Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
COACÇÃO
RAPTO
EXTORSÃO
Sumário
O crime de coacção caracteriza-se pelo constrangimento de outrem a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade, factos que se comportam a violação da liberdade de acção ou decisão e não a violação da liberdade de movimentos. O crime de rapto configura-se como um tipo específico que, tutelando, tal como o sequestro, a liberdade de movimentação, no sentido de deslocação efectiva ou potencial e de auto ou hétero locomoção, se distingue daquele na medida em que à vitima é subtraído o poder de disposição da sua liberdade de movimentação por ter sido colocada sob o domínio fáctico do raptor, ao mesmo tempo que é transferida de um local para outro. É, portanto, um crime especial de sequestro, de execução vinculada, de dano e de resultado, em que o tipo subjectivo se preenche por qualquer forma de dolo, desde que dirigida à intenção de, no caso, submeter a vítima a extorsão. O crime de extorsão consuma-se quando, igualmente por meio de violência ou de ameaça de um mal importante, se constrange outrem à prática de uma disposição patrimonial que acarrete prejuízo patrimonial a alguém, com a intenção de conseguir para o extorsionário ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal colectivo, foram julgados os arguidos: FR_______, filho de, nascido em 2 de Agosto de 1993, em Portimão, residente na Rua (actualmente preso preventivamente à ordem dos presentes autos) e BC_____, filho de nascido em 28 de Outubro de 1999, na Moita, residente na Rua , em Mem Martins.
Foram condenados nos seguintes termos:
1- O arguido FR_______:
- Pela prática, em co-autoria material, de um crime de rapto simples, previsto e punido (doravante p. e p.) pelo artigo 161º/1, al. a), do Código Penal (doravante CP), na pena de três anos de prisão (factos de Fevereiro/2019);
- Pela prática, em co-autoria material, de um crime de rapto simples, p. e p. pelo artigo 161º/1, al. a), do CP, na pena de três anos e seis meses de prisão (factos de Agosto/2019);
- Pela prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão simples, p. e p. pelo artigo 223º/1 do CP, na pena de dois anos de prisão (factos de Fevereiro/2019);
- Pela prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão simples, p. e p. pelo artigo 223º/1 do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão (factos de Agosto/2019);
- Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de cinco anos de prisão.
2- O arguido BC_____:
- Pela prática, em co-autoria material, de um crime de sequestro simples, p. e p. pelo artigo 158º/1 do CP, na pena de nove meses de prisão (factos de Agosto/2019);
- Pela prática, em cumplicidade material, de um crime de extorsão simples, p. e p. p. e p. pelo artigo 223º/1 e 73°, do CP, na pena de um ano de prisão (factos de Fevereiro/2019);
- Em cúmulo jurídico, na pena única de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, mediante sujeição a regime de prova a definir pela Direcção-Geral da Reinserção Social.
O arguido BC_____foi absolvido do demais imputado na acusação pública.
***
II- Fundamentação de facto: Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. Em data anterior a 27-2-2019, AF_______(doravante ofendido) foi aliciado pelo arguido FR_______ para, juntamente com outros indivíduos se deslocar a uma obra furtar cobre sendo que poderiam dividir depois os lucros entre todos.
2. AF_______, aproveitando o conhecimento que lhe fora transmitido pelo arguido FR_______, acordou com outros três indivíduos de nome deslocarem-se à referida obra com o objectivo de efetuarem o furto para o qual o arguido FR_______ os havia “convidado”.
3. Muito descontente com o sucedido, o arguido FR_______ desde logo quis tirar satisfações de AF_______, tendo formulado o desígnio de forçar aquele a de algum modo o “ressarcir” e entregar quantias e valores pelos “prejuízos” que a conduta daquele, juntamente com os outros indivíduos, lhe tinha causado.
4. Em 27-2-2019, cerca das 13 horas, o ofendido conduzia o veículo com a matrícula XX-XX-XX em Idanha, Belas, quando foi abordado por um indivíduo que não foi possível identificar, o qual entrou para o lugar do pendura da sua viatura dizendo a este “vamos só ali abaixo que está ali uma pessoa que quer falar contigo”.
5. Deslocaram-se então junto à Caixa Geral de Depósitos da citada localidade tendo então encontrado o arguido FR_______ que se encontrava numa Toyota Hiace.
6. O arguido FR_______ que tem alcunha de “Chico A…”, entrou na viatura do ofendido dizendo ao ofendido que este e os seus amigos o tinham privado do devido lucro pelo furto que tinha planeado e que, portanto, o ia ter de ressarcir “pelo dinheiro que tinha perdido”.
7. De seguida, insistiu que o ofendido AF_______ tinha de ir imediatamente levantar dinheiro para lhe dar, bem como entregar a sua mota de marca Yamaha WR 450F com a matrícula XX-XX-XX, e passá-la para o seu nome, dizendo-lhe ainda que iria “atrás da sua família”.
8. De seguida, o arguido FR_______ foi a conduzir o automóvel do ofendido seguindo atrás de outro indivíduo que abordou o ofendido, que tripulava a viatura Toyota Hiace, até à localidade de Mira de Sintra, tendo nessa altura esse indivíduo, cuja identidade não se apurou, entrado para o banco traseiro da viatura do ofendido.
9. Nessa altura, o ofendido AF_______ efectuou dois levantamentos, no valor individual de 200 euros, da sua conta pertencente ao Banco BIC, com o NIB 00..., que entregou ao arguido FR_______ sendo que no dia seguinte fez ainda outros dois levantamentos de 200 e de 70 euros da sua conta BANCO CTT com o NIB 00....
10. Nesse mesmo dia 27-2-2019, o arguido FR_______ acompanhado do outro indivíduo que não foi possível identificar, e ainda do ofendido, conduziu a viatura deste até Portimão.
11. No caminho, o arguido FR_______ disse ao ofendido que iriam ter com um primo seu.
12. Na viagem para o Algarve, o ofendido pagou as portagens no valor de 65,95 euros .
13. Foram então – o arguido FR_______ o outro indivíduo e o ofendido - a um bairro social situado próximo do Centro Comercial Aqua, sito na rua de S. Pedro, Portimão, onde encontraram outro indivíduo (alegadamente primo do arguido FR_______ ).
14. O ofendido permaneceu com estes até cerca da meia-noite num bar junto à marina de Portimão.
15. Durante esse tempo, o arguido FR_______ perguntava ao ofendido pela mota dizendo que a tinha de entregar.
16. O ofendido disse então que a mota estava com um familiar que vive no Algarve, o que era mentira.
17. O ofendido conduziu então o arguido FR_______ e restantes indivíduos a uma casa situada em Alcantarilha, na , pertencente à sua família, tendo dito àqueles que a mota estava na garagem mas que o comando estava com um familiar de um apartamento sito no 2.º C.
18. Foi então com o arguido FR_______ e restantes indivíduos ao referido apartamento tendo marcado o código errado da porta de modo a ficarem no exterior do prédio.
19. Tocaram então para o 2.º C mas ninguém atendeu.
20. O arguido FR_______ desistiu nessa altura de se apoderar da mota tendo decidido regressar a Lisboa.
21. Durante a viagem, o arguido FR_______ dizia várias vezes ao ofendido “como é que vamos resolver esta situação?” tendo, nessa altura, o ofendido prometido entregar a este a quantia monetária de 2000 euros que tinha em casa.
