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CRIMES SEXUAIS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Sumário
I. O tribunal de recurso pode e deve conhecer dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal - porque de conhecimento oficioso -, se estes resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo pacífico que na indagação em causa não pode socorrer-se de outros elementos, ainda que constantes do processo. II. O crime de trato sucessivo não tem consagração legal e a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm afastado a sua aplicação aos crimes sexuais. III. Existindo incerteza quanto ao número de crimes cometidos, importa identificar, se possível, os actos lesivos, ainda que por referência a outros elementos e/ou períodos temporais como sejam, “todos os dias”, “pelo menos uma vez por semana”, e punir apenas aqueles inequivocamente identificados.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. Por sentença de 12 de Abril de 2021 e no que à matéria penal respeita, o Tribunal a quo procedeu à convolação dos cinco crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal imputados ao arguido LM______ para o crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e condenou o mesmo arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
- um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- um crime de abuso sexual de criança (em trato sucessivo) p. e p. pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi o mesmo condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso para este Tribunal da Relação apresentando as seguintes Conclusões:
“I. O presente recurso tem por como objeto matéria de direito estando o seu âmbito limitado ao segmento da decisão da Meritíssima Juíza que convola os 5 (cinco) crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 171°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, que vinham imputados ao arguido na pessoa do menor GC_____ , para o crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo e da decisão que o condena na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
II. Violação do art.º 410°, n.º 2, al. a) e b) do C.P.P
III. A douta sentença, convola os 5 (cinco) crimes que vinham imputados ao arguido LM______ de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 171°, n.ºs 1 e 2 e artigo 30° (crime continuado) do Código Penal (menor GC_____ ) para um crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo.
IV. Para o efeito, nos Factos Provados (ponto n° 11) dá como provado
"Desde data não concretamente apurada, (...) em número de vezes que não foi possível concretamente apurar…;
V. Por outro lado, refere nos Factos Não Provados:
"O arguido, aproveitando-se da complacência e inocência do menor GC_____ , e pelomenos por 4 vezes, despiu-se da cintura para baixo e levou a criança a mexer-lhe no pénis ereto friccionando-o, até à ejaculação, e lhe introduzisse o pénis ereto na boca.”
VI. Viola, igualmente, a doutra sentença o disposto no art.º 410° n.º 2, al. c) do C.P.P.
VII. Em sede de Motivação da Matéria de Facto, a Meritíssima Juíza refere que para formar a sua convicção socorreu-se de "regras de experiência comum” e "livre convicção do julgador”. VIII. Assume a existência de várias condutas ilícitas, arbitrariamente, sem factos base e com uma regra tão abrangente como: "embora não se consiga precisar o lapso de tempo, ficou patente o à vontade do menor que dada a sua tenra idade só se poderá ficar a dever à reiteração das condutas sexuais dele com o arguido”.
IX. O princípio da livre apreciação da prova do artigo 127° do CPP, tem limites e está intimamente ligado ao princípio "in dubio pro reo”, impondo ao julgador sempre que tenha dúvidas, decidir a favor do arguido.
X. A douta sentença para convolar os 5 (cinco) crimes unificando-os num único crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo, recorre, como ali se refere, às “regras de experiência comum”, à “livre convição do julgador’ e a “presunções judiciais”, sem suporte em qualquer prova, elaborando em erro na apreciação da prova, com violação do disposto no art.º 410°, n° 2 al. c) do CPP.
XI. Da dosimetria da pena aplicada em cúmulo jurídico.
XII. Ao recorrente foi aplicada, uma pena de 5 (cinco) anos de prisão por referência ao crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo, previsto e punido pelo n.º 1 do art.º 171.° n° 1 e 2 do C.P.
XIII. O quantum da pena fixada revela-se injusto, por excessivo, pois como supra se referiu o Tribunal “quo” errou ao entender terem sido cometidas na pessoa do menor GC_____ uma pluralidade de acções criminosas e não apenas uma única.
Acresce que
XIV. O Tribunal não atendeu às condições pessoais do arguido conforme decorre quer dos factos provados, quer da fundamentação da sentença e do Relatório Social;
XV. Apesar de referir a necessidade de aplicação do dispositivo legal inserto no art.º 71° do C.P., aquando da aplicação da medida concreta da pena, o Tribunal acabou por não dar qualquer importância às necessidades de prevenção especial no caso concreto, limitando-se a dar como reproduzidas as condições pessoais do arguido e a sua situação económica, mas sem as valorizar, e a desvalorizar, outrossim, o facto do arguido não ter antecedentes criminais.
XVI. Por todo o aduzido e ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade unitária do arguido, o Tribunal ao condenar o arguido pelo crime de trato sucessivo na pena de 5 anos de prisão violou os artigos n.ºs 40°, 50°, 70° e 71°, do C. Penal e foi além do necessário, quer para punir, quer para prevenir, prejudicando a possibilidade de reinserção do Recorrente.”
3. O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e a manutenção da sentença recorrida.
4. Neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer com as seguintes
“Conclusões
1. O Tribunal recorrido fez a sua apreciação e concluiu de forma assertiva, segundo as regras da experiência e da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 1273, do C. P. Penal.
2. Não estamos perante factos que tenham suscitado dúvidas ao Tribunal recorrido, pelo que não se coloca, nem tem de ser colocada, qualquer discussão acerca do princípio "in dubio pro reo", como invoca o recorrente.
3. O princípio in dubio pro reo, em sede de matéria de facto, só poderá incluir-se no âmbito da apreciação dos vícios da decisão recorrida indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, se resultarem directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência.
4. A fundamentação da sentença satisfaz plenamente as exigências legais, de completude, coerência e respeito pelo critério da apreciação da prova, podendo concluir-se que o texto da decisão recorrida não evidencia vício que possa incluir-se na previsão do n.º 2 do art. 410.º do CPP, susceptível de revelar qualquer dúvida quanto às conclusões obtidas na fixação da matéria de facto.
5. A medida da pena de prisão aplicada e a sua efectividade, mostra-se exaustivamente fundamentada e cumpre os requisitos exigidos pelos artigos 40º, 50º, 70º e 71º, todos do Código Penal.”
5. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.
II. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, nos termos dos artigos 402.º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam os vícios do artigo 410.º do mesmo código (Ac. do STJ de n.º 7/95 de 19/10).
Face às conclusões apresentadas pelo recorrente, no caso, importa decidir:
- Se se verificam os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou de erronotório na apreciação da prova, previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal;
- Se deve ser afastada a aplicação da figura do trato sucessivo e o arguido condenado pelo crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal sem apelo àquele conceito;
- Se a pena de cinco anos de prisão referente ao crime de abuso sexual na pessoa do menor GC_____ é excessiva e se a pena única a fixar em sede de cúmulo jurídico (englobando a pena de um ano referente ao crime de abuso sexual na pessoa de S_____ ) deve ser fixada em medida não superior a dois anos.
III. Fundamentação
Matéria de facto e respectiva fundamentação constantes da sentença recorrida.
“AA - Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade: Da acusação: a) Factos Provados
1. O arguido LM______ é funcionário público e é conhecido pelo cognome de “C ”.
2. Reside há cerca de 11 anos na mesma localidade - - dos pais da menor ofendida S_____ de 6 anos de idade, de quem se tornou amigo, sendo que uma das suas filhas é madrinha da S___,
3. Nesta conformidade, frequenta a casa dos pais da menor que com eles reside, assim adquirindo um forte grau de confiança e afecto por parte da criança que o trata por “avô ”
4. É por outro lado, amigo de longa data dos avós do menor ofendido GC_____ de 6 anos de idade,
5. Nesta conformidade, frequenta a casa dos mesmos que têm junto de si o menor, assim adquirindo um forte grau de confiança e afecto por parte da criança que o trata por “tio C”.
