EMISSÃO E EXECUÇÃO DE DECISÕES DE APLICAÇÃO DE SANÇÕES PECUNIÁRIAS
COMPETÊNCIA
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
Sumário

Compete ao Tribunal que tiver tomado a decisão emitir a decisão de aplicação de sanção pecuniária e transmiti-la à autoridade competente do Estado de execução, nos termos do art.º 8.º, al. a), da Lei 93/2009 devendo ser acompanhada da certidão cujo conteúdo será por si certificado, conforme preceitua o art 9.º, n.º 3 da mesma Lei.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório

1 - No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira - Juiz 1- corre termos o Processo Abreviado n.º 2072/16.7GBABF, no qual, por despacho de 27 de Outubro de 2020, se decidiu recusar a emissão da certidão cujo modelo consta do anexo à Lei n.º 93/2009, de 1 de Setembro, por se entender que “a emissão da decisão e da certidão que a deve acompanhar, compete ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos prevenidos pelos artigos 8.º a) e 9.º, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 93/2009, de 1 de Setembro.”

2 - O Ministério Público, inconformado com esse despacho, interpôs recurso. O teor das conclusões da sua motivação do recurso, é o seguinte:

1.ª Por sentença transitada em julgado, AH foi condenado a pagar custas e multa processual, liquidadas nos montantes de € 1.135,93 e de € 204,00, respetivamente.

2.ª Notificadas as liquidações, não houve lugar a impugnação. Não pagou.

3.ª À execução na Holanda das custas e da multa processual não pagas por AH é aplicável o regime da Lei n.º 93/2009, de 1 de setembro.

4.ª Recorre-se do despacho de 27 de outubro de 2020 que indeferiu a promoção para emissão da certidão constante da Lei n.º 93/2009, de 1 de setembro, com a finalidade de pedir a cobrança das custas e da multa processual no país de residência do devedor.

5.ª Indeferiu-se por se entender que a competência se encontra deferida ao Ministério Público.

6.ª Tal entendimento traduz-se numa errada interpretação do artigo 8.º, alínea a) da Lei n.º 93/2009, de 1 de Setembro quanto à competência para realizar o procedimento de execução no estrangeiro quando sustenta pertencer ao Ministério Público.

7.ª Ao invés do entendimento que fundamentou o indeferimento nos, nos termos dos artigos 8.º, alínea a) e 9.º da Lei n.º 93/2009, de 1 de Setembro a competência para a emissão da certidão e transmissão direta da decisão acompanhada da certidão é do Tribunal que proferiu a decisão, no caso o Juiz 1 titular do processo.

8.ª Em conformidade, deverá substituir-se o despacho recorrido por outro que determine a emissão da certidão constante da Decisão-Quadro n.º 2005/214/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro,

9.ª E a sua transmissão às entidades holandesas para execução das quantias de € 1.135,93 e de € 204,00 devidas a título de custas e de multa processual.

Nestes termos, aguarda-se procedência.”

3 - O recurso foi admitido tendo os autos seguido a sua normal tramitação, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

4 - O Digno Procurador-Geral Adjunto, junto deste tribunal, emitiu douto parecer, concluindo:

“Somos do parecer que o recurso interposto merece provimento.

Acompanhamos a motivação e conclusões da magistrada recorrente.

Porque aquelas nos parecem fundamentadas, qualquer adenda de substância seria despiciente, restando-nos acompanhá-la, na íntegra.

Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto deve ser jugado procedente.”

5 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, em conferência.

II - Fundamentação

2.1 - O teor da decisão recorrida, na parte que importa, é o seguinte:

“AH, condenado nos presentes autos na pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante de € 375,00, procedeu ao pagamento total e voluntário da multa a que foi condenado. Atento o disposto nos arts. 47.º do Código Penal e do art. 475.º e 491.º “a contrario” do Código de Processo Penal, julga-se extinta, pelo cumprimento do fim do procedimento criminal, a pena de multa a que o arguido foi condenado nos presentes autos.

Notifique o Ministério Publico, o arguido (sendo que este, desde já se considera notificado na pessoa do seu defensor, nos termos do n.º 10 do art. 113.º do CPP) e o seu defensor.

Comunique ao registo criminal (art. 5.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 57/98 de 18/08).

*

Pena acessória: Atendendo à inviabilidade da apreensão da carta de condução do arguido atendendo que o mesmo reside fora do território nacional, solicite à ANSR que comunique à autoridade congénere holandesa competente a pena acessória em que o arguido foi condenado nos termos do art. 500.º, n.º 6 do CPP.

*

Remetendo novamente para o despacho de 8.07.2020 e complementando-se com o teor do “manual do reconhecimento mutuo das sanções pecuniárias da união europeia” disponível in http://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/reconhecimento_mutuo_sancoes_pecuniarias_handbook.pdf, a emissão e preenchimento do TTE será efetuado pelos Serviços do M.P. atendendo que a competência para prossecução do mesmo é do magistrado do M.P..

