
No âmbito dos processos de jurisdição voluntária só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias (art. 986º/2, parte final CPC)
Na fase de instrução do processo o juiz pode realizar atos ou formalidades não especificamente previstos e omitir aqueles que se revelam destituídos de interesse para o exame e decisão da causa, assim como pode prescindir de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção, numa vertente de intervenção discricionária e fundamentada na avaliação do que, no seu prudente arbítrio, considere útil para a decisão[4].
Quanto aos poderes instrutórios do juiz, em sede de processo de acompanhamento de maior, prevê o art. 897º/1 CPC que “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos”.
Neste domínio a prova pericial reveste particular importância como, aliás, decorre do disposto no art.º 139.º, n.º 1, CC e nos art.º 897.º, n.º 1, e 899.º, n.º 1 CPC.
A realização de relatório pericial por determinação do juiz encontra-se sujeita à regra do art. 899ºCPC, no qual se prevê:
“1.Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.
2.Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”.
Perante este quadro legal é de concluir que a decisão recorrida não merece censura.
No âmbito do incidente entendeu o juiz do tribunal “a quo” realizar uma perícia à requerida, subordinada ao seguinte objeto:
- aferir se a requerida tem capacidade para livre e conscientemente dar autorização para a propositura de uma ação de acompanhamento de maior; ou se,
- não o sendo, carece de medidas de acompanhamento que justifiquem a presente ação.
Considera a apelante que face ao relatório elaborado pelo perito permanecem dúvidas que apenas uma segunda perícia permite ultrapassar.
Considerou-se na decisão recorrida que “a audição, o exame e os documentos juntos aos autos são elementos suficientes” para proferir decisão.
Tal decisão não merece censura porque face aos poderes atribuídos ao juiz só são admitidas as provas que o juiz julga necessárias. O princípio da atividade inquisitória prevalece sobre o princípio da atividade dispositiva das partes[5].
Por outro lado, mostra-se fundamentada a decisão de recusa de realização de segunda perícia.
Desde logo o relatório pericial preenche os requisitos que a lei prevê e obedeceu ao objeto e finalidade previamente definidos pelo juiz. No relatório determina-se a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, as circunstâncias em que surge a doença e conclui-se por referência à data do exame e perante os conhecimento atuais que a beneficiária está em condições de por si gerir a sua pessoa e bens.
Quando a apelante veio requerer a realização de segunda perícia, designou-se data para tomada de declarações à requerida, requerente, perito e I…, para habilitar o tribunal a tomar uma decisão sobre a necessidade de 2ª perícia ou realização de outras diligências. Produzida a prova, indeferiu-se a realização de segunda perícia, por se entender que a demais prova produzida nos autos habilitava o juiz a decidir.
Dada a natureza dos poderes atribuídos ao juiz em sede de instrução, a realização de segunda perícia, nos termos do art. 487º CPC, ou a realização de outra perícia permanecendo dúvidas, nos termos do art. 899º/2 CPC, ficaria sempre dependente do juízo de conveniência por parte do juiz.
A apelante nas conclusões de recurso não indica razões sérias e concludentes que permitam infirmar a decisão recorrida, no sentido de se considerar que a prova produzida não se revela suficiente.
A apelante sustenta a sua discordância “no relatório médico junto a fls. 3, com a petição inicial”, conforme pontos V e VI das conclusões de recurso.
O documento em causa com o título ”Declarações/Atestados” foi elaborado em 15 de novembro de 2017 (doc. nº 3 da petição) e tem o seguinte teor:
“L…, Assistente Hospitalar de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar …, EPE – Unidade … – Penafiel, declara, para os devidos efeitos que C…, nascida a 05.07.1948, é seguida neste serviço de psiquiatria desde fevereiro de 2017. A utente padece de Síndrome Demencial, traduzido a nível imagiológico por “ área de atrofia focal periventricular frontal esquerda” e a nível neuropsicológico por “ a avaliação do índice de deterioração mental aponta para percentis situados no nível muito deficiente, sugerindo uma clara indicação de deterioração mental – deterioração mental praticamente certa verificam-se défices cognitivos ao nível da atenção e orientação, memória, fluência verbal, linguagem e capacidade visual espacial, num patamar de demência ligeira a moderada”.
Acrescenta-se ainda que a doente apresenta atividade delirante de teor persecutório e de prejuízo muito direcionadas a familiares diretos, esbatidas com a introdução de medicação antipsicótica (olanzapina 10 mg).
Assim a doente apresenta já uma marcada dependência de terceiros para as suas atividades de vida diária que tem sido cumpridas pela sua filha.“
No relatório pericial junto aos autos a 18 de agosto de 2020 e com data de 11 de agosto de 2020, o perito faz a seguinte análise:
Informação Clínica do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar ….: “a utente B… teve acompanhamento psiquiátrico neste Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental entre 2017 e 2019 por sintomatologia compatível com Síndrome Demencial e faltou à última consulta datada de 13 de Agosto de 2019”.
Na Petição inicial consta que lhe foi diagnosticado Síndrome Demencial, traduzido a nível imagiológico por “área de atrofia focal periventricular frontal esquerda” e a nível neuropsicológico por “a avaliação do índice de deterioração mental aponta para percentis situados no nível muito deficiente, sugerindo uma clara indicação de deterioração mental”, apresentando ainda “ défices cognitivos ao nível da atenção e orientação memória, fluência verbal, linguagem e capacidade espacial, num patamar de demência ligeira a moderada”, bem como actividade delirante de teor persecutório e de prejuízo muito direccionados a familiares diretos, estabilizadas com introdução de medicação antipsicótica” encontrando-se já muito dependente para as suas actividades da vida diária que eram cumpridas ela requerente (filha).
