INSOLVÊNCIA
SENTENÇA
IMPROCEDÊNCIA
CASO JULGADO MATERIAL
CRÉDITO NÃO RECONHECIDO
OFENSA DO CASO JULGADO
LEGITIMIDADE ADJETIVA
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
NULIDADE PROCESSUAL
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
SANAÇÃO
Sumário


I. A nulidade ocorrida na audiência de julgamento, por violação de qualquer das regras processuais a que a mesma deva estar submetida, tem de ser invocada no decurso da mesma audiência por apenas poder corresponder a uma nulidade secundária e se tratar de acto cometido em presença do mandatário (ut arts.195º e 199º/1ª parte do C. P. Civil). E só do despacho proferido sobre a mesma pode vir a ser interposto recurso nos termos gerais dos arts. 629º ss do C. P. Civil.
II. A fase inicial declarativa do processo de insolvência não reveste as garantias da segunda fase do mesmo processo, nem as garantias dos demais processos em que se discutem obrigações pecuniárias e cujas sentenças de mérito sobre as mesmas revestem força de caso julgado material, nos termos do art.619º do C. P. Civil.
III. Com efeito, o que está em causa no art.20.º, n.º1 do CIRE, é a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva, pelo que a invocação do crédito na fase declarativa do processo de insolvência mais não é do que um factor-índice presuntivo da insolvência invocada, para efeitos da al. b) do nº 1 daquele normativo - sendo que no processo de insolvência basta ao devedor tornar duvidosa a existência do crédito para que o tribunal tenha que indeferir o requerimento de insolvência, sem prejuízo da possibilidade de o credor continuar a poder instaurar processo judicial para a cobrança desse crédito.
IV. Assim, a sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial desse processo, não tem força de caso julgado material em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO


Na oposição à execução por embargos de executado, movida por AA e BB, contra “MARTINS & COMPANHIA, S. A.”, por apenso à ação executiva que lhes foi movida por esta, os embargantes pediram:

- Que se julgasse procedente a exceção de caso julgado arguida e que a embargada/exequente fosse condenada como litigante de má-fé em montante nunca inferior a €5 000,00 (cinco mil euros);

- que, se assim não se entendesse, se julgasse procedente a matéria da oposição e que a embargada/exequente fosse condenada como litigante de má fé em montante nunca inferior a € 5 000,00 (cinco mil euros).


Alegaram os embargantes:

a) A verificação da exceção de caso julgado e autoridade de caso julgado, em face de sentença de improcedência de acção de insolvência por falta de crédito, sustentando: que no dia 27 de junho de 2014, a embargada/exequente intentou um processo de insolvência contra a empresa “Habiol Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.” (doravante, abreviadamente, “Habiol”), da qual os embargantes/executados são sócios e gerentes, que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz …, sob o processo nº 1687/14…; que, nesse processo, a aqui embargada/exequente requereu que aquela sociedade fosse declarada insolvente com fundamento na existência de uma dívida por parte da própria empresa dos aqui embargantes embargantes/executados na qualidade de fiadores, e também de supostas dívidas fiscais da aludida “Habiol; que nesse processo foi proferida sentença no dia 13 de outubro de 2015, transitada em julgado no dia 19 de outubro de 2015, que decidiu não declarar a situação de insolvência da mencionada “Habiol” face à inexistência de factos, sentença na qual não foi dado como provado que os aqui embargantes/executados ou a sociedade “Habiol” fossem devedores naquela data de qualquer quantia à aqui/embargada/exequente e  provou-se  que a aqui embargada/exequente é responsável pelos danos  causados  num  muro da habitação dos aqui, embargantes/executados e que declarou assumir o custo da reparação num montante superior a €55 000,00 (cinquenta e cinco mil euros), razão pela qual os aludidos AA e BB não lhe liquidaram qualquer valor de que fossem devedores.

b) A inexistência de dívida certa, líquida ou exigível, não sendo os embargantes/executados devedores de qualquer quantia, seja a título de capital, seja a ítulo de juros de mora, vencidos ou vincendos.

c) A litigância de má-fé da exequente.


Recebidos os embargos e notificada a exequente/embargada para se opor, esta presentar contestação.

Realizou-se a audiência final, vindo, a final, a ser proferida sentença nos seguintes termos:

«Nestes termos, julga-se totalmente improcedente a presente oposição à execução, mediante embargos, deduzida pelos embargantes/executados AA e BB e, em consequência, absolve-se a embargada/exequente “MARTINS & COMPANHIA, S. A.” do pedido, determinando-se, em conformidade, o normal prosseguimento da instância executiva.


*


Não se condena a embargada/exequente “MARTINS & COMPANHIA, S. A.” como litigante de má-fé.”.


Inconformados, os embargantes interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão, de decidiu julgar “improcedente o recurso de apelação, confirmando as decisões recorridas”[1].


De novo inconformados, vêm os embargantes AA e BB interpor recurso de revista[2], apresentando alegações que rematam com as seguintes


“CONCLUSÕES

1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão que confirmou a Sentença recorrida que julga a ação totalmente improcedente e não reconhece a verificação da excepção de caso julgado.

2. Salvo o devido respeito e, face à matéria que integra os presentes autos, não andou bem o referido Acórdão, quer porque existe matéria a dirimir, em sede de prova, quer porque o douto acórdão deixou de pronuncia-se sobre o recurso quanto à matéria de facto apresentado pela Apelante.

3. Embora o Acórdão recorrido, da Relação de Guimarães tenha confirmado a decisão proferida na 1ª instância, o presente recurso é admissível, nos termos do previsto nas alíneas a), b) e c), do n.º 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, já que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e os interesses em causa no presente processo são de particular relevância social e o Acórdão em crise está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 10248/16.0T8PRT.P1.S1.

4. É precisamente o que sufragam, sustentam e irão concretizar, de seguida, os apelantes

5. Os Apelantes intentaram Embargos de Executado, vindo os mesmos a ser declarados totalmente improcedente e, consequentemente, não reconhecida a excepção de caso julgado.

8. Com o devido e merecido respeito por douto entendimento contrário, entendem os Apelantes que o acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães viola, desde logo, o disposto artigo 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o direito a um processo justo e equitativo, o que expressamente aqui se invoca.

