JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
COMPETÊNCIA
REJEIÇÃO DO RAI
Sumário

I - A instrução não visa sindicar a linha investigatória do MP durante o inquérito, mas apenas validar judicialmente (ou não) a decisão final deste.
II – A instrução não pode ser um sucedâneo investigatório autónomo ou alternativo daquilo que foi (ou não) investigado durante o inquérito. Mais exatamente, com a investigação efetuada no inquérito e com o material probatório ali recolhido é ou não correta a decisão de acusar / arquivar? Esta é a questão nuclear que deve ser formulada e respondida na instrução de acordo com a lei.
III - Pretender que o JIC conheça, em sede instrutória, de alegadas nulidades / irregularidades por falta / insuficiência do inquérito seria deferir a este a direção de uma investigação completa aos factos denunciados, com violação flagrante do princípio do acusatório, do princípio da oficialidade.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica de Serpa do Tribunal Judicial da Comarca de Beja corre termos o processo de instrução n.º 97/19.0T9SRP, no qual, mediante despacho judicial, foi (i) indeferido o requerido pelo assistente AMMALR quanto a nulidades do inquérito e (ii) rejeitado o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo mesmo assistente, com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

Inconformado com essa decisão, recorreu tal assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“A - O Assistente não se conforma com as decisões constantes do Despacho ora recorrido, porquanto, no seu entendimento, verifica-se um erro de julgamento na aplicação do direito pelo douto Tribunal a quo no que concerne ao fundamento que apresenta para não se pronunciar sobre a verificação das nulidades processuais invocadas no RAI, bem como um erro de julgamento ao decidir pela rejeição do RAI por considerar que o Assistente não enunciou os factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime de Infidelidade; acrescendo ainda a tais erros de julgamento a nulidade do Despacho recorrido por omissão de pronúncia.

B - O douto Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento ao indeferir a pretensão do Assistente/ao não se pronunciar sobre a verificação das nulidades processuais invocadas no RAI, concretamente nos artigos 18° a 32°, 33° a 45°, e 46° a 63°, por considerar que a competência para decidir as mesmas cabe ao Ministério Público, e, conexamente, ao entender que para que tal pronúncia pelo Juiz de Instrução fosse legalmente possível o Assistente, ora Recorrente, deveria primeiramente ter requerido ao Ministério Público que se pronunciasse sobre as nulidades processuais que veio a invocar nos aludidos artigos do seu RAI.

C - No caso dos autos não estão em causa nulidades cuja verificação ocorreu durante a fase de inquérito, mas sim nulidades que decorrem da omissão de actos de inquérito e que se verificam apenas com a decisão de encerramento dessa fase processual, estando em causa a ausência de actos de inquérito que o Assistente apenas pôde constatar aquando da notificação do despacho de arquivamento, e sendo apenas nesse momento da decisão de arquivamento do inquérito sem a prática dos actos em questão, e não em momento antecedente, que tais nulidades se verificaram e se tornaram detectáveis e invocáveis pelo Assistente.

D - Contrariamente ao que resulta da decisão ora recorrida, o Juiz de Instrução tem competência para conhecer de vícios ocorridos a montante desta fase, nomeadamente decretando a nulidade por falta ou insuficiência de inquérito invocada pelo Assistente no seu requerimento para abertura da instrução perante a decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público.

E - O Juiz de Instrução pode, e deve, pronunciar-se sobre as nulidade de falta ou insuficiência de inquérito arguidas no requerimento instrutório do Assistente, se não se deverem considerar sanadas, sem que para tal seja necessário o Assistente requerer previamente ao Ministério Público que se pronuncie sobre as mesmas.

F - Na fase em que os presentes autos se encontram, tendo sido requerida a abertura da instrução pelo Assistente, é do Juiz de Instrução a competência para se pronunciar e declarar a verificação das nulidades de falta ou insuficiência do inquérito arguidas nos artigos 18° a 32°, 33° a 45°, e 46° a 63° do RAI na sequência do encerramento do inquérito com a decisão de arquivamento, sem que para tal fosse necessária a prévia invocação das nulidades em apreço pelo Assistente junto do Ministério Público, ou a prévia pronúncia do mesmo.