22. O ofendido ao regressar a casa, já de manhã, omitiu o sucedido aos familiares.
23. No dia seguinte a ter regressado a casa, junto à sua residência, o ofendido, temendo seriamente pela sua integridade física e que fosse cometidos contra si actos de violência, entregou a importância de 2000 euros em numerário ao arguido FR_______ o qual se ausentou de imediato na posse desse numerário, que fez seu.
24. No dia 19-08-2019, pelas 19 horas, o ofendido AF_______foi novamente abordado pelo arguido FR_______ junto à sua residência sita na Rua ..., Vivenda …, Bairro …. , Idanha, Belas.
25. Para o efeito, o arguido FR_______ tripulando uma viatura Audi, de matrícula XX-XX-XX, na companhia de indivíduo de raça negra não identificado, colocou-se ao lado da viatura do ofendido, de matrícula XX-XX-XX, tendo-lhe feito sinal para seguir em frente, o que aquele fez até chegar debaixo de um viaduto da auto-estrada A16 tendo nessa altura o arguido FR_______atravessado à sua frente.
26. O ofendido, ao perceber que estava em perigo, ainda teve tempo de ligar ao seu pai a dizer que estava a ser perseguido.
27. Acto contínuo, o arguido FR_______ saiu da viatura em que se encontrava, tendo entrado para a viatura do ofendido, sentando-se no lugar do pendura.
28. De imediato, o arguido FR_______ tirou ao ofendido AF___ o seu telemóvel, desligando-o e colocando-o no porta luvas.
29. O indivíduo de raça negra não identificado assumiu a condução do veículo marca Audi, pertencente ao arguido FR_______ tendo as viaturas seguido até à Rotunda Marquês de Pombal, no Cacém.
30. Nesse local, o arguido FR_______ obrigou o ofendido a estacionar a viatura Mitsubishi retirando-lhe a chave e o telemóvel, tendo de seguida se ausentado.
31. Instantes depois, o arguido FR_______ e o indivíduo não identificado entraram na viatura do ofendido tendo ordenado a este que fosse até à pastelaria Topázio onde o indivíduo de raça negra ficou, tendo o ofendido pago a conta dos consumos do arguido e do outro indivíduo no referido estabelecimento.
32. Quando chegou de novo à sua viatura, o arguido FR_______ já se encontrava na posição do condutor tendo este conduzido até à Rua , tendo o arguido FR_______ efectuado então um telefonema dizendo “Jojo anda cá abaixo que eu estou aqui”.
33. É nessa altura que surge o arguido BC_____ (doravante arguido BC_____) que entrou para o banco traseiro da viatura do ofendido.
34. O arguido BC_____ passou para o lugar do condutor, tendo então o arguido FR_______ se deslocado a uma habitação tendo instantes depois surgido com outras roupas vestidas.
35. O arguido FR_______ assumiu a posição do condutor e de seguida deslocaram-se todos a um posto de abastecimento de combustível em Mem Martins, tendo nessa altura o arguido FR_______ exigido ao ofendido que levantasse 200 euros tendo este retorquido que não tinha tal montante.
36. O arguido FR_______ conduziu então o veículo do ofendido até ao Algarve.
37. O ofendido pagou as portagens desta viagem com o seu cartão Multibanco.
38. Pelo caminho, o arguido FR_______ começou a falar da situação do furto dizendo “tu estragaste a minha vida! Aquilo era o dinheiro para comprar pão para os meus filhos!” Disse ainda ao ofendido que ia ter de o ressarcir pelo prejuízo que lhe tinha causado.
39. Dirigiram-se todos a Portimão onde foram de imediato ao restaurante Burger King, onde chegaram à uma da manhã do dia 20-08-2019, tendo nessa altura o arguido FR_______ ordenado ao ofendido que lhe entregasse o cartão do Eurobic com o respectivo código.
40. O ofendido, muito atemorizado, entregou-lhe o cartão e o código tendo aquele pago com o cartão a referida refeição no montante de 25,45 euros.
41. O arguido FR_______ disse então que iriam ter com um primo daquele com quem tinham estado da vez anterior, só que como ficou sem bateria no telemóvel não conseguiu contactar o primo, sendo que o arguido BC_____ não tinha saldo no telemóvel.
42. Foram ao Bairro Social em que supostamente se encontrava o tal primo sem que o conseguissem localizar.
43. Seguiram então ao Alvor sempre com o arguido FR_______ a conduzir tendo passado pela Feira Fatacil tendo então o arguido FR_______ ordenado ao ofendido que levantasse 200 euros para lhe dar no Banco Santander da Rua 25 de Abril em Lagoa, o que aquele ofendido fez.
44. Ato contínuo, os arguidos juntamente com o ofendido deslocaram-se a um bar na Lagoa onde o ofendido e o arguido BC_____ beberam um Red Bull, tendo o arguido FR_______ bebido um “Gin Tónico”.
45. O arguido FR_______ tentou pagar a conta com o cartão do ofendido, não tendo, no entanto, conseguido acabando por pagar com o dinheiro que tinha sido levantado anteriormente.
46. Acabaram por abastecer combustível num posto em Portimão tendo o arguido FR_______ pago com o dinheiro do ofendido.
47. Iniciaram o regresso a Lisboa, tendo o ofendido pago as portagens com o cartão da conta 00… do Banco BIC, tendo o ofendido passado para o banco de trás após começar a fechar os olhos de cansaço.
48. Ao chegarem a Lisboa, pelas 8 horas da manhã, o arguido FR_______ voltou a insistir junto do ofendido que pretendia a mota daquele.
49. A cerca de 1 km da casa daquele, o arguido FR_______ parou a viatura tendo pedido ao ofendido que fosse este a conduzir quando chegasse a casa.
50. O ofendido assumiu a condução da viatura, tendo o arguido FR_______ passado para o banco do pendura e o arguido BC_____ passado para o banco de trás.
51. Chegados a casa do ofendido, cerca das 8 horas da manhã, o arguido FR_______ ordenou a este que estacionasse no exterior tendo o ofendido aberto a porta que dava acesso ao quintal tendo de imediato sido visualizado pela sua namorada que de imediato lhe perguntou o que é que tinha acontecido ao que o ofendido lhe respondeu que falariam depois.
52. O arguido FR_______ ajudou a retirar a mota de matrícula XX-XX-XX da garagem e disse ao ofendido para pôr a mota a trabalhar para ele se ir embora com o arguido BC_____.
53. De imediato apareceram igualmente os avós do ofendido, a sua mãe e, posteriormente, o seu pai, o qual afirmou que já tinha chamado a polícia, tendo os arguidos, de imediato, fugido apeados do local, não logrando apoderar-se do motociclo pretendido.
54. O arguido FR_______ sabia que usava de ameaça de uso de violência dirigida contra os familiares de AF_______, assim como da superioridade física e numérica, para coarctar a liberdade de movimentos do ofendido, nomeadamente obrigando este a acompanhá-lo no seu próprio veículo contra a sua vontade até ao Algarve em duas ocasiões, impedindo-o numa das ocasiões de usar o telemóvel, assim como obrigando este a fazer contra a sua vontade várias entregas monetárias e despesas a que aquele não tinha direito, o que conseguiu nos termos acima referidos.
55. Usando dos mesmos meios, o arguido FR_______ exigiu também que o referido ofendido que lhe entregasse o motociclo acima mencionado, o que não sucedeu por razões alheias à vontade dos arguidos.
56. O arguido FR_______ actuou de comum acordo e comunhão de esforços, consoante os casos, nos termos acima referidos, com outros indivíduos que não foi possível identificar e com o arguido BC_____ .
