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VEÍCULO
AUTOMÓVEL
COMPRA E VENDA
FORMA
Sumário
I- O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal, transferindo-se a propriedade do veículo por mero efeito do contrato. II- A norma do nº1 do art. 5º do CRP aplica-se ao registo de veículos automóveis, tendo o registo apenas valor declarativo e não eficácia constitutiva, pois se destina essencialmente a dar publicidade ao facto. III- Pode quesitar-se a afirmação de que o autor é o proprietário do veículo, por se tratar de alegação que, embora tendo um conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, tem simultaneamente uma significação de uso corrente na linguagem comum - isto, porém, estando em causa uma afirmação que não pertença ao thema decidendum. IV- Pode sempre, porém, o Juiz convidar o autor a suprir a deficiência da alegação, o que será, certamente, a melhor opção-- além de estar em sintonia com os novos ventos que varreram o direito processual civil -, pois, conjugada com actuações menos formalistas, é a que permitirá chegar a soluções mais justas.
Texto Integral
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
No ..º Juízo do tribunal Judicial de Paços e Ferreira ,
B….., residente na Av. ….., n.º …, …, Paços de Ferreira, instaurou contra:
- C…., SA, com sede na Rua …., n.º …, Porto;
- Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av. …., n.º …, Lisboa;
- D…., L.da, com sede na Trav. …., n.º …, Água Longa; e
- E…., residente na Trav. …., n.º …, Água Longa,
Acção declarativa de condenação sob a forma sumária.
Pede:
A condenação da Ré Companhia C….., SA, no pagamento da quantia de € 9586,39 e, subsidiariamente - para o caso de não ser reconhecida a validade do alegado contrato de seguro celebrado com a ré seguradora --, pede a condenação dos restantes RR a indemnizar o autor no mesmo montante, sendo o FGA deduzido da franquia legal.
Alegou:
Que no dia 31 de Agosto de 2003, pelas 11 horas, na estrada nacional que liga Paços de Ferreira a Santo Tirso, na freguesia de Seroa, concelho de Paços de Ferreira, ocorreu um acidente de viação no qual intervieram os veículos com as matrículas ..-..-HZ e ..-..-KA.
Desse embate, da responsabilidade do condutor do KA, resultaram diversos danos para o HZ, de que era proprietário o Autor.
A reparação desses danos importou em € 7948,00. Até ela ser realizada, o Autor estará impedido de usar o HZ, que permanece recolhido numa oficina que para o efeito cobra a quantia diária de € 7,50. Por essa razão, o Autor teve de recorrer um veículo de aluguer, no que despende a quantia diária de € 5,00..
Finalmente, disse, que a Ré Companhia C…., SA, é, por força de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 3240031, a responsável pela indemnização daqueles danos, o que a mesma nega dizendo que não existia, na data do sinistro, contrato de seguro válido em relação ao KA.
Para o caso de a Ré demonstrar esse facto, demandou, a título subsidiário, os demais Réus, para que - como dito supra -- sejam solidariamente condenados no pagamento da peticionada indemnização.
Citados, os Réus contestaram.
A Ré Companhia C…., SA, disse que não aceitou a proposta de seguro apresentada pela Ré D…., L.da, relativa ao KA, razão pela qual, no dia 31 de Agosto de 2003, a responsabilidade civil emergente da circulação deste não se encontrava transferida por qualquer contrato de seguro. Acrescentou que a aceitação dessa proposta apenas ocorreu em 12 de Novembro de 2003 e que, de qualquer modo, o contrato que assim surgiu veio a ser resolvido por falta de pagamento do prémio respectivo.
No que concerne ao acidente, impugnou a descrição que dele foi feita pelo Autor e a extensão dos danos alegados.
O Réu Fundo de Garantia Automóvel contestou dizendo que a responsabilidade civil emergente da circulação do KA estava transferida, na data do sinistro, para a Ré Companhia de C…., SA, por contrato titulado pela apólice n.º 3240031, razão pela qual não deve ser responsabilizado pela satisfação da indemnização peticionada pelo Autor.