6. No dia 2 de agosto de 2020, pelas 15.00H., a menor S_____ deslocou-se a casa do arguido a fim de brincar com os cães.
7. Em circunstâncias que não foi possível concretamente apurar o arguido, colocou uma das mãos por dentro da roupa da criança, acariciando-lhe a parte anterior do tronco, após o que desceu a mão, friccionando-a intensamente na zona pubiana, ao ponto de lhe causar dores e desconforto,
8. Conduta que levou a menor a fugir do local, para sua casa, sendo que ali chegada disse à respectiva progenitora “ó mãe o avô está tolo”,
9. Ao ser questionada pela progenitora quanto a tal observação e porque o arguido lhe havia dito para não se referir ao assunto, respondia “é um segredo nosso”,
10. Só vindo a relatar o que se havia efectivamente passado, após insistência por parte da progenitora, que desconfiou de algo que não estaria bem,
11. Desde data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2020, o arguido, aproveitando-se da confiança de que goza junto do menor GC_____ , bem como dos avós do mesmo, em numero de vezes que não foi possível concretamente apurar, mas em numero suficiente para que o menor tivesse à vontade e naturalidade na prática dos actos sexuais que a seguir se elencam, conduziu a criança para uma casa destelhada e em ruínas sita em zona erma, no Caminho dos Canaviais em São Pedro - Vila do Porto,
12. Ali e aproveitando-se da complacência e inocência do menor GC_____ , despia-se da cintura para baixo e levava a criança a mexer-lhe no pénis erecto friccionando-o, até à ejaculação, e
13. Por outro lado, despia a criança da cintura para baixo, introduzindo-lhe os dedos da mão no ânus.
14. Nessas ocasiões o arguido também acariciava as nádegas do menor e friccionava o seu próprio pénis com as mãos, masturbando-se e ejaculando para o chão,
15. Fruto desta situação recorrente, no dia 29 de agosto de 2020, o arguido foi surpreendido pela avó do menor GC_____ , quando se encontrando sozinho com o menor este lhe passou por três vezes a mão pela zona pubiana, ainda que por cima da roupa, quando se encontrava sentado em plena sala de estar da casa dos avós da criança.
16. Habitação que abandonou de imediato e em silêncio ao ser confrontado com a visualização da situação pela avó do menor,
17. Os comportamentos do arguido - ou seja, os abusos de que a S_____ e o GC_____ foram vítimas, são passíveis de afectarem o desenvolvimento das respectivas personalidades;
18. O arguido praticou os factos aproveitando-se do ascendente e da confiança que tinha sobre as crianças, confiança que enquanto amigo e vizinho lhe era votada pelos respectivos progenitores e demais familiares e que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com elas,
19. O arguido tinha consciência de que, à data dos factos, os menores ofendidos eram menores de tenra idade - 6 anos - e, apesar disso, não se coibiu de praticar tais actos, ofendendo assim os sentimentos de criança, de inocência, de modéstia e de vergonha dos menores, bem como a integridade física e psicológica daqueles;
20. Ao agir como acima descrito, o arguido procedeu de forma deliberada, livre e consciente, praticando acto de relevo em menores de 14 anos, a fim de satisfazer a sua lascívia e os seus desejos sexuais o que logrou,
21. Sabia o arguido que os factos que praticou com e sobre as vítimas eram adequados prejudicar um livre e harmonioso desenvolvimento das personalidades destes,
22. E que tinham reflexos na esfera sexual da personalidade dos mesmos;
23. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas e eram punidas criminalmente. Dos pedidos de indemnização civil
24. Ambos os menores, na sequência dos comportamentos acima descritos do arguido, sentiram-se envergonhados, angustiados, deprimidos, humilhados, passaram a isolar-se, demonstrando a menor S_____ repulsa sobre o sucedido, passando a ter acompanhamento psicológico mensal (ambos os menores).
25. Passaram a ter perturbações do sono e frequentes pesadelos.
26. O menor GC_____ passou a demonstrar actividade sexual, provocando-a, nomeadamente com o seu irmão de três anos de idade.
27. O menor GC_____ passou a ser agressivo com os colegas da escola, agredindo-os fisicamente e desrespeitando a autoridade da professora. Do relatório social e do CRC do arguido:
28. À data dos factos, LM______ , de 52 anos, habilitado com o 4.° ano, assistente operacional na Câmara Municipal de Vila do Porto, residia na freguesia de São Pedro, em casa própria (ainda que hipotecada), na companhia da esposa, AM_____, de 51 anos, habilitada com o 4.° ano, empregada de limpeza, e com a filha mais nova, de 15 anos, estudante.
29. O casal teve 4 filhos, encontrando-se os três mais velhos já casados, mantendo com eles um bom relacionamento. Descreve o ambiente familiar como coeso e protetor, com um quotidiano centrado no trabalho e na família, e com a satisfação das necessidades básicas de subsistência asseguradas por via dos rendimentos de trabalho do arguido e esposa, ainda que as dificuldades financeiras, decorrentes do processo de insolvência do casal, obriguem a uma gestão prudente e ao recurso a apoios sociais pontuais.
30. LM______ cresceu integrado no agregado de origem, sendo o quinto de uma fratria de 6 filhos do casal LM______ , sem profissão, e NS_____, empregada de limpeza, ambos já falecidos, descrevendo um contexto familiar pautado por dificuldades de subsistência, numa habitação exígua e sem casa de banho, onde residiam outros familiares, em situação de sobrelotação. Os parcos rendimentos da mãe dele e o desemprego do pai (doente renal crónico), condicionaram a satisfação das necessidades básicas, sendo a figura paterna descrita como violenta e com hábitos alcoólicos, o que condicionou o ambiente familiar, contribuindo para um clima de medo e opressão.
31. Fruto das dificuldades económicas do agregado, e por pressão familiar, o arguido abandonou a escola com 14 anos, quando frequentava o 5.° ano, iniciando atividade profissional na construção civil, atividade que vem mantendo ao longo da vida, ainda que interrompida quando veio prestar serviço militar obrigatório à ilha de São M_____ com cerca de 20 anos.
Atualmente, e depois de, enquanto desempregado e inscrito na Agência para a Qualificação e Emprego, ter integrado diversos programas de emprego apoiado, encontra-se integrado nos quadros da Câmara Municipal de Vila do Porto há cerca de 2 anos, com a categoria de Assistente Operacional.
32. Iniciou relação amorosa com a atual esposa quando contava 19 anos, informando ter sido a sua primeira experiência sexual, relacionamento do qual resultou a gravidez do primeiro filho (atualmente com 34 anos), altura em que abandonou o agregado dos pais para residir com a companheira, mudando-se para uma habitação arrendada, com deficitárias condições de habitabilidade e conforto, condições que o arguido foi melhorando ao longo do tempo com recurso a pequenas intervenções. Foi nesta habitação que cresceram os 4 filhos do casal, até que há cerca de 11 anos adquiriu casa própria, com recurso a apoios governamentais, e que veio a ser hipotecada pela instituição bancária que detinha o crédito habitação por, segundo o próprio, incapacidade económica para fazer face à prestação mensal do empréstimo.
33. No que concerne a relações amorosas, declara que somente namorou com a esposa, não registando experiências sexuais fora do matrimónio, nem no âmbito de serviços de prostituição. Acrescentou que o relacionamento sexual com a esposa sempre foi satisfatório, mas no presente, e desde há algum tempo, quando lhe foi diagnosticado problema de saúde na próstata, deixou de haver contactos de natureza sexual entre o casal, mantendo, contudo, uma sã convivência.