57. O arguido BC_____, ao actuar como actuou, sabia que AF_______ não os acompanhava de livre vontade e quis igualmente privá-lo da liberdade nos termos aludidos, tendo pretendido, com a sua conduta, obrigar este a disposições patrimoniais a favor do arguido FR_______, o que conseguiu, actuando nesta parte de comum acordo e comunhão de esforços com o 1.º arguido.
58. O arguido BC_____ sabia que a sua mera presença era suficientemente intimidatória em relação ao ofendido, tendo adoptado esta atitude intimidatória em relação ao ofendido, em concordância com os actos do arguido FR_______ e em obediência ao plano estabelecido entre ambos e actuando em comunhão de esforços com este.
59. O ofendido fez as entregas de dinheiro e os pagamentos de despesas a favor dos arguidos, porque temeu pela sua integridade física e dos seus familiares, sabendo-se privado da liberdade de movimentos, atenta a manifesta superioridade física do arguido FR_______ e dos que o acompanhavam, temendo igualmente que o arguido BC_____ praticasse agressões na sua pessoa juntamente com o arguido FR_______ se tentasse qualquer gesto de resistência ou de fuga.
60. Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo os seus actos que eram proibidos e punidos por lei.
Mais se provou, quanto ao arguido FR_______, que:
61. O arguido prestou declarações no julgamento, negando que tivesse intimidado e coagido o ofendido a sofrer qualquer mal e não manifestando arrependimento.
62. No processo n.º 17/10.7PISNT, mediante decisão transitada em julgado em 9 de Setembro de 2011, o referido arguido foi condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, com regime de prova, pela prática, em 22 de Janeiro de 2010, de um crime de roubo simples.
63. No processo n.° 139/10.4PISNT, mediante decisão transitada em julgado em 12 de Dezembro de 2011, o referido arguido foi condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, com regime de prova, pela prática, em 21 de Junho de 2010, de um crime de roubo simples, na forma tentada.
64. No processo n.° 755/11.7PCSNT, mediante decisão transitada em julgado em 21 de Dezembro de 2012, o referido arguido foi condenado na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, com regime de prova, pela prática, em 23 de Maio de 2011, de dois crimes de roubo qualificado.
65. O arguido encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 24 de Junho de 2020.
66. FR_______ nasceu em 2 de Agosto de 1983.
67. O arguido é oriundo de um agregado familiar de etnia cigana e de condição sócio económica carenciada.
68. Contudo, e desde há vinte anos, o agregado familiar, constituído pelos progenitores e seis filhos (o arguido é o 5° filho), reside em habitação camarária com adequadas condições de habitabilidade e dimensão adequada ao número de elementos, e subsiste com o apoio económico da Segurança Social, através da atribuição do Rendimento Social de Inserção, e do rendimento obtido no âmbito da actividade profissional dos progenitores, como vendedores ambulantes.
69. Neste contexto sócio familiar, o percurso escolar do arguido foi caracterizado pelo fraco investimento pessoal e familiar, por problemas de comportamento por parte do arguido e por algumas dificuldades de aprendizagem, registando várias reprovações e o abandono escolar com dezasseis anos de idade, apenas com o 1º ciclo.
70. Desde então, trabalhou com os progenitores na venda ambulante, trabalhou em regime de biscates na construção civil e na recolha de sucata.
71. A reduzida aquisição de competências escolares, profissionais e pessoais, a sua desocupação durante a maior parte tempo e a autogestão dos tempos livres, parece ter estado subjacente ao seu envolvimento com pares com idênticas características e à prática precoce de condutas desviantes (com contacto com o sistema de justiça no âmbito da Lei Tutelar Educativa).
72. A dinâmica familiar do arguido, embora pautada por vínculos afectivos consistentes, não se constituiu como organizadora e estruturante na medida em que é evidente a superprotecção em relação ao arguido e a desresponsabilização pelos seus comportamentos e consequências.
73. Depois de um relacionamento afectivo com uma jovem, aos vinte anos de idade, e do qual teve um filho, actualmente com seis anos de idade, foi a progenitora do arguido que assumiu a guarda do menor.
74. A mãe do menor não mantém com este qualquer relacionamento.
75. À data da prisão, FR_______ vivia em união de facto com uma jovem de vinte anos de idade, que se encontrava grávida, e com os dois filhos do casal.
76. Na actualidade, os menores, de três e um ano de idade e de três meses de vida, encontram-se numa instituição com a progenitora (companheira do arguido), que abandonou o filho recém-nascido na maternidade após o seu nascimento e até ser detida.
77. O agregado familiar mantinha alguma instabilidade residencial, permanecendo alternadamente em casa dos pais da companheira ou em casa dos pais do arguido.
78. Este relacionamento afectivo terminou depois da prisão do arguido, uma vez que segundo o arguido, a companheira mantinha um relacionamento com outro individuo desde que o arguido foi preso, para além de que aquela e os menores não mantêm qualquer contacto com os pais do arguido.
79. No plano laboral, o arguido dedicava-se à venda ambulante de roupa, em cafés e em feiras.
80. Em 24 de Fevereiro de 2020, o arguido estava desempregado e inscreveu-se no Serviço de Emprego de Sintra à procura de novo emprego
81. O arguido está integrado no agregado familiar dos progenitores, constituído por aqueles, por um irmão de treze anos e pelo filho do arguido de seis anos de idade, para atribuição do Rendimento Social de Inserção e que no presente é de 560€/mês acrescido de 80€ mensal relativo aos abonos de família dos dois menores que compõe o agregado.
82. Em termos pessoais, o arguido demonstra reduzidas competências pessoais e emocionais, denotando alguma incapacidade na verbalização de emoções e sentimentos e recorrendo a um discurso verbal pobre, baseado nas suas aprendizagens sociais, na cultura da etnia a que pertence e da desejabilidade social.
83. Quando confrontado com a necessidade de definir estratégias ou de adoptar comportamentos facilitadores de um estilo de vida que não colida com os normativos éticos jurídicos, o arguido recorre ao futuro cuidado dos filhos, como um factor determinante para e favorável à sua reinserção social.
84. Sobre o seu anterior percurso criminal, o arguido enquadra-o num período da sua vida em que era muito jovem e em que era permeável à influência dos pares com práticas criminais, denotando ausência de consciência do bem jurídico colocado em causa nos crimes cometidos e ausência de empatia com as vitimas dos mesmos, e as quais desvaloriza.
85. No estabelecimento prisional, o arguido já foi alvo de uma sanção disciplinar, nomeadamente de catorze dias em cela disciplinar, por agressão a um outro recluso.
86. O arguido mantém o apoio afectivo e logístico dos progenitores que o visitam e que consideram que o mesmo necessita de algum controlo externo, como eventualmente mecanismos de vigilância electrónica.
Mais se provou, quanto ao arguido BC_____, que:
87. O arguido BC_____ prestou declarações no julgamento, assumindo tão-só a sujeição do ofendido à actuação pressionante do co-arguido mas negando que tivesse prestado qualquer apoio a este último, com isso não manifestando qualquer arrependimento.
88. Não são conhecidas quaisquer condenações criminais ao arguido.
89. O arguido esteve preso preventivamente, à ordem dos presentes autos, entre 24 de Junho de 2020 e 4 de Março de 2021.
90. BC_____ nasceu em 28 de Outubro de 1999.
91. O arguido pertence a uma família da comunidade cigana, tendo crescido num agregado constituído pelos pais e três irmãos, havendo alusão a uma dinâmica familiar positiva, marcada por laços de solidariedade e afecto entre os membros, ainda que haja referência à existência no passado de hábitos etílicos por parte do pai.
92. Tanto o pai do arguido, como dois dos três irmãos do arguido apresentaram problemas judiciais, tendo sido condenados a penas efectivas de prisão.
93. A família do arguido residiu noutros locais, havendo mobilidade geográfica, tendo o agregado sido realojado na morada actual há cerca de sete anos.
94. Os pais de BC_____ desempenhavam actividade profissional na venda ambulante, comercializando artigos de vestuário, contudo, em determinada altura terão cessado a actividade, passando a beneficiar de rendimento social de inserção.
95. BC_____ frequentou o sistema escolar, tendo o 5º ano de escolaridade concluído, não apresentando hábitos laborais.
96. Não há referência à existência de problemas de saúde significativos no percurso deste jovem adulto.
97. Antes de ficar sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, BC_____ encontrava-se a residir no agregado habitual, junto dos pais, sendo que dois dos seus três irmãos se encontravam presos.
98. O agregado residia em casa camarária, de tipologia T3 (onde os pais se mantêm) beneficiando a família de cerca de 400 euros mensais referentes ao rendimento social de inserção.
99. BC_____ não se encontrava a desempenhar actividade profissional ou formativa.
100. Segundo informação remetida pelo Serviço de Formação Profissional de Sintra – Centro de Emprego e Formação Profissional de Sintra, BC_____ esteve inscrito na acção de Sapadores Florestais, da qual saiu em 20.01.2020.
101. Segundo a progenitora, esta saída prendeu-se a questões de saúde (início broncopneumonia).
102. Não dispondo de actividade estruturada alguma, o tempo de BC_____ seria passado, maioritariamente, no bairro de residência.
103. As repercussões da situação jurídico-penal parecem ter incidido na esfera pessoal, mantendo o arguido o apoio incondicional da família, não sendo expectável reacções adversas no meio residencial.
104. No estabelecimento prisional, BC_____ não registou medidas disciplinares.
*** Factos não provados:
Não se provou que:
1. Em 27-2-2019, o arguido FR_______ assumiu de imediato a posição do condutor quando entrou na viatura do ofendido.
2. De imediato, o arguido FR_______ tirou o telemóvel ao ofendido, desligando-o e colocando-o no porta luvas.
3. De seguida, disse-lhe que lhe bateria.
4. Após terem ido a Alcantarilha, o arguido FR_______ ficou irritado tendo gritado “a mota, a mota eu quero a mota!”
5. O pai do ofendido já tinha avisado as autoridades do desaparecimento antes deste regressar a casa.
6. No dia 19-08-2019, após entrar na viatura do ofendido, o arguido FR_______ disse a este “eu vi-te ali na rotunda e vim atrás de ti. Agora vens só ali comigo que eu vou só levar aquele carro à oficina e depois tu dás-me boleia”.
7. Os arguidos sabiam que o ofendido temia que aqueles atentassem contra a sua vida.
8. O ofendido temeu pela sua vida
9. O arguido BC_____ quis apoderar-se dos bens do ofendido em proveito próprio e fazê-los seus, tendo adoptado para esse efeito uma atitude intimidatória em relação ao ofendido.
***
IIII- Fundamentação probatória: O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
« 1. O juízo probatório positivo e negativo alcançado pelo Tribunal fundou-se na análise global e sistemática das declarações prestadas pelos arguidos, dos depoimentos das testemunhas e da prova documental constante dos autos, tudo à luz da regra probatória da livre apreciação e das restrições legais existentes, com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e de convicção.
2. A prova produzida não suscitou quaisquer dúvidas quanto ao juízo probatório positivo parcial alcançado nesta matéria, mas não deixa de haver restrições importantes a fazer.
2.1. O arguido FR_______ prestou declarações durante o julgamento e não colocou em crise as várias viagens por si realizadas, no seu interesse exclusivo, entre os concelhos de Sintra e Portimão, fazendo uso do veículo automóvel que se encontrava na posse de AF_______.
As datas das operações bancárias que aqui relevam e que foram reconhecidas pelo arguido FR_______ constam dos extratos bancários juntos aos autos e permitem-nos situar no tempo as duas situações sob julgamento (Vide documentos de fls. 59-60 e 85-86).
O mesmo arguido confirmou também que beneficiou dos vários levantamentos bancários realizados – nestas viagens – sobre as contas bancárias de AF_______, assim como reconheceu que este último suportou integralmente as despesas das portagens, de combustível, de restauração e de bar realizadas nas mesmas viagens.
Contudo, diversamente do alegado na acusação, AF_______ – declarou o referido arguido – prontificou-se voluntariamente a participar nestas viagens e a suportar todas as despesas inerentes às mesmas.
E o que motivou toda esta “generosidade” de AF_______?
Segundo o referido arguido, AF_______ “passou-lhe a perna” nuns furtos de cobre que tinham projectado realizar em conjunto, com isso frustrando a obtenção por aquele de um “lucro global de cerca de € 2 000,00” e ter-se-ia assumido perante o próprio arguido FR_______ como devedor daquela quantia.
Nesta tese, os levantamentos de dinheiro nas ATM e os pagamentos das despesas realizados por AF_______ nas viagens ao Algarve corresponderam a pagamentos realizados por conta daquele crédito de origem assumidamente criminosa, sem qualquer ameaça dirigida contra o mesmo ou contra os seus familiares.
E qual o envolvimento do co-arguido BC_____ nestes factos assim narrados?
Segundo o arguido FR_______, aquele nem sabia da frustração do furto do cobre e limitou-se a acompanhá-lo na viagem ao Algarve, tanto mais que nem sequer conhecia AF_______.
2.2. Estas declarações relativas ao caráter voluntário das deslocações e da suportação das despesas foram contrariadas pelo depoimento de AF_______, excepto na parte relativa ao reconhecimento da frustração da participação do arguido FR_______ no furto de cobre que acabou por levar a cabo com outros indivíduos fazendo uso dos conhecimentos que lhe tinham sido transmitidos por aquele.
No julgamento, AF_______ veio dar conta de que foi obrigado pelo arguido FR_______ a compensá-lo pela sua falta de participação no furto do cobre mediante a ameaça de “ir atrás da sua família”.
Relativamente ao co-arguido BC_____, AF_______ não lhe assacou qualquer actuação lesiva grave contra sua pessoa, a não ser o facto de aquele ter ficado a vigiá-lo na ausência do co-arguido e de o ter acompanhado uma única vez na deslocação à ATM e ter ficado na posse do talão saído da mesma para efeito de consulta e confirmação do saldo bancário então existente na conta de AF_______.
2.3. O arguido BC_____ declarou no julgamento que ignorava a questão do furto do cobre quando entrou no veículo automóvel de AF_______ e que se limitou a acompanhar o co-arguido na viagem ao Algarve a pedido deste, sem que tivesse actuado alguma vez contra AF_______ até ao final da viagem de regresso a Lisboa.
Aqui chegados, não havendo mais ninguém que tivesse estado presente nas deslocações dos autos e que tivesse sido ouvido em julgamento, importará dilucidar de que lado está a verdade.
3. A credibilidade do depoimento de AF_______ encontra-se estribada em vários meios de prova.
Em primeiro lugar, por referência à segunda viagem realizada ao Algarve, a testemunha JF____ veio dar conta de que o seu filho AF_______ lhe tinha telefonado ao final da tarde do dia 19 de Agosto de 2019 a dar-lhe conta de que andava a ser seguido e a pedir a abertura rápida do portão da sua casa, isto imediatamente antes de ficar incontactável até à manhã do dia seguinte, o que motivou a sua deslocação à PSP logo naquela noite.
No que respeita às circunstâncias desta viagem, foi o próprio arguido BC_____ que reconheceu no julgamento que “achou estranho” que tivesse sido o co-arguido a conduzir sempre o veiculo de AF_______ durante toda a viagem até chegarem perto do portão da residência deste e que o mesmo tivesse suportado todas as despesas da viagem.
Durante a viagem em apreço, este arguido não deixou igualmente de perceber que o co-arguido FR_______ pressionou AF_______ a fazer entregas de dinheiro que este último revelava não poder satisfazer porque “não tinha mais”, ao ponto de pedir-lhe o cartão multibanco e o código do cartão.
Finalmente, a própria versão factos apresentada pelo arguido FR_______ encerra contradições e não é nada verosímil por várias ordens de razões que se passam a enunciar:
a) O arguido FR_______ reconheceu que tinha dois filhos menores para criar e dificuldades financeiras para suportar as despesas familiares e gasta uma parte relevante do aludido “crédito” no valor de € 2 000,00 que alegadamente detinha sobre AF_______ na realização de duas viagens ao Algarve para ir visitar um primo, sendo que numa das vezes nem sequer tinha assegurado que o mesmo estaria à sua espera!
b) Este arguido negou qualquer retenção do telemóvel de AF_______ e até afirmou que “foi este a desligá-lo para os pais não saberem onde andava”. Ora tal alegação contraria o telefonema realizado por este ao seu próprio pai antes de passar a acompanhar o arguido FR_______!
c) Este arguido alegou que foi a casa de AF_______ buscar a mota deste a título de mero empréstimo porque tinha então o seu carro na oficina e acabou por dizer à mãe daquele que estava interessado na sua compra porque não quis falar sobre a dívida que AF_______ mantinha consigo! Tal alegação traduz o reconhecimento de que também queria ficar com a mota por conta da aludida dívida e que afinal não era um mero empréstimo.
4. Importa tecer mais umas considerações sobre alguns pormenores deste caso sob julgamento.
Comecemos pela circunstância de AF_______ não ter fugido dos arguidos nos vários momentos em que logrou estar em espaços frequentados por outras pessoas.
É verosímil que AF_______ estava condicionado na sua liberdade de actuação por causa das ameaças dirigidas aos seus familiares e decidiu sujeitar-se ao arguido FR_______ e a todos os que acompanhavam, tanto mais que ficou desapossado do seu telemóvel e/ou das chaves da viatura do seu pai durante as várias abordagens sob julgamento (Vide depoimento da testemunha AF_______ e visionamento das imagens da videovigilância captadas na “Frutaria H&W”, sita ao lado do café “Topázio” e auto de visionamento de fls. 88).
Assim condicionado, a decisão do ofendido dos autos traduziu-se em não resistir à ameaça do arguido FR_______, em submeter-se às exigências deste e não chamar as autoridades, pois AF_______ sabia que também tinha cometido furtos de cobre e que estes ilícitos criminais, geradores da sua própria responsabilidade criminal, estavam na origem da atuação inicial do arguido FR_______.
É preciso não perder de vista que foi o pai de AF_______ que fez intervir as autoridades policiais, pois este último sujeitou-se à atuação do arguido FR_______ desde o início até ao fim, ou seja, desde a primeira abordagem, ocorrida em 27 de fevereiro de 2019, até à entrada dos arguidos na própria residência do mesmo, verificada em 20 de Agosto de 2019.
Foi também questionada a possibilidade de AF_______ satisfazer a exigência da entrega de € 2 000,00 em numerário.
Ora, nesta parte, as cópias dos extratos bancários relativos às contas bancárias do ofendido revelam que o mesmo chegou a beneficiar de saldos bancários daquela ordem de grandeza nos meses de Fevereiro e Agosto de 2019 (Vide fls. 59-60 e 85-86).
5. Por seu turno, os arguidos não conseguiram contrariar a prova acabada de enunciar.
As testemunhas apresentadas pelo arguido FR_______ – um irmão e dois amigos deste arguido – revelaram nada saber sobre o que se passou nestas viagens ao Algarve e vieram apenas dar conta de que aquele arguido e AF_______ sempre se deram bem entre si, nomeadamente que este arguido terá voltado a relacionar-se socialmente com AF_______ nos meses que antecederam a detenção daquele arguido, verificada em 24 de Junho de 2020.
Ora, tais depoimentos não podem ser levados a sério e revelam um conhecimento desactualizado sobre a relação existente entre arguido FR_______ e o ofendido, pois as testemunhas em apreço nem sequer sabiam que o arguido FR_______ tinha ficado assumidamente zangado com AF_______ por causa da execução do furto do cobre à sua revelia.
6. Resta analisar o alcance da atuação do arguido BC_____ na segunda viagem realizada ao Algarve, pois este arguido não assumiu qualquer protagonismo na primeira viagem descrita na acusação.
Nesta parte, AF_______ deu conta de que o arguido BC_____ nunca o ameaçou ou tratou com violência durante a viagem e que o mesmo até se limitava a obedecer às ordens que lhe eram dadas pelo arguido FR_______.
Porém, AF_______ não deixou de relatar que o arguido BC_____ assumiu a função de o vigiar nas ausências do arguido FR_______ e de controlar o seu extrato bancário, nomeadamente quando o acompanhou à ATM para fazer um levantamento de dinheiro e acabou por ficar na posse do talão saído da máquina para o mostrar o saldo ao co-arguido FR_______.
Se associarmos estes factos à confissão pelo arguido BC_____ de que assistiu, durante a viagem, às sucessivas exigências de dinheiro por parte do co-arguido por causa da compensação do furto do cobre, resulta manifesto que o arguido BC_____ sabia que estava a contribuir com a sua presença para colocar o AF_______ na impossibilidade de resistir às exigências do co-arguido.
É também impensável que o arguido FR_______ estivesse a participar activamente no plano criminoso por si delineado e se fizesse acompanhar pelo seu amigo durante toda uma noite sem lhe explicar minimamente o que estava a suceder, admitindo-se tão-só que o mesmo ignorasse concretamente as ameaças de uso de violência pretéritamente dirigidas aos familiares do ofendido e que condicionaram este a sujeitar-se à actuação dos arguidos.
Afirmar, na presença destes dados de facto, que o arguido BC_____ é completamente alheio ao que se passou com AF_______ durante a respectiva mobilização forçada até ao Algarve, corresponde a uma distorção da prova produzida, sendo certo que a comparticipação nos factos não exige que todos os comparticipantes estejam presentes desde início, que tenham o mesmo domínio do facto e que cometam todos os mesmos actos de execução.
7. Relativamente ao restante juízo probatório negativo alcançado neste julgamento, importa afirmar desde logo que o mesmo se ficou a dever à falta de produção de prova.
Em especial, consigna-se que não foi apresentado qualquer meio de prova que comprovasse a alegação de que o arguido FR_______ tivesse ameaçado bater no ofendido em qualquer das situações, nomeadamente ao ponto de o fazer recear pela sua vida.
Também não foi produzida qualquer prova de que o arguido BC_____ tivesse agido em proveito próprio.
8. Para o apuramento da factualidade respeitante às condições sociais e familiares dos arguidos relevaram os relatórios sociais oportunamente elaborados pela DGRS e a documentação da Segurança Social e do IEFP relativa aos arguidos.
9. Finalmente, a existência ou inexistência de condenações sofridas pelos arguidos foi alcançada a partir dos respectivos certificados de registo criminal junto aos autos.»
***
IV- Recurso:
O arguido FR_______ recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
«1º No entendimento do Professor Paulo Pinto de Albuquerque, o rapto é a acção de subtracção e transferência não consentida de uma pessoa de um local para outro, ficando a vítima sob o domínio fáctico do agente, “Comentário ao Código Penal”, pág. 635, edi. U.C.
2º Para que se mostre preenchido o tipo objectivo do crime de rapto, o agente deve de o praticar por meio de violência ou ameaça.
3º Com a prova adquirida em audiência de julgamento, designadamente com o requerido e efectuado exame, em audiência, dos documentos de fls. 89 verso dos autos, fotogramas 8 e 9, e dos fotogramas 13 e 14, a fls. 90 verso dos autos, e com a prova testemunhal produzida pelo ofendido, dúvidas não restam de que o arguido não praticou qualquer crime de rapto.
4º Na primeira viagem ao Algarve o ofendido esclareceu o Tribunal “a quo” de que terá sido por sua causa que a viagem ao Algarve ocorreu, já que ele informou o arguido de que a sua mota estaria no Algarve e o arguido pretendia ver a mota.
5º Explicou também a testemunha que se deslocou ao Algarve porque se sentiu coagido a tal.
6º Deixou ainda esclarecido que nunca foi vítima de violência nem foi ameaçado, não tendo percebido se era séria ou uma mera brincadeira a conversa do arguido sobre o conhecimento que tinha da família do ofendido.
7º Quer na primeira viagem ao Algarve quer na segunda, o ofendido circulou por restaurantes, bares, feiras, bombas de abastecimento de combustível, máquinas de multibanco sempre livre na sua pessoa, na rua e no meio de pessoas para além do arguido
8º O ofendido podia ter pedido auxílio, o que nunca sucedeu.
9º No dia da segunda deslocação ao Algarve, e já depois de ter sido coagido à primeira deslocação, o ofendido esteve 30 a 40 minutos sozinho, dentro do seu carro, livre, a aguardar pelo regresso do arguido e não fugiu nem pediu auxílio.
10º No dia da segunda deslocação ao Algarve, e já depois de ter sido coagido à primeira deslocação, o ofendido esteve sozinho e livre no seu veículo automóvel, à porta de uma pastelaria, sem fugir ou pedir ajuda, tendo seguido o arguido para o interior do estabelecimento.
11º Nesse estabelecimento, e depois de o arguido ter consumido duas cervejas, o ofendido ficou, durante 17 segundos, sozinho a pagar a conta, sem que tenha pedido ajuda às pessoas presentes ou solicitado a alguém que contactasse a sua família ou as autoridades policiais.
12º Ora o rapto é um tipo de crime violento, marcante e inesquecível, considerado pela lei como criminalidade especialmente violenta, nos termos do art.º 1º, l), do C. P. Penal.
13º Por isso, o ofendido é considerada vítima especialmente vulnerável, de acordo com o art.º 67º-A, nº 3, do C. P. Penal.
14º Ora este ofendido especialmente vulnerável, sobre quem foi praticada criminalidade especialmente violenta, consegue, na fase de inquérito, alterar em 32 dias a data em que sofreu a prática dos crimes de rapto e extorsão.
15º Não apresentou queixa às autoridades policiais dos crimes de que foi vítima, nem se queixou ou contou à companheira, à família ou a amigos.
16º Não se mostram, pois, preenchidos os elementos do tipo objectivo do crime de rapto, designadamente o domínio fáctico do arguido sobre o ofendido, a supressão da sua liberdade, a violência ou a ameaça sobre si ou sobre terceiros.
17º A descrição dos factos realizada pelo ofendido em julgamento conduz-nos à conclusão de que se mostra preenchido o tipo objectivo, pelo arguido, do crime de coacção, previsto e punível pelo artigo 154º do Código Penal.
18º Ao obrigar o ofendido a duas deslocações ao Algarve, o arguido coagiu-o a suportar uma actividade.
19º Assim, ao condenar o arguido pela prática de dois crimes de rapto, o Tribunal “a quo” violou o estatuído no art.º 161º do Código Penal.
20º Deveria o Tribunal “a quo” ter considerado que não se mostram preenchidos os elementos do tipo objectivo do crime de rapto.
21º Doutro passo, também a condenação do arguido pelos crimes de extorsão demonstram que o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.º 223º do Código Penal.
22º Dos factos provados no Acórdão recorrido não está descrita a prática dos crimes de extorsão com recurso a violência ou a ameaça com mal importante, essenciais para que os factos sejam enquadráveis no art.º 223º do C. Penal.
23º Ademais, durante as viagens ao Algarve não foi cometido nenhum crime de extorsão.
24º O ofendido pagou as despesas ao arguido porque assumiu com o arguido dever-lhe dinheiro do furto que o ofendido perpetrou e em que o arguido não interveio.
25º Não resultou provado que o pagamento das despesas da viagem, refeições e bebidas tenha sido motivado por violência ou ameaça com mal importante.
26º Deveria o Tribunal “a quo” ter interpretado estes factos no sentido de estarem cometidos dois crimes de coacção, e ter aplicado, aos factos descritos como enquadráveis nos crimes de extorsão, o art.º 223º do Código Penal.
27º A prova por declarações de arguido deveria ter sido valorizada positivamente, já que ajuda a compreender a postura do ofendido, de não se queixar às autoridades policiais ou aos familiares, de não esboçar a fuga ou um pedido de ajuda, ou de alegadamente entregar 2.000,00 euros ao arguido na manhã seguinte a ter sido “raptado” e “libertado”.
28º Por fim, o arguido foi condenado numa pena de prisão efectiva. Ou seja, tendo o arguido sido sujeito a uma pena de prisão, suspensa na sua execução, em 2011, suspensão que se concluiu em 2015, de forma favorável, não foi, ainda assim, este percurso determinante para convencer o Tribunal “ a quo” de que a mera hipótese de se manter preso, durante mais de 4 anos, seria suficiente para afastar o arguido da prática de ulteriores crimes.
29º O arguido não praticava qualquer crime desde 2011, o que denota que está socialmente integrado, tendo a pena de prisão sofrida por esses factos, suspensa na sua execução, sido suficiente para o afastamento da prática de crimes durante 8 anos.
30º O Tribunal “a quo” deveria ter suspendido a execução da pena de prisão, condicionada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determinando que a suspensão fosse acompanhada de regime de prova. Não o tendo feito, violou o Tribunal “a quo” o art.º 50º do Código Penal.
31º Deve a pena de prisão que vier a ser aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução, eventualmente sujeita à imposição de condições, regras ou ao regime de prova, nos termos dos arts.º 50º a 54º do Código Penal.
Nestes termos, nos melhores de direito, e com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão proferido.
Requer-se a V. Exas. se dignem alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido e considerados provados, para um crime de coacção, aplicando-lhe, de resto, uma pena não privativa da liberdade (…)».
***
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso.
***
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
***
V- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
- Subsunção dos factos a dois crimes de coacção;
- Aplicação de uma pena suspensa.
***
VI- Fundamentos de direito: 1- Da subsunção dos factos a dois crimes de coacção:
O recorrente começa o seu recurso dizendo que «ao longos dos Factos Provados, o Tribunal “a quo” não imputa ao arguido um único comportamento ameaçador ou agressivo para com o ofendido» e transcreve, de seguida, uma série de excertos que, em seu entendimento, justificam a conclusão de que « Com a prova adquirida em audiência de julgamento, designadamente com o requerido e efectuado exame, em audiência, dos documentos de fls. 89 verso dos autos, fotogramas 8 e 9, e dos fotogramas 13 e 14, a fls. 90 verso dos autos, e com a prova testemunhal produzida pelo ofendido, dúvidas não restam de que o arguido não praticou qualquer crime de rapto.»