Estes dados não constam da Informação Clínica do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar …., referida anteriormente.
Recorreu por 2 vezes ao Centro Hospitalar N…, ao Serviço de Urgência, em 2019, por reacções alérgicas. Não há outros registos.

Em suma:
- Teve um episódio depressivo com sintomas psicóticos (depressão psicótica) aos 40 anos de idade após um abortamento espontâneo, tendo sido internada e mantendo acompanhamento psiquiátrico até há 5 anos; depois desse episódio trabalhou ainda durante vários anos na Alemanha.
- Ficou de novo deprimida após o falecimento do marido, em julho de 2016, e aceitou mudar de sua casa em … para Amarante ficando a viver com a sua filha, o genro e os dois netos. Neste período foi acompanhada no Centro de Saúde …. Para ajuste da medicação foi orientada para o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental tendo Frequentado a consulta por sintomatologia compatível com síndrome demencial. Fez também tratamento no IPO … por Doença de Hodgkin/Linfoma, nomeadamente quimioterapia e radioterapia; sendo portadora de diabetes tipo 2 há vários anos, houve nesta altura necessidade de iniciar tratamento com insulina.
- Regressou a sua casa, por sua iniciativa, em Maio de 2018, ficando a viver sozinha com o apoio de um Centro de Dia e de uma vizinha que lhe administra a insulina e a ajuda na medicação; esta vizinha ajuda-a também nas compras.
Encontra-se medicada com antidiabéticos orais e insulina, sinvastatina (para tratamento da dislipendência), e, à noite, medicação tranquilizante e antidepressiva, também facilitadora do sono (trazodona e levomepromazina).

Os referidos exames complementares (TAC) a que se faz alusão na declaração de 15 de novembro de 2017 não constam dos autos, nem foram facultados ao perito.
Contudo, em sede de audição, confrontado com o teor do documento nº3, o perito referiu que as alterações indicadas, “com atrofia focal periventricular” são normais atenta a idade da requerida.
No relatório o perito interpretou o teor da informação clínica que consta como documento nº 3, junto com a petição, com o seguinte enquadramento:

As observações que o perito faz ao problema de saúde da requerida mostram-se devidamente comprovadas nos registos clínicos facultados pelo IPO … em 19 de junho de 2020, os quais correspondem ao período de junho de 2017 a janeiro de 2020. Tais registos documentam a debilidade física da requerida, sobretudo no período de setembro a dezembro de 2017, a natureza da doença de que padecia e o tipo de tratamentos a que se submeteu (quimioterapia e radioterapia). Referem o acompanhamento da paciente pela filha e não dão nota de limitações cognitivas por parte da paciente, fazendo sempre referência ao controlo da doença da diabetes.
Também é de referir que resulta dos registos clínicos facultados pelo médico de família, no centro de saúde, juntos aos autos em 18 de fevereiro de 2020, que em 17 de novembro de 2016 a requerida foi encaminhada para consulta de psiquiatria por dúvidas suscitadas a respeito da patologia e medicação que tomava (pag. 489 – processo eletrónico). Evidenciam tais registos que a requerida em 17 de novembro de 2016 não seria seguida por qualquer médico psiquiatra.
O relatório junto a fls. 3 foi elaborado em novembro de 2017. A ação deu entrada em tribunal em 26 de agosto de 2019. O relatório pericial foi elaborado em 11 de agosto de 2020. O relatório elaborado em 2017, por não reportar a situação atual da requerida não poderia sustentar a realização de uma nova perícia, sendo certo que os elementos que constavam do mesmo foram analisados pelo perito e nenhum outro meio de prova veio contrariar tal apreciação crítica.
O relatório do médico psiquiatra que acompanhou a requerida entre 2017 e 2019, a que se alude no ponto VI das conclusões de recurso, junto aos autos em 06 de maio de 2020 e que de igual forma foi considerado pelo perito no seu relatório, identifica como utente, certamente por lapso, a requerente – B… -, mas depois indica a data de nascimento e o número do cartão de cidadão da requerida (confirmado com os elementos que constam da citação – certidão de citação junta a 22 outubro 2019, fls. 1411 processo eletrónico).
No referido relatório declara-se que a utente “teve acompanhamento psiquiátrico no Departamento de Saúde Mental do Centro Hospitalar … entre 2017 e 2019 por sintomatologia compatível com Síndrome Demencial. Terá faltado à última consulta marcada para 13 de agosto de 2019”.
Este relatório nada esclarece sobre a sintomatologia, nem sobre limitações cognitivas motivadas pela doença diagnosticada “Sindrome Demencial”, motivo pelo qual não poderia sustentar uma previsível alteração do resultado da perícia.
Os registos clínicos juntos aos autos em 30.11.2020, 07.12.2020, 23.12.2020, a que se alude no ponto VII das conclusões de recurso, não acompanharam o pedido de segunda perícia. Reportam-se a uma fase posterior à produção de prova e dos mesmos nada se pode extrair quanto à capacidade e limitações cognitivas da requerida.
Referem tais registos:
- Requerimento de 07.12.2020 – imagens e relatório RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CEREBRAL realizado em 24.11.2020
RESSONÂNCIA MAGNÉTICA CEREBRAL
Técnica: Foram efetuados cortes axiais T1, T2 FSE, T2 FLAIR e T2* e cortes sagitais e coronais T2. Foi ainda efetuado estudo de difusão.