34. O arguido revela que, para além dos problemas de próstata, que o obrigam a deslocações mensais ao Hospital do Divino Espírito Santo em Ponta Delgada, também é seguido em consultas de psiquiatria, sendo-lhe receitada medicação para a ansiedade. Descreve um período da vida particularmente difícil, relacionado com a crise económica de 2009/10, quando ficou desempregado e acabou por perder a casa de família por incapacidade de honrar os compromissos bancários. Contudo, foi-lhe permitido ficar na casa até que a instituição bancária realizasse a venda, vendo-se obrigado a abandonar a habitação recentemente na sequência das medidas de coação no âmbito dos presentes autos, que obrigaram a um afastamento de uma das eventuais vítimas, residindo com a esposa e filha mais nova em habitação arrendada na freguesia de Santo Espírito.
35. LM______ informa que tem um quotidiano centrado no trabalho e na família, descrevendo um especial gosto por atividades agrícolas, ocupando muito do seu tempo livre no quintal de casa, em agricultura de subsistência, e ajudando um irmão na agropecuária.
36. Relativamente aos factos de que vem acusado, o arguido sente-se comprometido com os factos que sobre ele pendem na acusação. Assevera que a presente acusação teve nele e na comunidade forte impacto, sentindo vergonha acentuada e a reprovação e surpresa por parte da sociedade local. Manifesta empatia para com as vítimas, reconhecendo o impacto negativo dos factos de que vem acusado no desenvolvimento delas.
37. Não se identificam fatores de risco no arguido, sobressaindo fatores de proteção como a família, coesa e com uma atitude protetora, os hábitos de trabalho que mantém ao logo da vida, uma conduta pró social e uma imagem comunitária favorável, bem como empatia para com as pretensas vítimas e adequado sentido crítico.
38. LM______ é descrito pelas fontes comunitárias como um individuo dedicado ao trabalho, com um ambiente familiar estável e organizado, responsável e de bom trato. Quem com ele convive no trabalho, descreve-o como um indivíduo bem-humorado, cumpridor dos horários e obrigações, não lhe sendo apontados comportamentos moralmente censuráveis. Apresenta hábitos de trabalho, beneficiando de contrato de trabalho em funções pública com a Câmara Municipal de Vila do Porto, mantendo um quotidiano monótono, sem comportamentos censuráveis, e ocupa o seu tempo livre com agricultura de subsistência. Não foram detetados fatores de risco na vida do arguido, destacando-se, como fatores de proteção, a coesão e apoio familiar de que beneficia, os hábitos de trabalho que mantém, e uma imagem social favorável, bem como adequados sentimentos de empatia com a vítima, revelando sentir-se comprometido com a acusação, ao mesmo tempo que lamenta o impacto nas pretensas vítimas.
39. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
B - Factos não provados: Da acusação:
No dia 2 de agosto de 2020, pelas 15.00H., a menor S_____ pediu ao arguido para a ver jogar no “tablet”, facto que o arguido aproveitou para a sentar ao seu colo.
Que o arguido tenha transportado o menor GC_____ em passeio no interior do seu veículo, pela ilha de Santa Maria,
Que o arguido, aproveitando-se da complacência e inocência do menor GC_____ , e pelo menos por 4 vezes, despiu-se da cintura para baixo e levou a criança a mexer-lhe no pénis erecto friccionando-o, até à ejaculação, e lhe introduzisse o pénis erecto na boca.
C - Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, como preceitua o art°.127° do Código de Processo Penal. Cumpre ainda referir que não foi suscitado qualquer vício quanto à prova produzida em audiência. Como tal, toda ela, será tida em conta na análise crítica que dela a seguir se fará para justificar os factos que se entenderam provados e não provados.
Há que considerar ainda que lei admite presunções judiciais, que são as ilações a que o
julgador chega a partir de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art°s.349° a 351° do Código Civil). Como é natural, a atividade dos juízes, enquanto julgadores, não pode ser a de meros espectadores, recetores de depoimentos, já que a sua atividade judicatória há de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a atividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
A livre apreciação da prova significa que o tribunal está vinculado ao dever de perseguir a verdade material do caso concreto que é trazido à sua apreciação, de tal modo que esta, embora livre, há de ser motivada e controlável, quer pelos destinatários da decisão quer pelas instâncias de recurso. Por isso se exige a explicitação do percurso lógico do julgador na decisão sobre a matéria de facto, que está na génese da sua convicção. A consequência deste sistema reflete-se, desde logo, na possibilidade do tribunal formar a sua convicção na base do depoimento de uma testemunha, em desfavor do testemunho contrário, e fundar a convicção no depoimento de um mero declarante em desfavor de prova testemunhal, esta, em abstrato, com maior dignidade probatória (cfr. Ac. STJ de
16.1.2008, disponível em www.dgsi.pt, “A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.” ) Para além disso, os princípios da imediação e da oralidade, só possíveis em audiência de julgamento, carregam consigo uma carga de convencimento dificilmente transponível para a fundamentação, uma vez que só podem ser apreendidos na sua totalidade pelo julgador perante o qual as provas são produzidas.
No caso concreto o tipo de testemunhos prestados, os pontos de coincidência, o grau de probabilidade ou de verosimilhança, deram ao tribunal, para além de toda a dúvida razoável, a verdade material da parcela dos factos dados como provados e não provados em julgamento, tudo conjugado com o normal devir das coisas e as regras de experiência que resultam do viver em sociedade, nos moldes que a seguir se vão descrever.
O arguido, não prestou declarações a não ser após a produção de toda a prova e após alegações, começando por referir nessa altura que “não se sentia em si, mas que se terei feito alguma coisa dessas peço desculpa”.
Instado a clarificar o significado das suas palavras, referiu de nada se lembrar reiterando as desculpas.
Insistindo o tribunal e suscitando comentário sobre os episódios que as testemunhas relataram, nomeadamente a avó do GC_____ e a mãe da S____ , admitiu ser verdadeiro o episódio com o GC_____ descrito pela avó, mas que logo afastou a mão do menor. Perante a perplexidade manifestada pelo tribunal, da sua (não) reacção ao ver o menor ser agredido pela avó, limitando-se a abandonar a residência desta e sem posteriormente ter debatido o assunto com aquela de quem era amigo de décadas e da estranheza perante o comportamento do menor, o arguido limitou-se a admitir nada ter feito no sentido de esclarecer a situação, escudando-se no facto da novidade daquele comportamento sexual por parte do menor e na sua “confusão” por estar a tomar medicamentos contra a ansiedade pelo facto de num processo de insolvência ter “perdido” a sua casa.
Quanto ao episodio com a menor S___, o arguido diz só se recordar de estar a ver uns cachorrinhos com a menor e por mor da sua doença de próstata ter necessitado de urinar com urgência, o que fez e ao aperceber-se que a menor estava a ver, virou-se de costas para esta.
Apesar de referir que de nada se recorda e questionado se os factos não sucederam e se os nega, insiste simplesmente que de nada se recorda e que está confuso sublinhando o pedido de desculpas.
Nesta parte, urge vincar que o arguido não encara o tribunal, mostrando a sua postura física (mãos contraídas sobre a barra, ombros erguidos e pescoço retraído, rosto em posição lateral, olhar dirigido lateralmente para baixo), um nítido acanhamento, constrição e embora que temerariamente, mas firmado na nossa experiência pessoal e profissional, afirmaríamos de sentimento de vergonha, perante os esclarecimentos e objecções que o tribunal lhe vai colocando no sentido de entender as afirmações que vai produzindo e os factos que foram sendo reproduzidos em julgamento.