9. Urge o presente Recurso de Revista excecional pois que é necessária uma melhor aplicação do direito no sentido estrito, de forma a permitir o acesso à justiça plena no presente caso.

10. A Constituição da República Portuguesa consagra nos seus artigos 2º e 20º, que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático e garante a todos o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

11. Ora, o artigo 20 º da CRP preconiza o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva garante que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais mediante processo equitativo.

12. A questão suscitada nos presentes autos tem forçosamente repercussão fora dos limites da causa, na medida em que está “relacionada com valores socioeconómicos importantes e existe o risco, por isso, de fazer perigar a eficácia do direito ou de se duvidar da capacidade das instâncias jurisdicionais para garantir a sua afirmação”, conforme se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de setembro de 2014, processo n.º 391/08.5TBVPA.P1.S1.

13. Em causa estão interesses que assumem importância na estrutura e relacionamento social, podendo interferir, designadamente, com a tranquilidade e segurança relacionadas com o crédito das instituições e a aplicação do direito, ou ainda quando se trate de questão suscetível de afetar um grande número de pessoas.

14. Por conseguinte, a presente questão extravasa as próprias fronteiras do concreto processo e interessa à sociedade em geral.

15. Pelo que, bastaria o presente interesse para que o recurso de revista pudesse ser aceite.

16. O Recurso ora interposto configura recurso de revista de carácter excecional, previsto no artigo 672º, n.º 1 do CPC, uma vez que se entende em nosso modesto entender estar em causa apreciação de questão que, pela sua relevância jurídica é claramente necessária para melhor aplicação do direito, até porque estão em causa interesses de extrema relevância social e o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 10248/16.0T8PRT.P1.S1.

18. Pelo que, tendo em vista uma melhor aplicação do direito, a qual é claramente necessária, também se justifica a interposição desta revista excecional.

19. A manter-se a decisão proferida pela Relação de Guimarães, a qual, como devido respeito, se limitou a apreciar de forma aligeirada e parcial (no sentido de não atender a todos os elementos factuais relevantes), abrir-se-á um precedente, que põe em causa todos os princípios constitucionalmente consagrados.

20. São grandes as desproporções e o sacrifício que se estão a impor aos Recorrentes.

25. Assim, presente recurso, dada a sua relevância para os interesses da Recorrente, tem necessariamente que ser conhecido desse Alto Tribunal.

26. À cautela, dir-se-á ainda que perante as circunstâncias do caso concreto, a não admissão do presente recurso de revista, configura uma violação dos princípios do Estado de direito, do acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados, designadamente nos artigos 2º e 20° da CRP e 6º da CEDH, inconstitucionalidade que igualmente se arguem, além de todas as que já constam das alegações de recurso apresentadas pelos Recorrentes, para todos os legais efeitos.

27. A Recorrida não provou a existência de um crédito sobre a requerida na acção n.º 1687/14… que correu termos na Secção de Comércio …... e, por consequência, não provou a existência de um crédito sobre os ora Recorrentes;

28. Os fundamentos, alegações e documentos da acção de insolvência e da presente acção executiva são exactamente iguais;

29. Há identidade de sujeitos em ambas a acções judiciais;

30. Há identidade de pedido;

31. Há identidade da causa de pedir;

32. Há autoridade do caso julgado, o que implica a aceitação duma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial;

33. Verifica-se a existência da excepção dilatória de caso julgado, com base na sentença proferida no processo n.º 1687/14… que correu termos na Secção de ....

34. Não foi permitido aos recorrentes produzir qualquer prova relativa à matéria constante da Petição Inicial de Embargos de Executado;

35. Resulta da gravação da audiência de discussão e julgamento que não foi permitido aos Recorrentes confrontar/inquirir as suas testemunhas quanto à matéria constante da Petição Inicial de Embargos de Executado;

36. Foi negado aos Embargantes um direito essencial, o direito de produzir prova testemunhal das suas alegações;

37. Não tendo sido permitido aos recorrentes produzir a sua prova, como resulta da transcrição de audiência de discussão julgamento, ficou o julgamento viciado nos seus fundamentos e propósitos;

38. Existe vício de erro notório na apreciação da prova e também neste caso, do impedimento de produção da mesma.

39. Foi violado princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da C.R.P.;

40. Foi violado o art.º 20º, da C. R. P.;

41. Deve a sessão de julgamento do dia 7 de maio 2019 ser declarada nula, devendo ser ordenada e repetição da audiência de julgamento de forma a ser permitido aos recorrentes efetuarem a produção da sua prova nos termos legais;

42. Resulta inequívoco da sentença já transitada em julgado proferida no processo que correu termos no Juízo de Comércio …. – Juiz …, sob o processo n.º 1687/14..., que os Recorrentes não são devedores de qualquer quantia à recorrida.

43. A sentença judicial transitada em julgado no processo que correu termos no Juízo de Comércio …... – Juiz …, sob o processo n.º 1687/14… contradiz em absoluto a tese da Recorrida, razão pela não poderia o douto Tribunal ter dado como provado que os Recorrentes são devedores da quantia peticionada pela Recorrida;

44. Ao não se pronunciar sobre a matéria alegada pelos recorrentes nomeadamente nos pontos 1 a 19, 27 e 28 da Petição Inicial de Embargos de Executado, matéria esta essencial para a boa decisão sobre a causa, o douto Tribunal feriu de nulidade a sentença emitida nos termos prescritos no artigo 615º, n.º 1, alínea d), do C.P.C.;

45. O douto Tribunal deveria ter decidido que os recorrentes/executados não são devedores de qualquer quantia à exequente e não ter dado como provado o ponto 11. da matéria factual provada.


TERMOS EM QUE E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS. VENERANDOS CONSELHEIROS, DEVE SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, DECLARADO NULO O DOUTO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, REVOGANDO-SE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA E PROFERINDO OUTRA QUE JULGUE PROCEDENTE O PEDIDO DOS RECORRENTES, FAZENDO ASSIM V.AS EX.AS A HABITUAL JUSTIÇA.


Não foram apresentadas contra-alegações.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.


