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CONTRATO DE LOCAÇÃO OPERACIONAL
LEIS COVID 19
REGIME DE MORATÓRIAS
BENEFICIÁRIOS
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I– Um contrato mediante o qual uma das partes, como locadora, proporciona à outra, como locatária, durante um determinado período, o gozo de um equipamento consistente numa máquina fresadora de rastos, mediante remuneração e, bem assim, acessoriamente, o serviço de manutenção, a ser prestado por uma entidade terceira, sem opção de compra a final, é usualmente designado como um contrato de locação operacional, a que se aplicam, em primeiro lugar, as cláusulas acordadas entre as partes, as normas da locação previstas no artigo 1022º e seguintes do Código Civil, com as necessárias adaptações e as regras gerais de Direito Civil.
II– O contrato referido em I, celebrado por uma entidade que não pode ser classificada como instituição de crédito, sociedade financeira, de investimento ou de locação financeira, está fora do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 27 de Março.
III– A situação pandémica que se vive a nível mundial desde Março de 2020 constitui uma alteração das condições normais da vivência da população mundial, com manifestos reflexos na vida diária dos cidadãos e das empresas, constituindo, em termos objectivos, uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar (as circunstâncias objectivas comuns a ambas as partes respeitam, genericamente, às condições de mercado - oferta e procura - vividas antes da pandemia).
IV– Apesar da existência de uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, tal não deixa de implicar uma avaliação casuística da situação em análise, com aferição do preenchimento dos demais pressupostos do funcionamento do artigo 437º do Código Civil, pois que apenas nesse circunstancialismo a parte lesada terá direito à resolução ou à modificação do contrato segundo juízos de equidade, desde que não se encontre em mora no momento em que a alteração das circunstâncias ocorreu.
V– Resolvido o contrato de locação operacional por iniciativa da locadora, com fundamento em incumprimento definitivo por parte da locatária, tem aquela direito à restituição do bem locado.
VI– Não procedendo a locatária à atempada restituição do bem, pretendendo a locadora alcançar a sua entrega imediata, terá de recorrer ao procedimento cautelar comum, previsto nos artigos 362º e seguintes do Código de Processo Civil, o que pressupõe, para além da demonstração da probabilidade séria da existência do direito carecido de protecção, a prova do fundado receio de que esse direito sofra lesão grave ou de difícil reparação (periculum in mora).
VII– O direito a garantir mediante a instauração de um procedimento cautelar com a finalidade referida em VI é o direito à restituição do bem locado (em última instância, o direito de propriedade da locadora), devendo ser antecipada a restituição se se demonstrar que existe um fundado receio de grave depreciação do bem, ainda que apenas em virtude da potencial utilização que a locatária dele continue a fazer, sem qualquer controlo por parte da locadora, cujos direitos de uso e fruição são colocados em crise.
Texto Integral
Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I–RELATÓRIO
A, pessoa colectiva n.º 9... ... ..., com local de representação na Avª. ..., Nº... – ...º ....º - ....-... L... apresentou, em 8 de Março de 2021, requerimento inicial de procedimento cautelar não especificado contra B, pessoa colectiva 5... ... ..., com sede no Largo ... ... ..., ... – .... – ...- L... requerendo que, sem prévia audição da requerida e com inversão do contencioso, seja determinada:
a)-A imediata restituição dos equipamentos aludidos no requerimento inicial, à sua legítima proprietária, ora requerente, em bom estado de conservação; b)-A inversão do contencioso, nos termos do art.º 369º, n.º 2 do Código de Processo Civil[1], com dispensa da propositura da acção principal tendo em conta que a prova permite que se forme a convicção segura sobre a existência do direito que visa ser acautelado com a providência e que tem a virtualidade de compor em definitivo o litígio.
Alega, para tanto, em síntese, o seguinte:
– No exercício da sua actividade, a requerente celebrou com a requerida, a solicitação desta, em 31 de Maio de 2017, um contrato de aluguer de bens móveis – Locação Operacional – com o número 4..., em que figura como locadora e a segunda como locatária, tendo por objecto uma máquina fresadora de rastos, modelo W 130 CFI, marca Wirtgen, ano 2017, com o número de série 1......., que foi adquirida pela requerente e entregue à requerida, que a utiliza;
– O contrato teria a duração de 60 meses, sendo pagas rendas mensais, que a requerida deixou de pagar, de Janeiro a Março de 2020, Junho e de Agosto a Outubro de 2020, nem liquidou mais nenhum dos restantes alugueres, no montante global de 36 264,63 €, não obstante ter sido interpelada para tal;
– A requerente procedeu à resolução do contrato, nos termos da cláusula 13ª das Condições Gerais do Contrato de Aluguer de Bens Móveis 4..., e solicitou a restituição do equipamento e pagamento do valor em dívida e o valor correspondente à indemnização equivalente a 20% do “capital financeiro em dívida”, no montante de 16 989,65 €, juros de mora e demais despesas e encargos emergentes do contrato, o que ainda não sucedeu;
– A requerida continua a utilizar o equipamento contra a vontade da requerente, o que a impede de o alienar ou voltar a arrendar, causando-lhe graves prejuízos, de difícil reparação, por se tratar de bem que se deteriora com o uso, perdendo rapidamente o seu valor comercial.
Em 10 de Março de 2021 foi proferido despacho que indeferiu o pedido de não audiência prévia da requerida e ordenou a sua citação para deduzir oposição (cf. Ref. Elect. 403561958).
Em 26 de Abril de 2021 a requerida deduziu oposição alegando, muito em síntese, o seguinte(cf. Ref. Elect. 29058464):
–A requerente não podia ter comunicado a resolução do contrato ignorando o requerimento da requerida para concessão de moratórias por força do estado de emergência, pelo que não ocorreu o incumprimento definitivo imputável a esta;
– Face às circunstâncias especiais em que se vivia impunha-se uma modificação negociada do contrato em conformidade com as novas circunstâncias, em nome da tutela da confiança e das expectativas das partes e com vista ao restabelecimento do equilíbrio contratual;
–A alteração das circunstâncias provocada pelo SARS-CoV-2 impedia a resolução do contrato por iniciativa da requerente;
–Verificaram-se factos não previsíveis originando uma situação de força maior que determinada a possibilidade de a prestação contratual ser efectuada num prazo mais alargado;
– O agravamento do sacrifício económico originalmente imposto pelo contrato a um dos contratantes, diante do cenário de difusão da COVID-19, leva a um grave desequilíbrio do sinalagma originário, dando lugar a uma impossibilidade jurídica superveniente do objecto do contrato;
–A requerente não demonstra que o prejuízo é consideravelmente superior ao não decretamento da providência, nem há qualquer “periculum in mora”, não estando comprovados os pressupostos da providência, pelo que esta não deve ser decretada.
Em 13 de Maio de 2021 foi proferido despacho em que se convidou a requerida a concretizar a factualidade alegada na oposição para fundamentar a invocada alteração das circunstâncias e os pedidos de moratórias a que aludiu (cf. Ref. Elect. 405420632).
Em 4 de Junho de 2021 a requerida apresentou requerimento de aperfeiçoamento da sua oposição onde alegou que em 5 de Março de 2020 remeteu à requerente um pedido de acordo para pagamento de dívida, que por esta foi aceite, tendo sido efectuados os pagamentos então acordados; em 1 de Julho de 2020, questionou a requerente sobre a possibilidade de uma moratória de 90 dias no pagamento das rendas em atraso, que por esta foi recusada em 2 de Julho de 2020, referindo que o prazo para a requerer era o dia 30 de Junho de 2020, para além de ser requisito legal a não existência de dívidas em mora há mais de 90 dias a 18 de Março de 2020; solicitou novas moratórias, também recusadas e em 24 de Novembro de 2020 a requerente comunicou a resolução do contrato de aluguer apesar de ter criado na requerida a expectativa legítima de aceitar a negociação do contrato, não tendo sequer cumprido os formalismos com vista à resolução; face à crise da COVID-19, que tem tido um grande impacto na pontual execução dos contratos, ocorreu uma alteração das circunstâncias, que impõe um dever de (re)negociação e de cooperação, em nome da tutela da confiança e das expectativas das partes e com vista ao restabelecimento do equilíbrio contratual (cf. Ref. Elect. 29460452).
Por requerimento de 17 de Junho de 2021 a requerente pronunciou-se sobre o conteúdo da oposição dizendo estar em causa o contrato de Aluguer de Bens Móveis n.º 4... – Aluguer Operacional, que não constitui operação de crédito e não é abrangido pelo regime previsto no DL 10-J/2020 e, ainda que assim não fosse, não foi respeitado o prazo legal nem estavam reunidos os requisitos para a concessão da moratória (cf. Ref. Elect. 29569169).
Realizada a audiência final, em 22 de Junho de 2021 foi proferida decisão que julgou procedente o procedimento cautelar, nos seguintes termos(cf. Ref. Elect. 406640964):
“Pelo exposto, tudo visto e ponderado, decide-se julgar totalmente procedente a presente providência cautelar e, consequentemente, determinar a imediata apreensão e a subsequente entrega da máquina fresadora de rastos, modelo W 130 CFI, marca WIRTGEN, do ano 2017, com o n.º série 1....... à requerente.
Nos termos do disposto no art.º 369.º n.º 1 CPC, defere-se a requerida inversão do contencioso, dispensando-se a requerente do ónus de propositura da ação principal.
Valor: € 58.744,74”
É desta decisão que a requerida interpõe o presente recurso, cujas alegações conclui do seguinte modo: 1.-Recorrente e Recorrida celebraram um contrato de aluguer de bens móveis. 2.-A Recorrente cumpriu sempre com as obrigações que lhe eram exigidas contratual e legalmente. 3.-No mês de Janeiro de 2020 já apresentava uma situação económica, pelo que com o surgimento da pandemia por SARS-COV-2, tal facto veio a piorar substancialmente, deixando de se mostrar possível o pagamento das rendas acordadas com a Recorrida. 4.-A pandemia veio causar prejuízos incalculáveis para a Recorrente, tendo a procura pelo serviço da mesma diminuído manifestamente. 5.-Por esse motivo, a Recorrente fez um acordo de pagamento com a Recorrida, no dia 05 de Março de 2020, que cumpriu até deixar de ser possível, por motivos a si alheios. 6.-No dia 01 de Julho de 2020, a Recorrente enviou um e-mail à Recorrida a questionar qual o valor que se encontra por liquidar relativamente aos contratos celebrados, e um outro e-mail a questionar a possibilidade de uma moratória de 90 dias no pagamento das rendas em atraso. 7.-Sem mais, no dia 02 de Julho de 2020, a Recorrida recusa a moratória porquanto o prazo para a sua requisição era o dia 30 de Junho de 2020. 8.-Invocou ainda que um dos requisitos legais era a não existência de dívidas em mora há mais de 90 dias a 18 de Março de 2020, não sendo possível aprovar a moratória pois este requisito não era cumprido pela Recorrente. 9.-A 29 de Setembro de 2020, a Recorrente volta a solicitar uma moratória à Recorrida, a qual esta última recusou a 01 de Outubro de 2020, vindo ainda informar que o contrato tem 6 prestações vencidas e que tinham sido enviadas cartas de interpelação no dia 18/09/2020, pelo que no caso de a Recorrente não regularizar os valores vencidos, seriam enviadas cartas de resolução dos contratos. 10.-Após tal informação, a Recorrente voltou a requerer uma moratória de 90 dias, no dia 26 de Outubro de 2020. 11.-No dia 24 de Novembro de 2020, a Recorrida envia duas cartas, uma para a resolução do contrato de aluguer de bens móveis n.º 4..., e outra para a resolução do contrato de locação financeira n.º 5.... 12.-Sempre se dirá que a Recorrente cumpriu com as suas obrigações até lhe ser possível, tendo agido sempre de boa-fé perante a Recorrida, e tendo sempre mantido a transparência que se lhe exige nas relações contratuais. 13.-Quando deixou de ser possível o cumprimento das suas obrigações, mostrou-se sempre disponível para recorrer aos meios extraordinários previstos na legislação, para não ficar em falta com o que de si era esperado. 14.-Já a Recorrida, recusou as moratórias sem qualquer justificação, após criar na Recorrente uma expectativa legítima de que iria aceitar a negociação do contrato. 15.-Afirma que há lugar à resolução do contrato, sem qualquer fundamentação para tal, o que não se pode aceitar. 16.-A Recorrida não concedeu um prazo razoável para a Recorrente cumprir com as suas obrigações, tal como lhe é exigido por lei. 17.-Dos factos dados como provados ficou demonstrado o supra alegado. 18.-Mesmo pelos depoimentos que a douta Sentença considerou, designadamente o depoimento das testemunhas Nuno .... e Jaqueline .... 19.-Que a Recorrente sempre tentou e negociou com a Recorrida, na medida das suas possibilidades pagou conforme o acordado. 20.-Foi efetivamente pela crise, que todo o país e mundo, bem como todas as atividades, quer suspensas ou não, atravessaram e ainda hoje estão a atravessar e ainda sem grandes sinais de recuperação, que a Recorrente ficou com dificuldades em cumprir o acordo. 21.-Não se pode negar que houve efectivamente uma alteração das circunstâncias contratuais. 22.-Não se pode aceitar, salvo melhor opinião, que a douta Sentença refira que não se concretizou em sede de julgamento o impacto da pandemia sobre a situação financeira. Impossível é o contrário, dar como provado que a Recorrente ou qualquer outra empresa não tenha sofrido financeiramente com a pandemia. 23.-É do conhecimento e aceite por todos que a pandemia abalou fortemente a economia nacional e mundial em todos os sectores e áreas. 24.-Não se entende como não foi isso tido em causa nos presentes autos. Pelo que não se aceita quando a douta sentença não dá como provados esses factos, que são do conhecimento e à vista de todos. 25.-Já a Recorrida, recusou as moratórias sem qualquer justificação, após criar na Recorrente uma expectativa legítima de que iria aceitar a negociação do contrato. 26.-Mais se diz que a razoabilidade, dadas as circunstâncias em que a economia nacional se encontra é manifestamente distinta da que se verificaria sob circunstâncias normais. 27.-Existiu uma clara alteração anormal das circunstâncias, alteração esta que obrigaria à modificação negociada do contrato, e não à sua resolução. 28.-A Recorrida resolveu unilateralmente o contrato, opção que lhe estava vedada. 29.-A Recorrida criou a expectativa na esfera jurídica da Recorrente de que iria negociar um acordo de pagamentos e depois da Recorrente efetuar os pagamentos no âmbito do acordo, recusou a Recorrida as moratórias e não aceitou a regularização dos contratos, com o objetivo de reter para si um benefício ilegítimo. 30.-Face à existência do vírus COVID-19, é exigido às partes que pautem a sua atuação por um juízo de equidade na interpretação das regras contratuais, ajustando-as à realidade económico financeira do país. 31.-É-lhes vedado que optem de imediato pela resolução do contrato, à luz do princípio da boa-fé, sendo imposto que se mantenha a relação contratual, modificando-a porém em conformidade com as novas circunstâncias. 32.-Impõe-se um dever de (re)negociação e de cooperação, em nome da tutela de confiança e das expectativas das partes, com vista ao restabelecimento do equilíbrio contratual. 33.-É legítima a invocação da Recorrente quanto à alteração anormal das circunstâncias. 34.-Efetivamente teve prejuízos incalculáveis, ao ter de suspender várias obras que tinha em curso, por ter tido vários trabalhadores em quarentena. 35.-Privilegiou a saúde pública em prol da sua atividade profissional, e está a ser prejudicado por isso mesmo. 36.-A Recorrente atuou num período razoável de tempo, por forma a não defraudar as legítimas expectativas das partes e garantir a mitigação de eventuais prejuízos causados em virtude das circunstâncias excecionais. 37.-A alteração das circunstâncias foi relevante e respeita a circunstâncias em que as partes tinham fundado a decisão de contratar. 38.-A pandemia, como uma situação de força maior, deriva num conjunto de situações que, a verificarem-se, impedem o cumprimento temporário ou definitivo das obrigações contratuais e, neste caso, na verificação desses acontecimentos, não se considera existir um incumprimento contratual e não serão aplicadas as penalizações contratuais pelo atraso na prestação ou pelo seu incumprimento. 39.-Num cenário de pandemia, deve sempre ter-se em conta os efeitos de redistribuição do risco inicial do contrato. 40.-A Recorrente encontra-se sujeita a factos não previsíveis e que fogem ao seu controlo, não podendo ter feito nada para evitar a sua verificação. 41.-Tendo em conta o atual estado de emergência nacional e, bem assim, as medidas impostas pelo Governo Português e pelas autoridades de saúde competentes, existe uma alteração anormal das circunstâncias nos termos das quais as partes fundaram a sua decisão de contratar e gizaram os específicos termos e condições do contrato a que se encontram vinculadas, e desta forma a obrigação de renegociar os termos e condições do contrato naquilo que seja estritamente necessário para fazer face às circunstâncias atuais em que o contrato deva ser cumprido. 42.-Não assiste razão à Recorrida, nem de facto nem de direito, ficando prejudicada a própria ação por não se mostrarem verificados os requisitos essenciais. 43.-Não estão verificados os requisitos processuais para a verificação do decretamento da providência cautelar. 44.-Tão pouco para a inversão do contencioso que o Tribunal a quo deferiu. 45.-A Recorrida não logrou provar que o prejuízo é consideravelmente superior ao não decretamento. 46.-Não se encontra qualificado nem quantificado qualquer dano, não existiu prova quer documental quer testemunhal. 47.-As testemunhas nada referiram quanto aos danos. As mesmas não souberam concretizar, especificar, qualificar ou quantificar qualquer dano. 48.-Mais, as testemunhas supra referidas nem souberam ou conseguiram explicar como é auferido o custo, o desgaste e o valor das máquinas. 49.-Não pode a douta Sentença dar como provado a existência de qualquer dano ou perigo. 50.-O Tribunal a quo deu como provado que a máquina continua a ser utilizada pela ora Recorrente, e que esta se deteriora com o uso, perdendo rapidamente o seu valor comercial. 51.-Ora, tais factos não se podem aceitar. 52.-Quer porque não são verdade, quer porque não foram cabalmente provados. 53.-Nenhuma prova foi feita no sentido de ser possível afirmar que a Recorrente mantém o uso do bem móvel em apreço. 54.-Assim sendo, não há como provar o eventual desgaste da máquina, tornando-se igualmente infrutífera a afirmação de que existe perigo de perecimento do bem. 55.-Não estando a viatura em uso, como não está, e não existindo qualquer perigo iminente para a ora Recorrida de perecimento da máquina, não pode haver lugar ao presente procedimento cautelar. 56.-Nesse sentido, referiu o Tribunal que basta um juízo de verosimilhança, i.e., a existência de uma “probabilidade séria” para que se conceda a tutela cautelar. 57.-Não ficou provada a referida “probabilidade séria” in casu. 58.-O que não se pode aceitar. 59.-Tão pouco se pode aceitar a inversão do contencioso deferido, porquanto não se verificando os pressupostos para a decretação da providência cautelar, como não se verificam, não pode este subsistir. 60.-A Recorrida não concretiza o seu direito, não quantifica os seus alegados prejuízos... Faz apenas alusões vagas e imprecisas do que defende ser o seu direito.