Relatório: Observa-se na substância branca periventricular e subcortical de ambos os hemisférios cerebrais focos de sinal alterado, hiperintensos nas sequências de TR longo, sem significativa tradução nas demais sequências, compatíveis com focos isquémicos / glióticos sequelares.
São ainda visíveis pequenos focos mineralizados nos globos pálidos, de etiologia degenerativa.
Constata-se proeminências das vias de circulação de LCR, com ligeiro predomínio temporal, em relação com atrofia cerebral.
As amígdalas cerebelosas estão normalmente posicionadas”.
- Requerimento de 30.11.2020 – o documento junto comprova que foi requerido um exame médico.
- Requerimento de 23.12.2020 (ref. Citius 10952302) relatório de Neuropsicóloga realizado em 18 de dezembro de 2020. Neste relatório não se faz alusão às questões que constituem objeto da perícia nestes autos.
Os referidos registos reportam-se a exames médicos efetuados e em momento algum se faz alusão ao atual tratamento psiquiátrico e respetiva medicação.
Apenas os documentos juntos aos autos em 09 de setembro de 2020 - receita/guia de tratamento para o utente e marcação de consulta no serviço de psiquiatria -, sugerem a continuação de acompanhamento em regime de consulta externa.
Sobre a concreta questão da medicação prescrita e que a requerida faz, na diligência de audição, o perito referiu que os fármacos referenciados nos registos clínicos são usados para o tratamento de doenças do foro psíquico. Contudo, também podem ser prescritos como tranquilizantes e facilitadores do sono, quando receitados com dosagens muito baixas, como ocorre no caso da requerida.
Não se duvida que os medicamentos são prescritos porque a requerida tem uma patologia, mas só isso não chega para justificar a realização de uma nova perícia.
A necessidade de realizar nova “TAC”, como se refere no ponto VIII) das conclusões de recurso, não fundamenta uma segunda perícia, porque esta tem o mesmo objeto da primeira. A realização de exames complementares de diagnóstico pode constituir um novo meio de prova, mas que a requerente nunca veio requerer. A apelante juntou aos autos as imagens de uma ressonância magnética e um relatório médico realizado em 24 de novembro de 2020, que só por si não justificam as alegadas dúvidas suscitadas em relação ao relatório pericial.
As declarações da requerida, referenciadas no ponto XII das conclusões de recurso - “não controla muito bem a cabeça às vezes”-, mostra-se descontextualizada e não permite interpretar o seu sentido.
A declaração transcrita consta do relatório pericial e foi obtida durante a 1ª entrevista, constando o relatório o seguinte:

Percebe-se que a resposta surge na sequência da pergunta que lhe foi dirigida no sentido de saber on de se encontrava e o motivo pelo qual estava pendente o processo.
Em sede de audição o perito esclareceu que não atribuiu qualquer relevância a tal afirmação da requerida, por lhe parecer que só por si seria insuficiente para justificar qualquer apreciação sobre a sua capacidade.
Os meios de prova indicados pela apelante não sustentam as dúvidas que suscita a respeito do resultado do relatório pericial, pois não indiciam um processo evolutivo da doença e inibidor das capacidades da requerida que a impeçam de tomar uma decisão sobre a necessidade de ser adotada uma medida de acompanhamento.
Por outro lado, tais meios de prova não permitem contrariar o juízo de oportunidade sobre a realização da segunda perícia, que sustenta o despacho recorrido. A audição, o exame e os documentos juntos aos autos são meios de prova suficientes, porque devidamente fundamentados sobre a situação clínica e aptidões da requerida, ao contrário do que se verifica com os elementos indicados pela apelante.
Nas conclusões de recurso, sob os pontos IX a XI, a apelante insurge-se apenas contra o relevo probatório do relatório pericial, por questionar os seus fundamentos, argumentos que apenas relevam em sede de reapreciação da decisão de facto.
Considera, por fim, a apelante que o despacho viola o disposto no art. 20º Constituição República Portuguesa.
A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere GOMES CANOTILHO:“[o] princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[6].
A inconstitucionalidade deve ser suscitada de forma processualmente adequada junto do tribunal que proferiu a decisão, de forma a obrigar ao seu conhecimento (art. 72º LTC).
Recai sobre o recorrente o ónus de colocar a questão de inconstitucionalidade, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível e segundo os requisitos previstos na lei.
Por outro lado, pretendendo questionar certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Esta tem sido a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, como disso dá nota, entre outros, o Ac.do Tribunal Constitucional nº 560/94 (acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) quando observa: “[d]e facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo.
A exigência de um cabal cumprimentos do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois –[…]-, uma “mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se, sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julga-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”.
No caso presente a apelante não indica as concretas normas jurídicas que contrariam os preceitos constitucionais enunciados ou o segmento interpretativo adotado e que contraria tais preceitos constitucionais, o que impede a apreciação da constitucionalidade.
Por outro lado, a mera afirmação de que existe inconstitucionalidade na aplicação de determinadas normas, não equivale a suscitar, validamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
A válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional, o que também não ocorre no caso concreto.
Nesta perspetiva, considera-se que a apelante não suscitou, validamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que, improcedem, nesta parte as conclusões de recurso.
Conclui-se que o despacho não merece censura.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos I a XIII.
-
- Apelação da sentença -
-
- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos XIV a XXVI, insurge-se a apelante contra a decisão de facto, requerendo a sua reapreciação, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Impugna a decisão dos factos que constam sob as alíneas e), f), g), i), j), k), m) dos factos provados e os factos não provados.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[7].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da indicação da prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto – fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, procedeu à audição da requerente, requerida, perito e testemunha I… com gravação dos depoimentos prestados e a apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação quanto aos factos provados dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere.
