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INSOLVÊNCIA DOLOSA
ELEMENTO SUBJECTIVO
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
PENA
Sumário
I – O elemento subjetivo do tipo legal de crime de insolvência dolosa exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no art. 14º do CP, devendo abranger a conduta prevista no tipo incriminador e, no caso da citada al. a) do nº1 do art. 227º, ainda da imputação objetiva do resultado à ação. O tipo inclui ainda o elemento subjetivo da ilicitude “intenção de prejudicar os credores”, o qual não exige a verificação de um prejuízo patrimonial real para o credor, bastando que o agente tenha querido esse prejuízo. II - O tipo de culpa doloso só se mostrará preenchido quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal; tal não sucederá se o agente atuou na convicção errónea e não censurável de que o seu comportamento estava a coberto da verificação em concreto de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (ou dos seus limites). III - No caso vertente, o arguido/recorrente não invoca factos suscetíveis de integrar qualquer causa de exclusão da culpa, por via de erro sobre a proibição ou falta de consciência da ilicitude (cfr. art. 17º do CP), nomeadamente, que, embora conhecedor da proibição legal de diminuição do seu património com efeitos na sua solvência e dos elementos descritivos e normativos da norma incriminadora, atuou “compreensivelmente” convicto de que, no caso, por a ilicitude do facto ou a sua culpa estar excluída, podia proceder em violação da respetiva imposição legal. IV - O conceito de «falta de consciência da ilicitude», respeitante ao tipo de culpa, não se confunde com a igualmente alegada ausência da «intenção de prejudicar os credores», referida antes ao tipo subjetivo de ilícito. Assim, tendo ficado provado na decisão recorrida, de modo que se mostra insuperável [por falta de impugnação da matéria de facto], que o arguido agiu com a predita intenção, mostra-se preenchido o imprescindível elemento subjetivo da ilicitude legalmente previsto. V - Ao julgador incumbe na determinação da medida concreta da pena, neste ou em qualquer outro tipo de crime, ponderar, rectius, ficcionar, em razão da moldura penal abstrata aplicável qual seria a situação concreta que potencialmente justificaria a aplicação da pena máxima e, em sentido contrário, a que permitiria a aplicação da punição mínima, e nesse quadro mental de cotejo com a concreta situação que tem em mãos determinar a pena que se mostre justa, adequada e proporcional, sabendo-se que esta será sempre uma tarefa árdua e ingrata, porquanto não é estribada em critérios matemáticos ou silogismos inabaláveis, intervindo nessa operação, mais ou menos inconscientemente, fatores subjetivos como a perceção que cada juiz tem da gravidade, frequência e consequências de um determinado tipo de criminalidade, inculcados pela sua experiência pessoal, familiar ou vivência societária. VI – Contrariamente ao entendido pelo Tribunal recorrido, não é de considerar “relevante” o grau de ilicitude do facto, por referência ao valor venal dos veículos automóveis em causa, alienados pelo arguido, que ascendem aos montantes de € 1.200,00 e € 1.100,00, o que perfaz a quantia global de € 2.300,00; ainda que não merecendo a adjetivação de “irrisórios” utilizada pelo recorrente, deverá ser considerado como pouco relevante, particularmente para o tipo de crime em discussão. Não se pode olvidar que nesta concreta criminalidade, como é do conhecimento geral, ocorrem frequentemente condutas conducentes à declaração de insolvência e de dissipação de bens pertencentes à massa insolvente que envolvem centenas, milhares e mesmo milhões de euros. Este tipo de comportamentos, adotados o comum das vezes por empresários em nome individual ou “administradores” e “gestores” de sociedades comerciais, impedem ou colocam em sério risco o ressarcimento de créditos de terceiros de valores assaz relevantes, criando por vezes o efeito “bola de neve” por deixarem numa situação económico-financeira precária os próprios credores, parceiros económicos (v.g., fornecedores e instituições bancárias), e, desafortunadamente, arrastam para o desemprego dezenas ou centenas de trabalhadores face ao encerramento dessas empresas, apesar de, com frequência, ocorrer o concomitante ilícito e atroz enriquecimento dos próprios perpetradores desses crimes. VII - Cumpre