61.- Tanto é que o não decretamento da providência requerida não causa à Recorrida qualquer dano. 62.-Não existe qualquer suporte, fundamento ou factualidade, na pretensão da Recorrida que sustente o decretamento do peticionado. 63.-Não há qualquer especial urgência ou tutela de direitos que não possam ser exercidos em tempo útil com recurso a um procedimento comum, nomeadamente por via da ação declarativa. 64.-Não se demonstra qualquer lesão iminente ou irreversível violação de direitos, danos ou qualquer situação que não possa ser tutelada por outro meio. 65.-Não há qualquer periculum in mora minimamente qualificado e/ou alegado pela Recorrida, ou qualquer facto em que se consiga inferir de uma qualquer irreparabilidade absoluta que justifique o decretamento do peticionado. 66.-Falta, salvo melhor opinião, a causa de pedir com vista ao procedimento cautelar. 67.-A presente providência cautelar requerida pretende-se como meramente conservatória de uma determinada situação fáctica, antecipatória do pedido formulado na ação principal que se retira não existir uma probabilidade séria da existência do direito da Recorrida. 68.-Os procedimentos cautelares representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária – summaria cognitio – da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito – fumus boni juris – e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar. 69.-A providência cautelar não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização direta e imediata ao direito substancial sob pena de se esvaziar a ação principal e deve a Recorrida carrear factos que sejam os suficientes para assegurar a eficácia de uma medida subsequente. 70.-Donde, impossibilitada essa eficácia, não pode ser determinada a providência cautelar! 71.-Ao invés do que a Recorrida se arroga, no caso sub judice, não se mostra suficiente comprovada a probabilidade séria da existência do direito a tutelar e a provável existência de lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito que com a providência se visa antecipar. 72.-Faltando tais pressupostos, não pode ser decretada a referida providência, sendo insustentável qualquer pretensão cautelar. 73.-O balanço dos interesses em foro, atento um juízo de proporcionalidade, faz derivar o indeferimento da providência cautelar. 74.-A Recorrida não discrimina nem concretiza o seu direito, não quantifica os seus prejuízos, fazendo apenas alusões vagas e imprecisas do que defende ser o seu direito.
75.-Não estão provados os requisitos legais mínimos, nomeadamente por:
a.- Não se estar perante um ato ilegal;
b.- A Recorrente não ter qualquer prejuízo de difícil reparação;
c.- Ponderados os interesses em jogo, os Recorrentes sofrerão danos irreparáveis.
76.–Os interesses em jogo podem ser resolvidos com recurso a uma ação comum, uma vez que inexiste qualquer urgência na decisão. 77.–Não assiste à Recorrida qualquer direito ou interesse concreto na decisão, que não possa ser ressarcido de outra forma.
Termina pugnando pela procedência do recurso e revogação da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II–OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da requerida/recorrente há que apreciar as seguintes questões: a)-Da impugnação da matéria de facto/rejeição parcial; b)-Da aplicabilidade da moratória prevista no DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março; c)-Da verificação de uma situação de alteração anormal das circunstâncias determinante da necessidade de modificação do contrato; d)-Dos pressupostos para a procedência da providência requerida.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III–FUNDAMENTAÇÃO
3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO O Tribunal recorrido considerou como indiciariamente provados os seguintes factos: 1)–A requerente é uma sociedade anónima, constituída por escritura pública, cujo objeto se traduz na compra, venda e arrendamento de bens móveis e a intermediação comercial nas ditas transações. A prestação de serviços de administração, manutenção, conservação, reparação e reposição dos bens arrendados, quer diretamente pela sociedade quer através de terceiros pessoa singulares ou coletivas. 2)–No exercício dessa atividade, a requerente celebrou com a requerida, a solicitação desta, em 31 de maio de 2017, o contrato junto aos autos como documento n.º 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, intitulado «CONTRATO DE ALUGUER DE BENS MÓVEIS NÚMERO 4903». 3)–Por força do referido contrato, no qual a requerente interveio na qualidade de locadora e a requerida na qualidade de locatária, a requerente cedeu à requerida o gozo da máquina fresadora de rastos, modelo W 130 CFI, marca WIRTGEN, do ano 2017, com o n.º série 1........ 4)–O equipamento locado foi livremente escolhido pela requerida e foi adquirido pela requerente, sendo de sua exclusiva propriedade.
5)–Requerente e requerida acordaram as seguintes condições:
a)- Duração do contrato: 60 (sessenta) meses;
b)- Periodicidade das rendas: mensais, com vencimento no dia 5 de cada mês;
c)- Regime: Antecipado
d)-Valor do 1.º aluguer: € 32.000,00 (trinta e dois mil euros), acrescido de IVA à taxa legal;
e)-Valor de cada um dos alugueres seguintes e prazo de pagamento: € 4.470,96 (quatro mil quatrocentos e setenta euros e noventa e seis cêntimos), todos acrescidos de IVA à taxa legal).
6)–A máquina foi entregue à requerida em cumprimento do acordo, tendo esta passado a deter a mesma e a utilizá-la no seu próprio interesse, a partir da data de início do contrato. 7)–A requerida não liquidou à requerente os alugueres vencidos, correspondentes ao mês de Janeiro a Março de 2020, Junho e de Agosto a Outubro de 2020, nem liquidou mais nenhum dos restantes alugueres, no montante global de 36 264,63 €. 8)–A requerente em 18.09.2020, remeteu comunicação à requerida, que constitui o documento n.º 3, junto com o requerimento inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, peticionando a liquidação dos valores em atraso e respetivos juros, no prazo de 8 dias sob pena de se ver forçada a recorrer aos meios legais ao seu alcance com vista a obter o pagamento do montante em dívida. 9)–Nessa mesma comunicação, a requerente comunicou que o incumprimento definitivo conferir-lhe-ia o direito a promover a resolução do contrato. 10)–Em face da falta de pagamento dos vários alugueres em atraso, a requerente remeteu à requerida, no dia 24 de Novembro de 2020, carta registada com aviso de receção, expedida para o domicílio contratualmente convencionado, na qual comunicava a resolução do contrato, face à situação de incumprimento definitivo do mesmo, nos termos do documento n.º 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. 11)–Na referida carta a requerente solicitou à requerida que restituísse o equipamento locado e que efetuasse o pagamento do valor global em dívida, acrescido dos respetivos juros de mora, e comissões por alugueres vencidos e respectiva indemnização por resolução antecipada, no prazo de 8 dias. 12)–A requerida até à data não procedeu à restituição da máquina objeto do contrato. 13)–A máquina continua a ser utilizada pela requerida, contra a vontade da requerente. 14)–Em virtude da conduta da requerida a requerente vê-se impedida de o alienar ou mesmo de voltar a alugar a máquina. 15)–A máquina deteriora-se com o uso, perdendo rapidamente o seu valor comercial.
16)– No dia 5 Março de 2020 a requerida, por carta registada com aviso de receção, e simultaneamente um e-mail, remeteu à requerente um pedido de acordo para pagamento de dívida, nos seguintes termos:
a)- Com a aceitação do acordo, o pagamento imediato de € 20.000,00;
b)- até ao final do mês de março, o pagamento de € 20.000,00;
c)- nos meses seguintes, até à regularização do plano financeiro, o pagamento das rendas mensais vencidas, acrescidas de € 10.000,00 por conta das referidas rendas.
17)–Nesse mesmo dia 5 de Março de 2020, a requerente aceitou o acordo de pagamento proposto, solicitando o pagamento imediato dos 20 000,00 €, e informando que estas se vencem mensalmente aos dias 05 e 20. 18)–A requerida no dia 5 de Março de 2020 procedeu à liquidação de 20.000,00 € iniciais. 19)–No dia 27 de Março de 2020, a requerida enviou o comprovativo do pagamento dos restantes 20.000,00 €. 20)–No dia 19 de Abril de 2020, a requerente envia e-mail a solicitar o pagamento dos 10 000,00 € e das respetivas rendas (4 706,13 € e 5 500,51 €) relativas a Abril. 21)–No dia 30 de Abril de 2020, a requerida envia o comprovativo dos pagamentos solicitados. 22)–No dia 26 de Maio de 2020 a requerente pede novamente que seja feito o pagamento referente ao mês de Maio. 23)–No dia 29 de Maio de 2020, a requerida envia e-mail com os comprovativos de pagamento de Maio, no valor de 10 000,00 e mais as rendas (4 706,13 € e 5 500,51 €). 24)–A 1 de Julho de 2020, a requerida envia e-mail a questionar qual o valor que se encontra por liquidar relativamente aos contratos celebrados e questiona a requerida sobre a possibilidade de uma moratória de 90 dias no pagamento das rendas em atraso. 25)– No dia 2 de Julho de 2020 a requerente recusou o pedido de moratória alegando que: a) o prazo para a sua requisição era o dia 30 de Junho de 2020; b) a moratória só poderia abranger em qualquer caso; c) os requisitos legais previstos no D.L. n.º 10-J/2020 – não existência de dívidas em mora há mais de 90 dias a 18 de Março de 2020 –, o que não se verificava. 26)–Em 29 de Setembro de 2020, a requerida envia carta à requerente a solicitar uma moratória aderindo à medida de apoio prevista na al. c) do n.º 1 do art. 4.º do D.L. n.º 10-J/2020, de 26 de Março. 27)– A 1 de Outubro de 2020, a requerente recusou a moratória solicitada para o contrato de leasing, informando ainda que o contrato tem 6 prestações vencidas (Janeiro/20 a Março/20, Junho/20, Agosto/20 e Setembro/20) tendo sido enviadas cartas de interpelação no dia 18/09/2020, e que caso não regularizados os valores vencidos, serão enviadas cartas de resolução dos contratos. 28)–Em 26 de Outubro de 2020 a requerida vem requerer novamente uma moratória de 90 dias.
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O Tribunal a quo considerou como não provado o seguinte:
- a requerida teve obras suspensas no concelho de Albufeira e Silves;
- a requerida teve vários trabalhadores em quarentena.
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3.2.– APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1.– Da Impugnação da Matéria de Facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, relator Garcia Calejo, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1[2].
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito, afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escrito – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que é exigido no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228.
António Abrantes Geraldes pugna no sentido de que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a)-Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635º, n.º 4, e 641º, n.º 2, al. d)); b)-Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a)); c)-Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v. g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d)-Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e)-Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” – cf. op. cit., pág. 142.
É conhecida a divergência jurisprudencial quanto a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no normativo legal supra transcrito, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. art.ºs 635º, n.º 2 e 639º, n.º 1 do CPC).
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, relator Tomé Gomes, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 refere-se de modo esclarecedor:
“[…] a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC. Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.”
Neste aresto, nomeadamente em face do seu sumário, parece entender-se que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, não se afigurando que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.
Num outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, relator Lopes do Rego, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, após se proceder a uma análise dos regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, aduz-se;
“[…] é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação []; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.
Ora, se é certo que – relativamente ao cumprimento de tais ónus, primário e secundário – não se permite a formulação de um sistemático convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra num ou noutro âmbito: como é óbvio, a ausência de objecto delimitado e de fundamentação minimamente concludente da impugnação deduzida deverá ditar, de forma inevitável e em termos proporcionais, a liminar rejeição do recurso quanto à matéria de facto.
Pelo contrário, o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa -não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado […].
E o mesmo Tribunal afirmou no acórdão de 31-5-2016, relator Garcia Calejo, processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1:
“[] do art. 640º nº 1 al. b) não resulta que a discriminação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada tenha que ser feita exclusiva e unicamente nas conclusões. Tem sim, essa especificação de ser efectuada nas alegações. Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão”(art. 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorrectamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.”
Para além disto, importa realçar a distinção que se impõe efectuar entre aquilo que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objecto do recurso e o que se encontra já abrangido pelo âmbito da reapreciação da decisão de facto, devidamente impugnada, mediante a reavaliação da prova convocada e tida por relevante.
Ora, como se retira do acima expendido, os requisitos do ónus impugnatório cingem-se à especificação dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios de prova convocados e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, com expressa indicação das passagens dos depoimentos gravados em que se funda o recurso (cf. alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC).