Quanto à matéria de facto que se julgou não provada e que a apelante de igual forma vem impugnar sob a alínea XXVI, a apelante indica os factos e a decisão que sugere, mas não indica a prova a reapreciar, limitando-se a referir “ por tudo o exposto…”, sem tecer outras considerações sobre a prova.
A indicação da prova a reapreciar constitui um dos pressupostos de ordem formal para admitir a reapreciação da decisão de facto. A falta de tal pressuposto conduz à rejeição da impugnação da decisão de facto quanto à matéria de facto não provada.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, quanto aos factos provados e rejeita-se a reapreciação em relação aos factos não provados.
-
Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[8].
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[9].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[10].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º/4 CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[11].
Contudo, nesta apreciação, não pode o Tribunal da Relação ignorar que, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que, em princípio, no sistema da gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados, não podem ser importados para a gravação, como sejam aqueles elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o pro­cesso exterior do depoente que influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo, assim, atos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador[12].
Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[13].
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[14].
Ponderando estes aspetos cumpre reapreciar a prova, face aos argumentos apresentados pela apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto.
Reapreciada a prova, com audição dos registos gravados através do sistema Citius justifica-se alterar apenas a alínea f) e k), pelos motivos que se passam a expor.
A impugnação da decisão de facto versa sobre os seguintes factos:
a) Factos provados:
e) Esta última implicou repercussões cognitivas que apontaram para uma síndrome demencial mas que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes.
f) A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha, apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade.
g) A requerida B… é uma pessoa autónoma.
i) Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva.
j) Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro.
k) A requerida desloca-se sozinha para tratar dos seus afazeres do dia-a-dia.
m) A requerida tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
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- Factos não provados:
A requerida padece atualmente de síndrome demencial que a impede de ajuizar corretamente a realidade e de agir de acordo com os seus interesses, julgando erradamente estar lúcida, não necessitar de tratamento, e poder sozinha determinar-se quanto às medidas a tomar quanto à sua saúde e seu património.
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Para fundamentar a decisão de facto considerou-se na sentença, como se passa a transcrever:
“O tribunal formou a sua convicção da seguinte forma:
A requerida esteve uma hora a ser inquirida. Aliás, a gravação dessa inquirição fala por si, pois é bem demonstrativa do contexto deste processo. Em nenhum momento perpassou o menor indício de demência ou de alguma doença semelhante por parte da requerida. Trata-se de uma senhora com 72 anos de idade que nos relatou de forma sintética toda a sua vida e o seu atual dia-a-dia de uma forma normal atentas as regras da experiência.
Esta e outras facetas foram descritas num tom natural e onde, repita-se, não se detetou nenhum indício que revele que esta senhora possua algum problema psíquico. Aliás, deve notar-se a sua espontaneidade e sinceridade. Em síntese, saímos persuadidos de que o exame pericial que consta dos autos é o retrato fiel da requerida. Senão vejamos:
As matérias tratadas no âmbito destes processos, como se sabe, carecem, por regra, de uma perícia médica. A que foi junta aos autos revela uma preocupação muito grande em aferir da condição da requerida. Afinal, foram feitas duas avaliações e foi feito o estudo de todo o seu historial clínico. E no final conclui da forma perentória como conclui. Por outro lado, o perito foi confrontado com pedidos de esclarecimentos por parte da requerente os quais foram cabalmente respondidos. A isto acresce a audição da requerida que, a nosso ver, permite concluir com toda a segurança pela decisão relativa à matéria de facto.
Por outro lado, a inquirição da sua filha, aqui requerente, analisada à luz das regras da experiência bem como da documentação junta pela requerida em sede de oposição, mostrou-se frágil, contraditória, inconsistente e, sobretudo, interessada num determinado desfecho independentemente da verdadeira condição de saúde mental da sua mãe.
O outro depoimento (referimo-nos a I…) apenas corroborou a versão da requerida”.
Reapreciando a prova.
Nas alíneas e) e i) julgou-se provado:
- Esta última implicou repercussões cognitivas que apontaram para uma síndrome demencial mas que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes.
i) Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva.
Considera a apelante que não consta do relatório pericial que as repercussões cognitivas estejam ausentes, mas simplesmente que não atingem de forma grave e global as funções psíquicas da requerida, como resulta da conclusão 1.º do relatório. E na conclusão 5.ª do relatório o perito refere que há uma “deficiência constatada”. Ora, tal deficiência, necessariamente do foro psíquico, tem necessariamente repercussões cognitivas, pois de outro modo não estaríamos perante uma deficiência. Simplesmente entende o Sr. Perito que tal deficiência não a impede de gerir a sua pessoa e bens.
Sugere que deve eliminar-se da alínea e) dos factos provados a seguinte passagem: “que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes” e deve, ainda, eliminar-se da alínea i): “não tendo qualquer limitação cognitiva”.
Atendendo a que a apelante fundamenta a alteração da decisão no relatório pericial, cumpre ter presente a seguinte passagem que se transcreve:


Ainda Hoje se percebe que, vivendo sozinha, cuidando da sua higiene e roupas, bem como ficou demonstrado pela pela forma como se apresentou na avaliação, precisa de algum apoio na gestão do seu dinheiro, na medicação, tanto mais que sendo diabética insulino-tratada corre riscos graves se não fizer o tratamento adequado, necessitando também do apoio do Centro de Dia que atualmente lhe fornece a alimentação.
