MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
CONFISSÃO JUDICIAL
ARTICULADOS
VIOLAÇÃO DE LEI
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I. Os poderes oficiosamente concedidos à Relação para alteração da matéria de facto restringem-se, por um lado, aos casos contidos na previsão  das normas das alíneas a) a c) do nº 2 do artigo 662º, do Código de Processo Civil, ou seja, os concernentes  à renovação dos meios de prova, à produção de novos meios de prova e à anulação da decisão sobre a matéria de facto com vista  à correção de determinadas patologias.
E, por outro lado, aos casos contidos na previsão do nº 1 do citado artigo 662º em que a Relação limita-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material,  designadamente quando o tribunal recorrido  tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova ou tenha  considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficientes. 
II. Fora deste contexto normativo, fica a Relação impedida de alterar, oficiosamente, a decisão sobre a matéria de facto, podendo apenas fazê-lo por iniciativa dos recorrentes  sobre quem recai, então, o ónus de impugnação  nos termos previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil.
 
III. De harmonia com o disposto no artigo 352º do Código Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
IV. Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no artigo 674º, nº 3 do Código de Processo Civil, sindicar a decisão do Tribunal da Relação no tocante a factos que foram dados como provados por este tribunal com base em confissão judicial feita em articulado processual, sem que os mesmos consubstanciassem o reconhecimento de factos desfavoráveis.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***




I. Relatório

1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que AA e BB instauraram contra CC, DD e outros, com base no documento particular intitulado declaração de dívida e no qual estes assumem ser devedores, pessoal e solidariamente com a sociedade José Rodrigues e Filhos, Lda, da quantia da quantia de € 762.800 decorrente de dívida resultante do incumprimento do designado Protocolo de Reembolso de Suprimentos, vieram os executados CC e DD, deduzir os presentes embargos.

Alegaram, para tanto e em síntese, que o exequente é acionista da executada José Rodrigues e Filhos, SA e que a dívida em causa refere-se a suprimentos/empréstimos que o mesmo fez a esta sociedade, não podendo, por isso, pedir  à referida sociedade, nos termos e circunstâncias em que o fez, o pagamento de tais suprimentos e muito menos pode exigir aos embargantes o seu pagamento.

Mais alegaram que a declaração de dívida foi redigida a pedido insistente do exequente e que jamais quiseram vincular-se pessoalmente ao pagamento de tais suprimentos, tendo assinado aquela declaração de dívida a pedido do seu falecido pai e sogro, EE, e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”.


2. Contestaram os exequentes, alegando, em suma, que  a declaração de dívida que serve de fundamento à presente execução foi livremente assinada pelos executados ora embargantes, correspondendo à sua vontade expressa naquele documento, e teve por fonte da respetiva obrigação um contrato de mútuo  que celebraram  com  o EE, a executada FF e os embargantes CC e DD, por forma a possibilitar que o executado CC e  a sociedade co-executada realizassem o empreendimento  que se propunham construir.

Por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da sociedade co-executada, celebraram com esta o designado “contrato promessa de compra e venda de ações” e o denominado “protocolo para reembolso de suprimentos”, e, já na qualidade de “acionistas”, celebraram uma escritura para aumento de capital social da empresa.

Celebraram todos estes negócios apenas porque foi-lhes dito pelo seu advogado e pelo CC que esta era a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da sociedade co-executada, sendo que nunca quiseram ser sócios desta sociedade.


3. A final, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.


4. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os embargantes para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido, em 20.04.2021, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença apelada, declarou extinta a execução.


5. Inconformados com este acórdão, os exequentes/ embargados dele interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« A - O acórdão recorrido é nulo, nos termos do art 615º, nº 1, alínea d) ex vi art 666º do CPC, por se ter pronunciado sobre questões de que não podia conhecer.

B - Os recorridos, nas suas alegações de recurso, apresentaram recurso versando a matéria de facto, pondo em crise os factos provados 9, 10 e 18 e factos não provados a) a c) da sentença da primeira instância.

C - O Tribunal recorrido, no seu acórdão, aprecia os factos não provados d) a g) e considera os mesmos provados, sem que os embargantes tenham recorrido da sentença nesta parte e sem que nem aqueles nem os embargados se tenham sobre essa matéria sequer pronunciado.

D - Esses factos não têm qualquer conexão, causalidade ou inter-dependência com os que delimitam o recurso, pelo que o tribunal recorrido extrapolou o âmbito do recurso interposto.

E - Tratou-se, além do mais, de uma decisão surpresa, não sujeita ao contraditório.

F - Sem conceder e se assim não se entender, mesmo com os novos factos provados 19 a 22, o Acórdão recorrido fez uma errada aplicação do artigo 46º, alínea c) do CPC, na redacção do DL. n.º 329-A/95, de 12/12, aplicável in casu.

G - O tribunal recorrido considerou provado (nos factos 19 a 22) que os embargantes efectivamente deviam a quantia exequenda aos embargados, não por via de suprimentos, mas antes por causa de um mutuo celebrado entre aquelas partes.