atender ainda à circunstância de que os créditos cuja cobrança foi parcialmente frustrada pela atuação do arguido ascendem a um valor bastante comedido, de aproximadamente € 15.000,00, e pertencem a instituições de crédito, que lidam habitualmente na concessão de empréstimos com estes previamente previstos fatores de risco associados à menor solvabilidade dos mutuários, não tendo ficado sobremaneira afetadas na sua capacidade económico-financeira – cfr. art. 71º, nº2, al. a), quanto às consequências do facto. VIII - Ademais, resulta da factualidade apurada no que tange às condições socioeconómicas do arguido que este não agiu apenas com a motivação de se livrar ilicitamente das dívidas contraídas, mantendo um estilo de vida opulento, mas que vive com manifestas dificuldades económico-financeiras, juntamente com o seu agregado familiar, com inclui um filho menor de idade. IX – O que tudo reclama a redução da pena de 300 dias de multa fixada em primeira instância.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO: ▪ No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 184/18.1T9VLN, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo de Competência Genérica de Valença, por sentença proferida no dia 25.01.2021 e depositada no mesmo dia (fls. 157 a 166/ref. 46387797 e fls. 168/ref.46388915), foi decidido:
“Condenar o arguido P. C. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), o que perfaz o montante global de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros).”
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▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido P. C. interpor o presente recurso, que, na sua motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 170 a 172/ref. 3068352):
A) O arguido atuou com absoluta falta de consciência de ilicitude, quando vendeu os veículos mencionados nos autos, sendo que o primeiro o foi antes da apresentação à insolvência e o segundo o foi para comprar outro, que incorporou no seu património e foi vendido em favor da massa insolvente;
B) O Tribunal recorrido não considerou, como devia tê-lo feito, as datas e considerandos das vendas, nos termos apostos em conclusão A);
C) O arguido atuou com manifesta falta de consciência de ilicitude, inexistindo, em toda a linha, o elemento subjetivo do crime pois não houve intenção de prejudicar a massa insolvente, como a Lei estatui como pressuposto de punição;
D) Sem prescindir ao que atrás se conclui, o arguido foi punido com um alcance e uma força e determinações exacerbados, quase emitindo o Tribunal recorrido, com este caso em concreto, uma sentença profilática e exemplar.
E) O Tribunal recorrido violou, com a prolação do normativo do qual se recorre, as disposições conjugadas do nº 1, al. a) do Código Penal e 368º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, porquanto deveria ser declarado o arguido como tendo atuado com absoluta falta de consciência de ilicitude;
F) O aresto recorrido deverá ser substituído por outros no qual seja o arguido absolvido dos crimes cometidos ou, no limite, e entendendo-se ser de o condenar, que a pena a aplicar ao arguido leve em conta os montantes irrisórios pelo mesmo percebidos e ainda, para se atuar no limite da justiça, ser de valorar o comportamento do mesmo arguido, ao adquirir uma viatura que, porque desconhecia a forma de agir em insolvência, teve que pagar duas vezes, sendo uma dela à massa insolvente.
Assim farão Vossas Excelência, a devida e usual Justiça.»
▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que sustentou a manutenção da sentença recorrida (fls. 174 e 175/ref. 3113306).
Formulou as seguintes conclusões:
«1.ª O arguido limita-se a dizer que actuou com falta de consciência de ilicitude, no entanto, não impugna a matéria de facto, a qual se deve ter por totalmente assente.
2.ª Atentos os factos dados como provados, dúvidas não restam que o arguido praticou o crime de insolvência dolosa pelo qual foi acusado.
3.ª A medida concreta da pena determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção geral e especial das penas, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71.º, n.os 1 e 2 do Código Penal).
4.ª A pena há-de servir para realizar as finalidades que a lei lhe assinala: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, ou seja, as chamadas finalidades de prevenção geral e especial (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal).