Aquando da segunda avaliação apresentou-se menos ansiosa, afável, tendo de imediato reconhecido o perito que cumprimentou adequadamente.
As respostas eram imediatas e mais esclarecedoras.
De acordo com as suas informações, a sua vida social está melhor, tendo mesmo agora um amigo, também de …, viúvo, 10 anos mais velho, com quem sai algumas vezes, nomeadamente para irem ao restaurante. Percebe-se haver ressonância afetiva, quando refere que é só seu amigo e quando se emociona referindo que “ontem faria anos o seu marido se ainda fosse vivo” (Sic).
O MMS (escala de avaliação breve do estado mental), que lhe foi aplicado no dia 10 de Agosto de 2020, deu um resultado de 27 em 30 possíveis, o que confirma a impressão clínica que apontava para uma melhoria evidente, comparativamente à avaliação realizada no dia 10 de Janeiro de 2020.

DIAGNÓSTICO:
Das observações clínicas realizadas, nomeadamente pelas informações fornecidas pela requerida, das informações e registos clínicos entretanto recebidos e dos dados existentes no Processo Judicial, parecia existir a 20 de Janeiro de 2020 um Défice Cognitivo Ligeiro, expectável tendo em conta os seus antecedentes patológicos nomeadamente Depressões, algumas vezes com sintomatologia psicótica e também com sintomatologia compatível com Síndrome Demencial, a Doença de Hodgkin/Linfoma e também a diabetes insuficientemente controlada, que não se verifica a 10 de Agosto de 2020.
Nas conclusões refere:


O relatório pericial foi realizado após duas entrevistas com a requerida, a primeira, que se realizou em janeiro de 2020 e a segunda, em agosto de 2020.
Resulta do relatório que o perito não atribuiu qualquer alteração cognitiva à requerida e explicou o motivo que o levou a tal conclusão. Por outro lado, na decisão recorrida ponderou-se as declarações da requerida, às quais se atribuiu o relevo que consta da fundamentação da decisão, apreciação crítica com a qual concordamos perante a audição de tais declarações.
Nas declarações prestadas perante o juiz a requerida reproduziu todo o historial da sua vida tal como consta do relatório pericial, com pormenores sobre aspetos particulares da sua vida, descrevendo as emoções associadas a certas decisões difíceis (separar-se do pai, após o casamento sendo recente a sua situação de viuvez; separar-se da filha, com apenas 6 anos, para esta vir estudar para Portugal; a opção pelo abortamento voluntário “nós perdoamo-nos um ao outro” referindo-se ao marido; a morte do marido, a doença, o conflito com a filha e o genro “quem é a mãe que não gosta dos seus filhos?”).
O perito no seu relatório não ignorou os problemas de saúde a nível psíquico, mas interpretou-os no contexto da experiência de vida da requerida e das demais doenças de que padeceu e padece, para além de fazer uso do seu conhecimento profissional e técnico na avaliação de tais dados e dos elementos clínicos que lhe foram fornecidos.
Neste contexto, não se justifica a alteração sugerida, a qual não tem apoio na prova produzida.
Na alínea f) julgou-se provado:
f) A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha, apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade.
Considera a apelante que a requerida tem apenas 72 anos de idade pelo que deveria ainda ser capaz de fazer a gestão diária do seu dinheiro e de usar o seu próprio cartão multibanco em vez de o entregar à sua empregada quando precisa de dinheiro, como consta do relatório pericial. Refere que consta do próprio relatório pericial que a requerida afirma precisar de apoio e não controlar muito bem a cabeça.
Sugere que deve ser eliminado da alínea f) “apresentando as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade”.
A este respeito cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos art. 607º a 612º CPC (art. 663º/2 CPC).
O art. 607º/4 CPC dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o art. 646º/4 CPC, previa, ainda, que têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (art. 607º/3) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (art. 607º/4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “ os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”[15].
ANTUNES VARELA considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “ às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito”[16].
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
A passagem que a apelante pretende eliminar contém matéria conclusiva e por isso, não pode ser introduzida na matéria de facto a apreciar pelo tribunal e desta forma mostra-se prejudicada a reapreciação da decisão, com tal objeto.
Justifica-se alterar a alínea f), no sentido de eliminar a seguinte passagem: “apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade”.
Na alínea g) dos factos provados, consignou-se:
- A requerida C… é uma pessoa autónoma.
A apelante refere que consta do relatório pericial que a requerida para além de não saber levantar dinheiro com o cartão multibanco, precisa de apoio na gestão diário do dinheiro, na medicação e nas refeições.
Sugere a eliminação da alínea g) dos factos provados.
Conforme resulta do relatório:

Resulta da audição da requerida e requerente que a requerida vive sozinha na sua casa, o que terá sido motivado por desavenças familiares com a filha e genro, associadas à partilha na sequência do óbito do marido. Viveu na companhia da filha cerca de três anos.
A requerente diligenciou junto do Centro de Saúde … por contratar alguém que administrasse a insulina à requerida, por ser insulina – tratada e porque a requerida não conseguia injetar-se e foi contratada I….
A requerida referiu que paga 2 euros, por dia e 60,00 euros por mês pelo serviço prestado.
A requerente referiu que contratou com o Centro Social o fornecimento das refeições diárias à requerida.
A requerida referiu que diariamente o Centro vem entregar a refeição na hora de almoço e que de igual forma é suficiente para o jantar e não tem preocupações com as refeições. Trata do seu pequeno-almoço e as refeições vêm do Centro. Referiu a quem solicita a compra de outros artigos que necessita, quem lhe transporta as compras. Quanto à sua vida, no dia-a-dia, referiu ser a própria a cuidar da sua higiene pessoal, da limpeza da sua casa e da roupa e como passa o tempo livre quando está só, ou, quando tem a companhia de um seu amigo.