H - Ora, no título executivo, designada declaração de divida, os embargantes, que assinaram esse documento, declaram-se devedores aos embargados nos seguintes termos:

“Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros)”

I - Trata-se, assim e desde logo, de uma confissão de dívida, nos termos e para os efeitos do art. 458º do CC.

J - De acordo com este artigo se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

K - Ora, no caso concreto, não só os credores, gozavam desta presunção, como ao contrário do que é dito no Acórdão, não foi feita prova em contrário da inexistência de relação fundamental, pelo que em rigor estava o credor dispensado de a provar.

L - Na verdade, a melhor interpretação do art 458º, nº 2 do CC aponta para o entendimento de que esta presunção só se ilide mediante a prova de que nenhuma relação negocial existe na base da declaração de reconhecimento emitida.

M - Mas, no caso concreto, quando muito e na tese do Acórdão recorrido, provou-se que a relação fundamental era outra e não que ela não existia de todo.

N - Tal seria, portanto, suficiente para se considerar que o título executivo era válido, sendo desnecessária a prova da relação fundamental, que estava legalmente presumida.

O - Mas se ainda assim não se entender, sempre se dirá que se tem admitido, todavia, que possam valer como títulos executivos documentos que reconheçam a obrigação exequenda, embora de forma não expressa ou categórica, e que, por isso, careçam de ser conjugados com elementos fácticos complementares, ainda que estranhos ao próprio título.

P - Elementos esses que seriam adquiridos processualmente, mediante a respectiva alegação feita pelo exequente no requerimento executivo, e posterior prova a seu cargo. “

Q - Esta perspectiva acerca da delimitação do elenco dos títulos executivos extrajudiciais mereceu expressa consagração na reforma da acção executiva operada pelo DL nº38/2003, de 8/3.

R - Assim, nos termos do art. 810º, nº 3, al. b), do C.P.C., na redacção que lhe foi dada por aquele DL, o requerimento executivo deve conter, além do mais, uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (cfr. o art. 810º, nº 1, al. e), na redacção do DL nº 226/2008, de 20/11, e o actual art. 724º, nº 1, al. e) ).

S - Dir-se-á que os requisitos necessários exigidos pela lei para que o título tenha força executiva, se destinam a estabelecer a garantia ou a dar a segurança de que onde está um título executivo está, ao mesmo tempo, um direito de crédito.

T - Ora, isto lograram os exequentes alegar e provar, mesmo na tese do Acórdão Recorrido, e concretamente conseguiram alegar e provar que existia uma causa para a dívida confessada, qual seja, a existência de um mútuo entre os exequentes e os executados.

U - Na verdade, como acima se deixa claro, o que o legislador pretendeu e essa será a melhor interpretação do art 46, alínea c) do CPC, foi que o conceito de título executivo oferecesse garantias de segurança e certeza jurídicas tais que não permitisse conferir exequibilidade a circunstâncias que deixassem dúvidas sobre a existência efectiva de uma obrigação incumprida.

V - No caso concreto, essa garantia é efectiva, comprovada nos autos e considerada como tal por ambos os tribunais que a julgaram- ainda que com diferentes fundamentos,

W - Pelo que não há dúvida nenhuma que o título executivo é válido.

X - Aliás, isso mesmo, considerou a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, que em acórdão proferido em 21 de Março de 2021, e JÁ TRANSITADO EM JULGADO, relativo às mesmíssimas circunstâncias, factos e titulo executivo com o mesmíssimo conteúdo, apenas com credores distintos (naquele caso o irmão do ora exequente a e mulher)

Y - Confirmou a sentença da primeira instância, declarando improcedentes os embargos deduzidos e mandando prosseguir a execução, considerando o titulo executivo válido. – vide doc nº1 que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

Termos em que deve o recurso interposto ser considerado procedente, e consequentemente, deve este Colendo Tribunal declarar o Acórdão recorrido nulo, ou se assim não se entender, revogar o Acórdão recorrido, e determinar a validade do título executivo e o prosseguimento dos autos de execução».

8. Os embargados não responderam.


9. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as  questões a decidir consistem em saber se:

1ª – o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), ex vi art. 666º, ambos do CPC;

2ª- o acórdão recorrido fez uma errada aplicação do art. 46º, al. c), do CPC, na redação do Dl nº 329-A/95.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Após apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, os Factos Provados são os seguintes:

1 - No dia 30.03.2017, AA e BB requereram a execução, além dos demais, de DD e CC, com vista ao pagamento da quantia de € 762.800,00 (setecentos e sessenta e dois mil e oitocentos euros), o que constitui os autos principais;

2 - No processo referido em 1, os exequentes, ora embargados apresentaram, como título executivo, um documento intitulado “Declaração de Dívida”, datado de 13 de Dezembro de 2010, onde constam como primeiros outorgantes EE, FF, CC e DD e como segundos outorgantes BB e AA, com o seguinte teor:

“(…) 1. Pela presente declaração os primeiros outorgantes declaram expressamente, para todos os devidos efeitos legais, que são devedores aos segundos outorgantes da quantia de € 545.000 euros (quinhentos e quarenta e cinco mil euros).