5.ª A pena aplicada de 300 (trezentos) dias de multa revela-se adequada e proporcional, por ter sido criteriosamente definida em função das disposições referidas, tendo em consideração, nomeadamente, a culpa do arguido que se mostra elevada, atento o dolo direto, sem esquecer que o arguido negou em parte os factos e não interiorizou o desvalor da sua conduta.
6.ª A douta decisão recorrida não violou qualquer preceito legal devendo, consequentemente, a mesma ser mantida na sua íntegra.»
▪ Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que pugna igualmente pela improcedência do recurso (fls. 179/ref. 7468319).
Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi deduzida resposta ao sobredito parecer.
▪ Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são as seguintes:
A) Da invocada falta de consciência da ilicitude/elemento subjetivo do crime de insolvência dolosa;
B) Da peticionada redução da pena aplicada.
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III – APRECIAÇÃO:
A – Sobre a alegada falta de consciência da ilicitude e do elemento subjetivo do crime de insolvência dolosa:
Em primeira linha, o arguido escora o recurso por si deduzido na alegação de que atuou com falta de consciência de ilicitude quando vendeu os veículos mencionados nos autos, sendo que o primeiro o foi antes da apresentação à insolvência e o segundo o foi para comprar outro, que incorporou no seu património e foi vendido em favor da massa insolvente, inexistindo o elemento subjetivo do crime pois não houve intenção de prejudicar a massa insolvente, que a Lei estatui como pressuposto de punição [conclusões A), B) e C)].
Estatui o art. 227º, nº1, al. a), do Código Penal que: “O devedor que com intenção de prejudicar os credores (...) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património (…) é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.” [redação introduzida pelo DL nº 53/2004, de 18.03].
Nesta modalidade de ação típica preveem-se condutas que provocam uma diminuição real do património do devedor, que, por uma das vias legalmente previstas, provoca uma minoração real do valor do seu património, causando uma situação de insolvabilidade, de incapacidade de cumprimento pontual das obrigações contraídas perante terceiros, seus credores.
No que tange ao “desaparecimento” de património, ele será imputável ao agente quando este não saiba responder pelo seu paradeiro, sendo-lhe exigível tal conhecimento. Inclui os casos em que não se descobre o paradeiro dos bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor, sendo despiciendo que tenham sido objeto de uma alienação real ou meramente fictícia; releva apenas que os credores sejam impossibilitados de atingi-los para garantir a satisfação dos seus créditos, pelo que o “valor ostensivo” do património resulta, em qualquer caso, diminuído (neste sentido, vide Pedro Caeiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, p. 413).
A declaração judicial de insolvência apresenta-se como uma condição objetiva de punibilidade.
O elemento subjetivo deste tipo legal de crime exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no art. 14º do CP, devendo abranger a conduta prevista no tipo incriminador e, no caso da citada al. a) do nº1 do art. 227º, ainda da imputação objetiva do resultado à ação.
O tipo inclui ainda o elemento subjetivo da ilicitude “intenção de prejudicar os credores”, o qual não exige a verificação de um prejuízo patrimonial real para o credor, bastando que o agente tenha querido esse prejuízo (cf. Paulo Caeiro, ob. cit., p. 423, e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, anot. 14 ao art. 227º, p. 627).
No caso vertente, temos que o arguido/recorrente não impugnou a matéria de facto, nos termos e para os efeitos preceituados nos arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), ambos do CPP, pelo que a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada se mostra inapelavelmente estabilizada [até porque não é invocado e não se vislumbra oficiosamente verificado qualquer um dos vícios previstos no art. 410º, nº2, do mesmo diploma legal].
Destarte, ressumam provados na douta sentença os factos idóneos a integrar o elemento subjetivo do tipo de crime em apreço, incluindo o apontado elemento subjetivo da ilicitude. Com efeito, provou-se que o arguido agiu «ciente das suas dívidas e por forma a ocultar dos credores os seus bens, e, desse modo, evitar que o seu património respondesse pelas suas dívidas […]» - facto provado no ponto 3 – e, bem assim, que atuou «[…] livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de fazer desaparecer o seu património, no intuito de prejudicar os seus credores» - facto provado no ponto 8.