Tirando as condicionantes geradas pela doença diabetes, a que faz referência o perito no seu relatório, a requerida apresenta-se com total autonomia e não é pelo facto de solicitar a terceiro em quem confia que lhe levante dinheiro que a transforma numa pessoa dependente. Aliás, tal prática é do conhecimento da própria requerente, o que significa que a requerida tem noção dos atos que pratica. Pode a pessoa a quem incumbe de tal tarefa não merecer a confiança, mas essa é outra questão.
A requerida beneficia de um conjunto de apoios, alguns por iniciativa da requerente, que a requerida aceitou e coordena para lhe dar mais conforto e tranquilidade. Acresce que a satisfação de certas necessidades da requerida pela requerente, como seja cuidados com a alimentação, acompanhamento a consultas médicas, justifica-se em obediência ao dever de assistência inerente à relação de filiação e garantida dessa forma o apoio não se justifica a aplicação de uma medida de acompanhamento (art. 140º/2 CC).
Resta referir que o juízo de autonomia é sustentado ainda na conclusão da perícia quando se refere:

Conclui-se, assim, que não merece censura a decisão.
Na alínea j) julgou-se provado:
- Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro.
Refere a apelante que consta do relatório pericial que a requerida tem algumas dificuldades com cálculo simples que justifica por sempre ter tido dificuldades com contas e ter tido sempre quem a apoiasse na gestão do dia-a-dia, o marido, depois a filha e agora a vizinha em quem confia para lhe usar o multibanco e lhe fazer levantamentos.
Sugere a alteração da decisão no sentido de se fazer constar “que tem dificuldades em contar o dinheiro”.
A alteração sugerida não tem sustentação na prova produzida.
Efetivamente, no relatório pericial consta:

Contudo, nas declarações que prestou a requerente revelou ter noção do valor do dinheiro, quando questionada sobre o montante da reforma que auferia e bem assim, sobre o valor dos saldos dos depósitos bancários que possui e forma como pretende geri-los. Esclareceu quem a acompanhou ao banco e o motivo que a levou a alterar a aplicação do dinheiro depositado.
Acresce que nada foi referido de concreto nas declarações prestadas pela requerente que levasse a supor que a requerida não tem noção da contagem do dinheiro. A testemunha I… também nada referiu sobre tal matéria.
Mantém-se, assim, a decisão.
Na alínea k) considerou-se provado:
- A requerida desloca-se sozinha para tratar dos seus afazeres do dia-a-dia.
A apelante considera que tal alínea deve ser eliminada uma vez que a mesma nem sequer se desloca para levantar dinheiro, pedindo a terceiros, nem se percebe com base em que elementos deu o Tribunal a quo tal facto como provado.
Com efeito, o relatório pericial é omisso a respeito de tal questão e na audição das partes, nada se referiu sobre tal matéria.
Justifica-se, assim, alterar a decisão no sentido de julgar não provada, por omissão de prova.
Na alínea m) julgou-se provado:
- A requerida tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
Defende a apelante que se a requerida reconhece que precisa de apoio para a gestão do seu dinheiro no dia-a-dia, por maioria de razão necessitará de apoio nos atos de administração extraordinária do seu património. O facto de a requerida não saber usar um cartão multibanco, de não conseguir fazer a gestão do seu dinheiro no dia-a-dia, de precisar de apoio para tomar a medicação e de precisar de apoio (logístico) do Centro de dia para a alimentação, é revelador de a requerida não estar no pleno uso das suas capacidades cognitivas. Daqui resulta que a requerida precisa de um apoio na gestão do seu património.
Sugere a alteração da decisão no sentido de se julgar provado: “a requerida não tem capacidade de sozinha gerir o seu património”.
A apelante não indica a prova que sustenta tal alteração e a prova por presunção não constitui um meio de prova que justifique a alteração pretendida, por não assentar em factos provados.
A prova por presunções judiciais assenta em factos concretos e provados (art. 349º CC) e é precisamente esses factos concretos, que no caso presente cumpre apurar, face à prova produzida[17].
Como se observa, no Ac. STJ 30 de junho de 2011, Proc. 6450/05.9 TBSXL.L1.S.1 (www.dgsi.pt): “a utilização pelas Relações de presunções naturais ou judiciais é lícita, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração direta das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória, nem a um desenvolvimento, no próprio acórdão, da base factual do litígio, suscetível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterado ou imodificado“.
Como se refere no Ac. STJ de 02 de dezembro 2010, Proc. 1/04.0TBCPV.P1.S1, www.dgsi.pt “as instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas. Mas essas deduções hão de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida. Quando tal aconteça a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no art. 349º C.Civil”.
A apelante enuncia um conjunto de facto que não estão provados para extrair uma ilação, o que não é consentido pelo art. 349º CC e por isso, tal meio de prova não pode sustentar a alteração pretendida.
Mantém-se a alínea m) dos factos provados.
Em conclusão rejeita-se a reapreciação da prova quanto aos factos não provados e altera-se a alínea k), que passa a constar dos factos não provados e a alínea f), no sentido de eliminar a seguinte passagem “apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade”.
Pelo exposto, procedem em parte as conclusões de recurso, sob as alíneas XIV a XXVI.
