RECURSO PENAL
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Sumário


A ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social, familiar e profissional do arguido, tem reduzido valor atenuativo, por ser a conduta exigida a todo e qualquer cidadão como modo de poder viver em sociedade, pelo que não podem ser consideradas circunstâncias que diminuem por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena de modo a desencadear a atenuação especial da pena.

Texto Integral





Processo n.º 1306/19.0JALRA.C1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Juízo Central Criminal……. o arguido AA, foi condenado como autor material de (transcrição):

«um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 alíneas b) e i) do Código Penal, na pena de 20 anos de prisão».

2. Inconformado recorreu para o Tribunal da Relação……. que decidiu «negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e manter o douto acórdão recorrido».

3. Ainda inconformado, recorre o arguido AA para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1 Decidiu o Tribunal da Relação……… confirmar o douto acórdão do Tribunal Central Criminal de ………, e não alterar a matéria de facto dada por provada, nem a pena aplicada.

2 O arguido recorre agora de Direito (art. 412, nº 1 e 2 CPP) pois, mesmo mantendo-se inalterada a matéria de facto dada por provada, da mesma, e respetiva fundamentação, não podem deixar de se extrair conclusões omitidas pelo Coletivo …….. e pela Relação ………, com relevo para a medida da pena,

3 Há que atender aos factos provados demonstrativos do arrependimento do arguido e do seu bom comportamento anterior e posterior à data da prática do crime.

4 Cronologicamente o Tribunal recorrido deu por provado que:

a) No dia 27 de dezembro de 2019, a hora não concretamente apurada do final da tarde / início da noite, na residência do casal, o arguido e BB iniciaram uma discussão (…) (facto a.3)

b) Acrescentou o TR…, no item “retomando o caso concreto” que (…) após chegar do trabalho houve uma discussão”

c) Os menores acabaram por se esconder (…) até às 20h34m, altura em que o agente da PSP ……. aí acorreu (facto a.8)

d) O arguido foi localizado por militares da GNR ……, nesse mesmo dia, cerca das 22h25m, no IC…. (facto a.9)

5 O agente da PSP CC, que (…) foi o primeiro a chegar ao local, na sequência de chamada telefónica do arguido a relatar o sucedido, elaborou o Auto de notícia da PSP, NPP: 60……/2019 NUIPC: 001306/19……., (ref. citius …….36, de 30.12.2019), que se transcreve:

“No dia e à hora mencionados, desloquei-me ao local da ocorrência, por comunicação da central rádio desta Polícia, onde havia notícia de um homicídio, havendo informação de que um indivíduo do sexo masculino ligou para a mesma central a informar que tinha momentos antes assassinado a sua companheira. Chegado ao local com a informação que havia, foram encetadas diligências a fim de localizar a residência em causa, levando-nos ao …….. porta "…..", local onde residiam os intervenientes. A porta encontrava-se fechada, batemos a fim de obter resposta, tendo uma criança aberto a mesma e ao lhe perguntar pelos pais, respondeu que o pai tinha saído para ir buscar ajuda e a mãe estava deitada no sofá. (…)

Fui abordado pelo DD, que me informou conhecer os intervenientes e ao ter conhecimento dos factos de imediato e por sua iniciativa entrou em contacto telefónico com o suspeito, questionando se era verdade ter morto a mulher obtendo uma resposta afirmativa e foi informado de que o mesmo circulava no seu carro no IC…. no sentido sul-norte, próximo …….., tendo sido difundida esta informação através da central rádio desta Polícia para outros OPC.

6 Segundo Acordão do TR…. de que se recorre, “É medianamente pacifico, face às provas já reapreciadas, que após ter abandonado BB em agonia e a esvair-se em sangue, o arguido/recorrente AA, num telefonema para a central da PSP informou “…que tinha momentos antes assassinado a sua companheira” (auto de notícia folhas 5) e que a PSP se deslocou ao apartamento habitado pelo casal onde encontrou a vítima BB e os filhos menores.