G - O Despacho recorrido é nulo face à total omissão de pronúncia do douto Tribunal a quo sobre o vício de falta de fundamentação e consequente nulidade/irregularidade expressamente invocada pelo Assistente nos artigos 6° a 17° do RAI.

H - Nos artigos 64° a 98° do seu RAI, e sob esse preciso título, o Assistente descreveu os "factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao Participado", remetendo cada um deles, sempre que adequado, para a respectiva prova documental que os sustenta e já se encontrava junta ao processo, e aí narrando de forma clara o lugar, o tempo e a motivação da prática dos factos que imputou ao Participado, bem como o seu grau de participação nos mesmos.

I - Nos artigos 99° a 112° do RAI o Assistente sintetizou os factos descritos nos artigos 62° a 98°, e seguidamente, nos artigos 113° a 122° do RAI, o ora Recorrente referiu-se expressamente ao ilícito criminal p.p. no artigo 224.° Código Penal, fazendo expressa menção aos elementos que integram o tipo objectivo e subjectivo do crime de Infidelidade.

J - Salvo o devido respeito, não tem correspondência com a realidade verificável no RAI o fundamento apresentado pelo douto Tribunal a quo no Despacho ora recorrido para rejeitar a Instrução requerida, concretamente ao considerar que no RAI o Assistente "não faz menção expressa ao elemento subjectivo do tipo. Isto porque, em nenhum lado está explícito de forma clara que o "participado" atuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de causar prejuízo patrimonial importante aos interesses da herança que administra judicialmente e fazendo-o intencionalmente ou com grave violação dos deveres legais de que foi incumbido'': constituindo tal entendimento um evidente erro de julgamento.

K - Com efeito, e muito pelo contrário, para além de ao longo dos artigos 64° a 112° do RAI o Assistente referir-se por diversas vezes de forma expressa à conduta consciente do Participado na prática dos factos aí descritos, dos artigos 119° e 121° do RAI pode constatar-se facilmente que o Assistente faz menção expressa ao elemento subjectivo do tipo, utilizando até a mesma terminologia referida na fundamentação da decisão recorrida como sendo necessária para esse efeito, podendo ler-se no RAI, entre o mais, que "o Participado, na qualidade de Cabeça de Casal da herança, por acção e por omissão conscientes, causou aos interesses da herança (que são os interesses de todos os herdeiros, no seu conjunto, e não de um ou outro em detrimento dos demais) intencionalmente, e com grave violação dos deveres legalmente previstos que lhe incumbem, um prejuízo patrimonial importante" (cfr. artigo 119° do RAI), e que "O Participado é Administrador Judicial, sendo sócio-gerente da sociedade comercial por quotas com a firma …, sendo alguém com vastos conhecimentos e experiência para realizar uma cuidada, rigorosa e zelosa administração do património hereditário, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, e sabendo que com a actuação e omissão pela qual optou estava a violar gravemente os seus deveres, causando aos interesses da herança (e não aos interesses de um ou outro herdeiro) um prejuízo patrimonial importante (cfr. artigo 121° do RAI).

L - Contrariamente ao que entendeu o douto Tribunal a quo num erro de julgamento em que baseia a sua decisão de rejeição do requerimento de abertura da instrução por alegada inadmissibilidade legal, o Assistente fez a necessária imputação do elemento subjectivo à conduta do Participado, não deixando o RAI de preencher nenhum dos requisitos legalmente exigíveis, e concretamente o requisito previsto no artigo 283° nº3 alínea b) do CPP, resultando da sua leitura que é manifestamente possível concluir que nos artigos 62° a 122°, e em especial nos artigos 119° a 121°, o Assistente explicitou de forma clara que o Participado actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem como a existência de indícios de que causou um prejuízo patrimonial importante aos interesses da herança que administra judicialmente, fazendo-o intencionalmente ou com grave violação dos deveres legais de que foi incumbido.