**


II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

1. Se houve erro notório na apreciação da prova e impedimento de produção da mesma na sessão de julgamento de 7.5.2019, com violação do disposto nos artsº 2º e 20º da CRP;

2. Se a decisão recorrida ofendeu o caso julgado resultante da sentença de declaração de insolvência proferida no processo nº 1678/…, que correu termos na Secção de Comércio de ..., por (segundo os Recorrentes) da mesma sentença resultar que os Embargantes/Recorrentes não são devedores de qualquer quantia à Recorrida.

III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. Matéria de facto provada

III.1.1. Na sentença:

«1. No âmbito do processo de execução com o nº 737/17… – de que os presentes autos constituem apenso –, instaurado no dia 26 de Janeiro de 2017, a embargada/exequente “Martins” reclama dos embargantes/executados AA e BB o pagamento da quantia total de €79.994,12 (setenta e nove mil, novecentos e noventa e quatro euros e doze cêntimos), sendo €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), a título de capital, e €24.994,12 (vinte e quatro mil, novecentos e noventa e quatro euros e doze cêntimos), a título de juros de mora vencidos, sem prejuízo dos que, entretanto já se venceram, bem como dos que irão vencer-se, até efectivo e integral pagamento.

2. Através de escrito particular, denominado ‘Arrendamento’, datado de 31 de Dezembro de 2002, a embargada/exequente – representada por CC e DD, na qualidade de ‘primeiros outorgantes’ –, a sociedade “Habiol” – representada pelo embargante/executado AA, na qualidade de ‘segundo outorgante’ – e os embargantes/executados AA e BB – na qualidade de ‘terceiros outorgantes’ –, estipularam, além do mais, que:

(…)


Pelos Primeiros Outorgantes foi dito que a sua representada é dona e legítima possuidora da FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA “…”, destinada a estabelecimento comercial, designada por loja cinco, no rés do chão (segundo piso), no ângulo norte/nascente, a primeira a contar dos lados nascente e norte, inscrita na matriz predial urbana de ... sob o artigo nº. …509- “…”, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “EDIFÍCIO …”, situado na Rua e Av. …., na cidade  ... (…)

Que pelo presente contrato e em nome da sua representada dão de arrendamento à representada do Segundo Outorgante, a supra identificada fracção, nos termos das cláusulas constantes dos artigos seguintes: PRIMEIRA O arrendamento é efectuado pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por iguais

períodos de tempo, contando-se o seu início no dia um de Janeiro de dois mil e três.

SEGUNDA O local arrendado destina-se à actividade de “Escritório de Imobiliária”, com renúncia a qualquer outra.

(…)

TERCEIRA A renda anual é de DEZOITO MIL EUROS, e será paga em duodécimos mensais de mil e quinhentos euros. Porém, atendendo à necessidade de realização de obras de adaptação e ajustes convenientes do locado à finalidade da locação, convenciona-se que no primeiro ano de vigência do contrato a renda mensal será de novecentos euros.

QUARTA A renda será paga no primeiro dia útil do mês anterior a que a fracção disser respeito, nos escritórios da Primeira Outorgante (…)

A renda será actualizada anualmente em função do coeficiente aprovado pelo Governo (…) para este tipo de arrendamento.

(…)

Pelo Segundo Outorgante foi dito que, para a sua representada, aceita este arrendamento nos termos exarados.

Pelos Terceiros Outorgantes foi dito que se declaram fiadores e principais pagadores da locatária, respondendo voluntariamente com ela pelo pontual cumprimento das obrigações por esta assumidas, ficando pessoalmente obrigados perante a locadora pelo prazo deste contrato, todas as suas prorrogações e eventuais aumentos de renda, com expressa renúncia ao benefício da excussão, subsistindo a fiança mesmo depois de decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

Os Terceiros Outorgantes têm conhecimento que os termos e carácter garantístico desta cláusula são, para a locadora, razão essencial de contratar.

(…)


3. No escrito referido em 2. consta aposta a assinatura, entre o mais, dos embargantes/executados.

4. A embargada/exequente, no dia 18 de Janeiro de 2010, por via de notificação judicial avulsa, notificou a sociedade “Habiol”, dando-lhe conhecimento que (…) A. A Requerida é devedora da quantia total de 56.555,74 (cinquenta e seis mil quinhentos e cinquenta e cinco euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa comercial, referente às rendas dos meses de Março de 2007 a Dezembro de 2009, ambas inclusive, do contrato de arrendamento descrito (…) B. A Requerente resolveu, por causa daquele incumprimento, o contrato de arrendamento descrito (…) C. A Requerida está obrigada, no prazo impreterível de três meses, a desocupar o locado, deixando-o livre de pessoas e bens, e a repará-lo de eventuais deteriorações e danos. D. A Requerida está obrigada a pagar as rendas vincendas até entrega efectiva do locado, as quais serão elevadas para o dobro em caso de mora. E. A Requerida pode opor-se à resolução, através do pagamento da quantia referia em A, acrescida de uma indemnização igual a 50% do que for devido, no prazo de três meses (…).

5. Por meio de escrito particular, denominado ‘Acordo de Cessão de Créditos’, datado de 29 de Junho de 2010, a embargada/exequente – na qualidade de ‘primeira outorgante – declarou ceder à sociedade “Martins & Filhos, S. A.” – na qualidade de ‘segunda outorgante’ – (…) os créditos de que é titular sobre a sociedade HABIOL. (…) e sobre AA e mulher BB, resultantes da relação locatícia descrita nos considerandos iniciais (…) A cessão de créditos importa a transmissão para a Segunda Outorgante de todas as garantias e acessórios do crédito transmitido (…).

6. Nos considerandos iniciais do escrito referido em 5. fez-se constar, além do mais, que:

(…)


§ 1 Por contrato celebrado aos trinta e um de Dezembro de dois mil e dois, a PRIMEIRA OUTORGANTE deu de arrendamento à sociedade “HABIOL” (…) a qual aceitou, a “FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA “…”, destinada a estabelecimento comercial, designada por loja cinco, no rés-do-chão (segundo piso), no ângulo norte/nascente, a primeira a contar dos lados nascente e norte, inscrita na matriz predial urbana ... sob o artigo nº. …509-…, a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “EDIFÍCIO ....”, situado na Rua ....e Av. ..., na cidade de ..., pela renda mensal de mil e quinhentos euros, actualizável anualmente em função do coeficiente aprovado pelo governo, e a ser paga no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, nos escritórios da locadora ou onde esta indicasse.