Afirma que nunca transportou o menor GC_____ na sua viatura ou o acompanhou para casas velhas (sempre, tanto quanto se recorda), insiste que tem falhas de memória devido aos medicamentos que toma (sublinhe-se com alguma veemência, que a defesa não solicitou qualquer perícia sobre o arguido, a sua personalidade ou faculdades mentais, seja em inquérito seja posteriormente, nomeadamente em julgamento e nunca antes destas declarações produzidos pelo arguido, nos autos nem sua postura indicou ao tribunal dívidas acerca da sua imputabilidade, cumprindo ainda acrescentar- o que pode ser verificado pela audição da gravação de julgamento- que mesmo nesta sede o tribunal envidou todos os esforços para compreender e qualificar o raciocínio do arguido, não encontrando factores que lhe determinassem fundadas duvidas sobre a sua imputabilidade). Neste ponto não podemos deixar de o ligar em termos de coincidência com o que consta do relatório social juntos aos autos.
Quanto a este, que não foi impugnado por qualquer forma pela defesa, cumpre ainda acrescentar, (por entendermos que tal facto tem interesse para a ponderação do seu conteúdo), que o mesmo foi realizado (veja-se a data do mesmo), após a produção da quase totalidade da prova (com excepção da audição das declarações para memória futura dos menores e da audição da testemunha arrolada pelo arguido Dr. _____).
Deste modo, a posição do arguido perante os factos que lhe são imputados é a que se deixou supra consignada que corresponde grosso modo, à negação dos mesmos, explicita ou por falta de memória deles, devendo nós ainda acrescentar que admitiu a proximidade de relacionamento com ambos os menores, extravasando, pela sua intensidade, a mera relação com os familiares deles, admitindo a grande proximidade, negando, contudo, que alguma vez tivesse ofertado ao menor qualquer brinquedo.
Passemos agora à análise da prova testemunhal produzida nos autos, para que se possa entender por que razão a mesma mereceu a credibilidade que resulta da fixação da matéria assente.
Começaremos pela análise dos depoimentos das testemunhas. Isto porque os menores em causa nos autos são de tenra idade (6 anos) o que dispensa -achamos nós- comentários sobre a sua assertividade nomeadamente quanto à noção de tempo e espaço.
Assim, J_____ , empregada de mesa, mãe da ofendida S____ , que fez desde logo constar que estava de relações cortadas com o arguido, referiu que a menor veio ter consigo naquele dia (que situou em Agosto de 2020, num domingo - o dia 2 de Agosto foi domingo) que é o que consta da acusação, “envergonhada” a correr, dizendo que “o avô estava tolo”.
Inquirida a menor pela mãe do significado daquela expressão (por que a estranhou esclarecendo nós que no contexto arquipelágico é expressão trivialmente usada quando se estranha de forma profunda e não se alcança o entendimento, sobre o comportamento ou atitude de algo ou alguém), respondeu de imediato a menor “é segredo nosso”.
Instada a explicar por que razão desde logo qualificou o comportamento da sua filha como de envergonhado, referiu que a menor se apresentava com a mão na cabeça (especificou depois que cobria parte da cara), situação que para ela mãe, era novidade e por perceber que a menor apresentava nítida diferença de comportamento do habitual, insistiu com ela para que lhe contasse o que havia sucedido com o arguido, que a menor tratava por avô, dadas as especiais relações de proximidade que com ele mantinha e com a família deste.
Então a menor (depois de encaminhada para o quarto dela pela mãe e após a mãe entender que já estava mais descontraída) contou-lhe que tinha ido brincar com os cães na companhia do avô (arguido), este lhe havia tocado na barriga e que havia doído.
Apontou então a menor para o local onde havia sentido dor (osso púbico), referindo que lhe doeu “aqui no osso”, mas esclarecendo nessa altura que foi a única vez que essa situação ocorreu e que o arguido lhe tocou naquele local “por fora das cuequinhas”. Tudo relatou “muito envergonhada” nas palavras da testemunha.
De seguida, deu conta que a menor continua até hoje a falar sobre a avó (esposa do arguido) e da madrinha (filha do arguido) revelando sentir dolorosamente a sua ausência, mas nunca mais se referiu ao arguido (que tratava, anteriormente aos factos, por avô). Mais referiu de forma sempre credível que a menor passou a ter pesadelos recorrentes, chora com saudades da família do arguido e dos cães que estes possuem (omitindo sempre qualquer referência ao arguido referindo mesmo que não quer falar com ele. Nas palavras da mãe da menor, esta ignora-o não quer falar mesmo nada sobre ele e diz que só tem o primo - o menor GC_____ ofendido nestes autos- como amigo).
Mais referiu que a menor, depois do episódio em questão, passou a deixar de brincar na rua com coleguinhas de escola e está a ser consultada pela psicóloga do Centro de Saúde., (que foi ouvida em julgamento) e que instada a falar sobre o episódio, limita-se a chorar.
Referiu ainda que após a menor lhe ter relatado os factos de imediato se dirigiu à esposa do Arguido relatando-os esta chamou o arguido que confrontado lhe disse que se limitou a fazer xixi na presença da menor e que esta presenciou esse acto.
Mais referiu que sentiu vergonha pelo sucedido razão pela qual não apresentou queixa, “não queria acreditar” embora acreditasse na menor e na descrição que esta lhe havia feito dos factos. Posteriormente e perante o que a sua irmã (mãe do GC_____ ) lhe relatou que havia sucedido com este menor, decidiu então avançar com queixa sobre o arguido.
Todo este circunstancialismo se revelou credível na sua totalidade, apreensível e compreensível dadas as relações de extrema proximidade entre as famílias, as dificuldades que a assunção de uma situação como a dos autos leva a crer, tudo isto conjugado com a restante prova produzida e a que já se fez referência (do arguido) e a que se seguirá.
Assim, a demandante CM_______, mãe do menor GC_____ de 6 anos de idade, que se encontra de relações cortadas com o arguido pelos factos agora em causa, referiu que os seus dois filhos, incluído o GC_____ ficavam ao cuidado e atenção da sua sogra durante o seu horário de trabalho e que em Agosto de 2020, chegando a casa desta pelas 20h ela lhe contou o que havia visto ( a descrição é idêntica à que foi levada a cabo pela testemunha que a seguir se referirá, razão pela qual se atentou na sua veracidade), pelo que foi falar com o menor que lhe disse que era um segredo com o seu amigo M_____ (o arguido).
Depois da insistência da mãe ora demandante em seu nome, e já na sua habitação, o menor acabou por fazer o gesto de lamber o seu (dele) dedo mindinho e de seguida passá-lo sobre o seu ânus, exemplificando (tal como havia levado a cabo com a avó). Mais lhe referiu o menor “eu não sabia que saía leite” e “ele limpou com um pano”. Perante a estupefacção da mãe (patenteada em julgamento sem que houvesse qualquer dúvida sobre a sua veracidade), o menor GC_____ referiu-lhe que “era fofa como uma cabeceira” (referindo-se à “pombinha” nome pelo qual se refere ao pénis e a uma almofada) ao mesmo tempo que com ambas as suas mãos fazia os gestos que a testemunha identificou logo como sendo masturbatórios do órgão sexual masculino “a enrolar” na sua expressão. O menor insistia, como tinha ficado impressionado (nas palavras da mãe e não nas dele) que “não sabia que saía leite”, questionando-a várias vezes sobre esse facto, mostrando curiosidade em ver os órgãos sexuais da mãe e perguntando se dali também “saia leite”.
Mais referiu que o menor nunca lhe referiu nessa ou noutras conversas que passava de automóvel pela ilha com o arguido.