-
Na apreciação das restantes questões cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados, com as alterações introduzidas em itálico, por efeito da reapreciação da prova:
a) A requerida nasceu em 05/07/1948.
b) É viúva desde 13/07/2016.
c) A requerente é filha da requerida, não tendo a requerida outros filhos.
d) Na sua vida, a requerida sofreu de duas depressões graves sendo uma após um aborto na década de 80 e outra na sequência da morte do marido.
e) Esta última implicou repercussões cognitivas que apontaram para uma síndrome demencial mas que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes.
f) A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha.
g) A requerida C… é uma pessoa autónoma.
h) Veste-se sozinha, trata da sua higiene pessoal e dos afazeres do lar.
i) Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva.
j) Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro.
k) Eliminado.
l) A requerida desde que vive sozinha sempre foi contida nos seus gastos quotidianos.
m) A requerida tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
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- Factos não provados
A requerida padece atualmente de síndrome demencial que a impede de ajuizar corretamente a realidade e de agir de acordo com os seus interesses, julgando erradamente estar lúcida, não necessitar de tratamento, e poder sozinha determinar-se quanto às medidas a tomar quanto à sua saúde e seu património.
- A requerida desloca-se sozinha para tratar dos seus afazeres do dia-a-dia.
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- Da verificação dos pressupostos para suprir o consentimento-
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas XXVII a XXXV, a apelante visa a aplicação de uma medida de acompanhamento, por entender existir um fundamento atendível que dispensa o consentimento da requerida, sendo certo que sustenta tal pretensão em factos que não se provaram.
Cumpre, assim, apreciar se estão reunidos os pressupostos para suprir o consentimento da beneficiária.
A Lei 49/2018 de 14 de agosto veio estabelecer o regime do acompanhamento de maiores, a qual introduziu uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, dando assim consagração àquilo que já há muito vinha sendo reclamado pela doutrina, e sobretudo pelas Convenções Internacionais (Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008).
Nos termos do art. 138º CC o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres beneficia das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil.
Seguindo o estudo publicado por MAFALDA MIRANDA BARBOSA[18] são dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento: um, de ordem subjetiva e outro, de ordem objetiva.
No requisito de ordem subjetiva está em causa a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres, o que se reconduz à possibilidade do sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres.
No requisito de ordem objetiva exige-se que a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário.
A aplicação de tais medidas rege-se pelos princípios da necessidade e da subsidiariedade (art. 141º e 145º CC).
A medida de acompanhamento só tem lugar quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência e limita-se ao necessário para garantir o exercício dos direitos e cumprimento dos deveres.
A ideia não é incapacitar o sujeito, “mas auxilia-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica”[19].
Em sede de legitimidade ativa prevê o art.º 141.º, n.º 1, CC, que o acompanhamento pode ser requerido:
- pelo próprio beneficiário;
- pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este;
- pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cfr. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).
A razão de ser da autorização do beneficiário prende-se com o facto de estar em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal desse beneficiário, ideia presente e subjacente ao instituto.
A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerida a medida de acompanhamento (art.º 141.º, n.º 2, CC; art.º 892.º, n.º 2).
O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário.
Sobre o critério de julgamento refere o PROFESSOR TEIXEIRA DE SOUSA[20]: “[…]cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão da autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
[…]
Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante, estando em condições de o fazer, quis efetivamente conceder a autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante o art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes”.
Na sentença considerou-se: “[a]tentos os factos provados, torna-se desnecessária qualquer consideração se não a de que a requerente não demonstrou que a requerida não tem condições psíquicas para lhe dar autorização para a presente ação. Isto é, a mesma é livre e consciente para dar autorização nesse sentido.
Por fim, não existe um fundamento atendível para suprir a autorização.
Deste modo, a requerente não tem legitimidade para intentar a presente ação, pelo que a instância tem que ser extinta”.
A apelante argumenta, sob o ponto XXXI das conclusões de recurso, que “In casu, aliada à saúde mental frágil da requerida, temos a sua inabilidade para executar atos de administração ordinária, como é a gestão do dinheiro no dia-a-dia, e por isso, tanto mais, executar atos de administração extraordinária, é devida à requerida uma medida de proteção do património da requerida, uma vez que, face à sua falta de autonomia intelectual e à sua manifesta credulidade, é pois alvo fácil e apetecível para oportunistas”.
A argumentação assenta em factos que não se provaram.
Apenas se provou:
f) A requerida, desde que regressou à sua casa em meados de Maio de 2018, vive sozinha, apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade.
g) A requerida C… é uma pessoa autónoma.
h) Veste-se sozinha, trata da sua higiene pessoal e dos afazeres do lar.
i) Orienta-se no tempo e no espaço, não tendo qualquer limitação cognitiva.
j) Conhece o dinheiro e o seu valor e é capaz de contar dinheiro.
l) A requerida desde que vive sozinha sempre foi contida nos seus gastos quotidianos.
m) A requerida tem capacidade de análise e raciocínio lógico, e tem capacidade para gerir o seu património.
Os factos provados não permitem concluir que a requerida possa ser facilmente manipulada na sua vontade e que tem dificuldade em gerir o dinheiro no dia-a-dia.
No ponto XXXII) das conclusões de recurso, defende a apelante que “deveria o Tribunal a quo ter determinado que a ação de acompanhamento de maiores se mostra necessária, por a requerida carecer de medidas de acompanhamento mas, em consequência do seu estado de saúde, não o aceitar, entendendo que delas não precisa, suprindo assim a autorização da requerida, e ter decretado uma das medidas menos invasivas como a administração dos bens ou a autorização prévia para a prática de atos, ou intervenções de outro tipo que assegurem que a requerida não se veja despojada do seu património”.