No mais, impugnou por desconhecimento o acidente e os danos alegados pelo Autor.
Finalmente, os Réus D…., L.da, e E…. contestaram dizendo que a responsabilidade civil emergente da circulação do KA estava transferida, na data do sinistro, para a Ré Companhia C…., SA, e, no mais, impugnando a descrição do acidente feita pelo Autor e a extensão dos danos alegados.
Procedeu-se ao saneamento e condensação da causa.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento.
Respondeu-se à matéria de facto controvertida constante da base instrutória nos termos do despacho de fls. 249 a 250 verso, sem que houvesse qualquer reclamação.
Foi, por fim, proferida sentença a julgar a “acção improcedente e, em consequência, absolver os Réus Companhia C…., SA, Fundo de Garantia Automóvel, D…., L.da, e E…. do pedido formulado pelo Autor B…...”.
Inconformado com o sentenciado, veio o autor interpor recurso, apresentando alegações que remata com as seguintes
CONCLUSÕES:
“1- O que está em causa tios presentes autos não é propriamente a propriedade da viatura, que nunca saiu da posse do autor, mas sim as consequências para o autor do acidente dos autos, tratando-se por isso não de unia acção real mas exclusivamente de uma acção de condenação emergente de um facto ilícito,
II- Apesar da presente acção ter sido intentada antes da reparação da viatura, pode ver-se mesmo que a mesma foi debitada ao autor, em 14/06/2004, conforme factura n° 293173 da firma F…., Ldª, junta aos autos em 11/10/2005.
III- Face às referidas facturas há elementos suficientes para determinar que os efeitos do acidente dos autos, se produziram na esfera patrimonial e jurídica do autor.
IV- Entendendo-se como essencial a prova da propriedade da viatura para procedência ainda que parcial do pedido, deveria ser elaborado quesito, para prova de tal matéria.
V- Entendendo-se essencial para a condenação no pagamento das despesas de reparação resultantes do acidente dos autos ao autor e entendendo-se que não há lugar nos presentes autos levar à base instrutória quesito onde se indague a propriedade da viatura, a não condenação da ré C…. por falta do referido pressuposto, constitui ilegitimidade do autor conduzindo portanto à absolvição da instância e não do pedido, nos termos do disposto nos artigos 494° n.' 1 ale) e n. ° 2 do 493° do C. P. Civil
VI- Violou a douta sentença recorrida entre outros o disposto no artigo 4830 do C. Civil.
VII - Deve assim ser dado provimento ao presente recurso revogando-se a douta sentença recorrida.”
Foram colhidos os vistos.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a resolver são as seguintes:
- Se é essencial para a procedência da pretensão do autor a prova da propriedade da viatura interveniente no acidente (..-..-HZ) e se, a entender-se que sim, deveria ter-se elaborado um quesito para prova daquela propriedade ou se tal quesitação não era possível por essa prova apenas poder ser feita por documento;
- Caso se entenda que a prova pelo autor da propriedade da aludida viatura era essencial para a sua pretensão, qual a consequência da falta dessa prova.