2. Tal dívida resulta do incumprimento do designado “Protocolo para Reembolso de Suprimentos”, celebrado pelos primeiros e segundos outorgantes em 19 de Novembro de 1999, onde se estabelece que até Dezembro de 2003 seria entregue aos segundos outorgantes a quantia de 475 mil euros que fora por estes emprestada à sociedade “José Rodrigues e Filhos, S.A.” de que os primeiros outorgantes são únicos responsáveis e administradores, bem como dos juros acordados e entretanto não pagos, no montante de 70 mil euros.

3. Tal dívida é assumida pessoalmente pelos primeiros outorgantes e solidariamente com a sociedade “José Rodrigues e Filhos, Lda.” porque estes reconhecem expressamente que a quantia emprestada foi utilizada para o exercício do comércio por estes em benefício da economia comum dos respectivos casais.

4. 1- Os primeiros outorgantes obrigam-se e comprometem-se a pagar aos segundos outorgantes a importância de € 475 mil euros (quatrocentos e setenta e cinco mil euros) até ao dia 31 de Dezembro de 2010, vencendo-se a partir dessa data juros sobre a quantia devida, juros estes no montante de 30 (Trinta) mil euros ao ano. 2- Caso não seja cumprido o prazo de pagamento estabelecido no número anterior, os juros que se vencerem a partir de 31 de Dezembro de 2010 relativos à quantia em dívida identificada no número um da presente cláusula serão pagos pelos primeiros outorgantes aos segundos em prestações mensais de 2500 euros (dois mil e quinhentos euros). 3- Quanto aos juros vencidos e devidos até agora no montante de 70 mil euros, serão pagos pelos primeiros aos segundos outorgantes em duas prestações iguais de 35 mil euros, nos meses de Junho de 2011 e Dezembro de 2011. 4- O não cumprimento de qualquer dos pagamentos estabelecidos no número dois determina o vencimento integral da quantia que se mantiver em dívida e o pagamento de juros convencional de 6% ao ano sobre tal quantia.

5. Ficarão a cargo dos primeiros outorgantes devedores, todas as despesas judiciais que os segundos outorgantes façam para manter, garantir e haver este crédito.

6. Os outorgantes têm pleno conhecimento do teor da presente declaração, e abaixo a assinam e rubricam em cada uma das quatro páginas por que é composta, de livre e espontânea vontade, na presença de duas testemunhas que abaixo igualmente assinam, dando como verdadeiros todos os factos nela descritos. (…)” ;

3 - Os embargantes assinaram o documento referido em 2;

4 - Os exequentes alegaram em sede de requerimento executivo:

«(…)1- Exequentes e executados celebraram em 13 de Dezembro de 2010 acordo que se junta como doc nº 1 e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais,

2 - ao abrigo do qual os executados se reconheceram devedores para com os exequentes da quantia de 545.000,00€ (quinhentos e quarenta e cinco mil euros) - vide clausula primeira do doc nº 1.

3 - Mais se obrigaram os executados a pagar aos exequentes a importância de € 475 mil euros (quatrocentos e setenta e cinco mil euros) até dia 31 de Dezembro de 2010, vencendo-se a partir dessa data juros sobre a quantia devida de 30 mil euros ao ano.

4 - Ainda acordaram que, caso não fosse cumprido o prazo de pagamento estabelecido no numero anterior, os juros que se vencessem a partir de 31 de Dezembro de 2010 relativos à quantia em divida identificada no numero um da presente clausula seriam pagos pelos executados aos exequentes em prestações mensais de 2500 euros (dois mil e quinhentos euros).

5 - Mais estabeleceram que os juros vencidos e devidos até àquele momento, no montante de 70 mil euros, seriam pagos pelos executados aos exequentes em duas prestações iguais de 35 mil euros, nos meses de Junho de 2011 e Dezembro de 2011.

6 - Por último, acordaram as partes que o não cumprimento de qualquer dos pagamentos estabelecidos no numero quatro do presente articulado, determinaria o vencimento integral da quantia que se mantivesse em divida e o pagamento de juro convencional de 6% ao ano sobre tal quantia.

7 - EE, FF, CC e DD assinaram o título executivo, por si e na qualidade de accionistas e administradores da também executada, José Rodrigues e Filhos, S.A.

8 - Entretanto, EE faleceu no dia 30 de Dezembro de 2012, conforme certidão de óbito que se junta como doc nº 2 e dá por reproduzido para todos os efeitos legais;

9 - tendo deixado como herdeiros FF, DD, GG e em representação do filho anteriormente falecido EE, HH e II.

10 - Sucede que, até hoje, nenhum dos executados liquidou a divida que tem para com os exequentes.

11 - Apesar de variadíssimas insistências pelo cumprimento das obrigações que haviam assumido, sendo que os ora exequentes chegaram mesmo a enviar uma carta de interpelação aos executados - que se junta como doc nº 3 e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.- concedendo-lhes prazo peremptório de oito dias para o pagamento integral da divida;

12 - que uma vez mais os executados não cumpriram, não tendo até ao momento pago qualquer quantia do montante em divida.