M - Contrariamente ao entendimento do douto Tribunal a quo, do RAI do Assistente resulta que a Instrução requerida é admissível, obedecendo à estrutura acusatória do processo e estando asseguradas as garantias de defesa do Participado, não sendo o seu objeto impossível, e consequentemente inexistente, e não podendo assim ser rejeitada por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287° nº3 do CPP.”

Pugnando, em síntese:

“Termos em que deverá o Venerando Tribunal ad quem proferir Acórdão julgando procedentes os fundamentos do presente recurso e, consequentemente, determinar o prosseguimento dos demais termos do procedimento criminal com a admissão do Requerimento para Abertura da Instrução apresentado pelo Assistente em 06/05/2020.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

“1 - O tribunal a quo decidiu em conformidade com o que lhe era exigido ao rejeitar o requerimento instrutório apresentado pelo recorrente, uma vez que esse requerimento não observa os requisitos legais exigidos ao omitir a descrição dos factos integradores dos elementos constitutivos do crime de infidelidade, nomeadamente ao omitir a descrição factual respeitante ao seu elemento subjectivo.

2 - tribunal a quo decidiu em conformidade com o que lhe era exigido ao não apreciar as nulidades invocadas pejo recorrente no seu requerimento instrutório, em virtude de não ser admissível ao Juiz de Instrução Criminal apreciar nulidades nos casos em que não existe lugar à fase processual da instrução.

3 - Em suma, o despacho recorrido encerra uma decisão sensata e fundamentada, adequadamente enquadrada com as disposições legais aplicáveis e com a doutrina e jurisprudência, não tendo sido violadas quaisquer disposições legais invocadas pelo recorrente no seu requerimento instrutório.

4 - Assim, o Ministério Público conclui que não assiste razão ao recorrente, não merecendo o douto despacho recorrido, proferido pelo Tribunal a quo, quaisquer reparos e que, por conseguinte, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, negando-se-lhe provimento e confirmando-se integralmente o despacho recorrido.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Requerimento do assistente constante de fls. 100 e seguintes:

i. Das nulidades do inquérito

As decisões relativas às nulidades invocadas em sede de inquérito são da competência, concorrente, do Juiz de Instrução Criminal e do Ministério Público, o primeiro relativamente aos atos jurisdicionais por si autorizados, ordenados ou praticados em tal fase processual (cfr. artigos 268.° e 269.°, do Código de Processo Penal) e o segundo relativamente aos demais atos processuais levados a cabo pelo Ministério Públic nessa mesma fase (cfr. artigo 263.° do C.P. Penal) - nesse sentido PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, p. 297 e ss.

No âmbito das competências legalmente atribuídas ao Juiz de Instrução diz o artigo 17.º do C.P. Penal, que «Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste código».

Decorre do referido preceito legal que ao JIC compete exercer todas as funções jurisdicionais que tenham que ser exercidas por um juiz durante a fase processual de inquérito [todas aquelas referidas nos artigos 268.° e 269.°, do C.P. Penal, incluindo as funções residuais previstas na al. f), do n.º 1, do artigo 268.° e na al. f), do n.º 1, do artigo 269.°], sendo certo que esta atravessa o momento em que o inquérito se encerra para efeitos materiais (com a prolação do despacho de arquivamento ou de acusação) até ao momento em que formalmente o Ministério Público deixa de ter os autos sobre o seu domínio e remete os mesmos à distribuição para julgamento ou para instrução (encerramento do inquérito para efeitos formais).

Deve, pois, entender-se que a competência do Ministério Público em fase de inquérito tem a mesma extensão que o artigo 17.° do C.P. Penal atribui ao JIC nessa mesma fase, sendo certo que uma e outra findam com a remessa dos autos à distribuição para julgamento ou para instrução.