7 Contudo, em manifesta contradição com o teor do Auto da PSP, com a cronologia dos factos provados e com o transcrito supra, o Ac. TR…. refere que este telefonema foi efetuado quando o arguido AA se encontrava em fuga e desde local desconhecido, não tendo sido possível averiguar se foi efetuado antes ou depois de ter despistado a viatura por si utilizada (…) pois veio a ser abordado na sequência de um despiste/acidente no IC…., já no concelho …….., pela GNR, cerca das 20h30m do dia 27 de dezembro de 2019.

8 Atendendo à dinâmica dos acontecimentos e às horas indicadas nos factos provados, é evidente que o telefonema do arguido para a PSP foi realizado ANTES do despiste pois às 20.34h já a PSP entrava no apartamento onde o casal habitava,

9 E foi, no local, informada por DD que o arguido se deslocava (se se deslocava é porque ainda não se tinha despistado) em direção a …….. pelo IC….. (vide Auto acima transcrito)

10 A GNR abordou o arguido mais tarde, às 22.25h, após o despiste,

11 E não às 20.30h como, erradamente, e em manifesta contradição com a matéria provada, consta da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação.

12 Pelo que sempre terá de se concluir que, imediatamente a seguir à ocorrência, e antes de se despistar, o arguido AA teve a iniciativa de contactar a Polícia, confessou o crime e pediu auxílio, e que foi por causa do seu telefonema que a PSP se deslocou de imediato ao local.

13 Bem como confessou o que havia feito a amigos e solicitou igualmente auxílio para a vítima e filhos.

14 E teve essa iniciativa logo que saiu de casa, e não após o despiste e a abordagem pela GNR, já na zona …….., como resulta das horas a que o Agente da PSP se deslocou ao apartamento.

15 No caso, existem circunstâncias anteriores e posteriores ao crime, ou contemporâneas deste, que diminuem, de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena

16 Existem atos concretos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, e tentativa de reparar a situação causada, mesmo atendendo apenas aos factos dados por provados na decisão recorrida e sua fundamentação, nomeadamente,

17 A participação imediata do crime às autoridades policiais

18 O pedido de ajuda para BB e para os filhos menores à PSP e também aos amigos,

19 A confissão dos factos em Julgamento.

20 A manutenção de boa conduta, quer anteriormente à prática do ilícito, conforme factos provados a16, a17, a18, a19, a20, a21, a26, a27,

21 Quer posteriormente, conforme factos provados a28, a29, a31,

22 Do seu CRC nada constar. (facto a 33)

23 E o Relatório Social, referir que o arguido, em abstrato, apresenta capacidade de entendimento e juízo crítico sobre os factos de natureza idêntica aos que lhe deram origem, reconhecendo a sua ilicitude e gravidade.

24 O comportamento positivo do agente subsequente à prática de um crime, para ter relevo e produzir efeitos jurídico-penais, tem de ser exteriorizado através de factos concretos. Deve ser útil para o sistema de justiça.

25 Afirma-se no douto Acórdão recorrido que a confissão dos factos pelo arguido foi parcial e que não mostrou arrependimento sincero.

26 Contudo, o comportamento do arguido ao longo de toda a fase pós crime e ao longo do processo crime é demonstrativa do contrário.

27 O arguido colaborou com a justiça quer sob a forma de confissão quer de arrependimento.

28 A confissão consiste na declaração do agente perante a autoridade judiciária competente a reconhecer que cometeu um crime,

29 O que sucedeu quando telefonou para a Central da PSP a informar ter morto a companheira,

30 Em julgamento o arguido, foi demonstrando concordância geral com a acusação que lhe foi lida, apenas acrescentando ou discordando de algum concreto ponto da mesma.

31 Confessou perante o Tribunal que na casa de banho do apartamento que o casal partilhava agrediu a infeliz BB e, com um xi-ato, desferiu dois golpes no seu pescoço.

32 É certo que referiu dois golpes, e não três, mas dado o desnorte em que deveria estar quando praticou tal ato não poderá ser valorizado negativamente a omissão de um dos golpes.

33 Confessou que tinha sido ele a provocar as lesões no corpo da vítima e a provocar a sua morte.

34 Descreveu de maneira diferente a posição da vítima, que disse estar de frente para si e não de costas, pese embora, reconheceu a própria responsabilidade penal do circunstancialismo factual.

35 A confissão pelo arguido da prática do crime, foi bastante como meio de prova, e meio de prova de relevo, tanto que o Ministério Público, prescindiu da maioria das testemunhas arroladas.

36 Esta confissão demonstra a personalidade do arguido. O reconhecimento que agiu de forma errada, traduz a auto reprovação do seu comportamento e, a par de outros atos praticados previamente ao julgamento, o seu arrependimento.

37 A confissão tem ainda relevo para que o Tribunal possa aferir da personalidade do arguido e, consequentemente, para fazer funcionar o fim preventivo especial da pena.

38 Mesmo que a confissão do arguido em pouco ou nada tivesse contribuído para a descoberta da verdade, o que não foi o caso, deveria ser sempre considerada por constituir um sinal poderoso de inexistência de necessidades preventivas.

39 A confissão que se mostre útil para a administração da justiça, designadamente ao nível da descoberta da verdade, tem de ser valorada no momento da escolha e da determinação da pena.

40 Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, refere que toda a colaboração prática com as autoridades na descoberta da verdade deve ser creditada a favor do agente no balanço das necessidades preventivas do caso. Quanto maior for essa utilidade, maior será, também, o seu peso a favor do arguido.

41 O arguido confessou os factos no início do julgamento, antes de produzida a demais prova, o que tem mais valor seja como atenuante geral, seja como fator de medida concreta da pena.

42 E a sua confissão, nos termos em que o foi, tornou desnecessária a produção da maioria da prova testemunhal arrolada pelo Ministério Público, que renunciou à mesma.

43 Pela sua decisiva importância como meio de prova, o seu valor, designadamente como atenuante geral ou como fator de medida da pena concreta, não pode deixar de ser particularmente elevado, o que igualmente se justifica do ponto de vista da prevenção geral e especial.

44 O peso da confissão no momento da determinação da sanção varia na proporção da sua utilidade para o sistema da administração da justiça, designadamente enquanto meio de prova e da sua maior ou menor dificuldade.

45 A sua relevância resulta particularmente evidente no processo de escolha e individualização da sanção penal e de atenuante

46 Segundo Ac. STJ de 09.07.1986: A importância da confissão e do arrependimento não se esgota, porém, no campo do processo da determinação da pena que se segue à produção da prova em sede de julgamento. Desempenham, igualmente, papel decisivo na antecipação das consequências jurídicas do crime para as fases processuais anteriores.

47 Por outro lado, o arguido demonstrou o seu arrependimento mediante os atos praticados imediatamente a seguir ao ilícito penal.

48 Previamente ao julgamento, e imediatamente a seguir à prática do ilícito, já o arguido havia confessado o crime às autoridades policiais, num momento em que o crime ainda não era do conhecimento de ninguém, pediu auxílio a amigos e disse onde se encontrava.

49 Porque arrependido, e desejoso de não ter agredido a infeliz vítima, de imediato procurou ajuda para a mesma.

50 Ficando, ele próprio, pesaroso, com remorsos e aflito devido ao delito praticado, condenando-se a si mesmo e cooperando voluntariamente com as forças de autoridade.

51 Para além dos atos realizados em prol do socorro a BB o arguido confessou o que havia feito perante as autoridades policiais e perante o Tribunal.

52 Confissão que também constitui um dos elementos objetivos do arrependimento.

53 Raramente existe confissão sem arrependimento ou arrependimento desacompanhado de confissão.

54 O comportamento processual positivo pós-delito do arguido, realizado em benefício da vítima ou da administração da justiça é, por isso, valorado positivamente pelo direito.

55 Conforme Ac. STJ de 18.02.1999 “O agente desenvolve uma atividade posterior ao crime destinada a eliminar ou atenuar os seus efeitos danosos ou perigosos, atividade essa que não poderá deixar de funcionar a seu favor.”

56 Prof. Germano Marques da Silva salienta que aquele que erra e se arrepende merece um tratamento penal mais favorável.

57 O arrependimento deverá mostrar-se útil, do ponto de vista da administração da justiça e das vítimas, mas, também, do ponto de vista do fim das penas, designadamente a reintegração social do agente, uma das finalidades da sanção criminal enunciada no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal. Essa finalidade mostra-se em parte conseguida com o arrependimento. Revelando o agente sinceramente arrependido uma personalidade menos endurecida do que a do criminoso insensível aos remorsos e, consequentemente, menor necessidade de prevenção especial em virtude de menor perigosidade, são necessariamente positivas as expetativas sobre o seu comportamento futuro, isto é, sobre o seu modo de ser e sobre a sua adequação ao ordenamento jurídico, e, consequentemente, sobre o seu regresso à sociedade.

58 Enquanto comportamento pós-delito positivo alheio ao tipo, que não se reconduz nem à ilicitude nem à culpa, o arrependimento, desde que sincero, pode funcionar como circunstância modificativa atenuante, expressamente prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal.

59 Segundo Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pág.ª 302), "quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação da pena".

60 O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 71º,72º e 73º do CP, por não ter atenuado especialmente a pena, como deveria face ao arrependimento e ao comportamento anterior e posterior do arguido,

61 Termos em que deverá ser revogado e substituído por outro que condene o arguido em pena especialmente atenuada, nos termos do disposto no art. 71º, 72º e 73º do Código Penal, com as limitações previstas nesta última disposição legal.

4. O MP no Tribunal da Relação, na resposta ao recurso, concluiu:

1. Quanto às questões de direito, atenta a inalterada matéria de facto, é inaplicável qualquer tentativa de dar como verificados os pressupostos que a existirem – e não é o caso - justificariam a atenuação especial da pena aplicada.

2. Também não merece censura, nem o recorrente a questiona, a subsunção legal dos factos provados ao tipo legal do art.º 131º e 132º, n.º 1 e 2 als. b) e i) do C. P.

3. Bem assim, não merece censura a determinação em concreto da medida da pena de prisão aplicada, a qual se mostra devidamente ponderada, estando ajustada à gravidade dos factos e à personalidade do arguido.

Deverá, assim, o recurso, ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido.

5. Neste Supremo Tribunal de Justiça a Procuradora-Geral Adjunta acompanhou os fundamentos aduzidos no acórdão do TR…, realçados na resposta apresentada pelo Mº Pº junto do citado tribunal, pronunciando-se igualmente pela improcedência do recurso do arguido.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Factos provados (transcrição):

1) O arguido AA e BB mantiveram uma relação amorosa entre 2017 e 2018 e viveram por alguns meses como se marido e mulher fossem na …, …….

2) Reataram o relacionamento amoroso em 2019, voltando, em Junho desse ano, a viver como se marido e mulher fossem, na ………, juntamente com os filhos da BB, EE, nascido em …. de 02 de 2013, e FF, nascida em …. de 10 de 2017.

3) No dia 27 de Dezembro de 2019, a hora não concretamente apurada do final da tarde/início da noite, na residência do casal, o arguido e a BB iniciaram uma discussão, tendo, no decurso da mesma, entrado na casa de banho dessa habitação.

4) Nesse âmbito, e encontrando-se a BB junto da banheira, de costas para o arguido, este, abordando-a por trás e apanhando-a desprevenida, empunhou um x-ato com cabo em plástico de cor vermelha e ponta preta, com respectiva lâmina, e, com o mesmo, desferiu três golpes no pescoço da ofendida, em movimentos da esquerda para a direita, provocando-lhe, de imediato, as lesões abaixo descritas, com consequente e abundante sangramento e projeção sanguínea.

5) De seguida, o arguido lavou o x-ato com água, após o que se dirigiu à zona da cozinha, e guardou-o no interior de um saco de desporto em tecido de cor preta, onde o arguido tinha vários objectos relacionados com a sua actividade profissional.

6) Acto contínuo, o arguido abandonou o local no veículo automóvel da marca e modelo ………., de matrícula ….-PO-…. .

7) A BB, a sangrar, sozinha e sem qualquer assistência, arrastou-se da casa de banho até à sala, onde veio a tombar em cima do sofá, aí falecendo, na presença dos menores EE e FF, à data com 6 e 2 anos de idade, respectivamente.

8) Os menores acabaram por se esconder, com medo, debaixo de umas prateleiras na cozinha, ficando sozinhos, com o cadáver da mãe no interior do apartamento, até às 20h34m, altura em que agente da PSP …….. aí acorreu.

9) O arguido foi localizado e detido por militares da GNR ……., nesse mesmo dia, cerca das 22h25m, no IC…., ao km 144,500, após ter sofrido acidente de viação quando conduzia o referido veículo.

10) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu as lesões analisadas e descritas no relatório de autópsia de fls. 315 a 320, designadamente:

- Pescoço:

a) Hábito externo:

• “Lesão A”: Ferida corto perfurante, no bordo antero lateral esquerdo do pescoço, de extremidade medial muito angulosa e extremidade lateral ligeiramente arredondada, medindo 1,5cm de comprimento por 0,4cm de afastamento máximo;

• “Lesão B”: Extensa ferida incisa, transversal (muito discretamente oblíqua para baixo e para a esquerda), de bordos limpos e extremidades angulosas, na face anterior do pescoço, situada abaixo da proeminência laríngea, medindo 6cm de comprimento por 1,5cm de largura máxima, com exposição dos músculos esterno-hioides, que se apresentavam seccionados e com exposição da traqueia que se apresentava igualmente seccionada;

• “Lesão C”: Superiormente à ferida anteriormente descrita, a nível da proeminência laríngea, ferida incisa paramediana direita, transversal, medindo 3cm de comprimento, por 0,8cm de afastamento máximo. Apresentava extremidade lateral angulosa e extremidade medial ligeiramente arredondada, sendo perceptível mais profundidade do ferimento na sua extremidade lateral. Adjacente à extremidade medial da ferida, escoriação medindo 1,2x0,3cm.

b) Hábito interno:

- Tecido celular subcutâneo, músculos e vasos:

• Subjacente ao descrito no hábito externo como “Lesão A”, presença de solução continuada que continuava em profundidade, através de um trajecto, atingindo e seccionando o bordo lateral do músculo esternocleidomastóideo e seccionando por completo os músculos escaleno médio e anterior, todos com exuberante infiltração sanguínea. A ferida perfurante atingia ainda a jugula interna esquerda, a qual se apresenta totalmente seccionada, e a carótida externa esquerda, parcialmente seccionada.

• Subjacente ao descrito no hábito externo como “Lesão B”, secção parcial da vertente superior do músculo omo-hioide e esterno-hioide direitos e secção completa da vertente superior do músculo omo –hioide e esterno-hioide esquerdos. Secção do lobo esquerdo da tiroide a nível do seu terço médio. Secção transversalmenor, incompleta, da traqueia a nível do seu terço superior, imediatamente abaixo da cartilagem cricoide.

• Subjacente ao descrito no hábito externo como “Lesão C”, secção parcial da extremidade superior do omo-hioide direito com laceração da fáscia dos músculos infra-hioides.

- Laringe e traqueia: Secção transversal, incompleta, da traqueia a nível do seu terço superior, imediatamente abaixo da cartilagem cricoide.

11) A morte de BB foi devida às lesões traumáticas cervicais supra descritas.

12) O arguido agiu ciente de que BB era sua companheira. O arguido agiu com o propósito concretizado de pôr termo à vida da mesma.

13) Sabia o arguido que a descrita actuação era idónea a provocar a morte da BB, como provocou, atendendo ao objecto utilizado e às zonas do corpo atingidas, onde se alojam órgãos vitais.

14) Sabia ainda o arguido que ao surpreender a BB nos termos descritos, surgindo nas suas costas e assim a golpeando no pescoço, actuava insidiosamente, cerceando a possibilidade de defesa da mesma.

15) Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Mais se provou:

16) O arguido AA é o segundo dos dois filhos do casal progenitor. Originários ………, no interior ……, os pais do arguido apresentavam modesta situação socioeconómica, dedicavam-se à agricultura e criação de alguns animais, em terrenos próprios e por conta de outrem.

17) O arguido e o irmão começaram a ajudar o pai nos trabalhos agrícolas desde muito cedo, sendo costume iniciarem os trabalhos ainda antes de irem para a escola e terem também tarefas para cumprir após o horário letivo. Mais tarde, passaram a estudar em horário noturno, dedicando-se aos trabalhos agrícolas durante o dia.

18) O percurso escolar de AA iniciou-se com cerca de sete anos e concluiu o ensino médio do Sistema de Ensino ……… (doze anos de escolaridade). Gostaria de ter continuado a estudar, mas a situação económica da família não o permitiu.

19) AA permaneceu integrado no agregado familiar de origem até cerca dos vinte anos de idade (2005), altura em que contraiu casamento. Tem dois filhos, GG, nascido a …/…./2006 (14 anos), que vive com os avós paternos, e HH, nascida a …./…./2010 (dez anos), que vive com a mãe. Este relacionamento decorreu até 2016, tendo a separação, da iniciativa do cônjuge do arguido, sido um acontecimento vivenciado por este com sofrimento.

20) O percurso profissional do arguido desenvolveu-se inicialmente no……, trabalhando ……. de que os pais são proprietários. Posteriormente trabalhou como ………, na ………. e também no setor ……… .

21) O arguido veio para Portugal (zona ………) pela primeira vez em 2006, com o objetivo de conseguir uma situação que lhe permitisse obter permissão para residir e trabalhar no nosso país. Retornou ao ……. passados cerca de oito meses para concretizar esse projeto, o que não conseguiu, por ter sido vítima de um acidente de viação de impediu a viagem. Regressou a Portugal em janeiro de 2008, aqui tendo permanecido até setembro de 2009, altura em que, na sequência de vários problemas de saúde que culminaram numa apendicectomia, retornou ao ………., onde permaneceu até setembro de 2017.

22) Anteriormente à prisão, AA vivia em Portugal desde o final de setembro de 2017. Decidiu voltar para Portugal após a separação conjugal, ocorrida em 2016 e depois de ter retomado o contacto com BB, que conhecia desde a adolescência, tendo sido colegas de escola. Estiveram muitos anos sem se contactar, mas no final de 2016, retomaram o contacto através da rede social “Facebook”, vindo a estabelecer um relacionamento afetivo, tendo decidido passar a viver em união de facto. Na altura, BB tinha um filho de um anterior relacionamento e estava grávida da segunda filha.

23) O relacionamento do casal foi marcado por diversos desentendimentos, que conduziram à separação, no início de dezembro de 2017.

24) Estiveram separados durante cerca de um ano, e no Natal de 2018, encontraram-se em casa de amigos comuns, tendo passado a manter contactos regulares e, mais tarde, em Junho de 2019, reataram a vivência em comum.

25) Na altura, BB estava a residir em …….., onde fixaram residência. O relacionamento entre o casal continuou, no entanto, a ser marcado por conflitos frequentes.

26) Em Portugal, o arguido esteve inicialmente a trabalhar para a empresa de comercialização ………… (P……, Lda.) e, posteriormente, passou a trabalhar para uma empresa de ……… e ……… (S………., Lda.), onde esteve cerca de um ano.

27) Anteriormente à prisão o arguido estava, há cerca de quinze dias, a trabalhar para uma outra empresa de construção civil, estando previsto celebrar um contrato de trabalho com início em janeiro de 2020, o que já não se concretizou.

28) AA encontra-se no Estabelecimento Prisional ……. desde 28/12/2019, preso preventivamente à ordem dos presentes autos. Da sua ficha biográfica não constam outros processos.

29) O arguido tem mantido comportamento de acordo com as normas do Estabelecimento Prisional, sem registo de infrações disciplinares, mantendo um relacionamento adequado com os companheiros e os funcionários do Estabelecimento Prisional. Exerce a atividade de faxina na zona prisional desde 01/04/2020.

30) O arguido tem recebido algumas visitas do irmão, II que reside na zona …….. e com quem mantém contactos telefónicos frequentes. As visitas têm sido dificultadas pelo facto de terem estado suspensas, devido ao Plano de Contingência da Pandemia do novo coronavírus e, atualmente, pelo facto de apenas ocorrerem em dias úteis, não sendo possível ao irmão do arguido, faltar ao trabalho, no setor do abate e corte de madeira.

31) AA manifesta apreensão com o desfecho do presente processo, e em abstrato, apresenta capacidade de entendimento e juízo crítico sobre factos de natureza idêntica aos que lhe deram origem, reconhecendo a sua ilicitude e gravidade.