Para além disso, a mãe do Menor relatou com extrema emoção a transformação de personalidade a que assistiu nele após os factos. Exemplificou dizendo que o menor nunca mais lhe permitiu que tocasse na suja genitália durante os banhos (passou também a encará-la com alguma sexualidade que a ela como adulta, mãe e mulher, constrange), que se mostra muito rebelde e agressivo, agride fisicamente os colegas de escola, recusa obedecer à professora ao contrário do que sucedia antes dos factos em causa. Para além disso, relatou de forma circunstanciada vários episódios que ilustram o significado do que quer expressar nessa mudança de atitude do menor.
Assim, para além daquele que acima se referiu sobre a curiosidade do menor, relatou que após os factos, estando menor GC_____ a tomar banho com o irmão de 3 anos de idade e entrando a mãe (ela) de rompante na casa de banho se apercebeu que algo de anormal se passava e junto do outro filho (de 3 anos de idade) ele deu a saber que o GC_____ lhe tinha pedido para mexer na sua “pombinha” o que havia feito, verificando então que este (o GC_____ ) se encontrava com o pénis erecto. Desde esse dia nunca mais consentiu que os irmãos tomassem banho de imersão juntos ou estivessem sozinhos.
Continua referindo que o menor passou a olhar para o seu (dela) corpo de forma diversa
“com outros olhos”, razão pela qual passou a não mostrar o seu corpo tal como até aí fazia sem qualquer questão, mas o que mais a emociona da forma dolorosa como manifestou, é o facto de o
menor lhe referir que gostava dos actos sexuais que praticava com o arguido, que sente saudades dele e daqueles actos, facto este que a mãe não compreende dada a tenra idade do filho (6 anos).
O seu depoimento não mereceu qualquer censura no que respeita à sinceridade e ainda que eivado de natural e compreensível emoção que os factos em causa transmitem, não revelou qualquer sentimento de vingança ou especial desforço contra o arguido, centrando-se sempre na difícil compreensão dos factos e na especial preocupação pelo estado de saúde mental actual do seu filho e na discrepância relativamente à data anterior aos factos, sendo sua perceção que o menor necessita de acompanhamento mais eficaz e assíduo que aquele que é levado a cabo actualmente pela psicóloga do Centro de Saúde (que é mensal).
Importa pois conjugar este depoimento com o da testemunha , avó do menor GC_____ sogra da anterior testemunha, também de relações cortadas com o arguido pelos factos aqui em causa, relatou que depois de ter tido conhecimento do que se havia passado com a S____ , embora colocando em causa a veracidade daqueles factos, quer pela relação de amizade e proximidade que tinha com o arguido quer porque este era visita frequente da sua casa há muitos anos e ela tomava conta de dois netos, ainda assim decidiu: “vamos abrir o olho” (expressão regional), querendo com isto dizer que passou a estar mais atenta ao comportamento dos seus netos (um dos quais o GC_____ ) e do arguido.
Foi assim que, no dia em causa, tendo regressado do veterinário e estando o arguido em sua casa na sala, na companhia do menor GC_____ decidiu ir à cozinha passando pela sala para “ver se acontecia alguma coisa”.
Então, viu que estando o arguido sentado no braço do sofá da sala e o menor em frente deste, este se levantou e “amacia-lhe as partes”, por três vezes. Explicou que quer dizer que o menor lhe passou as mãos pela zona do pénis, acariciando-o, por três vezes (importa aqui dar conta da forma como a testemunha relata o sucedido: o menor praticou os factos, por três vezes, calmamente, aparentando grande à vontade e naturalidade, de motu próprio: levantou-se, dirigiu-se ao arguido e acariciou-lhe os órgãos genitais, lentamente por três vezes).
Então o arguido retirou a mão do menor ao se aperceber da presença da testemunha.
Todavia a testemunha ao presenciar os factos vendo que o menor havia tocado aquela parte do corpo do arguido, não se conteve e agrediu o menor com uma bofetada dizendo que aquilo não se fazia ao que o menor ripostou “ele é o meu amigo M_____ ”.
O arguido levantou-se e saiu imediatamente da sua casa (até hoje) nada dizendo. De imediato e ao reflectir sobre o sucedido logo a testemunha se arrependeu de ter agredido o neto, reiterou que aquilo não se fazia e o menor insistiu que era o seu amigo. Então a testemunha insistiu com o menor perguntando-lhe se se passava alguma coisa ao que o menor respondeu “o amigo M_____ pediu-me segredo. Não posso dizer”.
Ainda assim perante a insistência da avó, o menor colocou o dedo na boca e de seguida apontou com ele “para o rabinho” e a instâncias dela respondeu que o arguido tinha ali enfiado o seu dedo mas que não havia havia doído “tu pisas mas ele não me pisou” (o verbo pisar é utlizado localmente como sinonimo de ferir, magoar). A testemunha então explicou que quando lhe dá banho e lhe lava as nádegas e o ânus, por vezes não tem muito cuidado e neto se queixa que o está a magoar e por isso fez a comparação com o arguido.
Reitera que nuca desconfiou sequer de qualquer comportamento sexual do arguido para com o seu neto e nunca se apercebeu que este passeasse de automóvel com o arguido. Conhece a casa destelhada que fica a cerca de 150m da sua moradia e sabe que o neto a indicou à Polícia Judiciária.
Questionada sobre a sua percepção sobre a veracidade do que o GC_____ lhe relatou, dado o
seu conhecimento com o menor, referiu que sabe quando o seu neto mente o que não é o caso embora lhe custe a acreditar (referiu que o marido não acredita por ser amigo do arguido há longos anos), mas que o neto, embora agora ninguém comente o sucedido à sua frente, referiu-se ele a aos factos de forma natural, aparentando que para ele se trata de acontecimentos “normais” e só se recusa a voltar a contar o sucedido por entender “que esta farto de repetir”. Acrescentou ainda que à mãe o menor disse que gostou e a si que não lhe doeu, mostrando-se contristada com esse facto: “o problema é que ele diz que era bom”.
Insistiu na estranheza que sentiu pelo facto de o arguido ter ficado em silêncio e saído sem nada dizer após os factos mesmo depois de ver o menor ter sido por si agredido: “levantou-se e saiu”.
Mais referiu que o menor é muito dado com qualquer pessoa e que não nota qualquer diferença no seu comportamento consigo (aparentemente o menor não a vê como objecto de desejo sexual o que já não acontece relativamente à mãe, mulher jovem e atraente relativamente à qual, após os factos passou a ter os comportamentos sexualizados que acima se referiram).
A psicóloga, que acompanha ambos os menores, teceu considerações sobre a idade de definição da orientação sexual (em idade superior à dos menores) e deu a saber que os acompanha desde finais de Janeiro de 2021, em específico por causa da problemática que lhe foi transmitida pelos pais dos menores. Referiu que o início da exploração do corpo quando incentivada pode ocorrer e se ela for levada a cabo por adultos pode aumentar a probabilidade de trauma para o menor por antecipar a idade de exploração do corpo e não ter sido querida pelos menores.
Referiu que os diversos sinais que ambos os menores apresentam, embora possam ter sido causados por outros factores, são todos eles compatíveis com os que as vitimas de abusos sexuais apresentam e que face ao acompanhamento que tem vindo a fazer, se justifica que o mesmo continue. Mais referiu que ambos os menores apresentam alterações comportamentais, dificuldades em conciliar o sono e pesadelos.
Todas as testemunhas arroladas pelo arguido, não demonstraram qualquer conhecimento directo ou indirecto dos factos, tendo deposto somente sobre a personalidade do arguido, pessoa assídua das suas casas, educada e respeitadora, inclusive dos seus filhos menores
Todas estas testemunhas deram a saber da sua incredulidade relativamente à veracidade dos factos que lhe são apontados, do choque que sentiram quando tomaram conhecimento da acusação, do seu bom comportamento social, familiar e profissional.