Acresce que, não obstante as exigências inerentes à impugnação da matéria de facto deverem ser apreciadas “à luz de um critério de rigor”, enquanto decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, não se deve interpretá-las a um nível de exigência tal que seja violado o princípio da proporcionalidade, com a consequente denegação de reapreciação da decisão da matéria de facto – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 143.
Além disso, deve considerar-se que “a insuficiência ou a mediocridade da fundamentação probatória aduzida pelo recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.” – cf. acórdãos Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1acima referido e de 8-02-2018, relatora Maria da Graça Trigo, processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1.
Quanto ao ónus de indicação exacta das passagens relevantes dosdepoimentos gravados, este “deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa -, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento […]” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-06-2018, relator Ferreira Pinto, processo n.º 1474/16.3T8CLD.C1.S1, onde se convoca o conteúdo do acórdão desse mesmo Tribunal de 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TVNG.G1.S1.
Analisando as alegações apresentadas pela requerida/apelante, verifica-se que esta não indica, em concreto, quais os pontos de facto da matéria dada como indiciariamente provada e não provada que considera incorrectamente julgados e a decisão que preconiza seja proferida sobre tais questões de facto, já que, após transcrever alguns dos factos apurados, adita outros que nem sequer foram alegados na sua oposição (quando refere que a procura por parte dos seus clientes diminuiu por força da pandemia causada pela SARS-COV-2 –cf. segunda página das alegações, último parágrafo), identifica outros que não foram considerados na decisão sobre a matéria de facto (o envio de mensagem eletróncia de 15 de Dezembro de2020, referido no último parágrafo da página 3) e formula conclusões sem adição de qualquer facto (a referência à criação da legítima expectativa pela requerente de que iria aceitar a negociação do contrato – cf. quatro parágrafo da página sete), tudo sem fazer qualquer alusão concreta à sua pretensão de os dar como provados e menos ainda aos elementos probatórios que os suportariam.
Certo é que a recorrente afirma que não podia a decisão recorrida considerar que não ficou provado o impacto da pandemia sobre a sua situação financeira, desde logo pelos depoimentos das testemunhas relevadas pelo tribunal a quo, Nuno .... e Jaquelina ...... Contudo, não identifica quais os factos concretos que pretenderia ver aditados à matéria de facto provada e que revelariam esse reflexo da pandemia na situação financeira da empresa, como, em concreto, não refere qualquer passagem desses depoimentos para sustentar tal afirmação, referindo apenas, a página 8 das alegações, o seguinte:
“Não se pode aceitar, salvo melhor opinião, que a douta Sentença refira que não se concretizou em sede de julgamento o impacto da pandemia sobre a situação financeira.
Impossível é dar como provado que a Recorrente ou qualquer outra empresa não tenha sofrido financeiramente com a pandemia.
É do conhecimento e aceite por todos que a pandemia abalou fortemente a economia nacional e mundial em todos os sectores e áreas.
Não se entende como não foi isso tido em causa nos presentes autos.”
Ora, a decisão recorrida não verteu qualquer facto, provado ou não provado, sobre o reflexo da pandemia, em geral, no mundo e na vida das empresas e na sua situação financeira, sendo que apenas deu como não provados os factos atinentes à alegada suspensão de obras e existência de trabalhadores em quarentena (únicos dados factuais, a esse propósito, alegados pela requerida na sua oposição aperfeiçoada – cf. artigos 47º e 48º).
Ora, quanto a estes factos a requerida/recorrente não efectua qualquer menção concreta sobre uma eventual pretensão de os dar como provados, assim como não refuta a motivação da decisão sobre a matéria de facto aduzida pelo tribunal recorrido, e que é a seguinte:
“Relativamente aos factos não provados a decisão do Tribunal assentou na insuficiência da prova produzida, pois que, ainda que o juízo requerido seja meramente indiciário, a verdade é que dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência e dos documentos juntos não foi possível extrair a factualidade alegada. Com efeito, a testemunha António ....., encarregado geral da requerida, não só não revelou conhecimento direito dos factos, porquanto este ausente da vida da empresa entre 06.06.2019 e 06.02.2021, como limitou-se a fazer afirmações vagas relativamente a factos que lhe foram alegadamente transmitidos pelos administradores da empresa. Também a testemunha Carlos ....., contabilista certificado da requerida, nada concretizou sobre o impacto da pandemia sobre a situação financeira da requerida.”
Ou seja, constata-se uma total ausência de apreciação crítica seja dos depoimentos, seja dos documentos juntos aos autos que, no entender da recorrente, justificariam dar como provados tais factos (a que, aliás, em nenhum momento expressamente se reporta), no confronto com os demais meios probatórios deles constantes e, bem assim, em conjugação com a tomada de posição que as partes tenham assumido perante estes. Logo, a recorrente não efectuou qualquer ponderação crítica da apreciação da prova por parte da 1ª instância para fundamentar a pretensão de revisão da decisão de facto por parte desta Relação.
Também nas suas conclusões, a recorrente não identifica, em concreto, quais os factos alegados e dados como não provados ou não considerados na decisão recorrida relativamente aos quais pretenderia obter a sua inclusão no elenco factual demonstrado, sendo certo que nas conclusões 22. a 24. renova apenas aquilo que disse no corpo das alegações, ou seja, que não aceita que a sentença não dê como provado “esses factos”, que são do conhecimento de todos, mas sem os concretizar, depreendendo-se apenas que se está a reportar ao impacto da pandemia sobre a sua situação financeira, sem que formule qualquer afirmação factual, limitando-se a verter uma afirmação conclusiva quanto a tal matéria.
Mais do que isso, analisado o conteúdo da sentença e a exposição recursória da recorrente, afere-se que esta, neste âmbito, se insurge, em substância, não contra a factualidade apurada mas sim contra a fundamentação de direito vertida na decisão recorrida, na parte em que ali se afirma que a verificação da pandemia causada pelo SARS-2 Covid 19 não é, por si só, reveladora de uma qualquer alteração das circunstâncias em que a requerida decidiu contratar.
Mais à frente, já a propósito da verificação dos pressupostos para o decretamento da providência requerida, refere a apelante (cf. páginas 15 e 16 das alegações):
“Não demonstra a Recorrida que o prejuízo é consideravelmente superior ao não decretamento.
Não existe dano.
Não se encontra qualificado nem quantificado qualquer dano.
As testemunhas nada referiram quanto aos danos.
As mesmas não souberam concretizar, especificar, qualificar ou quantificar qualquer dano.
Nenhuma prova documental foi igualmente realizada.
Mais, as testemunhas supra referidas nem souberam ou conseguiram explicar como é auferido o custo, o desgaste e o valor das máquinas.
Não pode a douta Sentença dar como provado a existência de qualquer dano ou perigo.
O não decretamento da providência requerida não causa à Recorrida qualquer dano.
O Tribunal a quo deu como provado que a máquina continua a ser utilizada pela ora Recorrente.
Deu ainda como provado que a máquina in casu se deteriora com o uso, perdendo rapidamente o seu valor comercial.
Sempre se dirá que a máquina não se encontra em funcionamento por parte da Recorrente.
Pelo que não existe qualquer perigo de perecimento.
Nenhuma prova foi feita no sentido de ser possível afirmar que a Recorrente mantém o uso do bem móvel em apreço.
Não provou a Recorrida que há uso do veículo, não tendo igualmente provado a existência de eventual desgaste na máquina.
É infrutífera a afirmação de que existe perigo de perecimento do bem.”
De igual modo, em sede de conclusões, a recorrente reproduz apenas o anteriormente aduzido, afirmando que não ficou provado qualquer dano, pois que as testemunhas nada referiram quanto aos danos (cf. pontos 45. a 49.) mas, concretamente, não indica que factos dados como indiciariamente demonstrados deveriam ter sido julgados de modo diverso.
Finalmente, refere a recorrente que, ao contrário do vertido no ponto 13) dos factos provados, a máquina não está em funcionamento por parte daquela, pelo que não existe perigo de perecimento, sustentando que nenhuma prova foi feita de que o uso da máquina se mantém e nas conclusões (pontos 50. a 55.) repete novamente que nenhuma prova foi feita que permita afirmar que a recorrente mantém o uso do bem móvel e sustenta que a viatura não está em uso.
Ainda que a recorrente não tenha concretizado cabalmente os factos relativamente aos quais pretende obter uma modificação do juízo probatório efectuado pela 1ª instância, é possível identificar que tais factos são os que constam dos pontos 13) e 15) do elenco factual indiciariamente demonstrado.
Por outro lado, porque a recorrente sustenta que nenhuma prova permite a sua demonstração, não poderia, como é evidente, indicar os elementos probatórios que sustentariam a sua não demonstração.
Já quanto à afirmação de que a máquina não está uso, trata-se de matéria não alegada pela requerida e apenas introduzida nos autos em sede de alegações de recurso, ou seja, questão nova apenas agora invocada, não alegada oportunamente e atinente a matéria que não resultou apurada, não podendo por isso ser levada em conta, estando vedada a sua apreciação a este Tribunal, nos termos do disposto no art.º 608. n.º 2 do CPC.
Como é sabido, no direito processual português, os recursos ordinários, como é o caso, são de reponderação, isto é, visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal recorrido no momento do seu proferimento, daí que o Tribunal de recurso não possa pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Está, por isso, excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2014, relator Maria Inês Moura, processo n.º 154/12.3TBMGR.C1.
Note-se que não existe relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto despacho de aperfeiçoamento, pelo que, mesmo considerando a necessidade de uma ponderação proporcional das exigências legais quanto ao ónus impugnatório por contraponto à gravidade da falha verificada, no caso concreto, outra solução não se configura que não a da rejeição face ao evidente e clamoroso incumprimento de tal ónus, com excepção do que diz respeito à impugnação dos pontos 13) e 15) dos factos provados – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 770.
Aliás, veja-se neste sentido jurisprudência que decorre, designadamente, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de STJ de 25-10-2018, relator Olindo Geraldes, processo n.º 28698/15.8YIPRT.G1.S2 onde se discorreu do seguinte modo:
“Na verdade, a Recorrente não especificou, nas conclusões, que delimitam o objeto do recurso, os factos incorretamente julgados, sendo aquelas completamente omissas nessa referência. Não basta a especificação dos factos na alegação propriamente dita, é necessário que venha a integrar as conclusões, que definem o objeto do recurso e sintetizam as razões que justificam a alteração da decisão recorrida. No essencial, a Recorrente, depois de aludir ao erro na apreciação das provas produzidas na audiência, limita-se a enumerar os factos que, em seu entender, devem ser considerados assentes na ação, independentemente da sua impugnação, com “todos os demais alegados pelas partes e vertidos nos articulados” a serem tidos como não estando provados.
Mais genérica que esta alegação é difícil encontrar-se, contrastando com a especificação normativamente exigível.
Por outro lado, a especificação dos factos, para a sua inteira compreensão, deve ter tendencialmente por referência a decisão proferida sobre a matéria de facto, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, como é prática reiterada no quotidiano judiciário.
De resto, a referência à decisão sobre a matéria de facto permite ainda ajuizar da ponderação feita sobre todos os factos relevantes para a decisão da causa e alegados nos articulados. Com efeito, caso viesse a ocorrer uma situação negativa, seria então indispensável proceder à ampliação da matéria de facto, com todas as consequências daí resultantes (art. 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC).
Nestas circunstâncias, não pode deixar de se concluir que a Recorrente não cumpriu o ónus de alegação previsto no art. 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC. […]
Por outro lado, decorrente da falta de especificação dos factos (ou pontos de facto) incorretamente julgados, a Recorrente acabou também por não especificar a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É certo que a Recorrente enumerou os factos, por si, considerados provados e referiu, genericamente, os restantes vertidos nos articulados como não estando provados.
Esta alegação, porém, não cumpre o ónus que recaía sobre a Recorrente. Com efeito, deixou incompleta a especificação exigível, nomeadamente quanto aos factos considerados como não estando provados. A especificação referida deve ser completa, para poder satisfazer a finalidade a que foi adstrita.
Neste contexto, é patente que a Recorrente não cumpriu o ónus de alegação consagrado na alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.
Sendo os requisitos do ónus de alegação da impugnação da matéria de facto de verificação cumulativa, conclui-se que a Recorrente incorreu no seu incumprimento, ao omitir as especificações referidas nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. […] Nesta conformidade, verificou-se fundamento legal para a rejeição do recurso de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 1, do CPC.”
E no acórdão do mesmo Tribunal de 6-06-2018, relator Ferreira Pinto, processo n.º 1474/16.3T8CLD.C1.S1:
“A exigência que o legislador consagrou no artigo 607º, n.º 4, do CPC, quanto à decisão da matéria de facto, impondo ao Tribunal o dever de fundamentação e de análise crítica da prova, tem como contraponto a exigência imposta às partes, que pretendam impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, de cumprirem os ónus estabelecidos nos artigos 639º e 640º, ambos do CPC.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 639º, n.º 1, do CPC […] impõe-se ao recorrente, desde logo, o ónus de alegar e de concluir, devendo indicar, nas conclusões, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Exige-se que a alegação contenha conclusões para, através delas, se delimitar o objeto do recurso [artigos 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC], fazendo-se o levantamento das questões controversas, evitando-se, assim, uma impugnação geral, vaga, indefinida e abstrata da decisão.
[…] a este ónus […] acrescem os ónus previstos no artigo 640º, que foram estabelecidos especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto. […]
Ónus tripartido que encontra a sua razão nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais e que procura garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, afastando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão. […]
Em idêntico sentido, decidiu o Acórdão de 22.09.2015, Processo n.º 29/12.6TBFAF.G1.S1: II–Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objeto do recurso, quer no que respeita à respetiva fundamentação. III–Na delimitação do objeto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa da recorrida (artigo 640.º, n.º 1, do CPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda (artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC). IV–A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afetada. […]
No que respeita aos ónus constantes nas alíneas do n.º 1, do artigo 640º, do CPC, ou seja, quando não for cumprido o ónus “primário” ou “fundamental” de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação há lugar à rejeição do recurso, total ou parcial.”
Na situação sub judice, quer na alegação quer nas conclusões do recurso de apelação, a recorrente limitou-se a impugnar genericamente factos dados como provados, sem os identificar cabalmente, insurgindo-se ainda contra afirmações produzidas ao longo da fundamentação da decisão de facto ao invés de concretizar e identificar quais os factos concretos que visava impugnar.
Ora, o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que reputa incorrectamente julgados bem como a decisão a proferir sobre cada um deles, limitando-se a discorrer sobre o teor dos depoimentos prestados com afloramentos de resultados probatórios que entende terem sido logrados na produção da prova.
O ónus imposto ao recorrente na alínea b) do n.º 1 do art.º 640º do CPC não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida e impugnados, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-03-2017, relator Luís Filipe Pires de Sousa, processo n.º 48/16.3T8LSB.L1.
Com tais fundamentos, considerando não estar cumprido o ónus impugnatório cumulativo que resulta do n.º 1 do art. 640º do CPC, rejeita-se a impugnação da matéria de facto, admitindo-a apenas quanto aos factos vertidos nos pontos 13) e 15) da matéria de facto provada.
Pontos 13) e 15) dos factos provados O Tribunal a quo considerou indiciariamente demonstrados os seguintes factos: 13)-A máquina continua a ser utilizada pela requerida, contra a vontade da requerente. 15)-A máquina deteriora-se com o uso, perdendo rapidamente o seu valor comercial.
O Tribunal recorrido fundamentou genericamente a decisão sobre os factos provados, nos seguintes termos:
“A decisão do Tribunal quanto à matéria objeto dos presentes autos resultou da análise crítica e global da prova produzida, ponderadas as regras do ónus da prova vertidas nos art. 342.º e ss do Código Civil e art. 414.º do Código de Processo Civil e da livre apreciação contida no art. 607.º, n.º 5, do mesmo código.