13 - Assim, devem os executados aos exequentes as seguintes quantias: a) 475.000,00€ até 31 de Dezembro de 2010; b) 180 mil euros, a titulo de juros pelo incumprimento do pagamento da quantia referida na alínea a); c) 70 mil euros de juros já vencidos até 31 de Dezembro de 2010;

14 - A este montante acrescem, ainda, juros de mora vincendos, desde a propositura do presente requerimento executivo até efectivo e integral pagamento.

15 - À presente execução serve de base o documento particular que importa o reconhecimento de uma obrigação, e que constitui titulo executivo nos termos do art. 46º, nº 1, alínea c) do CPC, na sua versão do DL 329-A/95 e em obediência ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 408/2015 de 14/10 onde se "Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior a sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho."

16. A dívida é certa, líquida e exigível.

17. Sendo que os executados devem aos exequentes a quantia total de 762.800,00 euros (setecentos e sessenta e dois mil e oitocentos euros). (…)”;

5 - Por escritura pública celebrada em 19 de Novembro de 1999, no Segundo Cartório Notarial ..., foi aumentado o Capital Social da empresa José Rodrigues e Filhos, Lda., para cinquenta e cinco milhões de escudos, sendo a importância do aumento de cinco milhões de escudos subscrita em partes iguais pelo ora Exequente e por JJ, através da emissão de cinco mil acções ao portador de mil escudos cada.

6 - Em 19 de Novembro de 1999, EE, CC, DD, EE e FF, na qualidade de primeiros outorgantes, e JJ e BB, na qualidade de segundos outorgantes, firmaram documento intitulado “Protocolo para reembolso de suprimentos”, com o seguinte teor:

“(…)1º Primeiros e segundos outorgantes são os actuais e únicos accionistas da sociedade comercial denominada “J... & Filhos, S.A., (…)

3º Os segundos outorgantes, por escritura pública celebrada na presente data no 2.º Cartório Notarial de ..., subscreveram em partes iguais o aumento de capital da referida sociedade comercial no montante de cinco milhões de escudos, distribuídos por cinco mil acções ao portador no valor individual de mil escudos.

4º Também na presente data, na qualidade de accionistas (…) e a título de suprimentos, os segundos outorgantes emprestam à sociedade a quantia de cento e noventa e cinco milhões de escudos.

5º Os primeiros outorgantes, enquanto accionistas e únicos titulares dos actuais órgãos da identificada sociedade aceitam para esta o referido suprimento, obrigando-se a reembolsá-lo a partir de 31 de Dezembro de 2000 e até 31 de Dezembro de 2002, Por acordo entre primeiros e segundos outorgantes o prazo atrás estipulado poderá prorrogar-se até 30 de Junho de 2003.

6º O reembolso acima referido, a efectuar na residência de cada um dos segundos outorgantes, ou por outra forma que ambos encontrem mais conveniente, será subordinado aos seguintes requisitos: a) Prefere a qualquer outro reembolso, de outros eventuais suprimentos. b) O capital emprestado vence juros a uma taxa anal, nominal, de 5%, a pagar aos segundos nos dias 31 de Dezembro de 2000, 2001, 2002 e 2003. c) Nas operações de loteamento a levar a cabo na vila e concelho da ... (as únicas que actualmente a identificada sociedade tem em curso nesta localidade), os segundos outorgantes receberão uma percentagem de vinte por ceno, no total dos lucros realizados com a venda pela sociedade dos lotes para construção urbana, de que esta é ali proprietária. (…)”;

7 - Em 19 de Novembro de 1999, JJ, LL, BB e AA, na qualidade de primeiros outorgantes, e EE, CC, DD, EE e FF, na qualidade de segundos outorgantes, firmaram documento intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, com o seguinte teor:

“(…) 1º Os primeiros outorgantes maridos são donos e legítimos possuidores, em partes iguais, de cinco mil acções ao portador no valor individual de mil escudos, que fazem parte do capital social da sociedade comercial denominada “J... & Filhos, S.A.” (…).

3º Pelo presente contrato, os primeiros outorgantes maridos prometem vender aos segundos, na proporção que neste momento todos os segundos outorgantes detêm na identificada sociedade, as mencionadas cinco mil acções ao portador. Os segundos outorgantes, por sua vez, prometem comprar aos primeiros, na mesma proporção que estes determinarem, as mesmas cinco mil acções. (…)”;

8 - O irmão do ora embargante, JJ, é amigo de CC há mais de 50 anos;

9 - Este trabalhava na empresa co-executada nos presentes autos [alterado pelo Tribunal da Relação que eliminou “que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, EE e FF, e da mulher, DD];

10 - Sendo que todos eles viviam exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa empresa

11 - Após algum período de afastamento, os dois reencontraram-se em 1995, tendo-se reaproximado e passado a conviver diariamente, com as respectivas famílias;

12 - Solidificando uma forte amizade, baseada na confiança e cumplicidade mútuas; 13- Em Outubro de 1999 os embargados venderam uns terrenos, tendo arrecadado cerca de um milhão de euros, o mesmo tendo sucedido o irmão do embargado, JJ;

14 - O irmão do embargado/exequente comentou então com o amigo CC a venda que havia realizado;

15 - Na sequência de tal conversa, vieram a ser celebrados os acordos mencionados em 5, 6 e 7;

16 - O embargado é Engenheiro Agrónomo e o irmão médico;

17 - O exequente nunca acompanhou em pormenor a actividade da empresa co-executada;

18 - Os embargantes assinaram o documento referido em 2 de forma livre e espontânea, garantindo aos exequentes o cumprimento do que ali acordaram, com recurso ao património da empresa ou com recurso ao seu próprio património.