A testemunha MR___ sua sobrinha vê nas queixas apresentadas uma forma de os envolvidos quererem fazer mal ao arguido por terem proporcionado com as queixas, que a comunidade o julgasse, sem que contudo, aponte qualquer facto que lhe determine essa invocada vontade de prejudicar o arguido.
Resta-nos apreciar as declarações para memória futura dos menores que foram reproduzidas em audiência de julgamento.
Comecemos pela menor S_____ , 6 anos, frequenta o 1° ano de escolaridade, não tem qualquer noção de tempo ou espaço. Não consegue dizer onde mora (sabe que com o pais e irmã, que tem um quarto para si) mas não conhece os dias da semana, meses ou anos.
Não sabe dizer se tem vizinhos (parece não saber o conceito) mas conhece o arguido com quem já esteve sozinha na “casa da vovó”. Refere que esteve com ele e com muitas cadelas e sublinha que ela “não fez nada”.
Foi patente a dificuldade da criança contar fosse o que fosse, admitindo que o arguido mexeu no seu corpo, mas insiste que não se lembra onde, embora saiba que estava vestida que lhe mexeu por baixo da roupa, com uma mão, que não disse nada e que a magoou “só um bocadinho”, não sabendo dizer em que parte do corpo lhe doeu, refugiando-se na falta de memória e no “eu já não sei”. Confrontada com o facto de o arguido poder fazer o mesmo a outras crianças, magoá-las, respondeu prontamente ninguém vai para ali ele já mudou de casa e o “O GC_____ já foi” (são primos e mantêm estreita relação).
Perguntada sobre a roupa, referiu que o arguido tirou as calças, que não lhe mexeu no corpo e que ele “fez xixi e ficou com vergonha e virou- se”. Que lhe mexeu no corpo e a magoou antes de fazer xixi e depois foi a correr para casa “porque ia contar à minha mãe, tudo!”.
O seu relato, não pode ser desgarrado da restante prova produzida em audiência da forma que posteriormente daremos conta.
O menor GC_____ , de 6 anos de idade (diz ter 5 mais 1), frequenta o 1° ano de escolaridade, não se localiza no tempo ou no espaço (só sabe que perto da sua casa há um sinal que diz “Canas”). Conhece o arguido, dizendo que é seu amigo e anda de carro consigo.
Prossegue mais à vontade dizendo que quando a avó não está a ver fazem uma coisas, vão para sítio com casas velhas onde entram, diz que as casas estão destruídas e nessa parte do seu depoimento retrai-se dizendo que sentia vergonha.
Diz que tem um segredo com o arguido que ele combinou consigo pedindo segredo e embora não queira que outras crianças tenham o mesmo segredo, não consegue contá-lo.
Instado sobre o faziam lá nas casas, responde que isso era o segredo. Conta então que “mexia na pomba” (aponta para o pénis) mas que a avó descobriu. Esclarece que o arguido mexia no pénis e que lhe disse “não contes isto a ninguém”. Aponta o pénis como sendo o local onde o arguido tocava dizendo que metia a mão por dentro da roupa e depois mostrando-se ainda mais desinibido diz que o arguido “mexeu na pila, mexeu no cu”, que meteu um dedo devagar (no ânus) e exemplifica como o arguido fazia, chupando o seu dedo mindinho dizendo que depois o “metia no cu” que “entrava pouco” e que mexia no corpo dele (do arguido), na “pombinha” (localmente o diminutivo para as crianças de pénis) e que ele lhe dizia como fazer.
Exemplifica dizendo que “enrolava com as duas mãos” e exemplificou o acto de masturbação do órgão sexual masculino acrescentando que muitas vezes saiu leite da pombinha e que quando falavam saia leite. Insistindo o Ilustre Colega se era ele que mexia no pénis do arguido, mostrou-se agastado com a repetição dizendo “Claro que sim!”, explica o tamanho do pénis com o seu polegar e refere que tinha pêlos, diz que isto se passou há muito tempo mas que a avó descobriu porque viu “eu a mexer na pomba do homem” acrescentando que se não fosse isso, não contaria o segredo e os factos ocorreram muitas vezes (só sabe contar até 10), dizendo primeiro duas vezes depois
“cinquentas”.
Não se apurou assim o numero exacto de vezes que os factos ocorreram, nem que o arguido tenha introduzido o seu pénis na boca do menor.
Estes relatos dos menores, que obviamente dada a sua idade (6 anos) são imperfeitos apresentam, no entanto, a devida consistência, compaginados com as versões que logo a seguir aos factos apresentaram aos seus familiares, não revelando ainda (antes pelo contrário no caso do menor GC_____ ) qualquer animosidade para com o arguido.
Assim não obstante o invocado esquecimento do arguido, não teve o tribunal qualquer dúvida em dar por assente aqueles actos sexuais e comportamentos do arguido, não obstante as dificuldades de localização espácio temporal revelada pelos menores que no entanto com a ingenuidade dos seus 6 anos, os descreveram de forma cabal e credível. Na verdade, são crianças de muito tenra idade, não se mostrando credível que soubessem descrever os actos sexuais da forma como o fizeram e note-se, logo a seguir ao ocorrido, sem tempo para de algum modo serem manipuladas por adultos para o fazerem. Na verdade, as famílias dos menores e do arguido eram até bastante chegadas sem que se divisasse qualquer animosidade ou querela que lhes atiçasse azedume ou desígnios de vingança.
A consciência e a vontade relativa aos ilícitos perpetrados pelo arguido estão em consonância com a ordem natural das coisas e a forma de atuação do agente que demonstra de modo inelutável que sabia as suas condutas contrárias à lei e por ela punidas.
Para além disso, há que considerar os documentos de fls. 4 a 6, 9 a 10, a reportagem fotográfica de fls.89 e ss. e as certidões de nascimento de fls. 131 e 175.
A propósito da reportagem fotográfica há que referir que foi o menor GC_____ que indicou o trajecto até à casa em ruínas, que esta correspondia ao desenho que este tinha feito, tomando-se ainda em atenção que o menor havia referido à Policia Judiciária que ali se encontrava uma cadeira velha que o arguido aquando de práticas sexuais havia partido quando nela se sentou, o que efectivamente se verifica na fotografia n°7, reforçando assim ainda mais (se tal se mostrasse necessário) a credibilidade das suas declarações a esse propósito
As condições pessoais e os antecedentes criminais do arguido, resultam do relatório social e do CRC que estão nos autos e ainda do testemunho das testemunhas que arrolou.” Apreciando
Como referido supra, o arguido invocou a existência dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e dos quais o tribunal de recurso pode e deve conhecer - porque de conhecimento oficioso -, se estes resultarem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo pacífico que na indagação em causa não pode socorrer-se de quaisquer outros elementos, ainda que constantes do processo. Os vícios “decisórios” enumerados nas três alíneas do n.º 2 do citado artigo 410.º são os seguintes:
“a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório da apreciação da prova.”
Quanto ao primeiro, à insuficiência para a decisão da matéria de facto, é consensual na jurisprudência que a mesma ocorre quando “os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão” (Acórdão do STJ de 20 de Abril de 2006).
O segundo, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, pode verificar-se ao nível da matéria de facto - como no caso de factos provados contraditórios entre si ou incompatíveis com os factos não provados -, ou verificar-se ao nível da fundamentação de facto e de direito – casos em que, seguindo um raciocínio lógico, a fundamentação empregue não permite a decisão tomada ou, até, colide com esta.
O terceiro, o erro notório na apreciação da prova (alínea c) do artigo 410.º do Código de Processo Penal), constitui um vício de raciocínio na apreciação dos elementos probatórios conduzindo à fixação de matéria de facto em termos tais que contrariam a lógica e/ou as regras da experiência.
