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VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
DIREITO A REPARAÇÃO
DESPESAS
RESPONSABILIDADE
Sumário
I - Ao vendedor de coisa que se vem a revelar defeituosa cabe ilidir a presunção de culpa que sobre si impende, ou seja, cabe-lhe demonstrar que a coisa vendida não padecia de qualquer defeito. II - Não se apurando qual a causa de um curto-circuito que determinou a avaria de uma máquina de filmar é responsável pela reparação o vendedor. III - Apesar do comprador tem pedido inicialmente a reparação ou a substituição da máquina em causa, e depois ter alterado esse pedido para que lhe fosse pago o valor da reparação cujo custo suportou, face à urgência na utilização profissional da máquina, o comprador tem direito a exigir o preço que despendeu com a reparação que foi recusada ilicitamente recusada pelo vendedor, e a ser indemnizado pelos danos emergentes da não utilização de tal máquina.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B………. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca da Maia, acção declarativa, sob a forma sumária, contra C………., S.A., hoje D………., S.A..
Pede a condenação da R. a proceder à reparação completa dos bens identificados na petição inicial ou a substituí-los por outros idênticos; em alternativa, e caso perca o interesse na reparação ou substituição, a condenação da R. a pagar-lhe o valor que este despenda na reparação ou substituição dos bens em causa; e ainda a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 256.000$00, correspondente ao montante que deixou de auferir em resultado do estado dos bens, sendo tudo acrescido de juros e da sanção pecuniária compulsória referida no art.º 829-A, n.º 4 Código Civil.
Alega ter celebrado com E………., S.A., um contrato de locação financeira por via do qual a locadora adquiriu à R., para uso do autor, uma câmara de filmar ………. e lente respectiva. Posteriormente, e após ter sentido “um ligeiro cheiro” durante o seu uso, entregou-a à ré, a funcionar normalmente, para ser examinada. Todavia a máquina veio a ser-lhe apresentada pela ré com diversas peças queimadas e destruídas, que não pertenciam originalmente à máquina do autor, mas à de um terceiro, e que a R. substituiu nas suas instalações. De qualquer modo, sempre a reparação da câmara estava coberta pela garantia de bom funcionamento.
Na contestação a R. alega ter vendido o equipamento a funcionar em perfeitas condições. Todavia o autor não o utilizou com os acessórios adequados e recomendados, o que determinou uma grave avaria do mesmo, existente quando foi entregue para reparação.
O A. respondeu alegando que sempre usou os "acessórios recomendados", embora os não tenha adquirido à R.
Após a prolação do despacho saneador foi apresentado pelo A. articulado superveniente com alteração de pedido, o qual foi admitido, alegando ter procedido à reparação da câmara no representante da marca, em Espanha.
Assim, a al. a) do pedido passou a ter a seguinte redacção: “pagar ao autor a quantia de Esc. 161.441$89, correspondente ao valor da reparação dos bens identificados no artigo 1º da petição”.
Quanto à al. b): “pagar ao autor a quantia de Esc. 256.000$00, tal como se referiu no artigo 55º da petição”:
E a al. c): “pagar ao autor a quantia de Esc. 270.000$00, correspondente ao aluguer de uma máquina semelhante à sua, no período compreendido entre Janeiro e Maio de 2001”.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença tendo a acção sido julgada improcedente.
Inconformado, o A. interpôs recurso.