Dito isto, julgamos que a competência para decidir das alegadas nulidades processuais invocadas pelo assistente AMMALR no requerimento de fls. 59 e ss dos autos, referindo-se a atos da competência exclusiva do Ministério Público, cabe a este último.

Nestes termos, deveria o arguido ter requerido ao Ministério Público que se pronunciasse sobre as mesmas, suscitando assim uma decisão por parte do magistrado titular do inquérito, somente após tal decisão (porquanto a mesma fazendo caso decidido não faz caso julgado, precisamente por não ser uma decisão judicial) se podendo colocar a questão da reapreciação por um juiz das questões suscitadas pelo arguido junto do Ministério Público, designadamente em ulteriores fases do processo.

Nestes termos, considerando o acima exposto, indefere-se o requerido pelo assistente no tocante às invocadas nulidades do inquérito.

Notifique.

*

ii. Da (in)admissibilidade legal da instrução

O MINISTÉRIO PÚBLICO decidiu proferir o despacho de arquivamento do inquérito que consta de fls. 55 e 56 dos autos.

O assistente AMMALR veio a fls. 100 e ss. requerer a abertura de instrução nos termos do disposto no artigo 287.°, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, insurgindo-se, por um lado, contra o referido despacho de arquivamento, alegando para tal, e em síntese, que no inquérito não foram realizadas todas as diligências atinentes ao apuramento dos factos, designadamente, a inquirição do assistente/queixoso e a constituição do denunciado como arguido e seu subsequente interrogatório nessa qualidade e, por outro lado, alegando factos que, no seu entender fundamentam a aplicação de uma pena ao Participado.

*

No referido despacho de arquivamento entendeu o Ministério Público arquivar os autos por, em suma, considerar subsistir a impossibilidade de inquirição do assistente/queixoso e não se mostrar viável a realização de outras diligências de inquérito, não sendo, por tais motivos, possível imputar ao denunciado a prática dos factos em apreço na queixa-crime apresentada.

Pelo exposto, concluiu pelo arquivamento dos autos nos termos do disposto no artigo 277.°, n.º 2, do Código de Processo Penal (ressalvando, diga-se em abono da verdade, a possibilidade de reabertura do inquérito caso se obtenham novos elementos de prova).

Logo, nos presentes autos não foi deduzida acusação desconhecendo-se os factos eventualmente praticados pelo( s) agente( s) do crime e que tipo de ilícito eventualmente possam preencher.

*

Apreciando e decidindo:

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. artigo 286.°, n.º 1, do Código de Processo Penal).

De acordo com o previsto no artigo 287.°, n.º 1, als. a) e b), do C.P. Penal, a instrução pode ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Dispõe o n.º 2 da citada norma legal que o requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar (2).

Estabelecem as alíneas a), b) e c), do n.º 3 do artigo 283.°, do C.P. Penal que a acusação, contém, sob pena de nulidade as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Assim, quando a instrução é requerida pelo assistente - como é aqui o caso ¬relativamente a factos pelos quais o Ministério Público se absteve de acusar, o respetivo requerimento deve enunciar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e à elaboração da decisão instrutória (3) , sob pena de a instrução ser, a todos os títulos, inexequível.

Na verdade, o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento de abertura de instrução do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do Ministério Público.

Com efeito, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, será necessariamente sujeita a comprovação judicial. Por outras palavras, o assistente deve requerer ao tribunal a submissão a julgamento pela prática de factos que descreve no seu requerimento, em conformidade com as disposições legais aplicáveis, que também deve indicar.

A comprovar tudo isto está o regime previsto no artigo 309.° do C.P. Penal, onde se comina com a nulidade a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução [cfr. artigo 1.º, n.º 1, al. f) do C.P. Penal, quanto ao conceito de alteração substancial dos factos].