Ora, consta do provado que:
- O arguido FR_______ formulou o desígnio de forçar o ofendido a entregar-lhe quantias e valores pelos “prejuízos” que a execução do furto por ele planeado lhe tinha causado;
- Para isso, fez abordar o ofendido por um indivíduo que lhe entrou na viatura que ele conduzia, para o lugar do pendura, que o mandou deslocar-se ao encontro do arguido FR_______, que entrou na viatura do ofendido dizendo-lhe que ele o ia ter de ressarcir “pelo dinheiro que tinha perdido”, mandando-o ir imediatamente levantar dinheiro para lhe dar, bem como entregar a sua mota e passá-la para o seu nome, dizendo-lhe ainda que iria “atrás da sua família”;
- De seguida, o arguido foi a conduzir o automóvel do ofendido, seguindo atrás do indivíduo que abordou o ofendido, até que esse indivíduo entrou também para o banco traseiro da viatura do ofendido. Depois, o ofendido efectuou dois levantamentos da sua conta, de 400 euros, que entregou ao arguido FR_______;
- De seguida, o arguido, acompanhado do outro indivíduo e com o ofendido dentro da viatura, conduziu-a até Portimão, fazendo o ofendido pagar as portagens e insistindo pela mota dizendo que ele a tinha de entregar;
- Porque o ofendido disse que a mota estava num certo local, dirigiram-se todos a essa casa para a ir buscar, o que não conseguiram, porque era mentira;
- Regressaram então a Lisboa, sendo que perante a insistência do arguido no pagamento, o ofendido prometeu entregar-lhe a quantia monetária de 2000 euros o que fez no dia seguinte, temendo seriamente pela sua integridade física e que fosse cometidos contra si actos de violência;
- Não obstante o pagamento feito, no dia 19-08-2019, o ofendido foi novamente abordado pelo arguido, junto à sua residência, estando acompanhado por um outro indivíduo de raça negra;
- Para isso colocou a viatura que conduzia ao lado da viatura do ofendido, tendo-lhe feito sinal para seguir em frente, o que aquele fez até chegar debaixo de um viaduto da auto-estrada A16 tendo-se nessa altura o arguido FR_______ atravessado à sua frente;
- O ofendido, ao perceber que estava em perigo, ainda teve tempo de ligar ao seu pai a dizer que estava a ser perseguido;
- Acto contínuo, o arguido saiu da viatura em que se encontrava, tendo entrado para a viatura do ofendido, sentando-se no lugar do pendura e tirou ao ofendido o seu telemóvel, desligando-o e colocando-o no porta luvas;
- O indivíduo de raça negra assumiu a condução do veículo do arguido que, a certa altura, obrigou o ofendido a estacionar a sua viatura, retirou-lhe a chave e o telemóvel, ausentou-se e, voltando instantes depois, com o outro indivíduo, entraram na viatura do ofendido e ordenando-lhe que fosse até à pastelaria Topázio onde o indivíduo de raça negra ficou, tendo o ofendido pago a conta dos consumos do arguido e do outro indivíduo no referido estabelecimento;
- Quando chegou de novo à sua viatura, o arguido já se encontrava na posição do condutor, tendo ido buscar o arguido BC_____ que passou para o lugar do condutor, enquanto o arguido FR_______ foi mudar de roupa. Quando voltou, o arguido FR_______ assumiu a posição do condutor, exigiu ao ofendido que levantasse 200 euros tendo este retorquido que não tinha tal montante, dirigiu-se a Portimão, pagando o ofendido as portagens de ida e volta com o seu cartão Multibanco, enquanto ele lhe dizia que o ofendido tinha que lhe pagar o que devia;
- Em Portimão o arguido FR_______ ordenou ao ofendido que lhe entregasse o cartão do Eurobic com o respectivo código, o que este fez, atemorizado. Na posse do cartão o recorrente pagou a refeição de todos e, mais tarde, exigiu a ao ofendido que levantasse 200 euros para lhe dar o que aquele ofendido fez;
- Ao chegarem a Lisboa, o arguido FR_______ voltou a insistir junto do ofendido que queria a mota do ofendido, e deslocaram-se para casa do ofendido, tendo o arguido exigido que fosse o ofendido a conduzir. Quando estavam a deslocar a mota, para o arguido a levar, foram impedidos por membros da família do ofendido, tendo os arguidos, de imediato, fugido apeados do local, não logrando apoderar-se do motociclo pretendido;
- O arguido FR_______ sabia que usava de ameaça de uso de violência dirigida contra os familiares de AF_______, assim como da superioridade física e numérica, para coarctar a liberdade de movimentos do ofendido, nomeadamente obrigando este a acompanhá-lo no seu próprio veículo contra a sua vontade até ao Algarve em duas ocasiões, impedindo-o numa das ocasiões de usar o telemóvel, assim como obrigando este a fazer contra a sua vontade várias entregas monetárias e despesas a que aquele não tinha direito, o que conseguiu nos termos acima referidos;
- Usando dos mesmos meios, o arguido FR_______ exigiu também que o referido ofendido que lhe entregasse o motociclo acima mencionado, o que não sucedeu por razões alheias à vontade dos arguidos;
- O arguido FR_______ actuou de comum acordo e comunhão de esforços, consoante os casos, nos termos acima referidos, com outros indivíduos que não foi possível identificar e com o arguido BC_____;
- O arguido BC_____, ao actuar como actuou, sabia que AF_______ não os acompanhava de livre vontade e quis igualmente privá-lo da liberdade nos termos aludidos, tendo pretendido, com a sua conduta, obrigar este a disposições patrimoniais a favor do arguido FR_______, o que conseguiu, actuando nesta parte de comum acordo e comunhão de esforços com o 1.º arguido;
- O arguido BC_____ sabia que a sua mera presença era suficientemente intimidatória em relação ao ofendido, tendo adoptado esta atitude intimidatória em relação ao ofendido, em concordância com os actos do arguido FR_______ e em obediência ao plano estabelecido entre ambos e actuando em comunhão de esforços com este;
- O ofendido fez as entregas de dinheiro e os pagamentos de despesas a favor dos arguidos, porque temeu pela sua integridade física e dos seus familiares, sabendo-se privado da liberdade de movimentos, atenta a manifesta superioridade física do arguido FR_______ e dos que o acompanhavam, temendo igualmente que o arguido BC_____ praticasse agressões na sua pessoa juntamente com o arguido FR_______ se tentasse qualquer gesto de resistência ou de fuga;
- Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo os seus actos que eram proibidos e punidos por lei.
Em face destes factos provados, a tese defendida pelo recorrente de que o arguido o Tribunal “a quo” não imputa ao arguido um único comportamento ameaçador ou agressivo para com o ofendido é manifestamente improcedente. De todo o exposto resulta que o ofendido foi obrigado, pela retirada da sua liberdade de movimentação, à prática de actos que lhe causaram prejuízo patrimonial ilegítimo, em benefício do arguido, mediante palavras e actos que o fizeram temer pela sua integridade física e pela integridade física e bem-estar da sua família.
Se o arguido pretendia impugnar a factualidade provada, só lhe restava o uso do instituto da impugnação da matéria de facto, que se rege pelo disposto no artigo 412º/ 3 e 4, do CPP, o que manifestamente não fez.
A reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites, nos termos do artº 412º/CPP. No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do artº 412º/CPP).