Cumpre, ainda, referir que o juízo a fazer sobre os factos é um juízo meramente indiciário, de verosimilhança e de probabilidade, não sendo assim imposto pelo legislador uma prova segura dos factos invocados pela requerente. Basta assim que exista uma séria probabilidade relativamente à veracidade e realidade dos mesmos.
Em relação aos factos provados, os mesmos colheram a sua demonstração (indiciária) positiva, através da análise dos depoimentos das testemunhas Nuno .... e Jaqueline ...., funcionários da requerente, que em audiência, de forma espontânea, séria e circunstanciada, explicaram ao Tribunal a relação comercial entre as duas empresas, confirmaram o acordo de pagamento em prestações para regularização da dívida, esclareceram as razões porque não foi aceite a moratória e explicaram ainda as razões que terminaram a resolução do contrato, não obstante terem sido relevados sucessivos atrasos anteriormente. A demonstração dos factos assentou ainda na análise dos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados, mormente do contrato de aluguer subscrito pelas partes, as comunicações trocadas com vista ao acordo de regularização e sobre a moratória e nas cartas remetidas pela requerente à requerida para interpelação ao pagamento e resolução do contrato.”
A recorrente entende que não foi feita prova de que a máquina objecto do contrato de locação continua a ser utilizada e, porque não há prova de que está a ser utilizada, também não se pode dar como demonstrado o seu desgaste ou deterioração.
A prova documental, cingida ao documento que corporiza o contrato celebrado entre as partes e seus anexos e troca de correspondência entre aquelas, não constitui qualquer auxílio probatório para a demonstração dos factos vertidos nos pontos 13) e 15) do elenco factual provado, para além da circunstância de corroborarem a entrega do equipamento locado e a sua subsequente utilização pela requerida (conforme consta do ponto 6) e já admitido em sede de articulados – cf. artigo 7º do requerimento inicial e artigo 1º da oposição).
Procedeu-se à audição integral da prova gravada podendo, desde já, afastar-se a utilidade dos depoimentos das testemunhas arroladas pela requerida, ora apelante, António ...., encarregado geral da requerida e Carlos ...., contabilista que para esta exerce funções desde 2014, para sustentar a afirmação de que a máquina fresadora de rastos continua a ser utilizada pela requerida, posto que nenhuma alusão efectuaram a tal utilização.
Já as testemunhas arroladas pela requerente, Nuno ....., director comercial da requerente há cerca de treze anos e Jaqueline ....., funcionária no departamento de gestão de carteiras e collections da requerente desde Abril de 2018, tiveram a virtualidade de explicar a razão da depreciação da máquina pela sua utilização, embora a primeira não tenha revelado conhecimento sobre o âmbito desta utilização, não podendo, contudo, deixar de se admitir, dentro das regras da experiência comum e da normalidade da vida, que uma empresa que celebra um contrato de aluguer relativo a este tipo de equipamento e desenvolve a sua actividade no ramo da construção civil de obras públicas (como ressalta do depoimento das testemunhas e da correspondência trocada onde, a propósito dos atrasos no pagamento, são referidos atrasos no recebimento por parte de câmaras municipais, clientes da requerida) certamente tem dado o uso previsto à máquina, que, conforme está provado e esta não negou, continua na sua disponibilidade (cf. ponto 12) dos factos provados).
Além disso, em sede de oposição, a requerida impugnou na generalidade tudo o alegado pela requerente, com excepção do vertido nos artigos 1º a 8º do requerimento inicial, pelo que está impugnado o facto alegado no artigo 18º, onde se refere que a requerida continua a utilizar a máquina. No entanto, tendo impugnado esse facto, em parte alguma a requerida alegou que a máquina se encontra parada ou não está a ter uso e desde quando se verifica essa situação, pelo que não tomou uma posição contrária, tal como veio agora fazer apenas em sede de recurso.
Já a testemunha Jaqueline .... disse que o cliente está a utilizar a máquina. Afirmou-o, contudo, na sequência da constatação de que as rendas deixaram de ser pagas, a resolução foi comunicada e foi pedida a restituição do equipamento, o que ainda não sucedeu, para assim concluir que este sabe que tem de o entregar mas não o faz e continua a utilizar um equipamento pelo qual não paga.
Pode escrutinar-se este depoimento e dizer-se que dele não se extrai ter a testemunha conhecimento directo da utilização actual da máquina pela requerida, porquanto a natureza das suas funções certamente não implicam deslocações à empresa requerida ou aos locais onde as obras desta decorrem. De todo o modo, o que não deixa de se poder afirmar é que a máquina não foi restituída, continua na disponibilidade da requerida e esta pode utilizá-la quando entender.
Essa utilização, como claramente foi explicado pelas mencionadas testemunhas, deprecia o valor de mercado do equipamento.
Aliás, o depoimento da testemunha Nuno .... foi esclarecedor nesse ponto, referindo que se trata de equipamento a ser utilizado na construção civil, em virtude do que sofre grande depreciação (facto também confirmado pela testemunha Jaqueline ....) e o seu estado de conservação depende do uso que tem (embora, apesar de para tanto indagado, tenha acabado por não responder à questão se a máquina sofre o mesmo tipo de desgaste de um veículo automóvel).
De todo o modo, a testemunha esclareceu que aquando da realização deste tipo de operação/negócio, em que é fixado um prazo de locação e um determinado número de horas de utilização (no caso, conforme Condições Especiais de Devolução, ponto 3.1, o cálculo do montante dos alugueres teve por base uma estimativa de utilização durante 500 horas por ano, sendo devido um montante adicional por hora excedida), a empresa requerente parte da ponderação de uma “curva interna de valor de mercado”, aferida em função dos anos de experiência e das parcerias que mantém com fornecedores e produtores do equipamento, ou seja, efectua um cálculo de depreciação do equipamento, que serve para definir o risco da operação em função da sua rentabilidade; aquilo que se pretende é apurar o valor da máquina no final da locação, com base no número de horas de utilização contratado, de modo a avaliar a possibilidade de venda ou locação a terceiros, isto é, aferir se no final irá ou não ter lucro, sendo que se a máquina tiver um excesso de uso, não irá ter o valor de mercado estimado.
Em face destes depoimentos, mesmo admitindo que o interesse da locatária é utilizar o equipamento no desenvolvimento da sua actividade comercial, não tendo sido alegada ou demonstrada qual a actividade que esta desenvolve neste momento, nomeadamente, se tem ou não em curso obras onde tenha necessidade de utilizar este tipo de equipamento, o mero decurso normal da vida não é bastante para afirmar que a requerida continua a utilizar a máquina, mas apenas que, estando esta na sua disponibilidade, essa utilização é possível a todo o momento, o que sempre será contrário à vontade da requerente.
Por outro lado, em dissonância com a argumentação recursória, a prova produzida é bastante para afirmar que a utilização da máquina causa depreciação no seu valor de mercado, sem prejuízo de no facto descrito no ponto 15) dever ser suprimido o advérbio de modo.
Assim, os pontos 13) e 15) dos factos provados passam a ter a seguinte redacção: 13)–A máquina continua a poder ser utilizada pela requerida, contra a vontade da requerente. 15)–A máquina deprecia-se por força da sua utilização, o que diminui o seu valor de mercado.
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3.2.2.–Da aplicabilidade da moratória prevista no DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março A, requerente, ora apelada, deduziu contra B, requerida, ora apelante, procedimento cautelar não especificado solicitando o decretamento da providência consistente na restituição do equipamento objecto do contrato de aluguer de bens móveis n.º 4..., isto é, a máquina fresadora de rastos, modelo W 130 CFI marca Wirtgen, ano 2017, com o número de série 1........
Assentou a sua pretensão no facto de se intitular proprietária de tal equipamento, por o ter adquirido a solicitação da requerida, no âmbito do contrato de locação celebrado entre as partes; mais referiu que por força deste a requerida o passou a utilizar, mediante o pagamento de alugueres mensais; entretanto esta deixou de proceder ao pagamento das prestações, o que determinou que tenha sido comunicada a resolução do contrato, sem que, porém, até ao momento, a requerida tenha restituído o bem em causa.
Apurou-se nestes autos que a requerente, sociedade que se dedica à compra, venda e arrendamento de bens móveis e à intermediação comercial em tais transacções, prestando serviços de administração, manutenção, conservação e reparação dos bens arrendados, celebrou com a requerida, em 31 de Maio de 2017, o contrato denominado de “Contrato de Aluguer de Bens Móveis n.º 4...”, por força do qual, como locadora, cedeu a esta, locatária, o gozo da máquina fresadora de rastos supra identificada, previamente por aquela adquirida a solicitação da locatária, sendo que tal contrato teria a duração de 60 meses, mediante o pagamento de uma primeira prestação, no valor de 32 000,00 € e de subsequentes prestações mensais no valor de 4 470,96 €, a que acresce o IVA; a máquina foi entregue à requerida, que a passou a utilizar no seu interesse – cf. pontos 1) a 6) dos factos provados.
As Condições Particulares e as Condições Gerais do contrato celebrado constam do documento n.º 1 junto com o requerimento inicial, sendo que no respectivo ponto 4. das Condições Gerais é regulado o modo como terá lugar a manutenção do bem locado, sendo que o contrato abrange o serviço de manutenção, tal como contratado nas Condições Particulares (ficando tal serviço a cargo da Moviter – Equipamentos, S. A. – cf. ponto 1.4. das Condições Particulares), referindo-se expressamente no ponto 8.1. que a celebração do contrato não implica a transmissão para o locatário do direito de propriedade sobre o bem locado, que continua a pertencer única e exclusivamente ao locador, consistindo obrigação do locatário devolver, no prazo máximo de cinco dias contados do termo do período de locação, o bem locado, respectivos documentos e componentes e acessórios, em conformidade, aliás, com as Condições Especiais de Devolução, que integram o Título III do documento em referência (cf. ponto 11.1., i) das Condições Gerais).
Questão Prévia – Qualificação do contrato
Do conteúdo do clausulado mencionado retira-se que as partes celebraram um contrato de aluguer ou locação mediante o qual a requerente, locadora, proporcionou à requerida, locatária, durante um determinado período (inicialmente fixado em 60 meses) o gozo de um equipamento consistente numa máquina fresadora de rastos, mediante remuneração e, bem assim, acessoriamente, o serviço de manutenção desse equipamento, a ser prestado por uma entidade terceira, desde logo identificada nas Condições Particulares do contrato.
Em parte alguma do contrato é prevista a possibilidade de aquisição do equipamento pela locatária, findo o período de locação e menos ainda uma qualquer promessa de compra ou opção de compra, prevendo-se apenas, no ponto 5.1. das Condições Especiais de Devolução, que o locatário pode optar, ao invés da devolução, por prorrogar a vigência do contrato de locação.
O contrato em referência pode ser qualificado como um contrato de locação, que tem vindo a ser designado de locação operacional, que, como refere Fernando de Gravato Morais, configura um “negócio através do qual o produtor ou o distribuidor de uma coisa, em regra estandardizada ou de elevada incorporação tecnológica, proporciona a outrem o seu gozo temporário, mediante remuneração, prestando também, em princípio e de modo acessório, determinados serviços, v.g., de manutenção do bem.” – apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-06-2016, relatora Maria do Rosário Morgado, processo n.º 1449/14.7JLSB.L1-7.
É uma figura próxima da locação financeira mas que com esta não se confunde.
Com efeito, a locação financeira ou leasing, regulado através do DL n.º 149/95, de 24 de Junho[3], consiste numa “operação de financiamento através da qual uma das partes (locadora) cede a outra (locatário) o direito de utilização de um determinado bem, durante um período de tempo pré-estabelecido, em contrapartida de uma retribuição (renda). No final do contrato, o locatário poderá adquirir o bem objecto da locação, mediante o pagamento do valor residual ” – cf. art. 1º do mencionado diploma legal; cf. Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados – Das Noções à Prática Judicial, Vol. III, pág. 11.
O Prof. Menezes Cordeiro, in Manual de Direito Bancário, Coimbra 1998, pág. 553 define a locação financeira como “[…] o contrato pelo qual uma entidade – o locador financeiro - concede a outra - o locatário financeiro - o gozo temporário duma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador, a um terceiro, por indicação do locatário.”
E acrescenta:
“O esquema creditício encontra-se vertido nos moldes da velha locação: pretendendo adquirir um bem, para o qual não tenha disponibilidades imediatas, o interessado dirige-se a um banqueiro; acordam no seguinte: o banqueiro adquire o bem em causa e dá-o, ao interessado, em locação; este irá pagar uma retribuição que traduza a amortização do bem e os juros; no final, o locatário poderá adquirir o bem pelo valor residual ou celebrar novo contrato; poderá, ainda, nada fazer”.
Assim, na locação financeira o locador (instituição financeira) entrega ao locatário um bem móvel ou imóvel, por este escolhido, tendo em conta o fim visado, e adquirido pelo locador, para o locatário usar e fruir pelo tempo de duração acordado no contrato; no termo do contrato, o locatário tem o direito de exercer a opção de compra do bem, pelo valor residual previamente fixado (cf. art.º 9º, n.º 1, c)); corre por conta e risco do locatário, salvo acordo em contrário, a perda ou deterioração do bem, que é obrigado a conservar e a reparar e, bem assim, a restituí-lo no fim do contrato, caso não opte pela compra, em bom estado, salvo as deteriorações decorrentes duma utilização normal (art.º 10.º).
São, pois, elementos típicos do contrato de locação financeira:
– a cedência do gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação do locatário;
– o direito de propriedade continua na esfera jurídica do locador financeiro;
– o locatário tem o direito potestativo de adquirir o bem decorrido o prazo acordado.
Por sua vez, o contrato de locação financeira não se confunde com o denominado aluguer de longa duração, em que um dos contraentes concede ao outro o gozo temporário e retribuído de determinada coisa móvel, podendo “conter uma promessa (unilateral ou bilateral) de venda ou pode ainda integrar uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação (…). O locador, durante o período de vigência do negócio, percebe não só o valor suportado com a compra, mas ainda o lucro financeiro. Portanto, no seu termo, o objeto encontra-se integralmente pago, pelo que naturalmente o locatário tem todo o interesse na sua aquisição (…) por um preço pré-determinado, em regra equivalente ao valor da coisa à data da celebração do contrato de aluguer de longa duração. (…) a aquisição do bem é o objetivo primordial a atingir pelo locatário (de longa duração), dado que no termo do contrato já o pagou na totalidade. Não dispõe o locatário (de longa duração) da tripla possibilidade de escolha (faculdade de compra, faculdade de não aquisição, prorrogação do contrato), que subjaz ao locatário financeiro” – cf. Fernando de Gravato Morais, in Manual da Locação Financeira, 2ª edição, 2011, pp. 71-73 apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-11-2014, relator Tomé Ramião, processo n.º 1410/11.3TJLSB.L1-6.
Mas, além destas figuras, importa atentar no contrato de locação previsto no art.º 1022.º do Código Civil, pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, designando-se de aluguer quando versa sobre coisa móvel – cf. art.º 1023º do Código Civil
São elementos característicos deste contrato: uma das partes obrigar-se a proporcionar à outra o gozo de uma coisa; a outra parte ter o direito de exigir esse gozo; o gozo ser temporário; e à cedência do gozo corresponder uma prestação da contraparte.
No caso em apreço, provado está que a requerente, sociedade comercial não financeira, que tem por objecto social a compra, venda e o arrendamento de bens móveis e a intermediação comercial em tais transacções, como locadora, e a requerida, como locatária, subscreveram um documento denominado “Contrato de Aluguer de Bem Móvel”, com o n.º 4..., relativamente a uma máquina fresadora de rastos, tendo o contrato a duração de 60 meses, mediante o pagamento mensal, após o primeiro aluguer, do valor de 4 470,96 €, acrescido do IVA, à taxa legal aplicável, equipamento que a apelada adquiriu, para esse efeito.
Resulta das Condições Gerais do referido contrato, como se referiu, que não há lugar à transmissão do direito de propriedade sobre o bem locado, que continua a pertencer única e exclusivamente ao locador, estando o locatário obrigado, cessado o contrato de locação, a devolver o bem locado.
Em face do conteúdo do contrato, não existindo o direito de adquirir a propriedade do equipamento e não sendo a locadora uma instituição financeira, afastada está a sua qualificação seja como aluguer de longa duração, seja como locação financeira, estar-se-á mais próximo da figura da locação ordinária, tal como prevista no mencionado art.º 1022.º do Código Civil, como tal sujeita ao respectivo regime jurídico e ao clausulado acordado entre as partes, que não colida com as suas regras imperativas, bem como ao regime geral das obrigações – cf. neste sentido, relativamente a contrato muito similar ainda que reportado a uma fotocopiadora multifunções, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-11-2014, relator Tomé Ramião, processo n.º 1410/11.3TJLSB.L1-6 acima mencionado.
Contudo, atenta a especificidade do bem locado, quer pelas suas características técnicas, quer pelo seu valor, afigura-se possível enquadrar o negócio gizado entre as partes na figura atípica da locação operacional, que se reporta a um tipo de locação em que sobressai, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-06-2016, relatora Maria do Rosário Morgado, processo n.º 1449/14.7JLSB.L1-7:
“[…] a específica natureza da coisa locada, dado que, na maior parte dos casos, se trata de bens móveis de natureza duradoura, com a particularidade de terem tendencialmente uma longa obsolescência técnica. Isto significa que a vida técnico-económica da coisa não se esgota no período de vigência do contrato, daí que a sua duração média seja de um a três anos, a fim de que, no seu termo, os bens, restituídos ao locador, sejam novamente colocados no mercado.
Por outro lado, neste tipo contratual há usualmente um conjunto de serviços acessórios a prestar pelo locador ou por alguém a ele ligado (v.g. manutenção ou reparação da coisa ou assistência técnica).
Além disso, o valor a pagar periodicamente pelo utilizador encontra-se relacionado, por um lado, com o gozo do bem e, por outro, com a prestação dos mencionados serviços, sendo que, em princípio, não cobre o preço da aquisição do bem locado, pago pelo locador.
Acresce que, em regra, o locatário pode denunciar o contrato a qualquer momento, desde que respeite o prazo de “pré-aviso” fixado e, se o não fizer, deve restituir a coisa locada no termo do contrato, ou prorrogar a sua vigência. Não lhe assiste, porém, a opção de compra do bem locado.”
Verifica-se, assim, que esta locação se distingue da locação financeira, em que o prazo do contrato abrange a maior parte da vida útil do bem e a renda se destina a cobrir os montantes pagos pelo locador com a aquisição da coisa, mas também o lucro que este se propõe obter com o negócio e onde existe sempre a faculdade de aquisição da coisa locada no termo do contrato, pelo locatário, mediante o pagamento de um valor residual.
Não estando em causa uma locação financeira, também importa reter que não se trata de uma simples locação ordinária, embora com esta tenha afinidade, surgindo antes como um contrato atípico cujo regime jurídico deve ser delineado, desde logo, pelas cláusulas acordadas pelas partes e no mais, pelas normas gerais do Código Civil e, com as necessárias adaptações, pelas normas da locação, previstas nos art.ºs 1022º e seguintes deste diploma legal – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-10-2015, relatora Maria do Rosário Morgado, processo n.º 383/13.7TJLSB.L1-7; e de 26-06-2008, relator Granja da Fonseca, processo n.º 3513/2008-6 – “Na locação operacional a relação jurídica constituída tem uma estrutura meramente bilateral. Deve ainda realçar-se a específica natureza da coisa locada. Com efeito, trata-se, na maior parte, de bens móveis de natureza duradoura, com a particularidade de terem tendencialmente uma longa obsolescência técnica. Isto significa que a vida técnico-económica da coisa não se esgota no período de vigência do contrato. A duração média do contrato é de um a três anos. Aliás, no seu termo, os bens restituídos ao locador são novamente recolocados por este no mercado. […] há um conjunto de serviços acessórios normalmente acoplados à locação operacional. Estamos a referir-nos aos serviços de manutenção ou de reparação da coisa e até de assistência técnica a efectuar por terceiros ligados ao locador. No entanto, é este que assume tais obrigações colaterais. O valor a pagar periodicamente pelo utilizador encontra-se relacionado, por um lado, com o gozo do bem e, por outro, com a prestação dos mencionados serviços. Não cobre, em princípio, o preço da aquisição pago pelo locador. […] Para o locatário operacional, a coisa que utiliza mostra-se fundamental para o adequado funcionamento da sua actividade económico - empresarial. É usualmente uma operação privilegiada para a incorporação de tecnologia avançada na empresa. […] o locador operacional suporta um duplo risco: o da obsolescência técnica e financeira da coisa e o inerente à propriedade do bem. […] Caso o locatário tenha interesse na utilização de um novo bem, exclui-se a via da prorrogação contratual. Nesta situação, aplica-se o regime geral: o locador, porque proprietário (jurídico e económico), suporta o risco de perda ou de deterioração da coisa. Este tipo de locação apresenta similitudes claras com a locação ordinária.”
No mesmo sentido, mas aduzindo ainda a aplicabilidade das regras do contrato de aluguer de viatura automóvel sem condutor, confira-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-11-2010, relator António Santos, processo n.º 2357/08.6TJLSB.L1-1:
“[…] negócio atípico comummente designado como de aluguer operacional, ou de locação operacional (operating leasing), o qual, como refere Carlos Ferreira de Almeida, caracteriza-se essencialmente , em termos negativos e em contraponto aos contratos de locação financeira, por o locador não ter a natureza de entidade financeira, a renda não se incorporar em parcela de amortização, e não dispor o locatário da opção de compra, e, em termos positivos, por se qualificar no direito português como um contrato de aluguer, com uma eventual componente adicional de prestação de serviços.
[…] como resulta de resto do preceituado nos art.ºs 405º e 406º ambos do Código Civil, ao mesmo serão antes de mais aplicáveis as cláusulas nele estipuladas pelas partes, desde que não contrárias a disposições legais imperativas, e, na sua ausência, as disposições legais do contrato típico referência, ou seja, do contrato de aluguer de viatura automóvel sem condutor, previsto no DL n.º 354/86, de 23/10, ou ainda, e subsidiariamente a este último, as do contrato de locação, previsto nos artigos 1022º e seguintes do Código Civil […]”
E ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2013, relator Rui Moreira, processo n.º 379/12.1TBLSD.P1.
Tenha-se, presente, contudo que face ao actual Regime de Acesso e de Exercício da Actividade de Aluguer e Partilha de Veículos de Passageiros sem Condutor, aprovado pelo DL 181/2012, de 6 de Agosto, com início de vigência em 2 de Fevereiro de 2013, e que revogou o DL n.º 354/86, de 23 de Outubro (cf. art.º 26º), os contratos de prestação de serviços de aluguer de longa duração, incluindo os designados de ALD, renting ou aluguer operacional de veículos (AOV), bem como os que incluam a prestação de serviços acessórios ao aluguer do veículo estão expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele regime, conforme o respectivo art. 2º, n.º 3, c), pelo que as regras subsidiárias a atender hão-de encontrar-se, conforme se referiu, no regime geral da locação ordinária e nas regras gerais de direito civil.
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Assim, tendo em conta as especificidades do contrato de locação de bem móvel em referência nos autos e atendendo às regras que lhe devem ser aplicadas (cláusulas fixadas pelas partes e regras gerais do Código Civil e específicas, quando aplicáveis ou com as necessárias adaptações, do contrato de locação), importa agora determinar se, como pretende a recorrente, estava a recorrida obrigada a aceitar os pedidos de concessão de moratória que aquela lhe dirigiu ou se se verificava uma situação impeditiva da resolução do contrato por existência de circunstâncias anormais que exigiam antes a sua modificação.
Apesar de as alegações da recorrente padecerem de uma notória confusão entre institutos e, bem assim, entre aquilo que é impugnação da matéria de facto e impugnação da matéria de direito, afigura-se possível identificar duas questões nas quais aquela assenta a sua discordância com a decisão recorrida, quais sejam: a indevida recusa por parte da requerente/recorrida dos pedidos de concessão de moratórias que lhe dirigiu; a invalidade da resolução do contrato por não estar verificado o incumprimento definitivo, dado ter sido invocada a alteração anormal de circunstâncias, estando a requerente obrigada a negociar a modificação do contrato.
No que concerne à aplicabilidade do regime de moratória previsto pelo DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março, considerou-se na decisão recorrida que a requerida não alegou factos susceptíveis de revelarem que reunia as condições legais para aderir às medidas de apoio previstas no mencionado diploma legal, nem que formulou tal pedido em conformidade com o previsto na lei, pelo que ali se concluiu que, não estando demonstrados os requisitos para a aplicação da moratória, nada obstava à resolução do contrato promovida pela requerente.
É do conhecimento de todos que em 11 de Março de 2020 a Organização Mundial de Saúde qualificou a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, constituindo uma calamidade pública.
Por Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, foi declarado o estado de emergência em Portugal, regulamentado pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, que aprovou um conjunto de medidas excepcionais e extraordinárias, fortemente limitativas das actividades dos cidadãos, das empresas e das instituições, com repercussão na economia nacional, o que justificou a aprovação de diversos vários diplomas legais, que visaram atenuar os efeitos causados nas famílias e nas empresas, entre eles o DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março, que, conforme o seu art.º 1º, n.º 1, tem por objecto e âmbito estabelecer “medidas excecionais de apoio e proteção de famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, por força dos impactos económicos e financeiros da contração da atividade económica decorrente da pandemia da doença COVID-19”.
Assim, no Capítulo II deste diploma legal são previstas medidas de apoio extraordinário à liquidez de famílias e empresas, entre outras entidades, que visam o diferimento do cumprimento de obrigações dos beneficiários perante o sistema financeiro.
O art.º 2º identifica quem são as entidades beneficiárias das medidas: “1— Beneficiam das medidas previstas no presente decreto-lei as empresas que preencham cumulativamente as seguintes condições: a)- Tenham sede e exerçam a sua atividade económica em Portugal; b)- Sejam classificadas como microempresas, pequenas ou médias empresas de acordo com a Recomendação 2003/361/CE da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003; c)- Não estejam, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, ou estando não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018, e não se encontrem em situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos, ou naquela data estejam já em execução por qualquer uma das instituições; d)- Tenham a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, na aceção, respetivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020.
2—Beneficiam igualmente das medidas previstas no presente decreto-lei: a)- As pessoas singulares, relativamente a crédito para habitação própria permanente que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do número anterior, tenham residência em Portugal e estejam em situação de isolamento profilático ou de doença ou prestem assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, ou que tenham sido colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial, em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P., bem como os trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do referido decreto-lei, e os trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência, nos termos do artigo 7.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março; e b)-Os empresários em nome individual, bem como as instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e as demais entidades da economia social, exceto aquelas que reúnam os requisitos previstos no artigo 136.º do Código das Associações Mutualistas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 59/2018, de 2 de agosto, que, à data de publicação do presente decreto-lei, preencham as condições referidas nas alíneas c) e d) do n.º 1 e tenham domicílio ou sede em Portugal.
3— Beneficiam, ainda, das medidas previstas no presente decreto-lei as demais empresas independentemente da sua dimensão, que, à data de publicação do regime, preencham as condições referidas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1, excluindo as que integrem o setor financeiro. 4— Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que fazem parte do setor financeiro os bancos, outras instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento, instituições de moeda eletrónica, intermediários financeiros, empresas de investimento, organismos de investimento coletivo, fundos de pensões, fundos de titularização, respetivas sociedades gestoras, sociedades de titularização, empresas de seguros e resseguros e organismos públicos que administram a dívida pública a nível nacional, com estatuto equiparado, nos termos da lei, ao das instituições de crédito. 5— As empresas, pessoas singulares e outras entidades previstas nos números anteriores são adiante designadas de «entidades beneficiárias».”
Quanto às operações abrangidas pelo regime, rege o art.º 3.º: “1— O presente capítulo aplica-se a operações de crédito concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal, adiante designadas por «instituições», às entidades beneficiárias do presente decreto-lei.
2— O presente capítulo não se aplica às seguintes operações: a)-Crédito ou financiamento para compra de valores mobiliários ou aquisição de posições noutros instrumentos financeiros, quer sejam garantidas ou não por esses instrumentos; b)-Crédito concedido a beneficiários de regimes, subvenções ou benefícios, designadamente fiscais, para fixação de sede ou residência em Portugal, incluindo para atividade de investimento, com exceção dos cidadãos abrangidos pelo Programa Regressar; c)-Crédito concedido a empresas para utilização individual através de cartões de crédito dos membros dos órgãos de administração, de fiscalização, trabalhadores ou demais colaboradores”.
O conteúdo da moratória concedida está estabelecido no art.º 4.º:
“1– As entidades beneficiárias do presente decreto-lei beneficiam das seguintes medidas de apoio relativamente às suas exposições creditícias contratadas junto das instituições: a)- Proibição de revogação, total ou parcial, de linhas de crédito contratadas e empréstimos concedidos, nos montantes contratados à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, durante o período em que vigorar a presente medida; b)- Prorrogação, por um período igual ao prazo de vigência da presente medida, de todos os créditos com pagamento de capital no final do contrato, vigentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, juntamente, nos mesmos termos, com todos os seus elementos associados, incluindo juros, garantias, designadamente prestadas através de seguro ou em títulos de crédito; c)- Suspensão, relativamente a créditos com reembolso parcelar de capital ou com vencimento parcelar de outras prestações pecuniárias, durante o período em que vigorar a presente medida, do pagamento do capital, das rendas e dos juros com vencimento previsto até ao término desse período, sendo o plano contratual de pagamento das parcelas de capital, rendas, juros, comissões e outros encargos estendido automaticamente por um período idêntico ao da suspensão, de forma a garantir que não haja outros encargos para além dos que possam decorrer da variabilidade da taxa de juro de referência subjacente ao contrato, sendo igualmente prolongados todos os elementos associados aos contratos abrangidos pela medida, incluindo garantias. 2– As entidades beneficiárias das medidas previstas nas alíneas b) e c) do número anterior podem, em qualquer momento, solicitar que apenas os reembolsos de capital, ou parte deste, sejam suspensos.
3– A extensão do prazo de pagamento de capital, rendas, juros, comissões e demais encargos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 não dá origem a qualquer: a)- Incumprimento contratual; b)- Ativação de cláusulas de vencimento antecipado; c)- Suspensão do vencimento de juros devidos durante o período da prorrogação, que serão capitalizados no valor do empréstimo com referência ao momento em que são devidos à taxa do contrato em vigor; e d)- Ineficácia ou cessação das garantias concedidas pelas entidades beneficiárias das medidas ou por terceiros, designadamente a eficácia e vigência dos seguros, das fianças e/ou dos avales. 4– A aplicação da medida prevista no n.º 1 a créditos com colaterais financeiros abrange as obrigações do devedor de reposição das margens de manutenção, bem como o direito do credor de proceder à execução das cláusulas de stop losses. 5– No que diz respeito a empréstimos concedidos com base em financiamento, total ou parcial, ou garantias de entidades terceiras sediadas em Portugal, as medidas previstas no n.º 1 aplicam -se de forma automática, sem autorização prévia dessas entidades, nas mesmas condições previstas no negócio jurídico inicial. 6– A prorrogação das garantias, designadamente de seguros, de fianças e/ou de avales referidos nos números anteriores não carece de qualquer outra formalidade, parecer, autorização ou ato prévio de qualquer outra entidade previstos noutro diploma legal e são plenamente eficazes e oponíveis a terceiros, devendo o respetivo registo, quando necessário, ser promovido pelas instituições, com base no disposto no presente decreto -lei, sem necessidade de apresentação de qualquer outro documento e com dispensa de trato sucessivo”.
O procedimento de acesso à moratória está regulado no art.º 5.º: “1– Para acederem às medidas previstas no artigo anterior, as entidades beneficiárias remetem, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais. 2– A declaração é acompanhada da documentação comprovativa da regularidade da respetiva situação tributária e contributiva, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º 3– As instituições aplicam as medidas de proteção previstas no artigo anterior no prazo máximo de cinco dias úteis após a receção da declaração e dos documentos referidos nos números anteriores, com efeitos à data da entrega da declaração, salvo se a entidade beneficiária não preencher as condições estabelecidas no artigo 2.º 4– Caso verifiquem que a entidade beneficiária não preenche as condições estabelecidas no artigo 2.º para poder beneficiar das medidas previstas no artigo anterior, as instituições mutuantes devem informá-lo desse facto no prazo máximo de três dias úteis, mediante o envio de comunicação através do mesmo meio que foi utilizado pela entidade beneficiária para remeter a declaração a que se refere o n.º 1 do presente artigo”.
Assim, os beneficiários do regime da moratória pública são pessoas singulares, empresas, empresários em nome individual, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e as demais entidades da economia social, desde que se encontrem nas situações indicadas no n.º 2 do art.º 2.º supra transcrito.
Por sua vez, as operações abrangidas pela moratória são operações de crédito, emanadas de entidades do sector financeiro, indicadas no n.º 1 do art.º 3.º.
Note-se, pois, que entre as operações descritas no n.º 1 do art. 3º não consta o contrato de aluguer operacional, que, como se viu, não corresponde a uma locação financeira e tão-pouco a um aluguer de longa duração[4], pelo que, desde logo, a operação subjacente ao negócio em causa nestes autos, não estava abrangida pelo âmbito de aplicação das medidas excepcionais de protecção ao crédito de empresas introduzidas pelo DL 10-J/2020, de 26 de Março.
Certo é que este diploma foi objecto de diversas alterações, entre elas a introduzida pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho, com entrada em vigor em 25 de Julho de 2020, passando o n.º 1 do art. 3º a ter a seguinte redacção: “O presente capítulo aplica-se a operações de crédito e contratos de locação financeira ou operacional concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal, adiante designadas por 'instituições', às entidades beneficiárias do presente decreto-lei.”
Ou seja, o regime excepcional passou a aplicar-se a contratos de locação operacional mas sempre no pressuposto de ser concedido por instituições de créditos, sociedades financeiras de créditos ou sociedades de locação financeira, o que não é o caso da aqui requerente, que, como se afere do ponto 1), se dedica à compra, venda e arrendamento de bens móveis e a intermediação comercial nas ditas transacções e cuja classificação de actividade económica é o aluguer de outras máquinas e equipamentos[5].
Como refere Madalena Perestrelo de Oliveira, in Moratória Bancária, pág. 18[6]:
“Ficam fora do escopo de aplicação do Decreto-lei outras operações de crédito, como, por exemplo, o renting, que não sejam concedidas por entidades abrangidas pelo artigo 3.º. É uma opção política. Considerou-se que as entidades elencadas, pela sua função de financiamento da economia, têm um especial dever de participar no esforço de mitigação das consequências da Covid-19. Quanto às restantes entidades, a distribuição dos riscos que resultam da pandemia deve ser avaliada casuisticamente, de acordo com o regime civil geral.”
Ademais, também não está em causa uma operação de crédito por, conforme se referiu acima, não ser possível sequer aproximar este negócio de uma locação financeira ou de um aluguer de longa duração, dada a não contemplação da possibilidade de aquisição do equipamento no final do contrato, o que invalida qualquer sua consideração como instrumento de financiamento da aquisição por parte da requerida, efectuado sob a forma de um contrato de aluguer, cujas prestações mensais, associadas ao valor residual acordado, permitiriam a aquisição da propriedade do equipamento, pelo locatário, no final da execução do contrato (atente-se que o regime do crédito ao consumo previsto no DL n.º 133/2009, de 2 de Junho afasta do seu campo de aplicação os contratos de locação de bens móveis que não prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada – cf. art.º 2.º, n.º 1, d)).
Impõe-se, assim, concluir que o contrato em apreço não está abrangido pelo regime de moratória previsto no DL n.º 10-J/2020, de 26 de Março, pelo que nada há a apontar às comunicações da requerente de 2 de Julho de 2020 e de 29 de Setembro de 2020, mediante as quais esta recusou os pedidos de moratória que lhe foram dirigidos pela requerida (cf. pontos 25) a 27) dos factos provados).
Argumenta ainda a recorrente que a recorrida recusou os pedidos de moratória após ter criado naquela, com o seu comportamento – ao que se depreende, depois de ter aceitado os diversos pagamentos efectuados na sequência do acordo de 5 de Março de 2020 -, a expectativa de que iria aceitar a renegociação do contrato, sendo que, não tendo enquadrado juridicamente os efeitos que pretende retirar desta afirmação, pretenderá – conjectura-se – convocar a figura do abuso de direito para sustentar a ilicitude da recusa da aceitação do pedido de moratória.
O abuso do direito exprime um concreto exercício de posições jurídicas que, embora correcto em si, é inadmissível por colidir com o sistema jurídico na sua globalidade.
O art. 334º do Código Civil estipula que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
De acordo com o normativo em apreço agir de boa-fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Os bons costumes correspondem à moral social e “traduzem um conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico acolhidas, pelo Direito, em cada momento histórico. Não estando embora codificadas, tais regras provocam consenso em concreto, pelo menos em casos-limites.” – cf. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2000, pág. 243.
O fim social ou económico do direito corresponde ao interesse ou interesses que o legislador visou proteger através do reconhecimento do direito em causa. Tem a ver com a sua configuração real a apurar através da interpretação.
A paralisação do exercício abusivo do direito não visa suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que, em certas circunstâncias concretas, esse direito não seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade.
O abuso de direito está construído sobre limites indeterminados à actuação jurídica individual que advêm de conceitos como os de função, bons costumes e de boa-fé já acima mencionados. Tais conceitos carecem de concretização para que sejam passíveis de aplicação em concreto.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
O abuso de direito reconduz-se, pois, ao exercício inadmissível de posições jurídicas figurando entre elas situações como as classificadas de exceptio doli, supressio ou o venire contra factum proprium.
A expressão venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Ou seja, existem dois comportamentos da mesma pessoa, diferidos no tempo e que, por si, são lícitos, mas em que o primeiro é contrariado pelo segundo.
A confiança será pois um critério para a proibição do venire contra factum proprium. “A concretização da confiança prevê: a actuação de um facto gerador de confiança em termos que concitem interesse por parte da ordem jurídica; a adesão do confiante a esse facto; o assentar, por parte dele, de aspectos importantes da sua actividade posterior sobre a confiança gerada – um determinado investimento de confiança – de tal forma que a supressão do facto provoque uma iniquidade sem remédio”. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequências – cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra 1997, pág. 758.
A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os respectivos pressupostos.
É puramente objectivo, logo, não depende de culpa do agente; todavia, implicará sempre uma ponderação global da situação em presença em que a intenção das partes pode relevar para a sua concretização – cf. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 3ª edição aumentada e actualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 136.
No caso dos presentes autos a apelante não se reporta a nenhuma das figuras acima enunciadas, limitando-se a invocar a frustração da sua expectativa, que apelida de legítima, baseando-se, tão-somente, no facto de ter efectuado diversos pagamentos e ter sempre tentado cumprir o contrato.
Sucede que a prova produzida revela à evidência (conforme depoimentos das testemunhas arroladas pela requerente) que a requerida, no primeiro trimestre do ano de 2020, tinha diversas prestações em atraso, vencidas no ano de 2019, facto que, embora não tendo ficado claramente expressado nos factos provados, se afere da circunstância de em 5 de Março de 2020 ter sido efectuado um acordo de pagamento (cf. ponto 16)), que certamente não se reportaria apenas a duas prestações vencidas e não pagas (sendo certo que as rendas de Janeiro a Março de 2020 não foram pagas – cf. ponto 7)), o que significa que nessa data não pode ter sido ponderada a aplicação de qualquer moratória, subjacente à aceitação de prestações para liquidação de rendas vencidas, pois que ainda nem sequer havia sido declarada a situação de pandemia e menos ainda publicado o DL 10-J/2020, de 26 de Março.
Ademais, não pode a requerida/apelante invocar a repercussão da pandemia causada pela doença Covid-19 na vida do mundo, dos países, das empresas e das pessoas para justificar a falta do pontual cumprimento do contrato que já se vinha verificando, pelo menos desde o ano 2019 e prosseguiu no ano de 2020, sendo certo que as prestações do primeiro trimestre de 2020 nunca foram pagas, o que certamente não se ficou a dever à modificação no modo de vida da generalidade das populações causada pelos efeitos da pandemia, cuja existência foi declarada apenas em 11 de Março de 2020.
Por outro lado, os factos provados não permitem formular qualquer conclusão no sentido de que, ao aceitar os pagamentos que a requerida foi efectuando, subsequentemente ao acordo de 5 de Março de 2020 (cf. pontos 18) a 23)), a requerente tenha de algum modo informado, comunicado ou permitido à requerida a interpretação de que estaria a fazê-lo ponderando a possibilidade de vir a deferir um pedido de moratória que por esta lhe fosse dirigido.
Assim, não se vislumbra que a recusa da concessão da moratória em referência, que, conforme se viu, tem acolhimento legal, tenha sido exercida em manifesta contradição com comportamento anterior ou confiança criada pela requerente na requerida, de que, ainda assim, aquela seria concedida, pelo que não se verifica a existência de abuso de direito.
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3.2.3.–Da invocação da alteração das circunstâncias para impedir a resolução do contrato de aluguer
A apelante vem sustentar que, por força da pandemia causada pela doença Covid-19, se verificou uma alteração das circunstâncias contratuais, pois que tal situação interferiu com toda a economia mundial e nacional e com a situação financeira de todas as empresas, designadamente da requerida, pelo que não podia a requerente ter optado pela resolução do contrato, estando antes obrigada à sua modificação, pois as regras da boa fé justificam o dever de renegociar o contrato.
O Tribunal recorrido apreciou esta questão nos seguintes termos:
“O instituto da alteração das circunstâncias previsto no art. 437.º do C.P.C., permite a resolução ou modificação do contrato se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiveram sofrido uma alteração anormal, desde que a exigência de cumprimento afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
Ora, salvo o devido respeito por entendimento diverso, o simples facto de se ter verificado a pandemia provocada pelo SARS-2 COVID-19, não é, nem mesmo indiciariamente, revelador por si de uma qualquer alteração das circunstâncias em que a requerida decidiu contratar.
Com efeito, a requerida veio alegar a suspensão de obras e situações de quarentena, o que não demostrou, mas impunha-se muito mais, pois caberia à requerida concretizar que obras foram suspensas, durante quanto tempo estiveram paradas, quantos trabalhadores tem ao seu serviço, quantos estiveram em quarentena, durante que período, e sobretudo o concreto impacto que essas alegadas suspensões teve na sua atividade e na sua situação financeira, considerando além do mais que daquilo que resulta do conhecimento público, o ramo de atividade a que a requerida se decida nunca esteve parado por determinação legal.
Acresce que a prova revelou que a dívida da requerida já existia anteriormente ao início da pandemia e em valores relativamente elevados, circunstância que por si afasta qualquer juízo de probabilidade sobre o facto de a incapacidade no cumprimento pontual das obrigações assumidas com a celebração do contrato tenha tido origem na situação pandémica.
Nesta confluência, improcede nesta parte a argumentação a requerida.”
Note-se que, efectivamente, os factos concretamente alegados que teriam tido reflexo no desenvolvimento normal da actividade da requerida e causados pela situação de pandemia – a suspensão de obras no concelho de Albufeira e Silves e a existência de trabalhadores em quarentena – não resultaram demonstrados, nem a outros se pode atender, que não apenas o facto da existência de uma pandemia mundial, com manifesta repercussão no modo de funcionamento normal de todas as sociedades (cf. art. 412º do CPC).
De acordo com o disposto no art. 405º do Código Civil, as partes têm a faculdade, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, os limites dos contratos e o art. 406º, n.º 1 do mesmo diploma legal estipula que “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e a sua extinção ou modificação por vontade exclusiva de uma das partes surge como excepcional, sendo uma dessas excepções a prevista no art. 437º do Código Civil.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-03-2010, relator Hélder Roque, processo n.º 134/2000.P1.S1:
“O instituto da resolução ou modificação contratual situa-se no exacto ponto de cruzamento entre dois princípios de sinal contraditório, ou seja, o princípio da autonomia privada, com a inerente segurança na estabilidade das relações contratuais, e o princípio da boa-fé […]
Um dos pressupostos do instituto da resolução ou modificação do contrato traduz-se em que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar.
Trata-se das circunstâncias que determinaram as partes a negociar, de modo que, se fossem outras, não teriam contratado, ou tê-lo-iam feito ou pretendido fazer, em termos diferentes. Estas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar constituem a base negócio, ou seja, para efeitos deste instituto, interessa considerar [] as circunstâncias ou factos futuros, porque aqui se trata de um «error in futurum», e o contrato abrangido não é de execução imediata, mas continuada, periódica ou diferida []
Importa que essas circunstâncias, sendo determinantes para uma das partes, se mostrem conhecidas ou cognoscíveis da outra, e que esta, se lhe tivesse sido proposta a subordinação do negócio à verificação das circunstâncias pressupostas pelo lesado, as aceitasse ou devesse aceitar, procedendo de boa-fé.
A disciplina do instituto estrutura-se com base na alteração das circunstâncias verificadas entre o momento da celebração do contrato e aquele em que devem ser cumpridas as obrigações correspondentes. []
Outro dos pressupostos do instituto que importa considerar contende com a alteração anormal das circunstâncias que envolveram a decisão de contratar, a qual coincide, nos seus resultados, por via de regra, com o da imprevisibilidade e excepcionalidade, de modo que a base do negócio tenha desaparecido ou haja sido, substancialmente, modificada, afectando, de forma expressiva, o originário equilíbrio do contrato. [] ou seja, que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes.”
Significa isto que a alteração diz respeito ao circunstancialismo que rodeia o contrato, objectivamente tomado como tal, isto é, como encontro de duas vontades, daí que não relevem superveniências a nível de aspirações subjectivas extracontratuais das partes, como não interessam modificações no campo das aspirações subjectivas contratuais de apenas uma delas; é o contrato que está em causa e não as esperanças de lucro ou de não perda de somente um dos intervenientes, quando a lógica do negócio não esteja em causa – cf. A. Menezes Cordeiro, Da Alteração das Circunstâncias, Lisboa, 1987, págs. 65 e 66.
As partes podem clausular quais as circunstâncias relevantes nesse âmbito ou tal pode resultar implícito do contrato.
Contudo, a alteração deve ser anormal, o que conduz à característica da imprevisibilidade. Assim, uma alteração normal poderia ter sido prevista pelas partes que, prevendo-a, estipulariam no sentido de prevenir as respectivas consequências.
Além disso, deve haver uma parte lesada e o dano deve ser considerável, isto é, para haver atentado grave à boa-fé, tem de se estar perante danos notáveis com ponderação do valor do contrato em apreço.
Tudo deve processar-se de tal modo que a exigência, à parte lesada, das obrigações por ela assumidas, afecte gravemente os princípios da boa-fé, mas a concretização deste factor deverá ser apurada em face de cada caso concreto.
A alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar assenta pois na “teoria da base negocial” segundo a qual o desaparecimento da base do negócio autoriza a parte lesada a impugná-lo no sentido da sua resolução ou modificação.
Quando uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar causa uma “turbação da equivalência” (ou seja, da igualdade de valor da prestação e da contraprestação, do equilíbrio contratual), a boa-fé justificaria a relevância da não verificação da base do negócio com vista à resolução ou modificação do contrato.
Exige-se, assim, a observância simultânea dos seguintes requisitos resultantes do artigo 437º do Código Civil: a)-a existência de uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; b)-a lesão para uma das partes provocada por essa alteração; c)-que a exigência da obrigação assumida à parte lesada afecte gravemente o princípio da boa fé; d)-não seja coberta pelos riscos do negócio, como no caso de se tratar de um negócio por sua natureza aleatório.
A situação pandémica que se vive a nível mundial desde Março de 2020 não pode deixar de ser configurada, como uma clamorosa alteração das condições normais da vivência da população mundial, com manifestos reflexos na vida diária de todos os cidadãos e, naturalmente, das empresas, constituindo, em termos objectivos, uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, posto que as circunstâncias objectivas comuns a ambas as partes respeitam, genericamente, às condições de mercado (oferta e procura) vividas antes da pandemia – cf. neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Alteração das Circunstâncias, pág. 30[7]; mesmo autor, Novo Coronavírus e Crise Contratual – Anotação ao Código Civil, Coordenação Catarina Pires Monteiro[8].
Dando conta, precisamente dessa realidade, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-04-2021, relatora Maria de Deus Correia, processo n.º 19222/20.1T8LSB.L1-6:
“Dificilmente se encontrará na Doutrina ou na Jurisprudência um exemplo mais evidente de alteração da base negocial, ou de alteração anormal das circunstâncias que presidiram à realização do contrato do que a situação que deu origem ao presente litígio: o deflagrar de uma pandemia, a nível planetário, que paralisou o mundo inteiro, não só Portugal.Com efeito, conforme se provou e de resto, constitui mesmo um facto notório: “no dia 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia em face do impacto causado pelo surto pandémico de COVID-19 à escala global”(…). O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18.03, declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (…) e nessa sequência, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-A/2020, de 20/03, que entrou em vigor no dia 22.03.2020, determinou a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho, com exceção daquelas que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais na presente conjuntura e que constam em anexo, não se aplicando essa suspensão aos estabelecimentos de comércio por grosso nem aos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público.”
De todo o modo, mesmo aceitando a existência de uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, tal não deixa de implicar uma avaliação casuística da situação em análise e, mais do que isso, o preenchimento dos demais pressupostos do funcionamento do art. 437º, n.º 1 do Código Civil.
Com efeito, apenas verificado o preenchimento dos pressupostos supra referidos, a parte lesada terá direito à resolução ou à modificação do contrato segundo juízos de equidade, desde que não se encontre em mora no momento em que a alteração das circunstâncias ocorreu (cf. art. 438º do Código Civil).
Sucede que a factualidade apurada não permite afirmar que por força do estado de emergência decretado no seguimento da declaração da pandemia, a actividade da requerida tenha sido, em concreto, afectada, sendo certo que a actividade no sector da construção civil não foi suspensa em virtude das medidas adoptadas de restrição de actividades económicas, enquanto meio de evitar a propagação do vírus (cf. Decreto n.º 2-A/2020, de 30 de Março, que procedeu à execução da declaração do estado de emergência efectuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, posteriormente revogado pelo Decreto 2-B/2020, de 2 de Abril, que introduziu um conjunto adicional de medidas, mantendo o teor dos articulados, depois revogado pelo Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril, que regulamentou a prorrogação do estado de emergência).
Não há qualquer demonstração de que os trabalhadores da requerida (quantos, em que períodos e por quanto tempo) estiveram de quarentena, assim como não se provou que as obras em curso tenham sido suspensas, ou pelo menos algumas delas; não foi constatada uma redução ou ausência de actividade; não está provado que tenha existido uma diminuição das receitas da empresa ou aumento dos seus custos. Em síntese, nada se provou sobre a repercussão da situação pandémica na vida da empresa que revele uma lesão grave para esta que justifique a necessidade de um reequilíbrio no programa contratual.
Acresce, conforme resulta do acima expendido, que a recorrente se encontrava já em mora à data da declaração da situação pandémica, o que sempre inviabilizaria a possibilidade de modificação do contrato, pois que a parte lesada apenas a pode solicitar se não se encontrar em mora no momento em que a alteração das circunstâncias se verifica.
Assim, concorda-se com o juízo formulado na decisão recorrida quanto à inaplicabilidade do regime da alteração das circunstâncias previsto no art. 437º do Código Civil.
Convoca ainda a apelante a impossibilidade superveniente de prestar a sua obrigação, o que afastaria a sua responsabilidade pelo incumprimento verificado, invocando a situação de pandemia como causa de força maior.
A impossibilidade acidental da prestação – prevista nos art.ºs 790.º e seguintes do Código Civil – abrange uma série de situações que têm de comum o não serem imputáveis ao devedor, onde se incluem o caso fortuito ou de força maior.
Como refere Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, in O Direito dos contratos privados face à presente crise pandémica. Alguns problemas, em especial, a impossibilidade económica temporária, pág. 681[9]:
“A recente crise da covid- 19 é realmente passível de preencher a noção de força maior, visto resultar de um surto pandémico que, apesar de previsível a partir de certo momento, seria sempre inevitável em termos práticos, pelo menos enquanto não estivessem disponíveis vacinas adequadas De forma a minimizar os riscos de contágio comunitário, as fortes medidas de confinamento decretadas produziram consequências devastadoras no regular funcionamento da vida económica e social, restringindo de forma muito considerável a circulação de pessoas e bens, e provocaram, inclusive, o encerramento ou a suspensão dos estabelecimentos e unidades empresariais que não foram considerados de primeira necessidade ou declarados como não essenciais para responder ao actual estado de crise.
Como logo de início se assinalou, a impossibilidade das prestações que venha a acontecer na presente conjuntura pode ter várias causas. Nuns casos, decorrerá de os próprios factos configurarem circunstâncias de força maior; noutros, a impossibilidade pode resultar das intervenções legislativas e administrativas decretadas para vigorar durante o estado de emergência.”
Sucede, contudo, que, como já se referiu, a actividade prosseguida pela requerida não foi afectada pelas medidas restritivas adoptadas com vista à mitigação da doença, sendo que eventuais medidas legislativas poderiam ter impedido a continuação da actividade económica da requerida e, por via disso, a obtenção dos rendimentos esperados e a impossibilidade de satisfazer atempadamente as suas obrigações (cf., por exemplo, a situação das escolas e colégios privados que se viram impossibilitados de prosseguir a actividade lectiva durante o período da sua suspensão, o que daria lugar à perda do direito à contraprestação, em termos proporcionais – cf. art.º 793.º, n.º 1 do Código Civil).
Todavia, neste caso, nenhum elemento factual apurado permite configurar essa situação, sendo certo que a excepcionalidade da situação pandémica, por si só, não permite afirmar que a requerida se viu impossibilitada, sequer temporariamente, de cumprir a obrigação de pagamento da prestação mensal, até porque tal incumprimento vinha tendo lugar desde data anterior àquela situação.
Improcede, assim, a argumentação expendida pela recorrente seja para justificar um dever de renegociação do contrato que os princípios da boa fé exigiram à recorrida, seja para afastar o seu dever de cumprimento da prestação em falta.
*
3.2.4.– Dos pressupostos para o decretamento da providência
Está demonstrado que já em 5 de Março de 2020 as partes chegaram a um acordo com vista à regularização das prestações em falta, por referência ao contrato de aluguer em causa nos presentes autos, tendo a requerida procedido ao pagamento parcial dos montantes então acordados – cf. pontos 16) a 23) dos factos provados.
Não obstante isso, ficou também provado que a requerida não liquidou os alugueres vencidos correspondentes aos meses de Janeiro a Março de 2020, Junho, Agosto a Outubro de 2020, não tendo pago quaisquer outros subsequentes, sendo o valor em dívida, à data resolução comunicada pela requerente em 24 de Novembro de 2020, no montante global de 36 264,63 €.
Em 18 de Setembro de 2020 a apelada enviou à apelante uma carta solicitando o pagamento dos valores em atraso e respectivos juros, concedendo-lhe o prazo de oito dias a contar da recepção da carta para liquidar os montantes em falta, advertindo que o incumprimento definitivo lhe conferiria o direito a resolver o contrato.
Não tendo a requerida procedido ao pagamento desse valor, em 24 de Novembro de 2020, a requerente dirigiu-lhe carta com aviso de recepção, para o domicílio contratualmente convencionado, comunicando a resolução do contrato e solicitando a restituição do equipamento locado e, bem assim, o pagamento dos valores devidos – cf. pontos 8) a 11).
A requerida não restituiu a máquina à requerente, que mantém na sua disponibilidade, podendo utilizar quando assim o pretender, contra a vontade desta última.
Por esta razão, a requerente instaurou o presente procedimento cautelar não especificado, visando a restituição do equipamento e que este lhe seja entregue.
A requerente não suscitou sequer a aplicabilidade ao contrato dos presentes autos da providência cautelar específica prevista no regime jurídico da locação financeira, isto é, a entrega judicial prevista no art.º 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, nem aquela se cogita relativamente a um contrato de locação operacional.
Como refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume – Procedimentos Cautelares Especificados, pág. 306:
“A especificidade da providência, associada ao princípio da legalidade que rege os procedimentos cautelares, impede que se recorra a esta medida como instrumento de realização de direitos emergentes de contratos de diversa natureza, ainda que, na aparência, revistam características semelhantes.
Estão, assim, fora do âmbito de aplicação da medida os contratos de aluguer de veículos automóveis, o contrato de aluguer de longa duração, vulgo ALD, ou o contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade.”
A jurisprudência tem reconhecido também a inaplicabilidade dessa específica providência a contratos similares ao dos autos, realçando-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-05-2021, relator Jorge Leal, processo n.º 9173/20.5T8LRS.L1-2 que “a tutela cautelar em causa visa proteger os interesses de mercado associados a esta nova forma de financiamento [locação financeira], reduzindo os riscos para o locador com a deterioração ou perda da coisa locada […], permitindo que, ainda que só indiciariamente extinta a relação contratual, o bem locado passe rapidamente para o domínio do locador, que poderá imediatamente dele dispor, mesmo que a providência não ultrapasse o umbral da provisoriedade”, depondo, no mesmo sentido, a propósito do contrato de aluguer de longa duração, o acórdão do referido Tribunal da Relação de 26-02-2015, relator António Martins, processo n.º 1617/14.1T8SNT.L1-6: “[…] vigora em termos de direito processual um princípio de legalidade, nos termos do qual o direito de acesso aos tribunais e a realização do direito subjectivo deve efectuar-se através da “acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção” cfr. art 2º nº 2. Assim, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para “acautelar o efeito útil da acção”, quando está em causa o exercício dos direitos conferidos no âmbito de um contrato de ALD, não é possível o recurso à providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 para o contrato de locação financeira. Com efeito, nesta matéria, se o propósito do legislador fosse o de permitir aos contraentes do contrato de ALD poderem usar do procedimento cautelar que está consagrado para o contrato de locação financeira, não teria deixado de consagrar esse propósito, ou alterando o DL 149/95 ou alterando o regime jurídico da actividade de aluguer de veículos de passageiros sem condutor. Mas não o tem feito, apesar das sucessivas alterações ao referido DL 149/95 e de, ainda recentemente, ter revogado o regime jurídico desta actividade de aluguer de veículos sem condutor, que estava consagrado no DL 354/86 de 26.10 (com sucessivas alterações posteriores) consagrando um novo regime dessa actividade no DL 181/2012 de 06.08, não pode deixar de se concluir que não é esse o propósito do legislador. Aliás, se dúvidas existissem, elas eram dissipadas por este último diploma pois nele o legislador expressamente excluiu a sua aplicabilidade aos “contratos de prestação de serviços de aluguer de longa duração, também designados de ALD ou renting” (cfr. art.º 1º nº 2 al. c) do citado DL 181/2012.”
Assim, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para a requerente acautelar o efeito útil da acção, em que visa fazer valer o seu direito emergente de um contrato de locação operacional, deve concluir-se que a forma ou via processual adequada é o procedimento cautelar comum, previsto no art.º 362º e seguintes do CPC.
A recorrente considera não estarem verificados os pressupostos para a aplicação da providência decretada, porquanto não foi provada a existência de qualquer dano, não existindo qualquer risco de perecimento porque a máquina não está em funcionamento, assim como não se verifica o risco de lesão iminente ou irreversível do direito, não existindo periculum in mora.
Nos termos dos art.ºs 362º, n.º 1 e 368º, n.º 1 do CPC, incumbia à requerente demonstrar que se verificavam, cumulativamente, os seguintes pressupostos: a)-A probabilidade do direito tido por ameaçado, que seja objecto de acção declarativa ou que venha a surgir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b)-A existência de fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção ainda nem foi interposta, ou tendo-o sido já, ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c)-A não existência de providência nominada para acautelar esse direito; d)-A adequação da providência requerida para remover o periculum in mora concretamente apurado e para assegurar a efectividade do direito ameaçado; e)-O prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
O juiz deverá proceder a uma ponderação adequada dos factores em presença de modo a estabelecer o maior equilíbrio possível entre os interesses conflituantes.
Ao referir-se que a medida pretendida deve ser adequada a tutelar o direito ameaçado visa-se também garantir a existência de proporcionalidade entre a medida adoptada ou a adoptar e as finalidades visadas.
Tendo a requerida faltado ao pagamento dos alugueres em dívida, não tendo procedido ao seu pagamento após a interpelação admonitória que a requerente lhe fez e não podendo considerar-se inadequado – ao contrário do sustentado pela recorrente - o prazo de oito dias que lhe foi concedido para liquidar os valores em dívida (quer porque contratualmente previsto, quer porque a vida deste contrato vinha sendo pautada por sucessivos incumprimentos ou mora no cumprimento por banda da requerida, pelo menos desde 2019, sendo que em Setembro de 2020 permaneciam em dívida prestações vencidas no primeiro trimestre desse ano, o que revela a concessão pela requerente de diversas oportunidades para o seu pagamento), a resolução do contrato pela requerente confere-lhe o direito à restituição do equipamento.
Em conformidade com o acima expendido, o regime jurídico aplicável ao presente contrato há-de encontrar-se, desde logo, no teor do respectivo clausulado, sendo que no ponto 13.1 das Condições Gerais ficou estipulado o seguinte: “Sem prejuízo dos demais casos de resolução decorrentes da lei e do presente Contrato, este poderá ser resolvido pelo Locador: (i) em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do Locatário que podendo ser remediado, não o seja no prazo mázimo de 8 (oito) dias a contar do envio da interpelação para o efeito; (ii) imediatamente, em caso de incumprimento de obrigações do Locatário insusceptíveis de sanação.”
O ponto 13.3. estipula que a resolução será efectuada por simples declaração do locador dirigida ao locatário por escrito, ficando este último, por vida dela, obrigado a restituir os bens locados no prazo previsto na declaração de resolução, para além de dever proceder ao pagamento dos alugueres e outros montantes devidos e indemnização por perdas e danos (cf. ponto 13.4).
De todo o modo, a possibilidade de resolução do contrato sempre seria conferida à requerente atento o estatuído nos art.ºs 406º, n.º 1, 432º, n.º 1, 433º, 434º, 808º, n.º 1, 1041º, n.º 1, 1043º, n.º 1 e 1047º do Código Civil.
Mostra-se, deste modo, indiciado o primeiro pressuposto da concessão da providência requerida, isto é, a existência do direito invocado pela requerente, o direito à restituição do equipamento locado.
Para além da demonstração da probabilidade do direito, a requerente tem de demonstrar a existência de fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
Para tanto, não basta uma demora na efectivação do direito que se traduza num prejuízo para o titular. É necessário um prejuízo grave e dificilmente reparável, pois que só desse modo se justifica a urgente e provisória intromissão do tribunal na esfera jurídica do requerido, por vezes, sem contraditório e com a possibilidade de se praticar um acto que venha a revelar-se injustificado – cf. art.ºs 363.º, 366.º e 374.º n.º 1 do CPC.
Como esclarece A. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume – Procedimento Cautelar Comum, 1998, pp. 83-85:
“O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável constitui, nas medidas cautelares atípicas, a manifestação do requisito comum a todas as providências: o “periculum in mora” […]
Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de decisão que o coloque a coberto da previsível lesão. […]
A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado.
Pela protecção cautelar não se abarcam apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular.
Porém, especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva. […]
O facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e”, em vez da disjuntiva “ou” deve levar-nos a reflectir que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil.
Apenas as lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum.
Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões graves, mas facilmente reparáveis.”
Logo, a gravidade da previsível lesão deve ser sindicada à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, ressarcíveis através da reconstituição natural ou da indemnização substitutiva.
A decisão recorrida identificou a divergência jurisprudencial existente quanto à verificação de perigo de lesão grave e de difícil reparação quando estão em causa procedimentos cautelares inominados em que se visa obter a apreensão ou a restituição de bens objecto de contratos de locação (sobremaneira, contratos de aluguer de longa duração, renting ou locação operacional, quando têm por objecto veículos automóveis), aderindo ao entendimento que não está apenas em causa o direito à restituição do veículo, cuja demora pode originar uma obrigação de indemnização a cargo da requerida, ou a necessidade de acautelar o pagamento dos alugueres, mas também o direito da requerente de não ver inutilizada a sua propriedade, cujos direitos de uso, fruição e disposição lhe pertencem em exclusivo e que são afectados se a requerida continuar a deter e a utilizar o equipamento, daí que tenha considerado que a utilização da máquina implica a sua depreciação ou até, a curto prazo, a sua inutilização, o que integra o risco de a requerente ficar privada do seu bem, pelo que decretou a providência solicitada.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-05-2021, relator Jorge Leal, processo n.º 9173/20.5T8LRS.L1-2 acima mencionado efectua uma resenha esclarecedora sobre as orientações jurisprudenciais em presença:
“A este respeito, no que concerne à apreensão de automóveis no âmbito de providências cautelares não especificadas, em situações idênticas à invocada nestes autos (garantir a restituição do automóvel pelo locatário, uma vez cessado o contrato), podem descortinar-se, no essencial, duas posições.
A primeira defende que os interesses do locador do automóvel têm natureza exclusivamente patrimonial, pelo que a sua violação pode ser ressarcida, se não por reconstituição natural, pelo menos por meio do pagamento de uma indemnização pecuniária (artigos 566.º, 1044.º e 1045.º do Código Civil). Assim, o requerente/locador deve alegar e provar existir fundado receio de que não conseguirá obter do locatário/requerido a reparação da lesão do seu direito, designadamente, por exemplo, dada a insuficiência do património deste ou o perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial. Para tal não chegará a simples invocação e prova de que o requerido deixou de pagar as rendas e/ou se furta a restituir o veículo e que o mesmo se degrada com o tempo e o uso (cfr., v.g., acórdão da Relação do Porto, 27.11.2003, processo 0335609; ac. da Rel. de Lisboa, 30.3.2004, 10813/2003-7; Porto, 21.12.2004, 0426453; Lisboa, 14.4.2005, 3047/2005-8; Porto, 08.11.2005, 0524432; Lisboa, 04.7.2006, 5235/06-2; Porto, 19.4.2007, 0731622; Lisboa, 08.01.2008, 7956/2007-1; Porto, 11.9.2008, 0736163; Lisboa, 23.4.2009, 5937/08.6TBOER.L1-2; Lisboa, 08.10.2009, 3432/08.2TBTVD-A-L1-8; Coimbra, 28.4.2010, 319/10.2TBPBL.C1; Coimbra, 07.9.2010, 713/09.1T2AND.C1; Coimbra, 19.10.2010, 358/10.3T2ILH.C1; Lisboa, 10.02.2011, 5638/10.5TBOER.L1-6; Lisboa, 15.12.2011, processo 746/11.8TVLSB-A.L1-2, subscrito pelo ora relator e pelo Exm.º 2.º adjunto; Coimbra, 13.11.2012, 460/12.7T2ILH.C1; Coimbra, 01.10.2013, 589/13.4T2AVR.C1; Guimarães, 15.10.2013, 716/13.1TBFAF.G1; Porto, 26.01.2016, 7401/15.8T8VNG.P1).
Dando eco a esta corrente jurisprudencial veja-se, na doutrina, Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, ob. cit., p. 146, nota 391.
Tal posição não é, porém, consensual. Parte significativa da jurisprudência defende que o direito que, no essencial, o locador/requerente pretende acautelar é o seu direito de propriedade, o direito ao uso, fruição e disposição de um bem que lhe pertence, o automóvel, direito esse que não é relevantemente reparado mediante o pagamento de uma indemnização; e a conduta relapsa do locatário/requerido bastará para dar como suficientemente indiciado o sério risco de esse direito ser irremediavelmente violado (cfr., v.g., Relação do Porto, 30.10.2003, 0334866; Porto, 06.5.2004, 043252; Porto, 11.11.2004, 0434300; Évora, 08.3.2007, 94/07-3; Évora, 24.4.2008, 820/08-3; Porto, 18.6.2008, 0833386; Porto, 24.9.2009, 4481/09.9TBMAI.P1; Évora, 21.10.2009, 1105/09.8TBOER.E1; Évora, 14.4.2010, 46/10.0TBABF.E1; Lisboa, 12.10.2010, 5549/09-7; Lisboa, 18.11.2010, 339/10.7TBSSB.L1-8; Lisboa, 26.02.2015, 1617/14.1T8SNT.L1-6; Porto, 20.4.2017, 575/17.5T8VNG.P1; Lisboa, 06.7.2017, 978/17.5T8CSC.L1-2; Porto, 07.01.2019, 903/17.3T8VNG.P1).
Também releva a tese defendida no acórdão da Relação de Coimbra, de 28.11.2018, processo 3440/17.2T8LRA.C1, no qual se realçou que, sendo o direito a acautelar o da restituição da coisa locada ao locador, constituiria periculum in mora relevante o fundado receio de dissipação ou ocultação do veículo a restituir, por parte do locatário.”
Conclui-se, depois, nesse aresto, que o facto de o veículo perder valor ao longo do tempo, seja pela perda de “modernidade” das suas características, seja pelo seu desgaste, é factor normal, que necessariamente é tido em consideração pela locadora na fixação das contrapartidas pecuniárias que cobra aos locatários, nomeadamente na avaliação do valor residual do veículo para efeitos de exercício da opção de compra pelo locatário, pelo que a reparabilidade da lesão deve ser aferida pela suficiência ou insuficiência do património do requerido ou pelo perigo do desaparecimento ou diminuição relevante dessa garantia patrimonial (art.º 601.º do Código Civil); e refere ainda que mesmo que se considere que o direito que há que garantir é o direito à restituição da viatura locada, a antecipada restituição só se justificaria se se indiciasse fundado receio de extravio, de destruição ou de séria danificação (situações que, porém, no caso concreto, não se verificavam).
No requerimento inicial a requerente convocou expressamente um risco de lesão grave e de difícil reparação decorrente da circunstância de a requerida continuar a utilizar o bem locado, que é de valor elevado, em seu proveito próprio, nele provocando desgaste e deterioração, criando, desse modo, uma situação de difícil e morosa reparação.
Em consonância com a decisão recorrida, propende-se para a posição assumida no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-02-2015, relator António Martins, processo n.º 1617/14.1T8SNT.L1-6, quando alerta para o facto de, estando provado, como também sucede neste caso, que a requerida não procede ao pagamento das prestações mensais (no caso, desde Janeiro de 2020, tendo pago apenas as prestações de Abril, Maio e Julho) e que, resolvido o contrato, não procedeu à entrega do equipamento, como se lhe impunha, mantendo-o na sua disponibilidade e dele podendo fazer uso a todo o tempo, o que a deprecia e reduz o seu valor de mercado, não se estar apenas perante meros receios subjectivos da requerente, mas face a um fundado receio de lesão efectiva do seu direito de propriedade (no caso, sobre a máquina fresadora de rastos), não interessando, nessa perspectiva, que a requerida possa vir a ser responsabilizada e tenha de reparar os danos que a máquina apresente ou venha a ter de pagar uma indemnização no caso de não restituição, dado que aquilo que releva é que possa ser afectado o actual direito de propriedade da requerente.
Com efeito, o especial cuidado que se deve ter aquando da apreciação da verificação do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável no contexto de situações meramente patrimoniais não deve ser levado ao extremo, pois que a ser assim apenas perante bens eminentemente pessoais poderia ocorrer esse fundado receio e, mesmo nessas situações, sempre se poderia considerar que também esses danos seriam passíveis de indemnização sucedânea (cf. art. 566º do Código Civil).
Mais se refere nesse aresto, secundando o acórdão proferido por essa mesma Relação em 18-11-2010, relatora Teresa Prazeres Pais, processo n.º 339/10.7TBSSB.L1-8, que o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes, sendo evidente, neste caso, que a pretensão da requerente é salvaguardar o direito de propriedade sobre a máquina a se, e não uma eventual indemnização ressarcitória.
Assim, a finalidade da presente providência é acautelar o direito de propriedade sobre a máquina e o conteúdo próprio desse direito (o direito ao seu uso e fruição conforme o proprietário entender).
Como se aduz no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-04-2017, relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 575/17.5T8VNG.P1:
“O proprietário cujo direito de propriedade é violado ilicitamente por um terceiro pode reclamar deste a indemnização dos danos causados pelo comportamento do terceiro, mas também pode, em simultâneo e cumulativamente, exigir do terceiro que cesse a violação e que se abstenha de afectar o conteúdo jurídico do seu direito de propriedade. Um direito não prejudica nem substitui o outro; cada um deles tem a sua própria natureza jurídica, o seu regime de tutela e pode ser defendido de forma autónoma.
Quando a requerente pede a entrega do veículo está a defender o seu direito de propriedade sobre o veículo, não o seu direito de crédito decorrente do não cumprimento do contrato de aluguer, sendo certo que o direito à restituição é o direito de recuperar o bem como coisa íntegra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou já apenas sucata. Não resulta da ordem jurídica e o tribunal não pode impor à requerente o sacrifício do direito real e a substituição involuntária pela indemnização sucedânea! Por conseguinte, o que cabe ao tribunal decidir não é se a requerente pode por outra via obter um valor que a compense da privação do veículo e da afectação do conteúdo do seu direito real de propriedade, mas apenas se a tutela provisória do direito real está justificada […]
Nessa medida, o periculum in mora exigível não é aquele que se prende com o risco de satisfação do direito de indemnização (se a devedora tem património para pagar) mas apenas o que se reporta ao risco de afectação grave e dificilmente reparável do direito de propriedade.”
Ora, estando provado que a requerida mantém em seu poder a máquina e que a pode utilizar, mesmo contra vontade da requerente, sem qualquer controlo por parte desta ou contrapartida e que tal utilização causa depreciação (aliás, pela natureza da máquina – fresadora de rastos – e utilização que lhe é dada – na construção civil – é fácil de admitir que o desgaste causado pela sua repetida utilização, ao longo de horas cujo número é totalmente desconhecido pela proprietária, será exponencial, atentas as especificidades dos locais e contextos onde pode ser utilizada), não se pode deixar de considerar que ocorre um risco de lesão grave e de difícil reparação do direito de propriedade sobre o equipamento cuja entrega a requerente pretende alcançar.
Note-se, além disso, que neste tipo de contrato de aluguer, sem opção de compra a final, as prestações mensais constituem contrapartida do gozo da utilização e não têm em vista ressarcir o locador pelo valor da aquisição, não sendo considerado qualquer valor residual final do equipamento, que nem sequer está previsto, como sucede no contexto dos alugueres de longa duração com opção de compra, pelo que nem se poderá dizer que o previsível desgaste da máquina está já contemplado nas prestações acordadas.
E se isto não fosse bastante, sempre se dirá que merece acolhimento o entendimento de que, na ausência de providência específica para este tipo de contratos de locação, cujo clausulado é manifestamente inspirado na locação financeira, relativamente à qual o legislador entendeu legítimo recorrer a regras de experiência para considerar verificado o periculum in mora atenta a natureza perecível do automóvel (providência aliás estendida também à locação financeira imobiliária, onde já não é o risco de perecimento mas a necessidade de reposição do bem no mercado que releva), se justifica, no contexto da unidade do sistema jurídico (cf. art. 8º, n.º 3 do Código Civil), a aplicação de solução similar – cf. voto de vencida da senhora desembargadora Márcia Portela no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-01-2016, processo n.º 7401/15.8T8VNG.P1.
Pelas razões apontadas, pela fácil depreciação de uma máquina utilizada em trabalhos de construção civil, pela ausência de controlo dessa utilização por parte da requerente, pela recusa da requerida em proceder à entrega, decorrido que está quase um ano sobre a comunicação da resolução do contrato, mantendo-o na sua disponibilidade, apesar de não ter qualquer outro direito obrigacional que lhe confira legitimamente o seu gozo, está demonstrada a existência de uma ameaça fundada de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da requerente/apelada.
Assim, é de manter a decisão recorrida que decretou a providência solicitada, incluindo quanto à inversão do ónus do contencioso, pois que se verificam os requisitos exigidos pelo art.º 369º do CPC, dado que a requerente formulou tal pretensão logo no requerimento inicial e é de considerar-se segura a convicção do tribunal acerca da existência do direito acautelado, a validade da resolução do contrato de aluguer, pela conversão da mora em incumprimento definitivo, assim como o reconhecimento do direito de propriedade da requerente sobre a máquina em causa (sendo certo que quanto a esta questão a recorrente se limitou a sustentar a inviabilidade da inversão do contencioso por não demonstração dos pressupostos da providência, o que não se verifica).
Improcede, assim, a apelação devendo manter-se inalterada a decisão proferida.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A apelante decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
[1]Adiante designado pela sigla CPC. [2]Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem. [3]Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro, e Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro. [4]Este, quando contendo uma cláusula de opção ou promessa de compra e venda equiparado por alguma jurisprudência a um contrato de crédito – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-04-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 300/14.2TBOER.L2.S1 – “Só os contratos denominados de “ALD” em que exista estipulação que preveja o direito ou a obrigação de compra da coisa locada são havidos como contratos de crédito. Na ausência dessa estipulação, não se está perante “contrato de aluguer de longa duração” similar ao de locação financeira. Inexistindo no misto contratual o fim indirecto ou a pluralidade contratual em coligação, visando a aquisição, a final, do bem locado, pelo locatário, não sobra mais que um aluguer, por mais longa que seja a sua duração estipulada.».” [5]Conforme informação disponibilizada na página da internet com o endereço https://www.racius.com/dl-iberica-equiprent-s-a-sucursal-em-portugal/ consultada em Setembro de 2021. [6]Publicado na página da Internet do Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - 1º Novo Coronavírus e Gestão da Crise Contratual - Estratégias Jurídicas, acessível em https://www.cidp.pt/publicacao/1-novo-coronavirus-e-gestao-da-crise-contratual-estrategias-juridicas/206. [7]Publicado na página referida na nota 7. [8]Acessível em https://aafdl.cld.bz/Novo-Corona-virus-e-Crise-Contratual. [9]Publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI 2020, N.º 1.