19 - O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD com os exequentes [ correspondente aos factos dados como não provados na al. d), pelo Tribunal de 1ª Instância ];

20) Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuiram [ correspondente aos factos dados como não provados na al. e), pelo Tribunal de 1ª Instância ];

21) Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa [correspondente aos factos dados como não provados na al. f), pelo Tribunal de 1ª Instância];

22) Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada [correspondente aos factos dados como não provados na al. g), pelo Tribunal de 1ª Instância]


*


Factos não provados:

a) O documento referido em 2 e 3 não corresponde à realidade, uma vez que os empréstimos/suprimentos foram feitos à sociedade e não para o exercício do comércio pelos executados, por si e enquanto casal;

b) O documento referido em 2 e 3 foi redigido por imposição do exequente ao falecido EE;

c) Os executados não quiseram assinar e vincular-se ao documento referido em 2 e 3, fazendo-o apenas a pedido do falecido pai e sogro e porque o exequente garantiu ser apenas uma “pró-forma”.


*



3.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), ex vi art. 666º, ambos do CPC e se fez uma errada aplicação do art. 46º, al. c), do CPC, na redação do DL nº 329-A/95.


3.2.1. Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia

Nesta matéria, sustentam os embargados/recorrentes padecer o acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo código, pois, não obstante, em sede de recurso de apelação, terem impugnado apenas a decisão da matéria de facto da 1ª instância sobre os factos dados como provados  nos nºs 9, 10 e 18 e sobre os factos  dados como não provados nas alíneas a) e c), o Tribunal da Relação reapreciou a factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos  não provados, considerando-os  provados, sem que os embargantes tenham recorrido da sentença nessa parte e sem que esses factos tenham qualquer conexão ou interdependência com os que delimitam o recurso, pelo que o tribunal recorrido não só  extrapolou o âmbito do recurso interposto, como proferiu decisão surpresa, não sujeita ao contraditório.


Que dizer?


Desde logo que, em nosso entender, a situação supra descrita não constitui fundamento de excesso de pronúncia, não se enquadrando, por isso, na nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art. 615º do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo código.

É que ou os factos em causa encontram-se provados por confissão e, neste caso, o tribunal não poderá deixar de atender aos mesmos, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3, e 4, 2.ª parte, aplicável por força da norma remissiva do n.º 2 do artigo 663.º, ambos do CPC ou não se encontram provados e, então, neste caso estamos perante um erro de procedimento consistente na violação do disposto no citado art. 607º, nº 4 e no art. 662º, do CPC.

Vejamos, então, qual é a situação que se verifica  no caso dos autos, importando, para tanto, ter em conta que, após reapreciação da decisão matéria de facto relativamente aos  nºs 9 e 10 dos factos dados como  provados na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, que manteve, alterando apenas a resposta dada ao ponto 9, o Tribunal da Relação decidiu alterar, oficiosamente, a decisão da matéria de facto quanto às alíneas d), e), f) e g) dos factos não provados, que passaram a integrar, respetivamente, os nºs 19, 20, 21 e  22 dos factos provados, com a seguinte redação:

«19 - O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD com os exequentes;

20 - Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuiram;

21 - Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa;

22 - Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada ».


E fundamentou esta decisão nos seguintes termos:

« (…). Dispõe o art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável à decisão da Relação, por força do art. 663º, nº 2, do mesmo código, em conjugação com o art. 662º, nº 1, do mencionado diploma, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos apurados impuserem decisão diversa. Devendo o juiz tomar em consideração os factos provados por confissão escrita.