Resulta dos factos provados:
d) Na sua vida, a requerida sofreu de duas depressões graves sendo uma após um aborto na década de 80 e outra na sequência da morte do marido.
e) Esta última implicou repercussões cognitivas que apontaram para uma síndrome demencial mas que reverteu muito favoravelmente estando aquelas ausentes.
Os factos provados não permitem concluir que a requerida padece de doença que a impede de autodeterminar-se e de fazer um juízo valorativo sobre a necessidade de uma medida de acompanhamento.
No ponto XXXIII) das conclusões de recurso a apelante insiste na ideia de adoção “de medidas de acompanhamento […]com base no comportamento do beneficiário, nomeadamente, demonstrativo da falta de preparação para exercer as tarefas que a sua concreta situação lhe requer, in casu, a gestão do vasto património”.
Como se prevê no art. 138º CC pelo seu comportamento o maior pode beneficiar de uma medida de acompanhamento.
Neste domínio enquadram-se as situações típicas do pródigo, do comportamento condicionado pelo consumo de bebidas alcoólicas e consumo de estupefacientes. Contudo, como refere MAFALDA MIRANDA BARBOSA: “[f]undamental é que o comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, isto é, que o comportamento seja causa, em concreto, pelo menos num domínio especifico da vida, da falta de autodeterminação da pessoa”[21].
Os factos não revelam que a requerida tem assumido um tipo de comportamento que a priva do discernimento necessário para gerir o seu património.
Não resulta dos factos apurados que a requerida seja detentora de um vasto património ou que tenha aplicado alguma medida de gestão suscetível de causar prejuízo a tal património. Resulta dos factos provados que a requerida desde que vive sozinha sempre foi contida nos seus gastos quotidianos (alínea l)) e tem capacidade de análise e raciocínio lógico e tem capacidade para gerir o seu património (alínea m)).
Conclui-se que os argumentos apresentados pela apelante no confronto com os factos provados e concretas circunstâncias, não revelam que a requerida se encontre impedida de livre e conscientemente dar o consentimento para a presente ação, sendo certo que por não estarem sustentados nos factos provados não constituem um fundamento atendível que justifique a dispensa do consentimento.
Conclui-se, assim, que a decisão não merece censura.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos XXVII a XXXV.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante e apelada, na proporção do decaimento, que se fixa em 4/5 e 1/5, respetivamente, sem prejuízo da isenção de que goza a requerida, nos termos do art. 4º/h) RCP (redação da Lei 49/2018 de 14 de agosto).
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e nessa conformidade:
- rejeitar a reapreciação da decisão de facto, quanto à matéria dos factos não provados;
- deferir, em parte, a reapreciação da decisão de facto, introduzindo as seguintes alterações:
> elimina-se na alínea f) a seguinte passagem: “apresentando somente as dificuldades normais e decorrentes da respetiva idade”
> a matéria da alínea k) dos factos provados, julga-se não provada;
- confirmar o despacho que indeferiu a realização de segunda perícia; e ainda,
- confirmar a decisão.
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Custas a cargo da apelante e apelada, na proporção do decaimento que se fixa em 4/5 e 1/5, respetivamente, sem prejuízo da isenção de que goza a requerida concedida pelo art. 4º/h) do RCP (redação da Lei 49/2018 de 14 de agosto).
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Porto, 06 de setembro de 2021
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANA LUÍSA SANTOS PINTO “O regime processual do acompanhamento de maior” JULGAR nº 41, Maio –Agosto de 2020, Coimbra, Almedina, pag. 150, nota 15
[3] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS [em linha], 1ª edição, Lisboa, Centro Estudos Judiciários, 18 fevereiro 2019, disponível na Internet: <URL:http://www.cej.mj.pt/cej/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf., pag. 50
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pag, 436
[5] ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, vol. II, Reimpressão (Obra Póstuma), Coimbra Editora, Lim. Coimbra, 1982, pag. 399
[6] J.J.GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, (7ª Reimpressão) Coimbra, Almedina, 2003, pág.1226.
[7] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, julho de 2013, pag. 126.
[8] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 225.
[9] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272.
[10] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, Coimbra Editora, Lim., Coimbra, pag. 569.
[11] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[12] Ac. STJ 28.05.2009 - Proc. 115/1997.5.1 – www.dgsi.pt.
[13] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[14] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, Setembro 2008, 2ª ed. revista e atualizada pag. 299 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 (ambos em www.dgsi.pt).
[15] JOSÉ LEBRE DE FREITAS E A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606.
[16] ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 648.
[17] Neste sentido pode ainda consultar-se Ac. STJ 26.02.2009 – Proc. 09B0347 e Ac. STJ 30.06.2011 – Proc. 6450/05.9 TBSXL.L1.S.1 – todos em www.dgsi.pt
[18] MAFALDA MIRANDA BARBOSA Maiores Acompanhados Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei 49/2018 de 14 de agosto, 1ª edição, Gestlegal, Coimbra, setembro 2018, pag. 49-52
[19] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Maiores Acompanhados Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei 49/2018 de 14 de agosto, ob. cit., pag. 58
[20] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O REGIME DO ACOMPANHAMENTO DE MAIORES: ALGUNS ASPECTOS PROCESSUAIS [em linha], 1ª edição, Lisboa, Centro Estudos Judiciários, 18 fevereiro 2019, disponível na Internet: <URL:http://www.cej.mj.pt/cej/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf., pag. 47-48
[21] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Maiores Acompanhados Primeiras Notas Depois da Aprovação da Lei 49/2018 de 14 de agosto, ob. cit., pag. 58