Vejamos o caso dos autos.
- Quanto à existência de contradição entre os factos provados e os factos não provados (alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal), foi invocado, em concreto, contradição entre o ponto 11. da matéria de facto provada do qual consta que, “Desde data não concretamente apurada, mas anterior a Agosto de 2020, o arguido, aproveitando-se da confiança de que goza junto do menor GC_____ , bem como dos avós do mesmo, em numero de vezes que não foi possível concretamente apurar, mas em numero suficiente para que o menor tivesse à vontade e naturalidade na prática dos actos sexuais que a seguir se elencam …” e o facto não provado com o seguinte teor: “Que o arguido, aproveitando-se da complacência e inocência do menor GC_____ , e pelo menos por 4 vezes, despiu-se da cintura para baixo e levou a criança a mexer-lhe no pénis erecto friccionando-o, até à ejaculação, e lhe introduzisse o pénis erecto na boca.”.
Ora, da leitura conjugada da factualidade provada e não provada não se extrai a existência de qualquer contradição, sendo claro que o que não se apurou em julgamento foi apenas o concreto número de vezes que o arguido actuou da forma descrita na matéria de facto provada e, ainda, o ter o mesmo introduzido o pénis na boca do menor. É também isso que, de forma expressa, consta da motivação da matéria de facto. Apenas por razões de contextualização foi descrita nos factos não provados a conduta do arguido (esta provada) para que ficasse claro o que é que, tendo ocorrido, não se apurou ter ocorrido por quatro vezes.
Ou seja, e como referido pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, “dar como provado factos cometidos em número não determinado de vezes, não está em contradição com não se considerar provado terem sido cometidos pelo menos por 4 vezes, nos termos em que vinha acusado.”
- Quanto à existência de erro notório na apreciação da prova, defendeu o arguido ter sido dada como provada a prática plúrima de condutas ilícitas, de forma arbitrária e recorrendo às “regras da experiência comum”, à “livre convicção do julgador” e a “presunções judiciais”, sem qualquer suporte na prova produzida.
No que respeita à apreciação da prova e à factualidade provada nenhum reparo merece a sentença recorrida, inexistindo nesta qualquer erro e, no que ora releva, qualquer erro que sobressaia da sua leitura.
Na motivação de facto encontra-se exposto, de forma clara e lógica, o raciocínio seguido pelo tribunal a quo. E, no que ao menor GC_____ respeita, a prova produzida em audiência sustentou, de forma adequada, os factos dados como provados. Além do que resultou dos depoimentos da mãe e da avó do menor – bem explicitados em sede motivação -, nas declarações prestadas por aquele foram descritos, de forma clara, os actos perpetrados pelo arguido. Das mesmas declarações, extrai-se, com suficiente segurança e apelando às regras da experiência comum, não se ter tratado de acto isolado. Acresce que, conforme consta da fundamentação da matéria de facto, o próprio arguido não negou a prática da factualidade que lhe foi imputada referindo, tão só, não se recordar dela. De todo o modo, na dúvida quanto ao número de vezes que o arguido molestou o menor, o tribunal deu apenas como assente que os factos ocorreram “em número de vezes que não foi possível concretamente apurar.”, embora criando no menor à vontade para que, com naturalidade, na sala da avó tenha passado a mão, por três vezes, “pela zona pubiana” do arguido.
- Quanto à invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada defendeu o arguido que, ao não ter sido provado que os factos praticados na pessoa do menor GC_____ ocorreram, pelo menos, por quatro vezes, não poderia ter-se concluído, como fez o tribunal a quo, pela condenação num crime de abuso sexual de criança em trato sucessivo.
A figura do crime de trato sucessivo[1], inicialmente aplicada ao tráfico de droga e posteriormente transposta para os crimes sexuais[2], pretendeu responder à necessidade de encontrar uma resposta penal adequada para as situações em que, no julgamento, não se apurou o número de crimes cometidos num determinado período de tempo e relativamente às quais, ao contrário do que ocorre no crime continuado, é patente um maior grau de culpa do agente face à reiteração de comportamentos integradores do crime e lesivos dos bens jurídicos protegidos. Ou seja, a figura do crime de trato sucessivo foi transposta para os crimes sexuais precisamente para abarcar situações como a dos autos. Por isso, entende-se que não está em causa uma questão de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, mas antes uma questão de subsunção, de enquadramento jurídico e conceptual da conduta do arguido.
Ora, a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo, de forma reiterada, a afastar a aplicação do conceito de crime de trato sucessivo aos crimes de natureza sexual[3] por considerar que, ainda que esteja em causa a mesma vítima, à multiplicidade de actos ofensivos desta, correspondem autónomas resoluções criminosas, a serem subsumíveis a uma pluralidade de crimes, individualmente considerados para efeitos de punição.
“Resulta do n.º 3 do artigo 30º, citado, que, estando em causa bens eminentemente pessoais (tutelados pela Lei Fundamental, seja no artigo 1º, seja no artigo 25.º n.º 1, e enquanto tal inscritos no Título I da Parte Especial do CP, como é o caso dos crimes contra a autodeterminação sexual, máxime dos crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º do CP), o legislador foi insensível àquela menor exigibilidade, prevenindo a beneficiação da conduta reiterada do agente com um tratamento de unidade delitiva. (…) Por isso se figura como inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando-se um dolo inicial” (Acórdão do STJ de 1/10/2020, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima).
“As regras contidas no art. 79.º do CP não podem, sob pena de violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade características do Direito Penal e dos postulados de clareza e segurança jurídica que lhes estão subjacentes, ser as mesmas, tão aptas e em igual medida, para punir o crime continuado que traduz uma pluralidade de infracções, interligadas por um tipo substancialmente atenuado de culpa e o crime de trato sucessivo, que assenta numa pluralidade de infracções, unificadas por um tipo agravado de culpa.” (Cristina Almeida e Sousa in A inconstitucionalidade da jurisprudência do “trato sucessivo” nos crimes sexuais – Revista Julgar online, Outubro de 2019.)
O Código Penal prevê apenas a figura do crime continuado, excluindo, de forma expressa[4], a sua aplicação aos crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (artigo 30º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
O crime de trato sucessivo não tem consagração legal e, como referido supra, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afastado a sua aplicação aos crimes sexuais.
Existindo incerteza quanto ao número de crimes cometidos, importa identificar, se possível, os actos lesivos, ainda que por referência a outros elementos e/ou períodos temporais como sejam, “todos os dias”, “pelo menos uma vez por semana”, e punir apenas aquelesinequivocamente identificados. E, em casos, como o dos autos, em que os actos sexuais de relevo ocorreram “em número de vezes que não foi possível concretamente apurar” ter-se-á de punir o agente por um único crime. Neste sentido, veja-se o que refere a Senhora Conselheira
Helena Moniz “Porém se da matéria de facto provada resultar, por exemplo, que a violação ou o abuso/prática sexual de relevo ocorreu por diversas vezes e em número concretamente não apurado então deverá o agente, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser apenas punido por um crime.” (Crime de trato sucessivo, Revista Julgar, Abril de 2018).
Ou seja, seguindo a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça e a doutrina referida supra - e com a qual se concorda -, entende-se de afastar a aplicação ao caso dos autos do conceito de crime de trato sucessivo.
Nestes termos e neste particular, embora por motivos distintos, é de proceder a pretensão do recorrente, subsumindo-se a conduta do arguido à prática do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, sem apelo ao conceito de trato sucessivo.