Ora, os exequentes/embargados no seu articulado de contestação aos embargos disseram (arts. 18º a 41º de tal peça) que a declaração de divida teve por fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, a executada FF, e os embargantes CC e DD, com os ora exequentes; o irmão do exequente, JJ, é amigo do embargante CC; sendo que este trabalhava na sociedade co-executada, que, por sua vez, era propriedade dos seus sogros, EE e FF e da mulher, embargante DD, todos eles vivendo exclusivamente dos proveitos obtidos com a actividade dessa sociedade; os exequentes venderam uns terrenos, tendo arrecadado com essa venda para si cerca de 1 milhão de euros, o mesmo ocorrendo com o irmão do exequente; o irmão do ora exequente comentou com o CC a venda que haviam realizado, tendo este proposto ao irmão do ora exequente que lhe fosse emprestado esse dinheiro para investir num empreendimento que ele e a empresa co-executada se propunham construir; comprometeu-se não só devolver o montante assim mutuado em curto prazo, como a pagar-lhe juros pela disponibilização dessa quantia; o irmão do ora exequente dirigiu-se-lhe, perguntando se também estava interessado em fazer esse empréstimo, mediante o pagamento de juros acordado, tendo o ora exequente, mediante o conhecimento que tinha do CC, de quem também era amigo e a confiança que este lhe merecia, anuído em fazer esse empréstimo à empresa e aos restantes membros da família; por razões contabilísticas e para melhor justificar o empréstimo assim contratado nas contas da empresa, celebraram a co-executada e os exequentes o que designaram por “contrato promessa de compra e venda de acções”, e ainda celebraram no mesmo dia o que designaram por “ protocolo para reembolso de suprimentos”, e ainda celebraram, também, já na qualidade de “accionistas”, uma escritura para aumento de capital social da empresa; todos estes negócios foram celebrados pelos ora exequentes, porque assim lhes foi dito pelo seu advogado e pelo CC que seria a melhor forma de formalizar o empréstimo realizado, em beneficio da empresa; nunca os ora exequentes quiseram ser sócios da empresa co-executada ou sequer empresários; bem sabendo os embargantes CC e a DD que o que esteve em causa nestas operações foi pura e simplesmente um empréstimo que lhes foi concedido e à empresa co-executada pelo ora exequente; para que o dinheiro que haviam recebido dos terrenos fosse rentabilizado através do recebimento de juros; o exequente quis fazer um empréstimo aos amigos e sua empresa familiar e não tornar-se acionista dessa empresa nem configurar esse empréstimo como suprimento; por esta razão, aceitaram EE, FF, e os embargantes CC e DD assinar o acordo de reconhecimento de divida que foi junto como titulo executivo, a título pessoal, de forma livre e espontânea, precisamente porque sabiam que o dinheiro aqui em causa lhes havia sido emprestado a eles próprios e à empresa.

Esta alegação dos exequentes demonstra que afinal a causa de pedir que invocaram – prestação de suprimentos à sociedade – não é verdadeira, pois tratou-se de um empréstimo particular ao embargante e à sociedade para investir num empreendimento destinado a construção civil. Duas diferentes realidades, portanto. Assim, os exequentes, além de alterarem a causa de pedir executiva, acabam por confessar factualidade que, no fim, nada tem a ver com a realidade factual exposta no requerimento inicial executivo e vertida na invocada declaração de dívida.

Trata-se, pois, na economia dos autos, de uma verdadeira confissão – pois os exequentes reconhecem a realidade de factos que os desfavorecem no processo executivo/embargos de executado, e favorecem os embargantes no mesmo processo e embargos, já que a causa de pedir alegada não corresponde, assim, ao invocado no título executivo -, nos termos do art. 352º do CC, que é confissão judicial espontânea escrita, com força probatória plena, ao abrigo dos arts. 355º, 1 e 2, 356º, nº 1, e 358º, nº 1, do CC.

Como assim, a respectiva factualidade essencial tem de ser dada por assente, factualidade essa que está espelhada nas d) a g) dos factos não provados (e que estranhamente o tribunal a quo deu como não provados com a fundamentação que se estava perante uma simulação, com negócio dissimulado, mas sobre o qual era inadmissível prova testemunhal, a coberto do art. 394º, nº 2, do CC…)» .


Importa, assim, averiguar se o Tribunal da Relação podia, ou não, alterar, oficiosamente, a decisão da matéria de facto da decisão do Tribunal de 1ª Instância relativamente a pontos de facto não impugnados, o que nos remete  para a  necessidade de indagar se houve, ou não, um  uso indevido pela Relação dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, visto que  o Supremo Tribunal de Justiça  não está impedido de apreciar o uso que a 2.ª Instância fez dos seus poderes naquele campo,  nos casos em que está em causa averiguar se houve violação ou errada aplicação da lei processual ( cfr. art. 674º, nº 1, al. b) do CPC) e/ou dos preceitos substantivos relativos ao regime probatório ( cfr. art. 674º, nº 3 do CPC).

A este respeito, impõe-se referir, tal como já se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11.01.2018 ( processo nº 2191/11.6TBMTJ-L1.S1)[2], que os poderes oficiosamente concedidos à Relação para alteração da matéria de facto restringem-se, por um lado, aos casos  contidos  na previsão  das normas das alíneas a) a c) do nº 2 do art. 662º, ou seja, os concernentes  à renovação dos meios de prova, à produção de novos meios de prova e à anulação da decisão sobre a matéria de facto com vista  à correção de determinadas patologias ( v.g. deficiência, obscuridade  ou contradição).

E, por outro lado, aos casos contidos na previsão do nº 1 do citado art. 662º em que a Relação limita-se a aplicar regras vinculativas extraídas  do direito probatório material, designadamente quando o tribunal recorrido  tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que nas palavras de Abrantes Geraldes[3], ocorre, « quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto ( arts.  371º, nº 1 e 376º, nº 1 do CC), o considere não provado»; «quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória, constante de documento ou resultante do processo ( art. 358º do CC e arts. 454º, nº 1 e 463 do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum facto estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC), optando por se atribuir prevalência  à livre convicção formada a partir de elementos probatórios ( v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficientes (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts. 351º e 393º do CC)».

Fora deste contexto normativo, fica a Relação impedida de alterar, oficiosamente, a decisão sobre a matéria de facto, podendo apenas fazê-lo por iniciativa dos recorrentes sobre quem recai, então, o ónus de impugnação nos termos previstos no art. 640º do CPC.

Ora, ressaltando da fundamentação supra transcrita  que a Relação alterou oficiosamente a matéria de facto vertida nas alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e  resultando da conjugação do  disposto no art. 607º, nº 4, 2ª parte, aplicável à decisão da Relação, por força do art. 663º, nº 2, do mesmo código, e no art. 662º, nº 1, todos do CPC,  que a Relação pode  considerar  provados factos com base em  confissão escrita,  resta decidir  se, tal como entendeu o Tribunal da Relação a factualidade alegada pelos  exequentes/embargados nos artigos 18 a 41 da sua  contestação aos embargos  integra, ou não,  confissão feita nos articulados.

De harmonia com o disposto no art. 352º do C. Civil, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Segundo o art. 355º, nº 1 do mesmo código, a confissão pode ser judicial ou extrajudicial.

A confissão judicial é aquela que é feita em juízo e só vale como judicial na ação correspondente (cfr. nºs 2 e 3 do citado art. 355º) e a confissão extrajudicial é a feita por algum modo diferente da confissão judicial (nº 4 do citado art. 355º).

Estipula o art. 356º, nº 1 do mesmo diploma legal que «a confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual ou, em qualquer outro acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado», estabelecendo o n.º 1 do art. 357º do C. Civil, que «a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar».

Dispõe ainda o art. 360º do C. Civil, que a declaração confessória é indivisível e, como tal, tem de ser aceite na íntegra, salvo provando-se a inexactidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessória.

Quanto à confissão judicial feita nos articulados, ensina Alberto dos Reis[4] que a mesma «consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo réu na contestação (…)».

Essencial é que, como se refere no Acórdão do STJ, de 11.11.2010 (processo nº 1902/06.6TBVRL.P1.S1)[5], « o sujeito processual tenha consciência de que o facto desfavorável que alega é real e, mesmo assim, alega-o, nisto se traduzindo o reconhecimento, que  é uma « contra se pronunciatio».   

Daqui se retira, que a confissão feita nos articulados e que, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1 do C. Civil, vale como modalidade de confissão judicial, não se confunde com a simples alegação de um facto feita pelo mandatário da parte em articulado processual.

Com efeito, como se afirma no supra citado acórdão, «nem todas as alegações de factos pelas partes valem como confissões, como acontecerá, v. g. se o facto for alegado na suposição de estar correcto, vindo a demonstrar-se no julgamento da causa que assim é ou não vindo a confirmar-se».

Mas se é certo, tal como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[6], que « as declarações confessórias feitas pelo advogado, oralmente ou por escrito, com simples procuração “ad litem”, não valem como confissão», a verdade é que a exigência de poderes especiais  não é necessária quando a confissão de factos é feita nos articulados, quer de forma tácita,  resultante do efeito cominatório semi pleno, nos termos  do art. 567º , nº 1 do CPC ou do incumprimento do ónus de impugnação especificada, nos termos dos  arts.  46º e 574º, quer de forma expressa, nos termos do art.º 465º, n.º 2, todos do CPC.

Subjacente à confissão de factos feita nos articulados pelo mandatário e que vincula a parte está, tal como observa Antunes Varela[7], a ideia de que, estando o mandatário por via de regra em íntimo contacto com a parte sobre a matéria de facto da ação, ele conhece a realidade desta, tendo assim o seu reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao respetivo constituinte, em princípio, a mesma força de convicção que tem a confissão.

De salientar, por um lado, que é precisamente para prevenir a possibilidade de o mandatário ter compreendido ou apreendido mal as informações feitas nos articulados, bem como a possibilidade do advogado reconsiderar ou do litigante se aperceber do prejuízo resultante da confissão, que os citados arts. 46º e 465º, nº 2 permitem a neutralização da confissão enquanto a parte contrária não a tiver aceitado especificadamente.

E, por outro lado, que a aceitação do facto confessado pela parte contrária, impeditiva da retirada da confissão ou retratação, tem de ser especificada, o que equivale a dizer, segundo os ensinamentos de Antunes Varela[8] e Alberto dos Reis[9], que  a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica.

Ora, analisando o caso dos autos à luz estas considerações, a verdade é que, contrariamente ao defendido pelo acórdão recorrido, não se vê que se possa extrair do alegado pelos exequentes/embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação qualquer declaração confessória no sentido de que:

 «O documento referido em 2 e 3 teve como fonte da respectiva obrigação a celebração de um contrato de mútuo entre EE, FF, CC e DD com os exequentes» (nº 19 dos factos dados como provados);

«Em razão do mencionado em 14, CC propôs ao irmão do exequente que lhe fosse emprestado dinheiro, empréstimo esse ao qual os exequentes também anuiram» (nº 20 dos factos dados como provados);

«Acertados os detalhes do acordo de mútuo, os documentos referidos em 5, 6 e 7 foram apenas celebrados por razões contabilísticas, por ser a melhor forma de justificar e formalizar o empréstimo nas contas da empresa » (nº 21 dos factos dados como provados);

«Nunca o exequente quis ser sócio da empresa co-executada» (nº 22 dos factos dados como provados) .