A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infração criminal - falta de tipicidade - e aqueles em que exista um obstáculo que impeça o procedimento criminal ou a abertura da instrução, designadamente a falta de factos que possam conduzir a uma pronúncia (4).

No caso concreto, pelos fundamentos adiante destacados e ressalvando melhor opinião, cremos que o assistente não obedece aos requisitos supramencionados.

N a verdade, os factos ora elencados pelo assistente são os já constantes da queixa-crime por si apresentada conforme se retira da análise dos artigos 64.° a 122.° do requerimento de abertura da instrução (por confronto com os pontos 1. a 58. da queixa-crime ).

A acusação deve ser explícita e objetiva, elencando os factos de forma precisa e clara a fim de que o arguido possa deles ter a perfeita perceção e conhecimento de forma a delinear a sua defesa.

(...)

O crime de infidelidade consubstancia um crime específico próprio, pelo que o agente só pode ser aquela pessoa à qual foi concedida a autorização ou imposto o dever de administrar interesse patrimoniais alheios.

Embora em muitos casos esteja na base do mandato ou encargo de administrar os interesses patrimoniais alheios uma relação de confiança fáctica, o que releva é que haja um dever legal ou negocial imposto ao serviço de uma administração, de boa fé, dos interesses alheios, sendo irrelevante que este dever seja voluntariamente assumido ou legalmente imposto.

O conceito de administração pressuposto pela infidelidade deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo os atos de alienação ou oneração, os atos de administração ou gestão ordinária ou corrente, e os atos de fiscalização das pessoas cujo trabalho se exerce numa relação de subordinação ao titular do encargo da fiscalização: encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar. O crime de infidelidade parece exigir que o administrador goze de autonomia, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos, relativamente ao titular dos interesses.

As condutas previstas pelo artigo 224.° são as que causem prejuízo patrimonial importante, podendo consistir numa ação ou numa omissão. Para aferir, face à nossa lei penal, o que seja o prejuízo patrimonial importante, dever-se-á atender a um duplo critério: objetivo e subjetivo, isto é, deve atender-se à gravidade do prejuízo em termos absolutos, mas também à situação económica em que a vítima ficou colocada.

No que concerne ao tipo de ilícito subjetivo, dir-se-á que o crime de infidelidade exige o dolo direto ou necessário, excluindo-se a imputação subjetiva quando o agente atuou com dolo eventual. Com efeito, o termo "intenção" deve entender-se no sentido da consciência ou conhecimento da inevitabilidade do resultado, desempenhando a função prática de exclusão da imputação subjetiva quando o agente apenas representa como possível a causação de determinado resultado típico.

O crime de infidelidade exige, assim, a presença de um elemento subjetivo perfeitamente vincado.

Quanto aos factos que integram o tipo objetivo do crime de infidelidade, crê-se que o requerimento de abertura de instrução cumpre (ainda que, diga-se em abono da verdade, de forma mínima) os requisitos ao elencar os factos constantes dos artigos 103.°, 104.° e 106.° do RAI. No entanto, ao estender o requerimento de abertura de instrução por um total de 122 artigos, não só fica claro que ao (putativo) arguido (que, de resto, não identifica completamente no RAI) não pode ser assacada qualquer responsabilidade criminal como também não faz menção expressa ao elemento subjetivo do tipo.

Isto porque, em nenhum lado está explícito de forma clara que o "participado" atuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de causar prejuízo patrimonial importante aos interesses da herança que administra judicialmente e fazendo-o intencionalmente ou com grave violação dos deveres legais de que foi incumbido.

Cremos, diferentemente, que todo o vastíssimo contexto factual narrado no requerimento de abertura de instrução, aponta, salvo o devido respeito, para uma situação de incumprimento (ou impossibilidade de cumprimento) a ser eventualmente resolvido em sede cível e daí que, talvez, não tenha o assistente chegado a alegar factos suscetíveis de preencherem o elemento subjetivo do ilícito criminal em apreço (que, como vimos supra, exige um considerável rigor) e, desse modo, não tenha feito a necessária imputação do elemento subjetivo à conduta do "participado", porque, de facto, não a vislumbramos.