Na motivação do recurso defendeu o arguido, também no respeita ao menor GC_____ , dever ser condenado apenas pelo crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido no n.º 1 do artigo 171º do Código Penal. No entanto, não expôs as razões desta sua pretensão e, sobretudo, não as transpôs para as conclusões apresentadas[5]. De todo o modo, é inequívoco que a matéria de facto provada - e da qual, para além dos elementos subjectivos, consta, entre o mais, que o arguido introduziu os dedos no ânus do menor -, é subsumível ao n.º 2 do artigo 171º do Código Penal[6] que estabelece:
“2 – Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”
Importa ainda apreciar da adequação da pena de cinco anos imposta ao arguido pelo crime de abuso sexual de crianças na pessoa do menor GC_____ , bem como da pena única resultante do cúmulo jurídico desta com a pena de um ano de prisão imposta pela prática do crime de abuso sexual de criança na pessoa de S_____ .
Em sede de determinação da pena o tribunal a quo considerou, entre o mais, o seguinte:
- As elevadas exigências de prevenção geral, tratando-se de “crimes de enorme gravidade, causadores de enormíssimo alarme social, repúdio e até mesmo repulsa por parte da comunidade, ainda para mais numa localidade situada nesta ilha, em que, por virtude das suas reduzidas dimensões, todos se conhecem e comentam.”
- O elevado grau de ilicitude e da culpa, “(…) tendo em conta a consciência do arguido no que toca aos deveres que lhe assistiam perante ambos os menores com quem mantinha relações de grande proximidade por mor da intensidade daquelas relações com os familiares dos menores, que alias foram determinantes para lhes ganhar a confiança, nomeadamente pretendendo manter com elas a cumplicidade que um segredo (…) o dolo direto e intenso do arguido que se aproveitou não só da inocência dos menores mas também da confiança que em si depositavam os familiares destes, o afastamento do arguido apenas motivado por razões que transcenderam a sua vontade determinação, a gravidade das consequências das suas condutas para os menores que com resultará imediatamente compreensível, são de contabilizar mas que já se divisam e adivinham, como resulta da matéria assente e da sua fundamentação, de elevada gravidade (especialmente no que se refere ao desenvolvimento da vertente sexual da personalidade do menor GC_____ ). - A falta de arrependimento e “a falta de interiorização do desvalor da sua conduta, sendo certo que a explicação que no final da audiência entendeu fornecer ao tribunal, nada explica, não contribui por qualquer forma para a descoberta da verdade, nem demonstra qualquer afloramento de comportamento tendente a minorar os prejuízos que causou e cujas ondas de propagação, certamente, se irão repercutir por muitos anos na esfera do desenvolvimento da personalidade de ambos os menores, quer consigo próprios, quer na sua relação com os outros. O livre desenvolvimento da personalidade dos menores ficou seriamente comprometido, principalmente, no caso do menor GC_____ .”
- A inexistência de antecedentes criminais (…) e a sua boa inserção social eprofissional “ (…) e mesmo a esse título há que questionar se um individuo que pratica actos como os que aqui estão em causa, sob pessoas que pela sua idade, não se podem defender física ou psicologicamente, os leva a efeito, aproveitando-se das especiais relações de confiança quer com as crianças quer com os familiares delas, de forma dissimulada precavendo-se contra a descoberta através da cumplicidade do segredo e da localização dos locais onde perpetra os seus actos e que se nega a assumir perante a comunidade a prática dos mesmos, questiono, dizia, se se deve considerar tratar-se de um cidadão bem integrado socialmente, por mais que sempre tenha sido tomado nessa conta na comunidade. Por tudo isto, entendemos que também as razões de prevenção especial são muito significativas e muito elevadas.”
Tudo ponderado entendeu o tribunal a quo “necessária, justa, adequada e proporcional a aplicação:
- de uma pena de 1 ano de prisão relativamente ao crime de abuso sexual de menor relativamente à menor S____ ;
- de uma pena de 5 anos de prisão relativamente ao crime de trato sucessivo de abuso sexual relativo ao menor GC_____ .”
Concorda-se em toda a linha com as considerações efectuadas na sentença recorrida quanto às elevadas exigências de prevenção geral e especial, bem como quanto ao elevado grau de culpa do arguido e ao elevado grau de ilicitude dos factos, em particular, no caso do menor GC_____ , com apenas 6 anos de idade e relativamente ao qual resultam claras as influências nefastas do comportamento do arguido para o desenvolvimento da sua personalidade, sendo que se considera que a pena imposta de 5 anos de prisão é adequada, tanto mais que se situa ainda próxima do limite mínimo da pena.
Quanto à pena única resultante do cúmulo jurídico (artigo 77º do Código Penal) foi já esta fixada no seu limite mínimo.
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Quanto à suspensão da execução da pena (artigo 50º do Código de Processo Penal) também o tribunal a quo explicitou, em moldes que merecem a total concordância deste tribunal, as razões pelas quais entendeu necessário o cumprimento da pena imposta.
“Quanto ao pressuposto material do instituto da suspensão, nas palavras de Figueiredo Dias (...) o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (...) Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias de facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta - bastarão para afastar o delinquente da criminalidade. (ob. cit., pág. 343).
Pelo que, subjacente à decisão de suspensão de execução de pena de prisão, está um juízo de prognose favorável sobre o comportamento do arguido, o que não conseguimos alcançar neste caso, não obstante a ausência de antecedentes criminais e a sua boa inserção social, familiar e profissional (sendo de colocar em crise que dando por provados os factos agora em causa se possa concluir que o mesmo se encontra bem inserido socialmente...). Na verdade, face a todo o comportamento do arguido após ter sido descoberta a sua conduta ilícita até ao momento, e dando por reproduzidos os argumentos que foram por nós supra expendidos, não se vê que a simples censura do facto e a ameaça sejam bastantes para afastar o arguido da prática de novos crimes e principalmente não se alcança que seja adequada a satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção dos crimes que cometeu.
O arguido notoriamente não interiorizou de forma suficiente o desvalor das condutas que praticou, razão pela qual não é possível construir um juízo de prognose favorável ao seu futuro comportamento, no sentido de se entender a suspensão como ideal para serem atingidos os fins que se pretendem alcançar com a aplicação de penas pelos crimes cometidos pelo arguido e que ora nos ocupam.
Assim, decide-se pela não suspensão da execução da pena de prisão de 5 anos.”
Assim, quanto a esta questão é também de improceder a pretensão do recorrente.
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V. Decisão
Em face do exposto, decidem os Juízes da 3.ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Em julgar parcialmente procedente o recurso quanto aos factos de que foi vítima o menor GC_____ e, em consequência, condenar o arguido LM_____ pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal sem referência ao crime de trato sucessivo.
No mais julgam improcedente o recurso e mantêm a decisão recorrida que, em cúmulo jurídico, condenou o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão efectiva.
Notifique.
(Acórdão elaborado pela relatora em suporte informático e integralmente revisto pela signatária e pelo Senhor Juiz Desembargador Adjunto – artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Lisboa, 8 de Setembro de 2021.
Rosa Vasconcelos
Ricardo Cardoso
[1] “Integram o “crime de trato sucessivo”, segundo a jurisprudência, aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva” (pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções) e uma conexão temporal entre os actos realizados.” Crime de Trato Sucessivo (?) Helena Moniz, Revista Julgar, Abril de 2018. [2] “I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.” Acórdão do STJ de 29-11-2012. [3] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 12/5/2021, relatado pelo Conselheiro Sénio Alves, o acórdão de 1/10/2021, relatado pelo Conselheiro Clemente Lima e o acórdão de 27/11/2019, relatado pelo Conselheiro Augusto Matos. [4] Desde a entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro. [5] Extraindo-se essa pretensão da pena concreta que, em cúmulo jurídico, entende dever ser aplicada: dois anos de prisão, suspensa na sua execução. [6] E não foi a mesma posta em causa no recurso apresentado.