II. 2. FACTOS PROVADOS:
No Tribunal a quo deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Ré D…., L.da, é, pelo menos desde 16 de Dezembro de 2002, proprietária do veículo automóvel pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-KA (alínea A) dos factos assentes);
2. Em 24 de Fevereiro de 2003, a Ré D…, L.da, subscreveu uma proposta de seguro, que apresentou à Ré Companhia C…., SA, por via da qual pretendia transferir para esta a responsabilidade civil emergente da circulação do KA, com início no dia 16 de Dezembro de 2002 (alínea B) dos factos assentes);
3. Essa proposta foi apresentada na sociedade correctora de Seguros D…., SA, que a transmitiu à Ré Companhia C…., SA (alínea C) dos factos assentes);
4. Foi emitida, em nome da Ré Companhia C…., SA, um certificado internacional de seguro automóvel, relativo à apólice n.º 3240031, sendo nele identificado como veículo seguro o KA e como período de vigência do contrato o compreendido entre 16 de Dezembro de 2002 e 9 de Setembro de 2004, conforme documento de fls. 91, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea D) dos factos assentes);
5. Em 10 de Setembro de 2002, H…., funcionário da G…. enviou ao funcionário da Ré C…., I….., um fax solicitando-lhe a concessão de cobertura para um seguro novo de responsabilidade civil automóvel, tendo por objecto o veículo pesado de mercadorias de matricula ..-..-GT, propriedade de D…., Lda com inicio na mesma data (resposta ao n.º 3 da base instrutória):
6. O sobredito I…. comunicou à Insurtram que a Ré C….. condicionava a aceitação da proposta referida em 3. ao prévio pagamento do prémio relativo ao contrato de seguro titulado pela apólice n.º 60/6.780.781 que tinha como objecto o veículo com a matrícula ..-..-RB, propriedade da Ré D…., L.da. (resposta ao n.º 4 da base instrutória);
7. Em 16 de Dezembro de 2002, o mesmo funcionário da G…., H….., solicitou ao I….., a pedido do cliente D…., Lda, a substituição da viatura ..-..-GT pela ..-..-KA, a partir daquela data (resposta ao n.º 5 da base instrutória);
8. No dia 31 de Agosto de 2003, pelas 11 horas, na estrada que liga Paços de Ferreira a Santo Tirso, na Serra da Agrela, da freguesia de Seroa, concelho de Paços de Ferreira, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro da marca Volkswagen, de matrícula ..-..-HZ, e o pesado de mercadorias da marca Renault, de matrícula ..-..-KA (resposta ao n.º 7 da base instrutória);
9. O HZ era conduzido pelo Autor B….. (resposta ao n.º 8 da base instrutória);
10. E seguia pela metade direita da faixa de rodagem no sentido Santo Tirso - Paços de Ferreira e na estrada que liga estas duas localidades (resposta ao n.º 9 da base instutória);
11. Fazia-o na metade direita da faixa de rodagem atento o respectivo sentido e próximo da berma direita (resposta ao n.º 10 da base instrutória);
12. Em sentido contrário (Paços de ferreira Santo Tirso), circulava o KA (resposta ao n.º 12 da base instrutória);
13. Que era então conduzido por E…. (resposta ao n.º 13 da base instrutória);
14. No local a estrada faz uma curva fechada para a esquerda atento o sentido Paços de Ferreira Santo Tirso (resposta ao n.º 15 da base instrutória);
15. O condutor do KA, quando se ia a cruzar com o autor, perdeu o controle do seu veículo, derrapou e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem atento o sentido Paços de Ferreira – Santo Tirso (resposta ao n.º 16 da base instrutória);
16. Foi embater com o KA na parte lateral esquerda do HZ (resposta ao n.º 17 da base instrutória);
17. Em consequência desse embate, as portas, pára-choques e painel do lado esquerdo do HZ ficaram amolgados, como também o respectivo pára-brisas ficou quebrado (resposta ao n.º 18 da base instrutória).
III. O DIREITO:
Vejamos, então, as questões suscitadas.
Primeira questão (ou conjunto de questões, se quisermos): se é essencial para a procedência da pretensão do autor a prova da propriedade da viatura interveniente no acidente (..-..-HZ) e se, a entender-se que sim, deveria ter-se elaborado um quesito para prova daquela propriedade ou se tal quesitação não era possível por essa prova apenas poder ser feita por documento;
A causa de pedir nas acções emergentes de acidentes de viação é complexa, sendo constituída pelo conjunto de factos exigidos pela lei para que surja o direito à indemnização e a correspondente obrigação (Vaz Serra, RLJ, anos 103 a pág. 511 e 105º a pág. 219; Acs. STJ de 13.05.86, in Bol. 357-399 e de 05.02.1987, in Bol. 364-819).
Por outro lado, de entre os factos exigidos para que o direito à indemnização surja, está, obviamente, a existência de dano na esfera jurídica do autor ou demandante.