Contudo, e conforme já referido, determina-se a emissão de certidão de sentença, com transito em julgado e informação da ausência de contestação das custas devidas, com vista a acompanhar o T.T.E.”

2.2 - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, nos termos preceituados nos arts. 403º, n.º 1 e 412º n.º 1, ambos do C.P.P., sem embargo do conhecimento doutras questões que deva ser conhecida oficiosamente. São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.

As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - O objecto do recurso está limitado, pelas conclusões da respectiva motivação - arts. 403°, n.° 1 e 412°, n.º 1 do Cód. Proc. Penal.

A única questão colocada respeita a saber qual é, em concreto, a entidade portuguesa competente para a emissão, conteúdo e transmissão, por parte das autoridades portuguesas, de decisão de aplicação de sanção pecuniária?

2.4 - Análise do objecto do recurso e da questão suscitada pelo recorrente.

2.4.1 - Factualidade e circunstancialismo processuais a considerar para efeitos de decisão de recurso.

Por sentença proferida no dia 3 de abril de 2019, AH foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1 do Código Penal:

Na pena de setenta e cinco dias de multa, à taxa diária de cinco euros, e na pena acessória de proibição de conduzir todos e quaisquer veículos com motor pelo período de quatro meses;

No pagamento das custas, que se fixaram em duas unidades de conta, e em multa processual de duas unidades de conta por falta injustificada à sessão de julgamento de 15 de Março de 2019.

A douta sentença transitou em julgado no dia 5 de Setembro de 2019.

Em 28 de Novembro de 2019 foram liquidadas custas no montante de € 1.135,93, bem como, a multa processual no montante de € 204,00.

Na mesma data, 28 de Novembro de 2019, foi remetido aviso postal para notificação da I. defensora e do arguido da liquidação das custas e da multa processual, bem como, das guias para pagamento até ao dia 12 de Dezembro de 2019, ad multa processual, e até ao dia 24 de Janeiros de 2020, das custas.

Não houve lugar a impugnação da liquidação das custas ou da multa processual.

AH pagou a pena de multa.

Não pagou as custas nem a multa processual encontrando-se em dívida as quantias de € 1.135,93 e de € 204,00.

O Ministério Público promoveu se emitisse a certidão publicada em anexo à Lei n.º 93/2009 de 1/9 que transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/214/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro.

Por despacho de 27 de outubro de 2020 indeferiu-se tal pretensão, com o fundamento em que “a emissão e preenchimento da certidão será efetuada pelos Serviços do Ministério Público porque a competência para prossecução do mesmo é do magistrado do Ministério Público.” Porém, determinou-se a entrega de certidão da sentença, com trânsito em julgado e informação sobre a ausência de contestação de custas.

2.4.2 - Vejamos o direito a aplicar!

É fundamental para a subsunção legal e a decisão jurídica, atender à previsão da Lei n.º Lei 93/2009, de 01 de Setembro, referente à emissão e execução de decisões de aplicação de sanções pecuniária. A mesma aprovou o regime jurídico da emissão e execução de decisões de aplicação de sanções pecuniárias, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/214/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias, com a redacção que lhe foi dada pela Decisão Quadro n.º 2009/299/JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro.

Os artigos, da Lei 93/2009, a analisar, entre outros, são: 1º, n.º 1, 2.º, n.ºs. 1 als. a) e b), 8º e 9.º n.ºs. 1, 3 e 4.

O primeiro desses preceitos estabelece: “N.º 1 - A presente lei estabelece o regime jurídico da emissão e da transmissão, pelas autoridades judiciárias portuguesas, de decisões de aplicação de sanções pecuniárias, tendo em vista o seu reconhecimento e a sua execução em outro Estado membro da União Europeia, bem como do reconhecimento e da execução, em Portugal, das decisões de aplicação de sanções pecuniárias tomadas pelas autoridades competentes dos outros Estados membros da União Europeia, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/214/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pela Decisão Quadro n.º 2009/299/JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro.”.