Conclui assim:
-a recorrida agiu de má fé, tentando cobrar do A. o preço de 517.000$00, o qual logo de seguida aceitou reduzir para 309.000$00, quando na verdade o mesmo A. reparou a máquina de filmar por apenas 101.441$89;
-tratando-se de uma câmara digital profissional, destinada a uso intensivo, sendo da sua natureza possuir características de grande robustez e resistência, qualidades essas que foram asseguradas pela recorrida;
-a R. sabia que o A. fazia e faz trabalhos profissionais e que usaria a máquina para esse fim, bem como sabia que esta a adquiriu confiante de que tinha as características referidas;
-ao mesmo tempo o A. é profissional de fotografia e vídeo e conhecia o modo de funcionar da máquina em causa e os cuidados a ter com ela, sendo certo que já havia feito trabalhos com outras máquinas da mesma marca e modelo;
-acresce que o A. agiu com a máquina dos autos como sempre agiu com outras iguais;
-por outro lado, a R. assegurou ao A. que a máquina dos autos preenchia todos os requisitos referidos e garantiu-lhe que a mesma funcionaria sem quaisquer problemas, garantia que assumiu por um período não inferior a um ano, contra todos os defeitos de fabrico;
-apesar de tudo isso, a câmara foi vendida em 10 de Agosto de 2000 e logo em 16 de Setembro seguinte começou a cheirar a queimado e, como se viu, deixou de funcionar ou de cumprir a sua “função típica”;
-deste modo, a prova da existência de um vício ou defeito é evidente, ao contrário do que entendeu a M.ma Juiz a quo;
-ora, é unânime o entendimento da doutrina e jurisprudência no sentido de que o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo de garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega;
-o art.921º do C.Civil consagra uma responsabilidade especial do vendedor, de natureza objectiva;
-ora, o A. provou o defeito, mas a R. não provou a culpa do A., como lhe competia;
-de facto, sem a prova dos quesitos 47 a 54, e a resposta restritiva ao quesito 55, nenhuma culpa pode ser assacada ao A.;
-faltando esses pressupostos, resta responsabilizar a R., condenando-a a pagar os valores peticionados;
-foi violado o disposto nos art.s 913º, 921º e 799º, todos do C.Civil.
Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Factos provados:
- Por acordo entre o autor e E………., S.A., celebrado em Junho de 2000, esta obrigou-se a ceder àquele o gozo de uma câmara ou máquina de filmar, marca ………., modelo ………. e de uma lente da mesma, modelo ………., cedência mediante o pagamento, por parte do autor , de uma primeira renda no valor de 246.000$00 (mais IVA a 17 %) e 35 rendas de 18.436$00 (a mais IVA a 17%) (alínea A. dos factos assentes).
- Deste modo, entre o autor e o E………., S.A. foi celebrado contrato de locação financeira formalizado pelos documentos juntos a fls. 6, 7 e 8 a 15 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea B. dos factos assentes).
- A ré vendeu os bens referidos em A., transmitindo a respectiva propriedade, entregou-os ao autor e recebeu a totalidade do preço de E………., S.A. (alínea C. dos factos assentes).
- A máquina referida em A. é uma máquina digital profissional, destinada a um uso intensivo, é de sua natureza possuir características de grande robustez e resistência, qualidades esta que foram asseguradas pela ré (alínea L. dos factos assentes).
- A ré sabia que o autor fazia e faz trabalhos profissionais e que usaria a máquina com esse fim (facto controvertido 13).
- E que o autor a adquiriu confiante que tinha as características referidas em L. (facto controvertido 14).
- O autor é profissional de fotografia e video (facto controvertido 65).
- E conhecia o modo de funcionar da máquina que adquiriu à ré (facto controvertido 66).
- E os cuidados necessários a ter com a mesma (facto controvertido 67).
- Já havia feito trabalhos com outras máquinas da mesma marca e modelo (facto controvertido 68).
- O autor agiu com a máquina dos autos como sempre agiu com outras iguais (facto controvertido 69).
- A ré assegurou ao autor que a máquina dos autos preenchia todos os requisitos referidos em L. e garantiu-lhe que a mesma funcionaria sem quaisquer problemas, garantia que assumiu por um período não inferior a um ano (alínea M. dos factos assentes).
- A máquina beneficiava de uma garantia contra todos os defeitos de fabrico (facto controvertido 12).
- A ré acordou com o fabricante da máquina que os encargos da garantia ficariam a cargo daquela (facto controvertido 24).
- O "Manual de Operações" do equipamento referido em A. é o constante de fls. 30 a 100 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (alínea N. dos factos assentes).
- Para que este equipamento pudesse funcionar convenientemente necessitaria de um conjunto de acessórios mencionados a fls. 36 dos autos, sendo que estes são os acessórios recomendados pela marca (alínea O. dos factos assentes).
- Do "Manual de Operações do Equipamento" constava expressamente o aviso "Para reduzir o risco de incêndio, choques eléctricos e interferências, utilize somente acessórios recomendados", conforme resulta de fls. 31 dos autos (alínea P. dos factos assentes).