Ora, o aqui autor, para sustentar o seu direito indemnizatório, alegou que o veículo interveniente no acidente -- na altura por si conduzido ( matrícula ..-..-HZ)—era sua propriedade (artº 2º e 20º da pi) e sofreu danos -- cujo valor de reparação o autor quantificou em € 7.948,00, incluindo IVA. Mais alegou que esses danos lhe devem ser indemnizados, bem assim os que sofreu com a recolha da viatura a aguardar reparação ( € 937,50 sem IVA) e os decorrentes do recurso a uma viatura de substituição (€ 700,00) - cfr., designadamente, arts. 20º e segs. da pi.
Ora, se assim é, parece, de facto, essencial para a procedência da pretensão do autor fazer a prova de que a aludida viatura (interveniente no acidente) lhe pertencia, era “sua propriedade”, pois - à falta de alegação de outros factos a justificar a sua pretensão indemnizatória - é com base nisso que o pedido indemnizatório vem efectuado e justificado.
É certo que podia ter ocorrido uma situação de sub-rogação indemnizatória por banda do autor.
Efectivamente, como se sabe, a sub-rogação é a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor, ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento (A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., 2º-295; 3ª ed., 2º-298). Mas em lugar algum o autor alegou factos integradores da figura da sub-rogação legal. Antes e sempre peticionou o ressarcimento dos danos sofridos pelo ..-..-HZ, ou a eles inerentes, na suposição ou pressuposto de que era o titular de tal viatura.
Assim sendo, impunha-se ao autor a prova de que era, de facto, o proprietário da aludida viatura automóvel.
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Pergunta-se: mas tal prova tinha de ser feita por documento, maxime pela junção do título de registo de propriedade? É evidente que não.
Efectivamente, o contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato, nos termos do art. 408, nº1, 874º e 879º, al. a) do C.C. (Ac. S.T.J. de 24-4-91, Bol. 406-629 ; Ac. S.T.J. de 14-10-97, Bol. 470-630 ; Ac. S.T.J. de 3-3-98, Bol. 475-629). Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado por forma verbal (conf. Ac do STJ de 3-3-98, in CJ/STJ, 1998, ano VI, Tomo I, pág 117.
É certo que a norma do nº1 do art. 5º do CRP84 - que estabelece o principio geral de que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo" se aplica ao registo de veículos automóveis "ex-vi" do art. 29º do C.R.Automóvel, introduzido pelo DL 54/75, de 24/2 (Ac. STJ, de 10.07.2003 -- Relator Ferreira de Almeida --, in site da dgsi.pt).
No entanto, como é sabido, o registo tem apenas valor declarativo e não eficácia constitutiva.
Isto é, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade a determinado facto, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário - art. 1º do Cód. Reg. Predial.
Como escreve Manuel de Andrade (Direito Civil, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, págs 21 e 22 ), " o registo não dá direitos, mas apenas os conserva.
O registo não pode, portanto, assegurar a existência efectiva do direito da pessoa a favor de quem esteja registado um prédio, mas só que, a ter existido, ainda se conserva - ainda não foi transmitido a outra pessoa ".
A presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas dos arts 29 do dec-lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e do art. 7 do Cód. Reg. Predial, é uma mera presunção "juris tantum ", ilidível mediante prova em contrário.
Tal prova pode resultar da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito (Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 307).
Ver, ainda, sobre esta matéria, o Ac. do STJ de 24.02.1977, Relator Arala Chaves, no site da dgsi.pi).
Portanto, tendo o autor alegado ser proprietário da viatura automóvel, podia fazer a prova dessa propriedade por qualquer meio.
Daqui logo se vê que parece não assistir razão ao Mmº Juiz a quo quando, na parte final da base instrutória, faz consignar que “a propriedade do HZ, impugnada pelos Réus, apenas poderá ser provada documentalmente”. De forma alguma, como vimos: a transferência da propriedade do veículo automóvel a favor do autor pode fazer-se sem necessidade de qualquer documento, sendo, como dissemos, válido o contrato mesmo se celebrado verbalmente - outra coisa é a protecção do comprador perante terceiros, onde, então sim, a junção do Título de Registo de Propriedade será determinante.