§ 2 Desde a renda correspondente ao mês de Março de dois mil e sete, inclusive, que a sociedade “HABIOL” (…) não pagou qualquer outra renda do mencionado contrato de arrendamento, cujos valores mensais, atendendo às sucessivas actualizações, correspondiam no ano de 2007 a 1.618,45€, no ano de 2008 a 1658,91€, e no ano de 2009 e 2010 a 1705,36€.

§ 3 Com fundamento naquele incumprimento, através de notificação judicial avulsa, distribuída em onze de Novembro de dois mil e nove e cumprida em dezoito de Janeiro de dois mil e dez, a PRIMEIRA OUTORGANTE resolveu o contrato de arrendamento referido em § 1.

§ 4 No dia quinze de Maio de dois mil e dez, a sociedade “HABIOL” (…) entregou à PRIMEIRA OUTORGANTE a fracção arrendada (…)

§ 5 No âmbito do descrito contrato de arrendamento AA (…) e mulher BB (…) declaram-se fiadores da sociedade “HABIOL” (…)

§ 6 Encontra-se pendente, para cobrança parcial dos referidos créditos, uma execução movida pela Primeira Outorgante contra a sociedade H... (…) que corre termos no Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., sob o n.º 1415/….

(…)


7. Por meio de escrito particular, denominado ‘Acordo de Pagamento de Dívida’, datado de 29 de Junho de 2010, a sociedade “Martins & Filhos, S. A.” – na qualidade de ‘primeira outorgante’ –, a sociedade “HABIOL” – na qualidade de ‘segunda outorgante’ – e os embargantes/executados AA e BB– na qualidade de ‘terceiros outorgantes’ – convencionaram, além do mais, que:

(…)


CONSIDERANDO QUE OS OUTORGANTES ACEITAM E RECONHECEM QUE:

§ 1 Por contrato celebrado aos trinta e um de Dezembro de dois mil e dois, a sociedade MARTINS & COMPANHIA, S. A. (…) deu de arrendamento à sociedade “HABIOL” (…) a qual aceitou, a “FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA “…”, destinada a estabelecimento comercial, designada por loja cinco, no rés-do-chão (segundo piso), no ângulo norte/nascente, a primeira a contar dos lados nascente e norte, inscrita na matriz predial urbana de ... sob o artigo nº. ..509.-..., a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “EDIFÍCIO ....”, situado na Rua ....e Av. ..., na cidade ..., pela renda mensal de mil e quinhentos euros, actualizável anualmente em função do coeficiente aprovado pelo governo, e a ser paga no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, nos escritórios da locadora ou onde esta indicasse.

§ 2 Desde a renda correspondente ao mês de Março de dois mil e sete, inclusive, que a SEGUNDA OUTORGANTE não pagou qualquer outra renda do mencionado contrato de arrendamento, cujos valores mensais, atendendo às sucessivas actualizações, correspondiam no ano de 2007 a 1.618,45€, no ano de 2008 a 1658,91€, e no ano de 2009 e 2010 a 1705,36€.

§ 3 Com fundamento naquele incumprimento, através de notificação judicial avulsa, distribuída em onze de Novembro de dois mil e nove e cumprida em dezoito de Janeiro de dois mil e dez, a sociedade MARTINS & COMPANHIA, S. A. resolveu o contrato de arrendamento referido no § 1.

§ 4 No dia quinze de Maio de dois mil e dez, a SEGUNDA OUTORGANTE entregou à sociedade MARTINS & COMPANHIA, S. A., livre de pessoas e bens, a fracção arrendada (…)

§ 5 Na presente data a sociedade MARTINS & COMPANHIA, S. A. cedeu à PRIMEIRA OUTORGANTE os créditos que detinha sobre a SEGUNDA e os TERCEIROS OUTORGANTES, resultantes da relação locatícia supra descrita.

Pelos Outorgantes foi acordado o pagamento da dívida descrita nos considerandos iniciais, nos termos das seguintes cláusulas:

PRIMEIRA 1) Os OUTORGANTES consolidam a dívida da SEGUNDA e TERCEIROS OUTORGANTES em 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros), incluindo-se nesse montante as rendas vencidas durante o contrato de arrendamento referido no § 1 dos considerandos iniciais, as indemnizações previstas no n.º 1 e n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil atinentes ao período temporal decorrido entre a resolução da relação locatícia e a entrega do locado, os juros de mora e todos os demais créditos advenientes daquele contrato. 2) Porém, a PRIMEIRA OUTORGANTE reduz a dívida consolidada ao montante de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros).

SEGUNDA 1) A SEGUNDA OUTORGANTE obriga-se a pagar a dívida à PRIMEIRA OUTORGANTE, no montante de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros), até ao dia vinte e nove de Dezembro de dois mil e dez, nas instalações (…)

2) Os TERCEIROS OUTORGANTES declaram-se devedores da obrigação prevista no número anterior e assumem, com a ratificação da PRIMEIRA OUTORGANTE, a dívida da SEGUNDA OUTORGANTE, ficando com ela solidariamente responsáveis pelo respectivo cumprimento.

TERCEIRA - A PRIMEIRA OUTORGANTE, sob condição de ser verificar o pontual cumprimento da obrigação prevista na cláusula anterior, obriga-se a pagar as custas judiciais, incluindo honorários e despesas de solicitador de execução, correspondentes à execução que corre termos no Juízo Cível do Tribunal Judicial ..., sob o n.º 1415/10….

(…)

8. No escrito referido em 7. consta aposta a assinatura, entre o mais, dos embargantes/executados.

9. Através de escrito particular, denominado ‘Acordo de Cessão de Créditos’, datado de 30 de Maio de 2014, a sociedade “Martins & Filhos, S. A.” – na qualidade de ‘segunda outorgante’ – declarou ceder à embargada/exequente – na qualidade de ‘primeira outorgante’ – (…) o crédito de que é titular sobre a sociedade HABIOL (…) e sobre AA e mulher BB, descrito nos considerandos iniciais (…) A cessão do crédito importa a transmissão para a PRIMEIRA OUTORGANTE de todas as garantias e acessórios do crédito transmitido (…).