(...)

Assim, dá-se como assente que não pode o juiz de julgamento e, por paralelismo, nem o juiz de instrução (por força do disposto no artigo 309.°, n.º 1, do C.P. Penal) compor a acusação ou o requerimento de abertura da instrução relativamente a factos, de forma a acrescentar-lhe elementos essenciais - sejam eles objetiva ou subjetivamente integrantes da tipicidade - ao preenchimento do tipo de crime em causa.

Não é admissível a transformação de uma conduta atípica em conduta típica, e por maioria de razão, tal entendimento, aplica-se quer os autos estejam em sede de instrução quer em sede de audiência de julgamento.

A descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo, é, como já se referiu, fundamental, dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade e da estrutura acusatória do processo penal.

O Juiz de instrução não pode substituir-se ao assistente ou Ministério Público na alegação dos factos concretos e objetivos que preenchem os elementos do tipo. O Juiz não pode colocar na acusação ou no requerimento de abertura da instrução, por sua própria iniciativa, os factos em falta que são essenciais para o preenchimento de determinado tipo de crime.

(...)

Face a tudo o que ficou exposto, dúvidas não subsistem de que a presente instrução é inadmissível, uma vez que não obedece à estrutura acusatória do processo nem assegura as garantias de defesa do arguido, estando em clara violação do disposto no artigo 283.°, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 287.°, n.º 2, do mesmo diploma, sendo o seu objeto impossível e consequentemente inexistente.

Pelo supra exposto, e sem necessidade de outras considerações, ao abrigo do disposto no artigo 287.°, n." 3, do Código de Processo Penal, decido rejeitar o requerimento de abertura de instrução do assistente, por inadmissibilidade legal da instrução.“

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – Nulidade decorrente da omissão de pronúncia pelo JIC sobre o vício de falta de fundamentação e nulidades / irregularidades do inquérito;

2.ª questão – Verificação ou não do fundamento de rejeição do RAI.

B. Decidindo.

1.ª questão - Nulidade decorrente da omissão de pronúncia pelo juiz de instrução (5) sobre o vício de falta de fundamentação e nulidades / irregularidades do inquérito.

Segundo o art.º 379.º, n.º 1, alínea c) (e 380.º, n.º 3) é nulo o despacho quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse conhecer.

No requerimento de abertura de instrução (RAI), o assistente solicita o conhecimento, pelo JIC, daquilo que chama as razões de facto e de direito da discordância do Assistente quanto ao Despacho de arquivamento, mais concretamente:

I – Nulidade (ou irregularidade) do despacho de arquivamento do inquérito, por violação do art.º 97.º, n.º 5 – artigos 6.º a 17.º do RAI;

II - Nulidade insanável de falta de inquérito, cfr. art.º 119.°, alínea d) do CPP - artigos 18.° a 32.° do RAI;

III – Nulidades por insuficiência do inquérito, cfr. artigo 120.°, n.º 2, alínea d) do CPP - artigos 33.° a 63.° do RAI.

Segundo o recorrente, o tribunal a quo não se pronunciou sobre o mérito do alegado pelo assistente quanto à verificação das nulidades (irregularidades).

Vejamos.

Segundo o art.º 17.º, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos no código.

A competência atribuída ao JIC para “proceder à instrução” terá de articular-se geneticamente com o âmbito normativo desta.

Segundo o art.º 286.º, n.º 1, a instrução visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Assim, in casu, a instrução está limitada pela lei ao escopo de comprovar judicialmente a decisão de arquivar o inquérito: “Tão só isto e não também o controlo do modo como o ministério público levou a cabo a investigação”(6) , ou seja, “a instrução não é um suplemento autónomo de investigação, o que está de acordo com a configuração da fase de inquérito como fase de investigação por excelência e com o princípio processual penal da máxima acusatoriedade possível” (7) .