- Como o equipamento pretendido pelo autor não estava disponível, a ré emprestou-lhe o equipamento constante da guia de transporte de fls. 101, conforme termo de responsabilidade de fls. 102 dos autos, aqui se dando por integralmente reproduzidos os teores de ambos (alínea Q. dos factos assentes).
- Os acessórios entregues com o equipamento referido em R. eram da marca "……….", conforme recomendação de fls. 36 dos autos (alínea R. dos factos assentes).
- O autor encomendou o equipamento dos autos em 12.07.2000 (alínea D. dos factos assentes).
- O autor recebeu os referidos bens e fez uso deles (alínea E. dos factos assentes).
- No final de um serviço em 16.09.2000 o autor sentiu na máquina um cheiro que não conseguiu identificar (facto controvertido 1).
- Nessa altura o autor verificou a máquina (facto controvertido 2).
- Posteriormente o autor contactou telefonicamente a ré e, depois, o técnico desta (alínea F. dos factos assentes).
- No contacto referido em F. o autor explicou ao técnico da ré o referido em 1. (facto controvertido 5).
- No contacto referido em F. o autor comunicou que o equipamento cheirava a queimado (facto controvertido 35).
- O técnico sugeriu o a entrega da máquina, conforme referido em G. (facto controvertido 36).
- Este disse ao autor que entregasse o equipamento na delegação da ………., o que este fez em 18.09.2000 (alínea G. dos factos assentes).
- (O problema indicado pelo autor) era o facto de o equipamento cheirar a queimado (facto controvertido 38).
- O técnico sugeriu a entrega da máquina, conforme referido em G., para lhe fazer uma revisão de modo a afastar a preocupação do autor (facto controvertido 7).
- A parte visível exteriormente do encaixe do alimentador não estava queimado quando a máquina foi entregue à ré (facto controvertido 11).
- O departamento técnico da ré em Lisboa fez a verificação do equipamento (facto controvertido 39).
- E informou telefonicamente o autor dos problemas da máquina (facto controvertido 40).
- E do custo da reparação (facto controvertido 41).
- Perante este telefonema o autor solicitou uma reunião na delegação da ………. (facto controvertido 42).
- Na data combinada o director geral da ré fez-se acompanhar do técnico que tinha procedido à verificação do equipamento (facto controvertido 43).
- Posteriormente o autor deslocou-se às instalações da ré e o técnico desta trouxe a dita máquina, com a estrutura exterior fechada e, na mão algumas peças queimadas (alínea H. dos factos assentes).
- Era por razões de segurança que este trazia a máquina fechada (facto controvertido 44).
- Este técnico afirmou que essas peças eram da máquina do autor, que estavam completamente destruídas e que a máquina não funcionava (alínea I. dos factos assentes).
- Quer este técnico quer um sócio da ré afirmaram que também estava destruída a placa electrónica da máquina e que não aceitavam a reparação como incluída na garantia, e exigiram ao autor o pagamento de 517.000$00 para reparação da máquina (alínea J. dos factos assentes).
- O técnico, o director geral e o coordenador de vendas da ré pediram ao autor que lhes mostrasse os acessórios que tinha utilizado (facto controvertido 45).
- O autor mostrou à ré, quando lhe foram solicitados, os acessórios que usou na máquina (facto controvertido 75).
- O acessório-alimentador que o autor tinha utilizado era de um tipo de produto que é vendido para alimentar um aparelho que trabalhe a 12v, da marca ………. (facto controvertido 46).
- A avaria do equipamento dos autos deveu-se a curto-circuito que pode ter sido provocado por entrada de tensão superior àquela para a qual o aparelho está preparado para funcionar (facto controvertido 55).
- Este facto foi comunicado ao autor (facto controvertido 56).
- Os representantes da ré perguntaram ao autor se não tinha um seguro que cobrisse aquela situação (facto controvertido 57).
- Fizeram-no porque este argumentou não ter condições económicas para proceder ao pagamento do valor da reparação (facto controvertido 58).
- O autor reconheceu que nesta situação o seguro não lhe cobriria o risco (facto controvertido 59).