10. Nos considerandos iniciais do escrito referido em 9. fez-se constar, além do mais, que:

(…)


§ 1 Por contrato celebrado aos trinta e um de Dezembro de dois mil e dois, a PRIMEIRA OUTORGANTE deu de arrendamento à sociedade “HABIOL” (…) a qual aceitou, a “FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA “…”, destinada a estabelecimento comercial, designada por loja cinco, no rés-do-chão (segundo piso), no ângulo norte/nascente, a primeira a contar dos lados nascente e norte, inscrita na matriz predial urbana de ... sob o artigo nº. ..509.-..., a qual faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “EDIFÍCIO ....”, situado na Rua ....e Av. ..., na cidade ..., pela renda mensal de mil e quinhentos euros, actualizável anualmente em função do coeficiente aprovado pelo governo, e a ser paga no primeiro dia útil do mês anterior ao que dissesse respeito, nos escritórios da locadora ou onde esta indicasse.

§ 2 Desde a renda correspondente ao mês de Março de dois mil e sete, inclusive, que a sociedade “H...” (…) não pagou qualquer outra renda do mencionado contrato de arrendamento, cujos valores mensais, atendendo às sucessivas actualizações, correspondiam no ano de 2007 a 1.618,45€, no ano de 2008 a 1658,91€, e no ano de 2009 e 2010 a 1705,36€.

§ 3 Com fundamento naquele incumprimento, através de notificação judicial avulsa, distribuída em onze de Novembro de dois mil e nove e cumprida em dezoito de Janeiro de dois mil e dez, a PRIMEIRA OUTORGANTE resolveu o contrato de arrendamento referido em § 1.

§ 4 No dia trinta e um de Maio de dois mil e dez, a sociedade “HABIOL” (…) entregou à PRIMEIRA OUTORGANTE, livre de pessoa e bens, a fracção arrendada (…)

§ 5 No âmbito do descrito contrato de arrendamento AA (…) e mulher BB (…) declaram-se fiadores da sociedade “HABIOL” (…)

§ 6 Em vinte e um de Junho de dois mil e dez a PRIMEIRA OUTORGANTE cedeu o referido crédito à SEGUNDA OUTORGANTE.

§ 7 Na mesma data de vinte e um de Junho de dois mil e dez, a SEGUNDA OUTORGANTE celebrou um acordo com a aludida HABIOL (…) bem como com AA e mulher BB, através do qual consolidaram o referido crédito na quantia de 55.000,00€ (cinquenta e cinco mil euros), a ser paga até ao dia vinte e nove de Dezembro de dois mil e dez.

(…)


11. O valor de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), mencionado no escrito particular referido em 7., mantém-se por pagar.».


III.1.2. Aditada (oficiosamente) no Tribunal da Relação (nos termos do art. 663º/2 do C. P. Civil, em referência ao art. 607º/4 do C. P. Civil):

No processo de insolvência, movido por «Martins & Companhia, SA.» contra «HABIOL - Sociedade de Mediação Imobiliária, Ldª», que correu termos sob o nº 1687/14., no J… do Juízo de Comércio…... do Tribunal Judicial da Comarca ..., proferiu-se sentença a 13.10.2015, transitada em julgado a 29.10.2015, na qual:

1. Se relatou: a instauração da ação com invocação pela requerente da qualidade de credora da ré no valor de € 55 000, 00, a título de rendas não pagas, a dedução de oposição pela requerida; a realização da audiência de julgamento.

2. Foi decidida a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, julgando-se a requerente parte legítima pelo facto da cessão de créditos ser eficaz à parte contrária com a citação para a ação.

3. Foi julgada como matéria de facto provada:

a) Da petição inicial: os acordos contratuais e notificação judicial avulsa referidos em 1. a 10. de III- 1.1. supra; a falta de pagamento pela requerida de qualquer renda do locado desde março de 2007.

b) Da contestação:


«10.- existe entre a empresa “Martins & Filhos S. A.” e os sócios da requerida AA e BB um diferendo relativo a danos causados pela “Martins & Filhos S. A.” no muro da residência dos referidos sócios da requerida 11. Tais danos são da responsabilidade daquela “Martins & Filhos S.A.”, conforme parecer emitido pela Câmara Municipal ... - doc. junto a fls. 55.

12. A referida empresa sempre assumiu que iria reparar os danos causados no muro da habitação dos sócios da requerida, tendo solicitado orçamento para as obras de reparação conforme se verifica.

13. Tais obras de reparação e respectivo orçamento foram objecto de várias reuniões, existindo um esboço do acordo para a reparação dos danos, cfr. doc. de fls. 64.

14. À data aquelas obras orçavam em 51.800,00, valor ao qual acresceria o IVA em vigor.

15. A referida Martins & Filhos S.A. sempre assumiu perante os sócios da requerida que iria assumir o custo da reparação do muro da habitação destes.

16. Razão pela qual até à presente data nem a requerida nem os seus sócios AA e BB liquidaram qualquer valor à empresa “Martins & Filhos S.A, pois detêm sobre aquela empresa “Martins & Filhos S. A., um crédito de valor superior aos 55.000,00 que constam do acordo de pagamento celebrado em 29/06/2010.”, cfr. doc. nº 1, citado.

17. As dívidas à Segurança Social foram objecto de acordo de pagamento.

18. As dívidas fiscais foram objecto de impugnação judicial.».

4. Foi julgada como matéria de facto não provada que:

«1. A requerida até à data da entrada da presente acção não pagou qualquer montante daquela referida quantia em dívida, sendo, então, devedora do montante de 55.000.00€, 11. Ao qual acresce, os juros de mora legais às taxas comerciais vigentes, desde o respectivo vencimento até integral pagamento, que à presente data se liquidam em 17.569, 49€.

2. Além da descrita dívida, a Requerida acumula dívidas referentes às contribuições e quotizações para a Segurança Social, bem como dívidas fiscais


III. 2. DO MÉRITO DA REVISTA


Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.