Outrossim, está provado que agiu com consciência da ilicitude, porquanto «o arguido sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.» - facto provado no ponto 9.
Logo, estava inexoravelmente votada ao insucesso a pretensão recursória do arguido de ver afirmada por este Tribunal ad quem a falta de consciência da ilicitude excludente, não do dolo, mas da culpa.
A este último propósito acrescente-se que o recorrente, em bom rigor, nem invoca factos suscetíveis de integrar qualquer causa de exclusão da culpa, por via de erro sobre a proibição ou falta de consciência da ilicitude (cfr. art. 17º do CP).
Como menciona Teresa Pizarro Beleza, in “Direito Penal”, 2º Volume, aafdl, pp. 224 e 225, a consciência da ilicitude, que alguns autores (v.g., Figueiredo Dias (2)) relacionam ainda com um terceiro elemento do dolo, denominado «emocional» – coexistindo com os elementos intelectual e do volitivo –, «é a consciência com que determinada pessoa age, de que os atos que pratica são ilícitos», i. e., dizemos nós, violam a lei de modo não justificado.
Nessa decorrência, o tipo de culpa doloso só se mostrará preenchido quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal; tal não sucederá se o agente atuou na convicção errónea e não censurável de que o seu comportamento estava a coberto da verificação em concreto de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (ou dos seus limites).
Ora, o recorrente não alega que, embora conhecedor da proibição legal de diminuição do seu património com efeitos na sua solvência e dos elementos descritivos e normativos da norma incriminadora, atuou “compreensivelmente” convicto de que, no caso, por a ilicitude do facto ou a sua culpa estar excluída, podia proceder em violação da respetiva imposição legal.
Cremos, salvo o muito e devido respeito, que o arguido/recorrente confunde o conceito de «falta de consciência da ilicitude», respeitante ao tipo de culpa, com a igualmente alegada ausência da «intenção de prejudicar os credores», que, referida ao tipo subjetivo de ilícito, não se confunde com aqueloutro. E, frisa-se, ficou provado na decisão recorrida, de modo que se mostra insuperável, que o arguido agiu com a predita intenção, pelo que se mostra preenchido o imprescindível elemento subjetivo da ilicitude legalmente previsto.
Concomitantemente, face à factualidade provada nos pontos 1 a 7, preenchidos se mostram os elementos objetivos do tipo, pelo que, não se vislumbrando qualquer causa de justificação da ilicitude ou de exculpação, se conclui, como na douta sentença recorrida, que o arguido perpetrou, como autor material, um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art. 227º, nº1, al. a), do Código Penal. Soçobra o recurso quanto a este fundamento.
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B – Da invocada excessividade da pena aplicada:
No douto recurso que deduziu nos autos, o arguido P. C., subsidiariamente à clamada (sem êxito) absolvição, insurge-se quanto à medida da pena cominada, de 300 dias de multa, a qual considera excessiva.
Alega, para tanto, que a pena determinar deve levar em conta os montantes irrisórios pelo arguido percebidos e valorar o comportamento do mesmo ao adquirir uma viatura, que, porque desconhecia a forma de agir em insolvência, teve que pagar duas vezes, sendo uma dela à massa insolvente.
Apreciando:
O crime de insolvência dolosa perpetrado pelo arguido é punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (cf. art. 227º, nº1, do CP). O limite mínimo da pena de multa é de 10 dias (cf. art. 47º, nº1, do CP).
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).
Segundo Figueiredo Dias (3), quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo (4):
«…(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos:
«A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim:
Na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.
Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.