Flui com clareza do referido que a instrução não visa sindicar a linha investigatória do MP durante o inquérito, mas apenas validar judicialmente (ou não) a decisão final deste. Com efeito, a instrução não pode ser um sucedâneo investigatório autónomo ou alternativo daquilo que foi (ou não investigado durante o inquérito.

Deste modo, no caso de ser proferido despacho de arquivamento do inquérito, “a instrução não se destina a repetir ou a completar o inquérito (...); destina-se apenas a fiscalizar a decisão que pôs termos ao inquérito. Se o assistente considera o inquérito insuficiente em termos de investigação e recolha de prova [como acontece nos presentes autos], deverá reclamar hierarquicamente, nos termos do art. 278º, nº 2, e não requerer a abertura da instrução.” (8)

Deste modo, entende-se que o assistente, como entendeu (e entende) que o despacho de arquivamento não está fundamentado e que se verificam as nulidades por falta / insuficiência de inquérito, deveria ter suscitado, nos termos daquela norma, a intervenção hierárquica, para que este determinasse o prosseguimento das investigações, como indicação das diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento. (art.º 278.º, n.º 1)

Pretender que o JIC conheça de tais nulidades / irregularidades seria deferir a este, como flui do que alega, a direção de uma investigação completa aos factos denunciados (9), com violação flagrante do princípio do acusatório, do princípio da oficialidade (segundo o qual “toda a investigação pré-acusatória é pública através do inquérito, da competência do MP) (10) e dos artigos 17.º, 268.º, n.º 1, alínea f), 286.º, n.º 1 e 290.º, n.º 1, bem como do art.º 32.º, n.º 5 da CRP.

O indeferimento pelo Mm.º Juiz a quo do requerido conhecimento de nulidades / irregularidades do inquérito está, assim, normativamente escorado, pelo que improcede, consequentemente, esta questão.

2.ª questão – Verificação ou não do fundamento de rejeição do RAI.

Como refere a decisão recorrida, atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.°, ou seja, o RAI deve conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Segundo o despacho recorrido, quanto aos factos que integram o tipo objetivo do crime de infidelidade, o RAI cumpre (ainda que de forma mínima) os requisitos ao elencar os factos constantes dos artigos 103.°, 104.° e 106.° do RAI. No entanto, também se pode ler naquela peça processual, não é feita menção expressa ao elemento subjetivo do tipo, porque, em nenhum lado, está explícito de forma clara que o "participado" atuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de causar prejuízo patrimonial importante aos interesses da herança que administra judicialmente e fazendo-o intencionalmente ou com grave violação dos deveres legais de que foi incumbido.

O recorrente vem impugnar este entendimento, alegando que o elemento subjetivo do tipo se encontra descrito nos artigos 119.º e 121.º do RAI.

Entendemos que o recorrente tem toda a razão, aliás, não sendo percetíveis as razões do afirmado no despacho recorrido quanto a esta específica questão.

Com efeito, consta do RAI:

“119.º

Ora, i) ao não actuar para obter orçamentos comparativos, ii) ao adjudicar um orçamento único mesmo perante a expressa oposição do aqui Assistente, e para limpeza de árvores em terrenos já licitados e adjudicados aos outros herdeiros no âmbito do processo de Inventário iii) ao adjudicar o orçamento para limpeza de árvores em número muito superior às que pertencem à herança nos prédios da designada … , iv) ao adjudicar esse orçamento num momento em que já existiam informações de que o seu valor estaria muito inflacionado face aos preços de mercado na região para o tipo de serviço em causa, o que se veio a confirmar posteriormente, v) e ao nada fazer para apurar os factos e cessar a execução imediata desses trabalhos mesmo quando já estava na posse de todas essas informações que lhe foram transmitidas pelo aqui Assistente, e mesmo quando interpelado pelo aqui Assistente nesse sentido, o Participado, na qualidade de Cabeça de Casal da herança, por acção e por omissão conscientes, causou aos interesses da herança (que são os interesses de todos os herdeiros, no seu conjunto, e não de um ou outro em detrimento dos demais) intencionalmente, e com grave violação dos deveres legalmente previstos que lhe incumbem, um prejuízo patrimonial importante.