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Assente que a propriedade do veículo não tinha obrigatoriamente que ser provada por documento, outra pergunta se impõe: será que, face à matéria alegada pelo autor, deveria o Sr. Juiz elaborar um ou mais quesitos-- tendentes, portanto, à prova do direito da propriedade do autor sobre o veículo ..-..-HZ ?
Entramos, aqui, na vetusta questão matéria de facto - matéria de direito, sabendo-se que a quesitação apenas deve incidir sobre a primeira.
O autor, como se viu, apenas e só alegou queera o proprietário do veículo ..-..-HZ (ut artº2º da pi).
Será que deveria o Mmº Juiz elaborar um quesito nesses termos, isto é, a perguntar se “o autor era o proprietário do HZ à data do acidente”-- tal como foi alegado na petição inicial?
Entendeu a Relação de Lisboa, Ac. de 9.12.93, Col. Jur., Ano XVIII, T. 5, pág. 149, que, sendo determinante para a decisão da causa a propriedade de um veículo, “não é questionável se o veículo pertencia a uma das pessoas em questão” - situação que aqui não ocorre, diga-se já.
Neste domínio, a regra é esta: Nem os juízos de valor sobre factos, nem as questões de direito, devem ser incluídos na base instrutória, devendo ser consideradas como não escritas as respostas dadas aos quesitos que como tal possam ser caracterizados, no seguimento do disposto no artº 664º, nº4, CPC (cfr., designadamente, Ant. Varela, RLJ , Ano 122, págs. 219 a 220; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo civil, pág. 313; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 1ª ed., págs. 139 a 140 e 229 a 232; Matéria de Facto- Matéria de Direito, do Consº Abel Freire, in CJ/STJ, 2003, tomo 3, págs. 5 a 9).
Devem, por outro lado, ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução as questões jurídicas que no processo se discutem (v.g. renda, contrato, proprietário, residência permanente, etc.).
Assim, o artº 646º, nº4 CPC dispõe que “têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito…”.
O Professor Castro Mendes, na sua linguagem clara e incisiva, ensina que devem equipar-se às afirmações de factos «aqueles em que o termo, normalmente jurídico, é tomado pelo seu sentido corrente e comum que lhe é atribuído e é facilmente apreensível e cognoscível com relativa segurança pela generalidade das pessoas de mediana cultura, mesmo não juristas», desde que se trate de «conceitos jurídicos notórios», que não esteja «em dúvida nenhum ponto de direito que exceda esses traços fundamentais comummente conhecidos» e que se trate de «uma afirmação que não pertença ao thema decidendum» (Do Conceito de Prova, págs. 651 e 700).
Assim também, Anselmo de Castro entende que «são ainda de equiparar-se aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como “pagar”, “emprestar”, “vender”, “arrendar”, “dar em penhor”, etc.» (Lições de Processo Civil, vol. III, pág. 426).
Ora, cremos que a expressão ser proprietário de uma viatura automóvel está vulgarizada na linguagem corrente, de modo que toda a gente saberá o que com isso se quer dizer.
E não se trata, no caso sub judice, obviamente, de afirmação que pertença ao thema decidendum.
Daqui que nada obstava, salvo melhor opinião, a que -- não sendo caso de matéria a provar apenas por documento, como não era, repete-se - ao questionário fosse levado um quesito a perguntar isso mesmo: se o autor é o proprietário do veículo ..-..-HZ.
Veja-se que a não se assim poderíamos cair na situação de o julgador se aperceber muito cedo, até, da deficiência da alegação por banda do autor - no que respeita à aludida questão da propriedade - e, mesmo assim, deixar passar para, chegando a final, com base nessa mesma deficiência julgar a acção improcedente, assim prejudicando de forma claramente inaceitável o demandante.