A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a);
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
No caso vertente, tendo o tribunal recorrido aplicado arguido, numa moldura penal de 10 a 600 dias de multa, a pena concreta de 300 dias, atendeu, no que tange à determinação desta pena aos seguintes fatores [transcrição]: «No caso concreto entendemos que a aplicação ao arguido de uma mera pena de multa oferece no caso concreto um nível satisfatório de estabilização das expectativas da comunidade na validade e vigência das normas infringidas – prevenção geral de integração –, bem como da reintegração do agente na comunidade – prevenção especial de reintegração. Com efeito, o arguido conta apenas com uma condenação em crime de coação agravada, encontrando-se familiarmente integrado. Cremos que as condutas praticadas não radicam numa personalidade especialmente deformada do arguido mas numa situação que aparenta revestir natureza isolada, pelo que a aplicação de uma sanção de natureza detentiva seria manifestamente desproporcionada. Posto isto, a quantificação da culpa e o grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da “ponderação das circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele”, tal como decorre do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.
Na senda do exposto, temos o seguinte:
O grau de ilicitude é relevante tendo em consideração o valor dos bens descritos no ponto 3 e 4 dos factos provados. O dolo é intenso, porque direto. As exigências de prevenção geral não particularmente relevantes já que o tipo de crime em apreço não é praticado com muita frequência. As exigências de prevenção especial são moderadas pois, como já tivemos oportunidade de vincar, o arguido apenas foi condenado pela prática de um crime de coação agravada, encontrando-se familiarmente integrado. Pelo exposto julga-se adequado fixar a pena de 300 (trezentos) dias de multa. Ao abrigo do disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, ou seja, atendendo à situação económica e financeira do arguido que se deu como provada, decide-se fixar em 5,00€ (cinco euros) a taxa diária da pena de multa, o que perfaz um total de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).»
No que concerne aos argumentos aduzidos pelo arguido/recorrente para peticionar a aplicação de menor pena, refira-se, desde logo, que não pode este tribunal ad quem atender ao invocado desconhecimento da ilicitude por parte do recorrente ao adquirir uma viatura automóvel após a declaração de insolvência, porquanto, atenta a falta de impugnação da matéria de facto dada por provada e não provada, esta mostra-se definitivamente estabelecida, sendo que tal matéria factual mostra-se ausente da mesma (não fazia parte do objeto do processo, delimitado pela acusação e pela contestação apresentada pelo arguido); acresce que, o recorrente não invocou o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 410º, nº2, al. a), do CPP], nem o mesmo se apresenta oficiosamente a este Tribunal como verificado, pois que não se revela notório face ao próprio texto da douta sentença recorrida.
Posto isto, e centrando agora a nossa atenção nos critérios e fatores de determinação da medida concreta da pena a que lançou mão o Tribunal recorrido, entendemos que apenas merece reparo a valoração operada relativamente ao grau de ilicitude do facto com base nos valores dos bens alienados pelo arguido.
Esse «grau de ilicitude» foi ali considerado “relevante” tendo em consideração o valor daqueles bens. Sucede que, salvo melhor opinião, o valor venal dos veículos automóveis em causa, alienados pelo arguido, ascendendo aos montantes de € 1.200,00 e € 1.100,00, o que perfaz a quantia global de € 2.300,00, ainda que não merecendo a adjetivação de “irrisórios” utilizada pelo recorrente, deverá ser considerado como pouco relevante, particularmente para o tipo de crime em discussão. Não se pode olvidar que nesta concreta criminalidade, como é do conhecimento geral, ocorrem frequentemente condutas conducentes à declaração de insolvência e de dissipação de bens pertencentes à massa insolvente que envolvem centenas, milhares e mesmo milhões de euros. Este tipo de comportamentos, adotados o comum das vezes por empresários em nome individual ou “administradores” e “gestores” de sociedades comerciais, impedem ou colocam em sério risco o ressarcimento de créditos de terceiros de valores assaz relevantes, criando por vezes o efeito “bola de neve” por deixarem numa situação económico-financeira precária os próprios credores, parceiros económicos (v.g., fornecedores e instituições bancárias), e, desafortunadamente, arrastam para o desemprego dezenas ou centenas de trabalhadores face ao encerramento dessas empresas, apesar de, com frequência, ocorrer o concomitante ilícito e atroz enriquecimento dos próprios perpetradores desses crimes.