- Nessa ocasião o autor solicitou aos representantes da ré que emitisse um documento onde constasse um problema diferente do constatado (facto controvertido 60).
- Para que este pudesse reclamar junto da seguradora (facto controvertido 61).
- O que a ré se negou a fazer (facto controvertido 62).
- A ré acedeu a em retirar o custo da mão-de-obra e a margem de lucro e em permitir que o autor pagasse em prestações (facto controvertido 63).
- Posteriormente a ré reduziu a quantia referida em J. para o valor de 309.000$00 (facto controvertido 15).
- A ré enviou ao autor o relatório de fls. 105 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea S. dos factos assentes).
- Ao relatório referido em S. o autor respondeu nos termos da carta de fls. 115 dos autos enviada à ré (facto controvertido 77).
- Desde 16.09.2000 o autor está impedido de fazer uso dos bens referidos em A. (facto controvertido 25).
- O autor tinha previstos mais 8 serviços de casamentos até ao final do ano de 2000 (facto controvertido 26).
- E remeteu os clientes para outros concorrentes (facto controvertido 27).
- Por cada um desses serviços cobraria 65.000$00 (facto controvertido 28).
- E por cada um dos mesmos suportaria despesas com o operador de câmara no valor de 15.000$00 (facto controvertido 29).
- E com a montagem do filme no valor de 8.000$00 (facto controvertido 30).
- E com a cassete original no valor de 7.000$00 (facto controvertido 31).
- E com as cópias em formato VHS no valor de 3.000$00 (facto controvertido 32).
- No início do ano de 2001 o autor foi contactado por várias pessoas, solicitando os seus serviços para filmar casamentos e outras cerimónias (facto controvertido 80).
- Para não destruir irremediavelmente a sua boa imagem junto dos clientes e devido às insistências destes, o autor teve de alugar uma máquina semelhante à sua para poder realizar os serviços peticionados (facto controvertido 81).
- Por tal aluguer o autor pagou a quantia de 270.000$00, no período compreendido entre Janeiro de 2001 e Maio do mesmo ano, altura em que foi s Espanha e trouxe devidamente reparada a sua máquina (facto controvertido 82).
- O autor reparou a sua máquina no representante da marca em Espanha, pagando a quantia de 101.441$89 (facto controvertido 78).
- Uma vez que teve de levar a máquina ao representante oficial da marca em Madrid, o autor teve de efectuar duas viagens, no que despendeu a quantia de 60.000$$00 (facto controvertido 79).
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Questão a decidir:
-verificação dos pressupostos de responsabilidade civil da R. perante o A. pela avaria da câmara de filmar.
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Decorre da análise da matéria de facto dada como provada ter sido celebrado entre a R. e o E………., S.A., um contrato de compra e venda tendo por objecto uma câmara de filmar marca ………. e uma lente, equipamento este que foi depois cedido ao A. em consequência da celebração entre este e o E………., S.A., de um contrato de locação financeira.
Ora, um dos efeitos do contrato de compra e venda consiste na obrigação de entrega da coisa- art.s 874º e 879º, al. b), ambos do C.Civil.
E devendo os contratos ser pontualmente cumpridos- art.406º, nº1, do C.Civil- o cumprimento daquela obrigação só será perfeito se for entregue a coisa encomendada, por um lado, e sem defeitos intrínsecos, estruturais e funcionais- defeitos de concepção ou design e defeitos de fabrico- por outro lado. Caso a coisa vendida padeça daqueles defeitos, estamos perante a venda de uma coisa defeituosa- art.913º do C.Civil.
Na fixação do regime jurídico da compra e venda de coisas defeituosas deve ter-se em conta o regime geral da responsabilidade contratual- art.s 798º e seg.s do C.Civil- o regime especial previsto no art.913º do C.Civil, ao remeter para o regime da compra e venda de bens onerados, e as particularidades previstas no art.914º e seg.s do C.Civil.
Assim, atento o que fica dito, e desde logo, incumbe ao comprador a prova do defeito, melhor, da entrega da coisa com defeito- art.342º, nº1, do C.Civil.
Quanto à culpa, presume-se a culpa do vendedor- art.799º, nº1, do C.Civil.