Aliás, in casu o que aconteceu foi isso mesmo: por se entender que a afirmação de que o autor era o proprietário do veículo era conclusiva e que tal prova apenas podia ser feita através da demonstração da “inscrição do HZ, na competente conservatória do registo automóvel, a seu favor…” (fls. 255), conclui-se que, “logo por aqui a acção terá de improceder, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, .” (fls. 255 verso). Podia, porém, o Mmº Juiz ver isso mais cede e ter remediado, como se impunha, a eventual deficiência da alegação.
Efectivamente, cremos que o que deveria o Mmº Juiz ter feito -- face ao significado que se entende dever dar à alegação pelo autor de que era o proprietário do veículo e ao entendimento de que a prova da propriedade do mesmo se podia fazer por outro meio que não documental - era, ou elaborar um quesito nos termos alegados na petição inicial, ou, então, (pelo menos) convidar o autor a suprir a deficiência da alegação no que respeita à aludida questão da propriedade do HZ.
A propósito, escreve António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do processo Civil, vol. II, 4ª ed., a págs. 238 ss:
“O problema agrava-se naquelas situações em que o excessivo rigor na condensação pode levar ao conhecimento imediato do pedido, quer a favor do autor, quer em seu prejuízo, altura em que o juiz deve ponderar se será essa a forma mais justa de resolver o litígio ou se deve protelar para momento posterior a decisão, dando azo ainda a que a decisão sobre a matéria de facto controvertida possa superar os problemas suscitados pela deficiente alegação fáctica”.
“Os rigoristas ou extremamente formalistas, perante articulados em que, em lugar de matéria de facto, surja matéria que consideram de direito ou matéria de natureza conclusiva, optarão por proferir uma decisão de mérito, eventualmente impeditiva do estabelecimento de uma transacção judicial ou de um mais concreto apuramento da matéria de facto em julgamento. Outros ponderarão essas consequências naquelas situações em que as deficiências de alegação de matéria de facto ainda poderão ser supridas através da resposta a um despacho de convite ao aperfeiçoamento ou em sede de audiência de julgamento, de tal modo que só em casos manifestos anteciparão a decisão de mérito para a fase do saneador. Julgamos ser esta a melhor opção, aliás confirmada pelos novos ventos que varreram o direito processual civil e que, conjugada com actuações menos formalistas, permitirá chegar a soluções mais justas. Estamos a referir-nos à possibilidade de se convidarem as partes a suprir deficiências de alegação (art. 508.º) e de serem considerados factos instrumentais que, embora não alegados, resultem da instrução da causa (art. 264.°, n.° 2), além de poderem ser tidos em conta factos essenciais que correspondam a simples concretização de outros já alegados e que também resultem dessa instrução (art. 264.°, n.° 3).”
E a respeito do disposto no artº 646.°, n.° 4, acrescenta:
“Parece-nos que só os pontos de facto controvertidos que contenham pura matéria de direito devem deixar de obter resposta.”[Sobre a matéria cita-se o Ac. do STJ, de 15-3-94, CJSTJ, tomo 1, pág. 159, o Ac. da Rel. de Évora, de 3-3-94, CJ, tomo II, pág. 247, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 9-12-93, CJ, tomo V, pág. 149, e o Ac. da Rel. do Porto, de 20-9-90, CJ, tomo IV, pág. 211] Quanto àqueles que envolvam matéria de contornos menos nítidos, como já anteriormente afirmámos, parece-nos mais correcto e mais seguro que o tribunal lhes dê a resposta que resulte da prova produzida, com eventual conteúdo clarificador, desde que tal não implique ampliação da matéria de facto não permitida pelo art. 664.
As respostas que contenham expressões que simultaneamente tenham um significado jurídico e utilização na linguagem corrente terão sempre esta significação que, de resto, não é vinculativa para o juiz da sentença.”. “Aliás, usando de um certo pragmatismo que não prejudica, quer-nos parecer que, em situações de dúvida, será preferível o juiz responder à matéria, considerando-a provada ou não provada, do que omitir qualquer decisão e correr, assim, o risco da repetição (ainda que parcial) do julgamento.