Desde logo, porque não se vislumbra que a factualidade constante  dos artigos 18 a 41 da contestação aos embargos consubstancie o reconhecimento, por parte dos exequentes/embargados, de factos que lhes são desfavoráveis e favoráveis aos executados/embargantes, configurando, antes, impugnação motivada[10] dos factos alegados  pelos embargantes, ou seja, de que o exequente é acionista da executada José Rodrigues e Filhos, SA; de que a dívida em causa refere-se a suprimentos/empréstimos que o mesmo fez a esta sociedade e de que que assinaram o documento dado à execução - declaração de dívida, datada de 13.12.2010 - sem intenção de assumirem a dívida.

Daí que, ao conferir aos factos alegados pelos exequentes/embargados nos artigos 18º a 41º da sua contestação o valor de confissão feita nos articulados, ao atribuir força probatória plena a essa confissão e ao dar como provados, com base nesta força probatória plena, os factos supra descritos nos nºs 19, 20, 21 e 22, o acórdão recorrido tenha violado o disposto nos arts. 352º, 356º, 357º, nº 1e 358º, nº 1, todos do C. Civil e arts 46º, 465º, nº 2 e 574º nº 2, todos do CPC, pois, conforme se demonstrou, estes factos não podem ser dados como provados com base numa confissão que não existe.

Vale tudo isto por dizer ter o Tribunal da Relação exercido os poderes de modificabilidade da decisão de facto fora do domínio de aplicação dos arts. 640º e 662º do CPC, e, desse modo, violado a lei processual que estabelece os pressupostos e os fundamentos em que se deve mover a reapreciação da prova.

Fez-se, claramente, no acórdão recorrido um mau uso dos poderes conferidos pelo citado art. 662º, na medida em que não podia a Relação proceder, oficiosamente, à alteração das respostas negativas dadas pelo Tribunal de 1.ª instância à factualidade vertida nas alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e responder afirmativamente e esta mesma factualidade.

Nesta conformidade e porque estamos perante uma violação da lei de processo sujeita à censura deste Supremo Tribunal, impõe-se, na revogação do decidido, eliminar as respostas afirmativas dadas no acórdão recorrido à sobredita  factualidade, descrita nos nºs 19, 20, 21 e 22, mantendo-se as respostas negativas dada pelo Tribunal de 1ª instância à factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados.

Todavia, porque o Tribunal da Relação não conheceu da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos embargados no que respeita aos factos dados como provados pelo Tribunal da 1ª Instância no nº 18 e aos factos constantes das alíneas a) e c) dos factos não provados, por ter considerado, face à matéria dada como  provada nos nºs 19, 20, 21 e 22, que a apreciação de tal impugnação tornou-se inútil, por ficar prejudicada pela solução de direito dada ao presente litígio, e porque essa falta de pronúncia inviabiliza a decisão jurídica da causa por parte deste Supremo Tribunal, impõe-se, de harmonia com o disposto no art. 682º, nº 3 do CPC,  determinar a baixa do processo  ao Tribunal recorrido para  aí ser decidida a referida impugnação.


Procedem, nesta medida, as conclusões dos recorrentes, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento das demais questões por eles invocadas.



***


IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar parcialmente procedente a revista e, consequentemente:

A - eliminar as respostas afirmativas dadas pelo Tribunal da Relação à factualidade constante das alíneas d), e), f) e g) dos factos dados como não provados e supra descrita nos nºs 19, 20, 21 e 22, mantendo-se as respostas negativas dadas pelo Tribunal de 1ª instância a esta mesma factualidade;

B - mandar baixar os autos ao Tribunal da Relação para decidir da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos embargados no que respeita aos factos dados como provados pelo Tribunal da 1ª Instância no nº 18 e aos factos constantes das alíneas a) e c) dos factos não provados, e, na decorrência disso, julgar em conformidade.


Custas a cargo da parte vencida a final.

Notifique.


***


Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

***



Supremo Tribunal de Justiça, 8 de setembro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

______

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Relatado pela ora relatora.
[3] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018- 5ª edição, pág. 288.
[4] In, “Código de Processo Civil”, Anotado, pág. 86.
[5] Acessível na Internet – http://www.dgsi. pt/stj.
[6] In, “ Código Civil”, Anotado, 4ª ed.,  Vol. I, pág. 316.
[7] In, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 548.
[8] In, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 555.
[9] In, “Código de Processo Civil”, anotado, 4ª ed., Vol. I, pág. 126 e Vol. IV, pág. 113.
[10] Cfr., Artur Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, Almedina, págs 213 e 216; José Lebre de Freitas, in “A Acção Declarativa Comum, à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2000, págs. 87 e 89, e in “Código de Processo Civil Anotado,” Vol. 2º, Coimbra Editora, 2ª ed., págs. 315 e 316.