Provada a entrega da coisa com defeito e não tendo sido ilidida a presunção de culpa do vendedor, podem ocorrer as seguintes consequências: reparação do defeito ou substituição da coisa, redução do preço, resolução do contrato e indemnização.
Este o regime regra, digamos.
Pode acontecer, todavia, que, por convenção ou por força dos usos, o vendedor esteja obrigado a garantir o bom funcionamento do bem vendido- art.921º do C.Civil.
Neste caso, o comprador tem direito a exigir a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição, independentemente de culpa do vendedor ou de erro seu (do comprador).
Escreve CALVÃO DA SILVA a este propósito in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 63, “o vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou bom funcionamento (idoneidade para o uso), da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa inerente à coisa e dentro do uso normal da mesma. Este facto, o facto de o vendedor assumir a garantia de um resultado, tem importância no domínio do onus probandi: ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de provar a sua existência no momento da entrega; ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade é que cabe a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega da coisa- assim ilidindo a presunção da anterioridade ou contemporaneidade do defeito (em relação à entrega) que caracteriza a garantia convencional de bom estado e bom funcionamento- e imputável ao comprador (v.g. má utilização) a terceiro, ou devida a caso fortuito”. No mesmo sentido ROMANO MARTINEZ in Direito das Obrigações, 141.
Esta tutela- convencional ou por força dos usos- acresce à que o comprador já dispõe e acima referida.
Este o regime especial previsto no caso de existir garantia de bom funcionamento.
Exposto, deste modo, o regime jurídico da venda de coisas defeituosas, vejamos se foi seguido na sentença recorrida.
E não foi.
Escreveu-se na sentença o seguinte: “efectivamente foi demonstrado que a máquina de filmar foi entregue ao autor e que este fez uso dela.
Mais se demonstrou que o autor, por ter detectado cheiro na dita máquina, a entregou posteriormente nas instalações da ré, a fim de ser analisada, vindo depois a constatar-se que diversas peças se apresentavam queimadas, que a máquina não funcionava e que a reparação orçava em centenas de contos.
No entanto, tais factos não são demonstrativos de que ao autor foi vendida máquina que padecia de defeito- defeito de fabrico- e que não era apta ao fim a que se destinava, até porque antes do momento supra referido o autor usou a dita máquina (que funcionou) e porque se demonstrou que este não utilizou os acessórios recomendados, designadamente, o alimentador (de energia) devendo-se o colapso da máquina a curto circuito, ocorrido possivelmente por entrada de tensão superior àquela para a qual o aparelho estava preparado para funcionar”
Ora, ficou provado que a R. assegurou que a máquina preenchia todos os requisitos referidos em L) e garantiu que a mesma funcionaria sem quaisquer problemas, garantia que assumiu por um período não inferior a um ano, e que incluía todos os defeitos de fabrico.
Ou seja, o A. beneficiava, relativamente à máquina em causa, de uma garantia de bom funcionamento- art.921º do C.Civil- em vigor na altura em que foi detectado e denunciado o defeito.
Pelo que, e ao contrário do referido na sentença, bastava-lhe alegar e provar o mau funcionamento da máquina.
E isto foi feito: em 16-9-00, o A. sentiu cheiro a queimado e comunicou tal facto à R.; e esta sugeriu a entrega da máquina, o que foi feito em 18-9-00; e então foi detectado pelo departamento técnico da R. que havia peças queimadas e que a máquina não funcionava.
Cabia, por isso, agora à R. a alegação e prova de que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega da máquina e é devida ao A. ou a terceiro.
O que não fez.
Na verdade, ficou provado que o acessório alimentador que o A. tinha utilizado era de um tipo de produto que é vendido para alimentar um aparelho que trabalhe a 12 v, marca ………., e que a avaria deveu-se a curto circuito que pode ter sido provocado por entrada de tensão superior àquela para a qual o aparelho está preparado.
Ou seja, não se sabe a causa do curto-circuito: tanto pode ter sido provocado pelo acessório utilizado pelo A., como por outro facto.
E assim sendo, não se sabendo a causa daquele curto-circuito, responde a R. pela avaria, independentemente de culpa, nos termos do disposto no art.921º do C.Civil.