Nos termos do recente AUJ nº 3/2012, publicado no DR-Iª, de 18/04/2012, estabeleceu-se que «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (alínea c) do nº 3 do artigo 412º/CPP).
Ora, em local algum do seu requerimento de recurso o arguido enuncia quais os factos que pretende ver reapreciados. Pura e simplesmente, não refere sequer que pretende impugnar quaisquer factos concretos ou que pretende a reapreciação de quaisquer deles. Limita-se à transcrição de excertos de depoimentos, em defesa da sua tese de que o ofendido aderiu, de livre vontade, a todas as deslocações e entregas de dinheiro que se mostram descritas, para no fim, sem que se perceba qual o fundamento, pugnar pela existência eventual de dois crimes de coacção.
A coacção implica uma aniquilação da livre vontade do coagido o que, de todo, é contraditado na tese defendida. Mais: conforme resulta das referidas transcrições, o ofendido deixou bem expresso, ao longo do depoimento, que se sujeitou aos desmandos dos arguidos por se sentir fisicamente coagido a fazer o que lhe ordenavam, até porque estava sempre em situação de dependência do domínio do arguido e dos seus acompanhantes, durantes os percursos que foi obrigado a fazer com eles e ainda ter receio das ameaças que fizeram contra a sua família. Isto significa que dos próprios excertos invocados resulta a inaptidão dos mesmos para qualquer alteração ao provado, que a lei só permite quando a prova invocada e produzida imponha uma decisão diversa daquela que foi tomada na primeira instância.
A doutrina e jurisprudência penais entendem que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau vai aferir se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de falta desse suporte.
Assim, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão, o que realmente não sucede no caso em apreço.
Temos, portanto, como assente, a matéria de facto provada e não provada tal como vem descrita da instância recorrida e é com essa factualidade que este Tribunal tem que verificar se foram cometidos, ou não, os crimes de rapto e extorsão, a que o recorrente se mostra condenado.
Qualquer dos referidos tipos de crime são caracterizados como crimes contra a liberdade pessoal (capítulo iv do título i da parte especial do CP, que versa sobre os crimes contra as pessoas).
O legislador penal levou a este capítulo todos os crimes que tutelam, em última análise, a liberdade pessoal, mas segundo uma tipificação que distingue claramente os crimes que tutelam a liberdade de decisão e de acção, cujo tipo base é precisamente o descrito no crime de coacção e os tipos que tutelam a liberdade de movimento, cujo tipo base é o crime de sequestro.
Depois congeminou tipos de crime especiais, quer relativamente aos que tutelam a liberdade de decisão e acção, quer relativamente aos que tutelam a liberdade de movimentação, sendo que, num caso e noutro, nos tipos base, acima referidos, recaem todas as concretas lesões de liberdade que não se subsumam aos tipos singularizados ou específicos.
Logo, em face desta sistematização, se percebe que estando em causa nos autos condutas que violaram concretamente a liberdade de movimentação do ofendido, em causa não está, nunca, a subsunção delas ao tipo base de coacção, porque ele define-se precisamente pelo constrangimento de outrem a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade, factos que se caracterizam como a violação da liberdade de acção ou decisão e não como a violação da liberdade de movimentos.
Consequentemente, em face desta clara distinção submerge a qualificação pretendida pelo arguido.
Resta, portanto, a apreciação da conduta do arguido à luz dos tipos de crime de rapto e extorsão.
Neste capítulo, pouco há, de facto, a dizer, para além do que consta do acórdão recorrido acerca da caracterização dos referidos crimes.
O artigo 161º/CP determina que comete rapto como quem, por meio de violência, ameaça ou astúcia, raptar outra pessoa com a intenção de, entre o mais, submeter a vítima a extorsão.
O rapto configura-se como um tipo específico que, tutelando, tal como o sequestro, a liberdade de movimentação, no sentido de deslocação efectiva ou potencial e de auto ou hétero locomoção, se distingue daquele na medida em que à vitima é subtraído o poder de disposição da sua liberdade de movimentação por ter sido colocada sob o domínio fáctico do raptor, ao mesmo tempo que é transferida de um local para outro. É, portanto, um crime especial de sequestro, de execução vinculada, de dano e de resultado, em que o tipo subjectivo se preenche por qualquer forma de dolo, desde que dirigida à intenção de, no caso, submeter a vítima a extorsão.
A acção de raptar consiste na «subtracção e transferência não consentida de uma pessoa de um local para outro, ficando a vítima sob o domínio fáctico do agente» mediante «violência, ameaça ou astúcia».
Por sua vez, o crime de extorsão consuma-se quando, igualmente por meio de violência ou de ameaça de um mal importante, se constranger outrem à prática de uma disposição patrimonial que acarrete prejuízo patrimonial a alguém, com a intenção de conseguir para o extorsionário ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Da factualidade assente resulta que o arguido através de um convite feito ao arguido por terceiro que depois lho entregou, retirou a liberdade de movimentação ao ofendido, num determinado momento da sua vida, com intensão de um fazer pagar uma determinada quantia a título de indemnização por um furto de que não lucrou (espantoso!) e, para isso passeou-se com o ofendido dentro da viatura do próprio, que ele passou a conduzir a seu belo prazer, até Portimão, por pensar que a mota que ele exigia se encontrava nessa zona, obrigando-o a pagar as despesas dos três viajantes e a fazer levantamentos em dinheiro, pelo caminho, que recebeu.
Como se não bastasse, exigiu dois mil euros (que seria a sua parte no lucro do furto) ao ofendido que lhos pagou no dia seguinte. Só que, meses depois, resolveu ir cobrar a referida mota, para o que interceptou o ofendido, quando ele conduzia, lhe tomou conta das chaves da viatura e depois da condução, voltou a passear com ele dentro da viatura até ao Algarve, de novo, exigiu mais levantamentos e pagamentos e, por fim, quando se preparava para levar a mota, não conseguiu porque os familiares do ofendido chamaram a polícia. Isto tudo, num ajuste de contas por um furto que o ofendido fez, mas que o arguido achou que devia ter sido lucro seu, também.
Dispensamos comentários quanto ao negócio (chamemos-lhe assim) subjacente.
No demais, os factos aqui provados integram, efectivamente, a prática dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado.
*** 2- Da aplicação de uma pena suspensa:
O recorrente pretende a aplicação de uma pena suspensa na sua execução mediante a argumentação de que «não praticava qualquer crime desde 2011, o que denota que está socialmente integrado, tendo a pena de prisão sofrida por esses factos, suspensa na sua execução, sido suficiente para o afastamento da prática de crimes durante 8 anos».
O arguido entre 2010 e 2011 cometeu, segundo o cadastro, quatro crimes de roubo.
Os factos em causa emergiram precisamente da falência de um plano, orquestrado por si, para furto de cobre, que só não praticou porque o ofendido se lhe antecipou.
Perante esta circunstância, prova-se precisamente que a integração social do arguido não ocorreu com as anteriores penas.
E, à falta de melhores elementos, não se vê que circunstâncias haja que permitam concluir que a simples ameaça de pena serão adequadas aos fins de prevenção especial, que se mostram muito prementes.
O arguido tem 27 anos.
Passou do roubo ao rapto e à extorsão. Pelo menos faz planos para furtos de cobre. Tudo indicia uma personalidade indiferente aos valores sociais mais básicos, como sejam a propriedade privada e a integridade física e liberdade de movimentos.
Não há, também neste capítulo, fundamentos para alterar a decisão recorrida.
***
VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.
***
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 16/06 /2021
Graça Santos Silva
A. Augusto Lourenço
_______________________________________________________ [1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.