1. Do erro notório na apreciação da prova e impedimento de produção da mesma na sessão de julgamento de 7.5.2019, com violação do disposto nos artsº 2º e 20º da CRP.


Dizem os Recorrentes que naquela sessão de julgamento não lhes foi permitido produzir prova quanto ao que alegaram na petição inicial de embargos.

Como tal, sustentam que tal sessão de julgamento deve ser anulada, devendo repetir-se o julgamento para que tenha lugar a produção de prova testemunhal, “nos termos legais”.

 

Não têm razão.

Independentemente da bondade ou veracidade (ou não) do alegado, o certo é que, mesmo que tivesse ocorrido a apontada situação, sempre se estaria perante uma nulidade que há muito estaria sanada, por falta de arguição tempestiva.


Com efeito, a apontada nulidade que eventualmente tivesse ocorrido na audiência de julgamento, por violação de qualquer das regras processuais a que a mesma deva estar submetida, tinha de ser invocada no decurso da mesma audiência por apenas poder corresponder a uma nulidade secundária e se tratar de acto cometido em presença do mandatário dos embargantes (ut arts.195º e 199º/1ª parte do C. P. Civil). E só do despacho proferido sobre a mesma poderia vir a ser interposto recurso nos termos gerais dos arts.629º ss do C. P. Civil.

Isso mesmo é salientado por ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA, no Código de Processo Civil Anotado, vol I, 2ª ed., em anotação ao artº 199º: “Com ressalva das nulidades para as quais é fixado um regime específico de arguição (artº 198º), o sistema de arguição das demais nulidades está estruturado em função da presença ou não da parte ou do seu mandatário no momento em que são cometidas. Se a parte está presente (por si ou por mandatário), é-lhe exigível aperceber-se da nulidade, pelo que tem o ónus de fazer a respectiva arguição enquanto o acto não terminar. O ato pode ser uma audiência (prévia ou final) (...)”[3].


Ora, estando presente o mandatário dos embargantes e não tendo sido apresentada reclamação na aludida audiência de julgamento, a arguição da nulidade, operada na apelação, foi intempestiva – estando, consequentemente, prejudicada a sua reapreciação em sede de revista nesta revista.


2. Da ofendeu do caso julgado resultante da sentença de declaração de insolvência proferida no processo nº 1678/14…, que correu termos na Secção de Comércio …....


Em causa está a decisão proferida no despacho saneador havido nesta demanda de embargos de executado, sustentando os Recorrentes que essa decisão ofendeu o caso julgado formado na sentença prolatada no processo de insolvência, relativamente à existência da dívida exequenda.


Lendo aquele despacho saneador, vê-se que a suscitada questão da excepção de caso julgado e autoridade do caso julgado foram ali apreciados, decidindo-se pela inexistência de qualquer violação daquele julgado.


Esta questão da alegada violação do caso julgado foi tratada, quer naquele despacho saneador, quer, principalmente, no acórdão recorrido. E, dada a forma, expansiva e bem fundamentada, como o Acórdão recorrido estudou e decidiu a questão, não almejamos razões para dele discordar. Bem pelo contrário: concorda-se inteiramente com a fundamentação e subsequente decisão que ali foi plasmada.


O despacho saneador de 11 de abril de 2017 declarou não se verificar, quer a excepção de caso julgado, quer a autoridade de caso julgado.

Assim, como se dá conta no acórdão recorrido, considerou-se naquele despacho saneador:

- Não verificada a excepção dilatória de caso julgado por considerar não existir a tríplice identidade entre a acção de insolvência e a ação executiva instaurada posteriormente (de sujeitos passivos, uma vez que na insolvência foi demandada a sociedade codevedora e na execução foram demandados os codevedores singulares; de causa de pedir, uma vez que na insolvência foi causa de pedir o facto do qual decorreria a impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas e na execução o facto traduziu-se na obrigação exequenda[4]; de pedido, uma vez que na insolvência pretendeu-se a declaração de insolvência do devedor e na execução pretendeu-se a execução pretende-se o pagamento coercivo do crédito).

- Não verificada a autoridade de caso julgado, por o decidido na insolvência acerca da dívida não constituir uma questão condicionante ou prejudicial à sentença a proferir nos embargos de executado e o objecto da decisão proferida no processo de insolvência não se inserir no objecto destes autos (como se sustenta no Ac. RP de 15.12.2016 - ARISTIDES DE ALMEIDA - [5], onde (a nosso ver bem) é ressaltado: que o processo de insolvência não é um processo de partes; que a afirmação do crédito pelo credor legitima apenas a sua iniciativa processual; que a fase declarativa constitutiva do processo distingue-se da fase de execução universal em que se apreendem bens, verificam os créditos, se liquida a massa e dá pagamento aos credores, sendo que as “questões relativas à existência do crédito, ao seu montante e à sua natureza comum ou privilegiada” devem ser discutidas nesse apenso de reclamação e verificação; que, para a verificação da excepção de autoridade de caso julgado, é necessário que na nova acção os mesmos sujeitos de direito pretendam discutir de novo o mesmo facto jurídico/a mesma causa de pedir para o mesmo efeito jurídico/a efectivação de um direito, o que o Juiz a quo entendeu não se verificar nos presentes autos).


Portanto, cumpre aferir se ocorre uma excepção de caso julgado entre os dois processos. Caso não ocorra, saber se o efeito jurídico da sentença, transitada em julgado, que julgou improcedente a insolvência da sociedade requerida, com o fundamento de que os factos provados não integram as alíneas do art. 20º do CIRE (na “inexistência de crédito e de impossibilidade de satisfazer as obrigações” e “na inexistência de factos”…), se impõe como autoridade de caso julgado nos autos de acção executiva posteriores, instaurados pela requerente contra os fiadores solidários da requerida dessa acção, com base nos mesmos contratos que constituíram os elementos da causa de pedir da referida primeira acção.


Sobre esta questão, o acórdão recorrido tece profusas considerações: sobre o sentido do caso julgado (os respectivos efeitos negativo e positivo), a autoridade do mesmo, recorrendo a pertinentes ensinamentos da doutrina, tendo apreciado o objecto processual de ambas as demandas (execução e insolvência), as garantias da tramitação processual de cada uma e a repercussão de todos na apreciação da identidade e da conexão dos objectos processuais e na apreciação da formação do caso julgado das decisões.