No caso, cumpre atender ainda à circunstância de que os créditos cuja cobrança foi parcialmente frustrada pela atuação do arguido ascendem a um valor bastante comedido, de aproximadamente € 15.000,00, e pertencem a instituições de crédito, que lidam habitualmente na concessão de empréstimos com estes previamente previstos fatores de risco associados à menor solvabilidade dos mutuários, não tendo ficado sobremaneira afetadas na sua capacidade económico-financeira – cfr. art. 71º, nº2, al. a), quanto às consequências do facto.
Ademais, resulta da factualidade apurada no que tange às condições socioeconómicas do arguido que este não agiu apenas com a motivação de se livrar ilicitamente das dívidas contraídas, mantendo um estilo de vida opulento, mas que vive com manifestas dificuldades económico-financeiras, juntamente com o seu agregado familiar, com inclui um filho menor de idade.
Ao julgador incumbe na determinação da medida concreta da pena, neste ou em qualquer outro tipo de crime, ponderar, rectius, ficcionar, em razão da moldura penal abstrata aplicável qual seria a situação concreta que potencialmente justificaria a aplicação da pena máxima e, em sentido contrário, a que permitiria a aplicação da punição mínima, e nesse quadro mental de cotejo com a concreta situação que tem em mãos determinar a pena que se mostre justa, adequada e proporcional, sabendo-se que esta será sempre uma tarefa árdua e ingrata, porquanto não é estribada em critérios matemáticos ou silogismos inabaláveis, intervindo nessa operação, mais ou menos inconscientemente, fatores subjetivos como a perceção que cada juiz tem da gravidade, frequência e consequências de um determinado tipo de criminalidade, inculcados pela sua experiência pessoal, familiar ou vivência societária.
O demais expendido na douta fundamentação do Tribunal a quo a propósito da determinação da medida concreta da pena merece a nossa concordância, cabendo, no entanto, acrescentar que o arguido somente confessou parcialmente os factos, com pouco relevo para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, e não demostrou interiorização da censurabilidade da sua conduta.
Dito isto, julgamos que a ponderação concatenada dos factos dados como provados e dos sobreditos fatores de determinação da medida concreta da pena a que o tribunal a quo lançou mão, com as correções acima aduzidas por nós, permite uma redução da medida da pena de multa fixada.
Em conformidade, ponderados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à intensidade da culpa e, sobretudo, à necessidade da pena, entendemos que a pena de 200 dias de multa [à já fixada taxa diária de € 5,00] é proporcional à gravidade da ação ilícita ajuizada, adequa-se e revela-se idónea e suficiente à satisfação das necessidades de afirmação do bem jurídico violado, bem como à finalidade de procurar que o arguido não volte a delinquir e se reinsira socialmente.
Concluindo: a fixação da pena de multa concreta em 200 dias (em substituição dos 300 dias aplicados em primeira instância) coincide já com o exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, não colocando em causa a crença da comunidade na validade da norma jurídica violada e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Consequentemente, procede parcialmente o douto recurso deduzido pelo arguido.
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IV - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarãesem julgar parcialmente procedente o douto recurso interposto pelo arguido P. C., e, em conformidade:
Revogar a pena de 300 (trezentos) dias de multa aplicada na sentença recorrida, a qual se fixa agora em 200 (duzentos) dias, mantendo-se no demais aquela douta decisão.
Sem custas (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, a contrario).
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Guimarães, 13 de setembro de 2021,
Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura digital]
Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura digital]
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)
1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Vide Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, p. 350. Claus Roxin aceita que se diga que o dolo «pertence» tanto à ilicitude como à culpa, mas alerta para desnecessidade de voltar a incluir o dolo dentro da culpa como categoria sistemática, pois tal inclusão não produziria já qualquer alteração (in “Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega, pp. 136-138).
3. “Direito Penal Português II, As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
4. “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85.