32) A atual situação jurídico-penal, causou alguma surpresa ao nível familiar, mas o arguido continua a beneficiar do apoio dos elementos da sua família de origem, nomeadamente do irmão residente em Portugal.

33) Do CRC do arguido nada consta.

b) Factos não provados

Para além dos que ficaram descritos – e excluindo expressões conclusivas e/ou que não relevam para os respectivos tipo de ilícito e objecto dos presentes autos – não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, não se provou:

- Que o arguido tenha agido sem intenção de matar a BB.

*

O Direito

1. Questão a decidir:

Se «o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 71º, 72º e 73º do CP, por não ter atenuado especialmente a pena, como deveria face ao arrependimento e ao comportamento anterior e posterior do arguido».

2. O arguido reedita no recurso para este tribunal a questão, já suscitada no recurso para o TR…, da atenuação especial da pena. Naquele recurso pugnou, sem sucesso, pela alteração da matéria de facto no sentido de se considerar como provado que «o arguido após ter provocado as lesões físicas na BB telefonou para a PSP e confessou o crime de homicídio», que «na sequência do telefonema do arguido, e por causa dele, a PSP deslocou-se ao apartamento habitado pelo casal onde encontrou a vítima BB e os filhos menores» e que «o arguido arrependeu-se sinceramente de ter agredido BB e, em consequência das lesões provocadas, lhe ter tirado a vida». Também não mereceu acolhimento a sua pretensão no sentido de o comportamento positivo pós-delito em alegado benefício da vítima e da administração da justiça, dever conduzir a aplicação de pena especialmente atenuada, nos termos do disposto nos artigos 71.º, 72.º e 73.º do Código Penal. Gorada a alteração da matéria de facto viu o recorrente negada a pretensão da atenuação especial.

3. Na sua argumentação no recurso para o STJ, o arguido não resiste a revisitar a matéria de facto, fazendo por ignorar a pronúncia que sobre ela levou a cabo o Tribunal da Relação ……… . Ora, no presente recurso, o Supremo Tribunal de Justiça só pode reexaminar a matéria de direito (art. 434.º, CPP). Se nesse preceito se contempla a possibilidade de o STJ declarar a existência dos vícios previstos no art. 410.º/2, CPP, isso apenas possibilita que o Supremo Tribunal de Justiça, não obstante o recurso para ele interposto visar «exclusivamente o reexame de matéria de direito», como, por exemplo, a qualificação jurídica dos factos provados ou a medida da pena, deparando-se com qualquer dos vícios do art. 410.º/2, CPP, que inviabilize a correta decisão de direito, não está impedido de sponte sua afirmar oficiosamente a sua verificação, e deve fazê-lo, tirando as devidas consequências, ou seja, reenviando o processo para novo julgamento, por lhe estar vedado decidir sobre matéria de facto. É neste sentido que o Supremo vem uniformemente decidindo (ac. STJ de 8.01.2014 e 2.03.2017, MANUEL BRAZ, disponível em http://www.dgsi.pt).

4. No caso não se descortina qualquer dos vícios elencados no art. 410.º/2, CPP, de modo que que inviabilize a correta decisão de direito. A título de mero exemplo, a alegada manifesta contradição do acórdão recorrido com o teor do auto da PSP, não é vício típico do art. 410.º/2, CPP, pois não é uma «contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão». A circunstância de um ponto dos factos provados divergir de um relato de uma informação policial constante dos autos, não constitui contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas e só que, depois de produzida a prova numa audiência contraditória, o tribunal considerou que aquela informação foi infirmada pela demais prova produzida. Mas, como já vimos, este não é o tempo da decisão da matéria de facto.

5. Sustenta o recorrente que o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 71º,72º e 73º do CP, por não ter atenuado especialmente a pena, como deveria face ao arrependimento e ao comportamento anterior e posterior do arguido. Segundo o recorrente «não podem deixar de se extrair conclusões omitidas pelo Coletivo …… e pela Relação ………, com relevo para a medida da pena (…) há que atender aos factos provados demonstrativos do arrependimento do arguido e do seu bom comportamento anterior e posterior à data da prática do crime». A narrativa que o recorrente ensaia, misturando factos provados com outros que entende que deviam ter sido provados, mas não foram, não logra, como é a todas as luzes evidente, o efeito pretendido, pois não adere à realidade processual provada. O arrependimento de que fala o recorrente, convém liminarmente esclarecer, é o arrependimento que não consta nos factos provados, mas que o recorrente, pese embora a decisão do TR…, continua a fazer de conta que está provado.