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Aqui chegados, concluímos ser obrigação da R. reparar ou substituir a máquina de filmar, nos termos daquela disposição legal.
Além disso, o A. tem ainda direito à indemnização dos danos resultantes do mau, ou da falta de funcionamento daquela, melhor, “do atraso com que o comprador recebeu a coisa em perfeito funcionamento”- CALVÃO da SILVA, ob. cit., 65. Isto nos termos do disposto no art.908º, “ex vi” art.913º, nº1, ambos do C.Civil.
Mas agora, apenas caso exista culpa, ainda que presumida, do vendedor- art.799º do C.Civil.
Entende ROMANO MARTINEZ, ob. cit., 141, que, em caso de venda de coisa defeituosa, há uma relação entre os diversos meios jurídicos facultados ao comprador, não podendo ser exercidos em alternativa, arbitrariamente: “em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato.
A indemnização cumula-se com qualquer daquelas pretensões com vista a cobrir os danos não ressarcíveis por aqueles meios. Assim, por exemplo, além da eliminação do defeito, e na medida em que por este meio não fiquem totalmente ressarcidos os danos do comprador, cabe-lhe exigir uma indemnização compensatória. Mas a indemnização por sucedâneo pecuniário não funciona como alternativa aos diversos meios jurídicos facultados ao comprador em caso de defeito da coisa vendida”.
Ou seja, não pode ser pedida uma indemnização em substituição da reparação dos defeitos, por exemplo, mas apenas em complemento daquela.
Já CALVÃO da SILVA, ob. cit., 72, parece entender de modo diverso: “o comprador pode escolher e exercer autonomamente a acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso ou inexacto presumidamente imputável ao vendedor (art.s 798º e 799º, art.801º, nº1) sem fazer valer outros remédios, sem pedir a resolução do contrato ou a redução do preço nem a reparação ou substituição da coisa, portanto”.
Ora o A. pediu a reparação ou substituição da máquina, alegando mau funcionamento da mesma e a garantia de bom funcionamento. Depois, alterou o pedido no sentido do pagamento do valor da reparação, que entretanto efectuou.
Afecta isto o regime jurídico especial previsto no art.921º do C.Civil, a que acima nos referimos?
Pensámos que não.
Na verdade, ficou provado que o A., perante o que aconteceu com a máquina de filmar, contactou a R., entregando-lha depois a fim de ser examinada. Verificado o defeito, quis a sua reparação pela R., atenta a garantia de bom funcionamento. Esta, todavia, e apesar daquela garantia, recusou-se a repará-la.
Ou seja, foi dada oportunidade à R. de reparar ou substituir a máquina. Diferente seria se tal não tivesse acontecido.
Pelo que, atento tal comportamento da R., e não obstante o disposto no art.921º do C.Civil- que apenas se refere à reparação ou substituição- o A. pode exigir o montante entretanto gasto com a reparação.
De quanto fica dito extraem-se as seguintes conclusões:
-o A. tem direito à reparação da máquina de filmar;
-como a R. se recusou, ilícita e culposamente, a repará-la, tem direito ao montante gasto na e com a reparação- 161.441$89;
-tem direito ao pagamento do montante correspondente aos serviços que deixou de prestar por causa da avaria e da recusa da R.- 256.000$00;
-e tem direito, pelos mesmos motivos, ao pagamento do montante correspondente aos gastos no aluguer de outra máquina até à reparação daquela- 270.000$00.
Sobre estas quantias incidem juros de mora, à taxa legal, a contar da citação- art.s 804º, 805º, 806º e 559º, todos do C.Civil.
Não se ordena o adicional de juros de 5% pedido- art.829º-A, nº4, do C.Civil- uma vez que o mesmo decorre directamente da lei. Trata-se de uma sanção pecuniária compulsória legal- CALVÃO da SILVA in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 452.
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Acorda-se, em face do exposto, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a sentença proferida, em julgar a acção procedente e condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 687.441$89, a converter em euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação.
Custas, quer na 1ª instância, quer na Relação, pela R..
Porto, 27 de Março de 2006
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho
Baltazar Marques Peixoto