O segundo, no seu n.º 1, als. a) e b), preceitua: “1 - Para os efeitos da presente lei, considera-se:

a) «Decisão», uma decisão transitada em julgado pela qual é imposta uma sanção pecuniária a uma pessoa singular ou colectiva, sempre que a decisão tenha sido tomada por:

i) Um tribunal do Estado de emissão, pela prática de uma infracção penal, nos termos da lei do Estado de emissão;

(…)

b) «Sanção pecuniária», a obrigação de pagar:

i) Uma quantia em dinheiro após condenação por infracção, imposta por uma decisão;

ii) Uma indemnização estabelecida no âmbito da mesma decisão em benefício das vítimas, quando estas não possam ser parte civil no processo e o tribunal actue no exercício da sua competência penal;

iii) Uma quantia em dinheiro relativa às custas das acções judiciais ou administrativas conducentes às decisões;

O terceiro, sobre a epígrafe “Autoridade portuguesa competente para a emissão” preceitua: “N.º 1 - É competente para emitir a decisão de aplicação de sanção pecuniária e transmiti-la à autoridade competente do Estado de execução:

a) O tribunal que tiver tomado a decisão;

(…)”

O n.ºs 1, 3 e 4, do último desses preceitos instituem: “1 - A decisão, ou a sua cópia autenticada, acompanhada da certidão cujo modelo consta do anexo à presente lei, pode ser transmitida às autoridades competentes de um Estado membro da União Europeia em cujo território a pessoa singular ou colectiva contra a qual tenha sido proferida a decisão possua bens ou rendimentos, tenha a sua residência habitual ou, tratando-se de pessoa colectiva, tenha a sua sede estatutária. 3 - A certidão deve ser assinada pela autoridade emitente, a qual certificará a exactidão do seu conteúdo. 4 - A decisão, ou a sua cópia autenticada, bem como a certidão, são transmitidas directamente pela autoridade emitente à autoridade competente do Estado de execução, em condições que permitam a verificação da sua autenticidade pelo Estado de execução.”

A análise destas normas demonstra que as mesmas se aplicam no caso “sub judice”, pois que, está em causa solicitar a cobrança, à Holanda (dado o devedor de custas e de multa processual ter nacionalidade holandesa e residência conhecida, nesse país) das quantias de € 1.135,93 e de € 204,00 devidas, respectivamente, a título de custas e de multa processual.

Portanto, é indiscutível que compete ao Tribunal, que tiver tomado a decisão, emitir a decisão de aplicação de sanção pecuniária e transmiti-la à autoridade competente do Estado de execução, nos termos do mencionado art.º 8.º, al. a), devendo ser acompanhada da certidão cujo conteúdo será por si certificado, conforme preceitua o citado art 9.º, n.º 3.

Entendemos, porém, o comentário do recorrente, quando se refere, nos casos distintos do presente, v.g, quando Portugal é o país da execução, solicitada por autoridade estrangeira, adiantando: “Quando se trate de devedor residente no estrangeiro e não haja possibilidade de cobrar coercivamente as quantias devidas em Portugal, o procedimento a seguir é o que se estabeleceu por meio da Lei 93/2009 que transpôs para a ordem jurídica interna a Decisão-Quadro 2005/214/JAI e não há que convocar o procedimento decorrente da lei processual civil no que respeita à elaboração do requerimento executivo para instauração de execução pelo Ministério Público (procedimento restrito às causas de natureza cível para cobrança em Portugal). Pretende-se não só que o tribunal emita a certidão (cujo formulário consta como Anexo da referida Lei – formulário disponível nas várias línguas da UE em https://www.ejncrimjust.europa.eu/ejn/libdocumentproperties.aspx?Id=1688) – por ser competente para emitir a decisão de aplicação de sanção pecuniária o tribunal que tiver tomado a decisão, cf. artigo 8.º a) – como também que a transmita à entidade competente na Holanda (a decisão, ou a sua cópia autenticada, bem como a certidão, são transmitidas directamente pela autoridade emitente à autoridade competente do Estado de execução, em condições que permitam a verificação da sua autenticidade pelo Estado de execução).

No despacho ora recorrido fez-se uma interpretação errada do artigo 8.º, alínea a) da Lei n.º 93/2009, de 1 de Setembro, quanto à competência para espoletar este procedimento de execução no estrangeiro quando sustenta tanto pertencer ao Ministério Público – neste sentido vejam-se os trabalhos “O Reconhecimento Mútuo das Sanções Penais Pecuniárias na União Europeia”, José Figueiredo, Procuradoria-Geral da República, 2012, e “A Execução de Multas/Coimas/Custas no Estrangeiro – enquadramento jurídico, prática e gestão processual” Trabalhos do 2.º Ciclo do 33.º Curso do CEJ, Centro de Estudos Judiciários, Outubro de 2020. Uma interpretação que, com o devido respeito, nos parece errada e contra legem”.

Concluindo, o recorrente tem razão na sua pretensão de recurso.

III – Decisão

Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e, como consequência, revogam o despacho recorrido, na parte respeitante ao não deferimento da pretensão do recorrente, ordenando a sua substituição por outro que determine a emissão da certidão por meio do formulário aprovado e a transmissão da decisão à entidade Holandesa competente para cobrança da quantia de € 1.135,93 devida a título de custas e da quantia de € 204,00 resultante da liquidação da multa processual.

Sem tributação.

(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 07/09/2021

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(Maria Isabel G. A. Duarte de Melo Gomes)

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(José Maria Martins Simão)