6. O recorrente parece desconhecer regras elementares do processo penal, nomeadamente o princípio da “lealdade processual” (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal, 2011, p. 77), pressupondo como provados, não os factos efetivamente provados, mas aqueles que, no seu critério, deviam ter sido considerados provados. É o que ocorre com o arrependimento e também no segmento em que alega, contra a realidade provada, o bom comportamento anterior e posterior.

7. Quanto ao arrependimento, nada se apurou. Segundo o acórdão recorrido o arguido parece apenas ter-se arrependido de «desgraçar a sua vida» e não de ter suprimido a vida da mulher com quem vivia deixando órfãos dois menores. Em tema de comportamento, apurou-se (§ 33) que do CRC do arguido nada consta e ainda, conforme se verteu no § 29 que «o arguido tem mantido comportamento de acordo com as normas do Estabelecimento Prisional, sem registo de infrações disciplinares, mantendo um relacionamento adequado com os companheiros e os funcionários do Estabelecimento Prisional. Exerce a atividade de faxina na zona prisional desde 01/04/2020».

8. É esta a matéria de facto relevante, definitivamente assente. Segundo o artigo 72.º, CP, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1). Para esse efeito, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes (n.º 2):

a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

9. A circunstância a que apela o arguido é a de «ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados». Acontece, porém, conforme foi dito em definitivo ao arguido pelo Tribunal da Relação ………, não se apuraram (f)actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, o que inviabiliza que se prossiga na senda da pretendida atenuação especial. Sejamos claros, não se apurou nos autos qualquer circunstância que diminua a ilicitude e/ou a culpa do arguido e menos ainda de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

10. Em contraponto, como já disse o TR…, não há, no caso concreto, qualquer fundamento para atenuar especialmente a pena de um crime de homicídio agravado por duas qualificativas. O grau de ilicitude do facto é muito elevado, o dolo direto é intenso pois o arguido envolveu-se direta e fisicamente na ação delituosa, empunhando um x-ato e golpeando por três vezes a vítima no pescoço. Atuou de surpresa, insidiosamente, cerceando a possibilidade de defesa (§ 14 dos factos provados) e na presença de dois menores de tenra idade filhos da vítima. Vítima que o arguido conhecia desde a sua adolescência e com quem vivia como marido e mulher (§§ 1, 2 e 22). Confessou parcialmente os factos, mas com pouca relevância, na medida em que a demais prova apontava decisivamente para que o autor dos factos era o arguido, não beneficiando, ao contrário do que pretende, do arrependimento sincero. A seu favor, contabilizou o acórdão recorrido, e bem, a ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social, familiar e profissional, que nada têm de excecional, isto é, de reduzido valor atenuativo, por ser a conduta exigida a todo e qualquer cidadão como modo de poder viver em sociedade, não superando o comportamento do homem comum do seu seio socioeconómico.

11. As exigências de prevenção geral e especial são muito elevadas. A atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais deve ter lugar; para a generalidade dos casos, os «casos normais», bastam as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios. No presente caso, como disse o TR…., não se vislumbram as exigidas circunstâncias atenuantes da responsabilidade do arguido AA ao nível da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena que aconselhem o abaixamento da moldura penal abstrata prevista nos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, pelo que está vedado fazer uso da atenuação especial da pena a que alude o art.72.º do Código Penal. Das precedentes considerações resulta que o acórdão recorrido não violou o disposto nos arts. 71º,72º e 73º do CP, o que tem como consequência a improcedência do recurso.

III

Decisão:

Acordam em julgar improcedentes o recurso do arguido AA.

Custas pelo arguido fixando-se as taxas de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.

Supremo tribunal de Justiça, 9 de setembro de 2021

António Gama (Relator)

Helena Moniz