Estas condutas não comprometem, desde logo, qualquer das soluções plausíveis da questão de direito e conferem ao juiz que vai elaborar a sentença ou ao tribunal de recurso todos os elementos que o processo pode comportar para a justa composição do litígio.” - sublinhados nossos.
Cremos, assim, que, sendo a afirmação de que o veículo ..-..-HZ é propriedade do autor importante para a decisão de mérito-- desde logo porque se provou, designadamente, que em consequência do embate, o aludido veículo sofreu os danos descritos na resposta ao quesito 18º)-- e não pertencendo tal afirmação ao thema decidendum, podendo, assim, elaborar-se um quesito a tal respeito, impunha-se ao Mmº Juiz a quo, em vez de se limitar a deixar correr as coisas sem elaboração de qualquer quesito com a matéria já alegada, que a quesitasse ou, então, entendendo que a alegação era conclusiva ou deficiente no âmbito da prova do alegado direito de propriedade da viatura, convidasse o autor a suprir tal deficiência na alegação.
Não fez o convite ao aperfeiçoamento do articulado, não quesitou o alegado pelo autor e, por entender – erradamente, como vimos -- que tal matéria só por documento podia ser provada [É certo que se estivéssemos em face de matéria que só por documento pudesse ser provada, então não haveria lugar à elaboração da competente quesitação—sendo que em caso de tal quesito ser elaborado, a sua resposta nem sequer pela negativa se faria ( ver Ac. RC, de 7.5.1976, Col. Jur., 1976º, 2º-267).
Mas não era o caso, pois, como vimos, a prova da propriedade do veículo pode fazer-se sem ser por documento, já que a transferência dessa propriedade não está sujeita a qualquer forma.] (leia-se, através do averbamento na conservatória do registo predial), concluiu que, não estando provada a propriedade do veículo a favor do autor, “logo por aqui a acção terá de improceder, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas”.
Há que, por isso, corrigir o erro.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no artº 712º, nº4 do CPC, impõe-se a ampliação da matéria de facto nos sobreditos termos, ou seja, que se adicione à base instrutória um quesito a perguntar se o Auto era o proprietário do veículo automóvel com a matrícula ..-..-HZ– ou então, caso o Sr. Juiz o entenda mais conveniente, se convide previamente o autor para, querendo, suprir as eventuais deficiências da alegação atinente à propriedade da viatura, permitindo-se, posteriormente, que sobre tal factualidade (novo ou novos quesitos) seja produzida prova e tenha lugar audiência de julgamento com a subsequente decisão da respectiva matéria de facto e prolação da sentença.
Atento o exposto, prejudicada fica a apreciação da segunda questão suscitada pelo apelante.
CONCLUINDO:
O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal, transferindo-se a propriedade do veículo por mero efeito do contrato.
A norma do nº1 do art. 5º do CRP aplica-se ao registo de veículos automóveis, tendo o registo apenas valor declarativo e não eficácia constitutiva, pois se destina essencialmente a dar publicidade ao facto.
Pode quesitar-se a afirmação de que o autor é o proprietário do veículo, por se tratar de alegação que, embora tendo um conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, tem simultaneamente uma significação de uso corrente na linguagem comum - isto, porém, estando em causa uma afirmação que não pertença ao thema decidendum.
Pode sempre, porém, o Juiz convidar o autor a suprir a deficiência da alegação, o que será, certamente, a melhor opção-- além de estar em sintonia com os novos ventos que varreram o direito processual civil -, pois, conjugada com actuações menos formalistas, é a que permitirá chegar a soluções mais justas.
IV. DECISÃO:
Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em anular a decisão da matéria de facto, para ampliação da base instrutória nos termos supra explanados, procedendo-se a novo julgamento da causa mas apenas no que tange ao quesito ou quesitos a formular sobre a propriedade do veículo automóvel matrícula ..-..-HZ, assim, também, ficando sem efeito a sentença recorrida.
Custas pela(s) parte(s) vencida(s) a final.
Porto, 23 de Março de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves