FACTOS ESSENCIAIS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO
CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Sumário

I - Os factos essenciais, numa acepção estrita, cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor.
II - Diz-se inepta a petição quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos na petição inicial e a pretensão jurídica formulada na acção. Nesta hipótese, prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 186.º do Código de Processo Civil, verifica-se contradição entre a causa de pedir e o(s) pedido(s) deduzido(s), facto que inviabiliza qualquer tutela jurisdicional.
III - Essa contradição ocorre quando o demandante interpõe contra os demandados acção de reivindicação, pedindo, designadamente, que nela sejam estes condenados a reconhecerem o direito de propriedade daquele relativamente a imóvel que os Réus ocupam, pedindo que sejam estes condenados a restituí-lo, quando na exposição dos factos os demandantes alegam a existência de um contrato de arrendamento celebrado com os Réus, que, por virtude de tal contrato, ocuparam o imóvel, mas que se recusam a desocupá-lo, terminado o prazo do arrendamento e tendo o senhorio lhes comunicado o propósito de o não renovar, instando-os a procederem à entrega do local arrendado.

Texto Integral

Processo n.º 3226/19.0T8VLG.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Porto
Juízo Local Cível de Valongo – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
B…, contribuinte fiscal n.º ………, portador do B.I. n.º ……., e mulher C…, contribuinte fiscal n.º ………, portadora do C.C. n.º …….., residentes na Rua …, n.º …, …, ….-… Maia, propuseram acção de reivindicação, através de processo comum, contra D…, contribuinte fiscal n.º ………, e mulher E…, residentes na Rua …, n.º …, rés-do-chão esquerdo, ….-… …, Valongo, na qual formulam os seguintes pedidos:
a) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua …, número …, na freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Valongo sob o número 1794/19920924, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 269, onde se inclui uma habitação devidamente delimitada, sita no rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º … da Rua …, em …, Valongo, identificados nos artigos 1º e 3º desta petição inicial;
b) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que não tem qualquer título que justifique ou legitime a ocupação que vem fazendo sobre o rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo nº … da Rua …, em …, Valongo, desde 31 de Março de 2019;
c) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que a sua posse é abusiva e, como tal, insubsistente;
d) deverão os Réus ser condenados a entregarem aos Autores o rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo nº … da Rua …, em …, Valongo a Cave, livre de pessoas e bens.

Para tanto, alegam, entre o mais, os Autores que:
- são proprietários do prédio urbano sito na Rua …, número …, na freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Valongo sob o número 1794/19920924, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 269.
- Por documento particular, de 01 de Janeiro de 1990, denominado de contrato de arrendamento, o Autor marido deu de arrendamento ao Réu marido uma habitação devidamente delimitada no prédio urbano acima identificado, a que corresponde o rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º … da Rua …, em …, Valongo.
- O contrato foi celebrado para habitação, pelo prazo de um ano, com início em 01 de Janeiro de 1990 e termo em 31 de Dezembro de 1990, considerando-se prorrogado por iguais e sucessivos períodos, enquanto não for denunciado.
- Foi convencionada a renda anual de 216.000$00, a que corresponde atualmente o valor 1.080,00 €, a ser paga mensalmente em duodécimos de 18.000$00 € (cento e setenta euros), a que corresponde atualmente o valor 90,00 €, a ser paga no primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar, na casa do inquilino, sendo a última renda mensal de € 135,00, na sequência dos sucessivos aumentos legais.
- Por cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 15 de Janeiro de 2014, recepcionadas a 17 de Janeiro de 2014, o Autor comunicou aos Réus que, nos termos do artigo 30.º, da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei no 31/2012, de 14 de Agosto, era sua intenção proceder à transmissão do contrato de arrendamento do locado para o NRAU, atualizar a renda para 135,00 € mensais, e passar o mesmo contrato para prazo certo, pelo período de cinco anos, tendo junto cópia da caderneta predial.
- Os Réus não responderam às cartas, tendo, a partir dessa data, passado a pagar a renda proposta de € 135,00 € mensais.
- Por cartas datadas 03 de Abril de 2018, e 11 de Maio de 2108, o Autor marido comunicou aos Réus que relativamente ao contrato de arrendamento, acima referido, não pretendia a renovação do mesmo, pelo que o denunciava com efeitos para o dia 31 de Março de 2019, concluindo que o mesmo arrendado deveria ser entregue livre de pessoas e bens até essa data.
- Os Réus não entregaram aos Autores a habitação que lhes estava arrendada até ao dia 31 de Março de 2019, nem posteriormente, continuando a ocupar a mesma, contra a vontade dos Autores, recusando-se a entregá-la aos seus proprietários, apesar de os Autores os haverem interpelado para que entregassem a habitação que anteriormente lhes estava arrendada.
Citados os Réus, contestou a Ré que, defendendo-se por excepção, invocou a ineptidão da petição inicial.
Para o efeito, alega que o que está verdadeiramente em causa é a apreciação da ocorrência, ou não, de causa de cessação do contrato de arrendamento e subsequente despejo dos Réus, e não o reconhecimento da ocorrência de violação do direito de propriedade dos Autores por parte dos Réus, adiantando que não está, nem nunca esteve, em causa o reconhecimento do direito de propriedade dos Autores por parte dos Réus, que, de resto, sempre lhes pagaram a renda pela ocupação da habitação.
O Réu marido veio igualmente deduzir contestação, declarando aderir e ratificar integralmente a contestação apresentada pela Ré, sua esposa.
Notificados os Autores para se pronunciarem acerca das excepções invocadas pelos Réus nas suas contestações, pugnaram pela improcedência das mesmas, concluindo como na petição inicial.
Findos os articulados, e dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador que, conhecendo da excepção da ineptidão da petição inicial, concluiu pela procedência da mesma, determinando a absolvição dos Réus da instância.
Não se conformando com a referida decisão, dela interpuseram os Autores recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) A decisão em recurso fundamenta-se na douta sentença que julgou procedente a invocada exceção de inaptidão da petição inicial e, em conformidade com o disposto nos artigos 186º, nº 2, b), 278º, nº 1, b), e 577º, nº 1, b), do CPC, absolveu os Réus da instância.
B) Entende que na presente ação “a causa de pedir é a de uma ação de despejo, e não de uma ação de reivindicação”, e que resulta da petição inicial que “toda a invocação dos autores (...) se alicerça na existência de um contrato de arrendamento com os réu/inquilinos e na sua caducidade (geradora da obrigação de entrega do locado aos autores/senhorios”, e que “a ação é proposta contra os inquilinos, pessoas que legitimamente ocupam o contrato na vigência do contrato de arrendamento, e que não se apoderaram ilicitamente daquele, ...”.
C) Refere, também, que “desde o início do arrendamento que ocupam o prédio, licitamente, apenas não o tendo entregue, (...), imediatamente após a cessação do contrato com a sua caducidade, nele permanecendo”, pelo que considera da alegação dos autos “não estar em causa o direito de propriedade, mas tão somente um dos efeitos da cessação do contrato de arrendamento”.
D) Indica que “tratando-se a caducidade de uma forma de extinção do arrendamento, é apropriada a ação de despejo para obter a desocupação do arrendado, e não a ação de reivindicação...”.
E) Conclui “que a causa de pedir da ação não se compatibiliza com os pedidos dos autores”, pelo que “ocorre o vício previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 186º do Código do Processo Civil”.
F) Salvo o devido respeito, não se aceitam os motivos doutamente explanados na sentença, porque a ação de reivindicação é o meio próprio.
G) Existiu um contrato de arrendamento entre os Autores e os Réus arrendatários, conforme é alegado nos artigos 3º a 7º da petição inicial.
H) Ainda na vigência de tal contrato de arrendamento, os Autores procederam ao processo extraordinário de atualização de rendas, previsto no artigo 30º e seguintes do NRAU, tendo o mesmo contrato sido transmitido para o NRAU, passou a ser de prazo certo, pelo período de 5 anos, com início em 01 de Abril de 2014, e a renda mensal passado a ser de 135,00 €, conforme é alegado nos artigos 8º a 11º da petição inicial.
I) Face a tal factualidade, é alegado no artigo 12º da petição inicial, que os Autores comunicaram aos Réus que não pretendiam a renovação do contrato de arrendamento em causa, nos termos do artigo 1097º do CPC, pelo que o denunciavam com efeitos para o dia 31 de Março de 2019, data em que o locado deveria ser entregue livre de pessoas e bens.
J) Os Réus não entregaram a habitação que anteriormente lhes estava arrendada, nem posteriormente, mesmo depois de solicitado para tal, e que os Réus não têm qualquer título para tal ocupação desde 31 de Março de 2019, conforme artigos 13º, 15º da petição inicial.
K) Desde o dia 31 de Março de 2019 não existe qualquer contrato de arrendamento entre os Autores e os Réus, porque o mesmo terminou com a oposição à renovação efetuada pelos Autores, nos termos do artigo 1097º do CPC.
L) Assim, foi pedida a condenação dos Réus nos pedidos de: reconhecerem a sua propriedade e posse sobre o imóvel e habitação reivindicada; reconhecerem que não têm qualquer título de ocupação desde essa data; que a sua posse é abusiva e insubsistente; e a entregarem a habitação reivindicada.
M) A presente ação não foi proposta contra os inquilinos, que o deixaram de ser face à oposição à renovação do contrato de arrendamento, e não estão a ocupar legitimamente a habitação que anteriormente lhes estava arrendada, estando em causa o direito de propriedade sobre a mesma, porque não foi entregue pelos Réus depois do termino do contrato de arrendamento.
N) A caducidade do contrato de arrendamento, com a sua extinção, não é dirimida em ação de despejo, porque esta não é o meio processual idóneo para os fatos alegados na petição inicial, porque não existe qualquer relação de contratual de arrendamento entre os Autores e Réus, desde 31 de Março de 2020, e consequentemente, qualquer título para que os Réus ocupem a habitação reivindicada desde essa data.
O) A ação de despejo diz respeito a casos de resolução do contrato de arrendamento, designadamente as referidas nos artigos 1083º e 1084º do C.C., o que não é o caso dos autos.
P) O fundamento da presente ação de reivindicação é a rescisão do contrato de arrendamento, por oposição à renovação do contrato de arrendamento, e não entrega da habitação por parte dos Réus, meio idóneo face ao alegado.
Q) Assim, não existe, assim, qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir invocadas na douta sentença, não ocorrendo o vício previsto na alínea b) do no 2 do artigo 186º do CPC, e consequentemente, não existe a inaptidão da petição inicial invocada, não havendo lugar à absolvição dos Réus da instância, devendo os autos prosseguir os seus tramites.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando a douta sentença recorrida, sendo assim feita JUSTIÇA”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar se a petição inicial é inepta.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Foi nos autos proferido despacho saneador que, conhecendo da excepção dilatória da ineptidão da petição inicial invocada pelos Réus, julgou procedente a mesma e, em consequência, absolveu estes da instância.
Para tanto considerou a decisão recorrida, pelas razões que nela são abundantemente explicadas, que “…a causa de pedir da ação não se compatibiliza com os pedidos deduzidos pelos autores”.
Segundo o n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil, “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”.
E acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo:
“Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
A ineptidão da petição inicial emana da análise da causa de pedir e do pedido, enquanto elementos essenciais, estruturantes e estruturadores do objecto do processo, os quais, por sua vez, delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Segundo o artigo 552.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, “Na petição, com que propõe a acção, deve o autor […] expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, ou seja, o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido).
Os factos a que se refere a norma em causa são os factos principais, na concepção ampla dos factos essenciais a que alude o n.º 1 do artigo 5.º da lei processual civil, que, integrando a causa de pedir, têm função fundamentadora do pedido deduzido. A falta de alegação de algum deles compromete a procedência do pedido deduzido, por insuficiência de fundamentação de facto do mesmo, isto é, da respectiva causa de pedir, conduzindo à absolvição do demandado do pedido contra ele formulado
Alguns desses factos principais são, todavia, factos essenciais, mas agora numa acepção estrita: tratam-se de factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido)[1]. Estando esses factos essenciais alegados, a causa de pedir mostra-se identificada, não podendo considerar.se inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, embora possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.
Faltando factos essenciais (na acepção estrita), a petição inicial considera-se inepta, não há lugar a despacho de aperfeiçoamento para permitir que essa falta seja suprida, tendo como consequência processual a absolvição do réu da instância[2].
Omitidos outros factos principais, a petição inicial não será de considerar inepta, mas a causa de pedir acha-se incompleta ou está insuficientemente concretizada. Nesta hipótese deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento, que actualmente tem natureza vinculativa, convidando o juiz a parte a suprir as irregularidades do articulado, ou a suprir as deficiências de alegação ou exposição dos factos, designadamente completando a causa de pedir através de alegação de factos que complementem ou concretizem os factos antes alegados[3], podendo a parte ainda manifestar a vontade de se aproveitar desses factos que venham a surgir durante a instrução do processo[4].
Explica Lebre de Freitas[5] que a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da acção.
A causa de pedir é formada pelo complexo de factos que constituem o suporte da pretensão formulada, que fundamentam o efeito jurídico peticionado pelo autor.
Como refere Abrantes Geraldes[6], “no que concerne à causa de pedir, que, com o pedido completa o objecto do processo, exige-se da parte do autor, normalmente patrocinado por profissional do foro, apetrechado com os necessários conhecimentos técnicos, que saiba identificar os fundamentos fácticos da sua pretensão, de acordo com os preceitos que são aplicáveis, e transpor para o articulado inicial, através da verbalização adequada, a realidade histórica que subjaz ao litígio”.
Esse imperativo, que onera o autor, decorre claramente dos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, d) da lei adjectiva.
A primeira circunstância que conduz à ineptidão da petição ocorre quando não exista qualquer narração da factualidade que serve de suporte ao(s) pedido(s) da causa de pedir, ou no caso de falta de pedido, o qual permite identificar a tutela jurídica reclamada por quem exerce o direito de acção.
Daí que “…a falta de pedido ou de causa de pedir, traduzindo-se na falta de objecto do processo, constitui nulidade de todo ele, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido ou a causa de pedir é formulado de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos”[7].
Ocorre omissão de indicação de causa de pedir “quando falte a alegação do núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa”[8]. Só esta constitui fundamento de ineptidão da petição inicial, com a decorrência processual fixada no n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil.
Com efeito, há que distinguir entre a falta absoluta de formulação de causa de pedir, traduzida na omissão de alegação do complexo factual que serve de fundamento à pretensão deduzida, e a insuficiência de causa de pedir, neste caso por o quadro fáctico alegado no articulado inicial não ser bastante para conduzir à procedência do efeito jurídico peticionado[9].
Já Alberto dos Reis[10] ensinava que “se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.
Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente (…) quando (…) sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga”.
Também Anselmo de Castro[11] entende que “para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei - art. 193 º, n.º 2 al. a)- só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento.
Só a total falta de causa de pedir, isto é, a absoluta ausência de factos fundamentadores da pretensão deduzida, é geradora do primeiro daqueles vícios[12], o que no caso concreto, como veremos, não se verifica.
A circunstância da causa de pedir e/ou o pedido serem incompreensíveis, isto é, indecifráveis também determina a ineptidão da petição. Sem conteúdo ou pretensão, a acção não pode assegurar qualquer tutela jurídica que demande a intervenção do tribunal.
A propósito da ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir esclarece Rodrigues Bastos[13]: “é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (al. a) do artigo 193º) contempla, como bem se vê da redacção do n.º 3 do mesmo artigo.”
Poderá, assim, dizer-se que a petição é inepta por ininteligibilidade “quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é o pedido ou a causa de pedir”[14].
A petição só será inepta por ininteligível quando, face à forma deficiente como os factos e/ou o pedido foram articulados, não for possível determinar qual a causa de pedir e/ou o pedido.
Outra circunstância que pode ditar a ineptidão da petição inicial verifica-se “quando exista uma desarmonia irreversível entre a exposição dos factos e a pretensão jurídica formulada. Isto significa que o percurso expositivo da factualidade está em oposição com a pretendida solução jurídica, existindo um impacto entre ambas que não possibilita qualquer tutela jurisdicional”.