E concluiu o acórdão recorrido – e bem, no nosso ver –, com pertinentes referências doutrinais, que cita, que não existe identidade de objecto processual entre o processo de insolvência na fase declarativa e o processo executivo[6], pois este é um processo privado e de partes, ao passo que aquela não é um processo privado de partes mas um processo público.

Por outro lado - como igualmente sustenta o acórdão recorrido - , “comparando a tramitação da fase inicial do processo de insolvência e a tramitação da fase subsequente (de reclamação, verificação e graduação nesse processo) e comparando a tramitação daquela fase e a dos demais processos em que podem ser invocadas e discutidas obrigações pecuniárias, verifica-se que a fase inicial declarativa do processo de insolvência não reveste as garantias da segunda fase do mesmo processo, nem as garantias dos demais processos em que se discutem obrigações pecuniárias e cujas sentenças de mérito sobre as mesmas revestem força de caso julgado material, nos termos do art. 619º do C. P. Civil” – o que ali bem se demonstra.


Assim também, o acórdão recorrido chama a atenção para doutrina e jurisprudência que, explícita ou implicitamente, acabam por não reconhecer força de caso julgado material à sentença de improcedência da insolvência, cuja fundamentação não tiver reconhecido o crédito invocado na petição inicial do processo de insolvência, em relação a este crédito não reconhecido, para vincular a apreciação de mérito de uma acção posterior destinada directamente a reconhecer ou cobrar esse crédito.

E justifica:

«ou porque consideram que a invocação e o reconhecimento do crédito na fase declarativa da insolvência limita-se à verificação de um pressuposto processual de legitimidade ativa, podendo o crédito vir a ser julgado não reconhecido na fase subsequente de verificação de créditos; ou porque a apreciação do crédito se aproxima à decisão sobre o pressuposto processual, sendo apenas apta a formar um caso julgado formal, nos termos do art. 620º do C. P. Civil; ou porque, apesar do crédito invocado corresponder a uma legitimação material e substantiva, basta a sua justificação, latência a aparência do direito, sem necessidade de demonstração e comprovação e cuja falta de verificação na sentença de improcedência da insolvência não impede a discussão em ação própria; ou porque a especialidade das fases do processo de insolvência e a diversidade de objetos processuais entre a primeira fase da ação de insolvência e as ações comuns não permitem considerar que a discussão sobre o crédito na primeira fase do processo de insolvência (em que a prova realizada é sumária) revista a segurança da segunda fase ou dos processos em que o mesmo é diretamente objeto de decisão»[7].


Com efeito, entendemos que, de facto, a decisão (na fase declarativa) sobre a existência do crédito no processo de insolvência está mais próxima da decisão relativa aos pressupostos processuais – decisão essa que, como tal, qual apenas produz caso julgado formal, cujos efeitos se restringem ao processo onde foi proferida – do que da decisão relativa ao mérito da pretensão (esta, sim, pode formar caso julgado material).


Neste sentido, também CATARINA SERRA[8], defendendo que «o que está em causa no art. 20.º, n.º 1, é a legitimidade processual e não a legitimidade substantiva. Sempre que se trate de um credor, por exemplo, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega (por exemplo, através da apresentação de um título executivo), mas tão-só que ele proceda à justificação do crédito, através da menção de origem, de natureza e do montante do crédito (cfr. 25.º, n.º 1)». Acrescentando: «provando-se a inexistência do direito alegado pelo requerente, o processo de insolvência deve deixar de correr no interesse deste sujeito, o que implica apenas que o credor não seja pago pelo crédito alegado. A apreciação desta factualidade ocorrer, de qualquer forma, em momento posterior (na fase de verificação de créditos) não pode confundir-se com o momento de apreciação da legitimidade do credor para o exercício do poder de ação declarativa em que se consubstancia o pedido de declaração de insolvência».


O acórdão da Relação de Lisboa de 22.11.2011[9], igualmente citado no acórdão recorrido, corrobora o que vimos de dizer. E fá-lo de uma forma profusa e bastante impressiva.

Escreveu-se nesse acórdão:

«Do nosso ponto de vista a mera justificabilidade aponta para uma comprovação não mais do que sumária. Exigindo maior intensidade na dúvida. (…)

É afinal o que é compatível com os princípios de urgência e de celeridade que subjazem à natureza de tal processo. Esse cariz urgente é expressamente afirmado no artigo 9º, nº 1, do CIRE; e, ademais, é notório a partir do quadro de tramitação acelerada que é imprimido à sua fase (inicial) declaratória, com apenas dois articulados e apresentação da prova neles (artigos 25º, nº 2, e 30º, nº 1); bem como com a imediata audiência de discussão e julgamento, onde tem lugar (sendo caso) condensação, produção de prova e sentença (artigo 35º, nºs 5 a 8). E é essa premência que é paradigma da instância insolvencial.[28]

Ora, nesse enfoque e referindo-se a lei estritamente à justificação do crédito, não se vê que a concernente prova a produzir, neste particular, possa deixar de ser uma prova meramente sumária.[29].

Como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Novembro de 2010,[30] que o relator do presente subscreveu, então como 1º adjunto, a demonstração exaustiva do crédito (do requerente) com todas as garantias das partes, como aquelas que lhes atribui um processo declarativo comum, “não se compagina com os termos simplificados do processo especial de insolvência, o qual, no sentido de garantir a celeridade processual, se encontra reduzido a dois articulados e a prazos de oposição extremamente curtos”. Assim, ali se conclui, “e sem prejuízo de se entender que, em regra, nada obsta a que o credor litigioso discuta e possa demonstrar no processo de insolvência a existência do seu crédito”, bem pode acontecer que, atenta a profundidade e a consistência da controvérsia, a ampla e intensa litigiosidade, bem como as mencionadas limitações processuais, imponham que “tal demonstração [tenha] de ser efectuada pelo requerente mediante acção declarativa autónoma instaurada especialmente para o efeito”.

A óptica do devedor há-de ser a de intensificar a incerteza.