(...)

121.º

O Participado é Administrador Judicial, sendo sócio-gerente da sociedade comercial por quotas com a firma …, sendo alguém com vastos conhecimentos e experiência para realizar uma cuidada, rigorosa e zelosa administração do património hereditário, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, e sabendo que com a actuação e omissão pela qual optou estava a violar gravemente os seus deveres, causando aos interesses da herança (e não aos interesses de um ou outro herdeiro) um prejuízo patrimonial importante.

Considerando que o tipo subjetivo, quanto ao crime denunciado, apenas admite as formas mais intensas do dolo (direto (11) ou necessário), temos de considerar que, descrevendo-se no RAI que as condutas objetivas (ativas e omissivas) do denunciado que terão provocado o “prejuízo patrimonial importante” foram levadas a cabo conscientemente, agindo de forma livre, deliberada e consciente, está descrito o dolo (neste caso direto), nos termos recortados pelo art.º 14.º, n.º 2 do C. Penal.

A decisão recorrida, mostra-se, assim, indevidamente fundamentada, não podendo subsistir, o que significa a procedência do recurso neste segmento.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte que rejeita o requerimento de abertura de instrução por inexistência de descrição do elemento subjetivo do tipo, confirmando-se a mesma quanto ao demais.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 13 de Junho de 2021

Edgar Gouveia Valente

Laura Maria Peixoto Goulart Maurício

Sumário

Sumário

I - A instrução não visa sindicar a linha investigatória do MP durante o inquérito, mas apenas validar judicialmente (ou não) a decisão final deste.

II – A instrução não pode ser um sucedâneo investigatório autónomo ou alternativo daquilo que foi (ou não) investigado durante o inquérito. Mais exatamente, com a investigação efetuada no inquérito e com o material probatório ali recolhido é ou não correta a decisão de acusar / arquivar? Esta é a questão nuclear que deve ser formulada e respondida na instrução de acordo com a lei.

III - Pretender que o JIC conheça, em sede instrutória, de alegadas nulidades / irregularidades por falta / insuficiência do inquérito seria deferir a este a direção de uma investigação completa aos factos denunciados, com violação flagrante do princípio do acusatório, do princípio da oficialidade.

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1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.° do C.P. Penal.

3 MAIA GONÇALVES, in CPP anotado, 1996, T Edição, página 455.

4 MAIA GONÇALVES, in ob. cit., página 455 e Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.11.2001, 08.10.2002 e 18.03.2003, publicados in www.dgsi.pt

5 Doravante JIC.

6 Maria João Antunes in Direito Processual Penal, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, página116.

7 Idem, página 117.

8 Maia Costa in Código de Processo Penal Comentado, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, página 958. (negrito da nossa autoria)

9 Exorbitando, flagrantemente, do escopo desta fase processual, in casu, a decisão de arquivar o inquérito. Por outras palavras, uma coisa é sindicar esta decisão, com o material probatório carreado para os autos durante o inquérito; outra, bem diferente, é sindicar a atividade investigatória do MP ao longo do inquérito, imputando-lhe lacunas investigatórias estruturais alegadamente corporizadoras de nulidades /irregularidades processuais.

10 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal I, Verbo, 5.ª edição, Lisboa, 2008, página 71

11 Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, Lisboa, 2015, página 871), o tipo subjetivo só admite o dolo direto (mencionando referências concordantes e discordantes deste entendimento), sendo que a “atuação intencional é uma atuação com grave violação dos deveres que incumbem ao agente, pelo que o elemento subjetivo reflete inteiramente este elemento objetivo, isto é, há plena congruência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo.”