E assim, em súmula, se dirá; numa hipótese em que ao devedor (contra quem haja sido pedida insolvência) se permita argumentar com factos e (ou) com direito que, a procederem, se mostrem capazes de sustentar, com alicerce bastante, uma dúvida consistente acerca da existência do crédito do requerente; só superável mediante mais amplas e aprofundadas indagações e averiguações; que, nessa hipótese, estarão reunidas as condições para não poder ter por (meramente) justificado aquele crédito – dito de outro modo, para não poder ter por apurado com base em prova tão-somente indiciária, sumária, como é, neste particular, apanágio do processo de insolvência.

Será então de ter por inverificada a legitimação creditícia prevenida no início do artigo 20º, nº 1, do CIRE;[31] e, por aí, julgar improcedente o pedido da insolvência (requerido por quem substancialmente não estava, afinal, habilitado para a requerer [ou pelo menos o não conseguiu justificar]).

Naturalmente, e sempre, salvaguardada a hipótese da acção declarativa autónoma; que se suscite, para discutir a existência do crédito. Mas aí já no quadro do procedimento comum, especialmente vocacionado a esse objecto; já fora do procedimento insolvencial, de virtualidades direccionadas noutro sentido».

SALVADOR DA COSTA refere que «No plano da legitimidade, até à decisão de verificação do passivo, a consideração da qualidade de credor só depende de prova sumária de verosimilhança da titularidade de direitos de crédito».

Nesta linha, também LUÍS MENEZES LEITÃO, referindo que «Uma vez que a legitimidade deve ser provada pelo requerente, parece que bastará ao devedor tornar duvidosa a existência do crédito para que o tribunal tenha que indeferir o requerimento de insolvência, sem prejuízo da possibilidade de o credor continuar a poder instaurar processo judicial para a cobrança desse crédito.»[10].


Assim, não se vê em que medida a decisão havida na insolvência possa condicionar, no que ao crédito exequendo respeita, a decisão destes embargos. É que, como referido, a invocação do crédito na fase declarativa da insolvência apenas justifica a legitimidade processual e substantiva da requerente naqueles autos, mais não sendo do que um factor-índice presuntivo da insolvência invocada, para efeitos do artº 20º/1/b) do CIRE. É que nessa fase, como dito, não se discute a existência do crédito com a amplitude que ocorreria na segunda fase. O crédito não é ali o thema decidendum, ao contrário do que ocorre no processo executivo, em que a causa petendi é precisamente o crédito e os documentos que o incorporam.

Como tal, como bem se diz no acórdão recorrido, «a sentença proferida na ação de insolvência (...), padece ainda de uma grande indefinição e obscuridade da fundamentação, que não permitiria delimitar o caso julgado material em relação ao crédito invocado pelo credor».

Donde bem remata o acórdão:

«De facto, a sentença, apesar de referir, conclusivamente, que «Não se provou a existência de um crédito da requerente sobre a requerida, nem a impossibilidade desta fazer face às suas obrigações», di-lo após afirmar que «não se encontra reflexo dos factos provados em nenhuma» das hipóteses do art.20º do CIRE (onde são elencados os fatores índices presuntivos da insolvência), e refere no dispositivo não declarar a insolvência «face à inexistência de factos». Ora, estas asserções, todas conclusivas e indefinidas, seriam sempre insuficientes para julgar apreciado o crédito invocado pela requerente com força de caso julgado material: a sentença considerou que não foram alegados e provados factos que integrassem o art.20º do CIRE ou julgou que os factos alegados e provados não integram nenhuma destas alíneas ou não as integram suficientemente? a sentença considerou que os contratos e os factos provados pela requerente de 1 a 10 não geravam a obrigação da requerida pagar ou julgou que o crédito invocado pela requerente se havia extinguido por compensação, nos termos dos arts. 847º ss do C. Civil (conclusão esta que não se pode presumir que foi realizada, não só porque a sentença nunca se referiu à compensação ou a elemento que a indicasse, como os factos provados, apesar da motivação ter referido a uma dívida da requerida, apenas se referiram a um “diferendo” entre os fiadores da requerida e a cessionária por um crédito daqueles sobre esta, que não seria invocável nos termos do artr. 851º/2 do C. Civil)? a sentença, ainda que julgasse indevido o direito de crédito, fê-lo sem sentido próprio ou desconsiderou-o por outras razões, em função dos efeitos da insolvência (por os fiadores também terem créditos sobre a cedente; ou por irrelevância para revelar a impossibilidade de pagar e decretar a insolvência)?».


Em suma, não pode concluir-se que no processo de insolvência (na sentença da sua improcedência) se tenha formado caso julgado material sobre a afirmação da inexistência do crédito exequendo, que se pudesse impor (condicionasse ou vinculasse) à decisão de mérito a proferir nestes embargos de executado.


Assim improcede esta questão: não há ofensa de caso julgado.


***



III. DECISÃO


Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.


Custas da revista a cargo dos Recorrentes.


Lisboa, 08.09-.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)


________

[1] Quais sejam, o despacho saneador de 11 de abril de 2017 que declarou não se verificar: a exceção dilatória de caso julgado (por considerar não existir a tríplice identidade entre a ação de insolvência e a ação executiva instaurada posteriormente); a autoridade de caso julgado quanto ao decidido na insolvência acerca da dívida.
[2] Pedem a revista excepcional. Porém, os autos admitem revista normal, dado que invocam a ofensa de caso julgado e esta é uma das situações em que há sempre lugar a revista (arts. 671º, nº 3 e 629º, nº 2, al. a), ambos do CPC).
[3] Destaque nosso.
[4] Conforme defendido pelo Ac. RL de 24.05.2011 (LUÍS LAMEIRAS), proferido no processo nº221/10.8TBCDV-A.
[5] Processo nº80954/14.6YIPRT.P1.
[6] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 15.12.2016 (Aristides de Almeida) e da Relação de Lisboa de 22.11.2011 (Luís Lameiras) – disponíveis em www.dgsi.pt
[7] Os destaques são nossos.
[8] Lições de Direito da Insolvência, 2019, pp 117-118.
[9] Proc. 433/10.4TYLSB.L1-7 (LUÍS LAMEIRAS).
[10] Destaque nosso.