Os Autores propuseram contra os Réus acção declarativa comum, que eles próprios designam por acção de reivindicação e na qual, recorde-se, formulam os seguintes pedidos:
a) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua …, número …, na freguesia …, concelho de Valongo, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Valongo sob o número 1794/19920924, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 269, onde se inclui uma habitação devidamente delimitada, sita no rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º … da Rua …, em …, Valongo, identificados nos artigos 1º e 3º desta petição inicial;
b) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que não tem qualquer título que justifique ou legitime a ocupação que vem fazendo sobre o rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo nº … da Rua …, em …, Valongo, desde 31 de Março de 2019;
c) deverão os Réus ser condenados a reconhecerem que a sua posse é abusiva e, como tal, insubsistente;
d) deverão os Réus ser condenados a entregarem aos Autores o rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo nº … da Rua …, em …, Valongo a Cave, livre de pessoas e bens”.
Segundo o n.º 1 do artigo 1311.º do Código Civil, “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”, pois que o direito de reivindicar é uma manifestação da sequela própria do direito real.
Como explica Rodrigues Bastos[15]: “a reivindicação é a acção exercida por uma pessoa que reclama a restituição de uma coisa de que é proprietário. A reivindicação funda-se, portanto, na existência do direito de propriedade, e tem por fim a obtenção da coisa (...). O objecto da acção deve ser uma coisa determinada, móvel ou imóvel”, ou, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela[16], “a acção de reivindicação (...) é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela”.
Ainda segundo o primeiro dos citados autores, “a causa de pedir desta acção é complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do autor, como a ocupação abusiva do imóvel pelo réu, sendo estes factos que o autor tem de provar para obter a procedência da acção, com condenação nos dois pedidos que deve formular: o do reconhecimento daquele direito e o da restituição da coisa reivindicada, nada impedindo que a esses pedidos se juntem outros, como o de indemnização, se se verificarem os requisitos legais da cumulação”[17].
Do que resulta exposto, evidencia-se já que a acção de reivindicação comporta necessariamente dois pedidos que se hão-de cumular: “o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio)[18].
Com os pedidos específicos da acção de reivindicação pode o autor, se as regras processuais não o impedirem, cumular com aqueles pedido de indemnização, nomeadamente pelos danos causados na coisa por quem a detém ilegitimamente, ou valor do uso que este dela fez[19].
Na petição inicial, além de alegarem factos integradores do direito de propriedade sobre o imóvel de que se arrogam titulares – facto sobre o qual não recai controvérsia -, afirmam os Autores haverem celebrado com os Réus contrato de arrendamento para habitação destes, tendo por objecto o dito imóvel, inicialmente pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável enquanto não for denunciado, e que, por comunicação do Autor aos Réus, através de carta com a data de 15.01.2014, passou a prazo certo de cinco anos, sem oposição dos Réus arrendatários.
Alegam ainda os Autores que, por cartas datadas de 3.04.2018 e de 11.05.2018, o Autor marido comunicou aos Réus que não pretendia renovar o contrato de arrendamento com eles celebrado, pelo que o denunciava com efeitos para o dia 31.03.2019, advertindo que o arrendado lhe devia ser entregue, até essa data, livre de pessoas e bens, o que não sucedeu, continuando os Réus a ocupar o imóvel, recusando-se a entregar o mesmo, apesar de interpelados para o efeito.
Precisa, acertadamente, a decisão aqui sindicada que “A causa de pedir desdobra-se, portanto, em dois elementos: nos factos materiais alegados, que constituem o substrato factual da ação; e na normatividade deles decorrente, especificamente vocacionada para o pedido formulado.
Na ação de reivindicação, a causa de pedir funda-se na alegação de factos tendentes a demonstrar a aquisição originária do direito real invocado ou, em alternativa, a presunção de posse ou do registo da aquisição, mesmo que derivada, da coisa; e a ocupação ou esbulho da coisa por parte do réu.
Na ação de despejo, a causa de pedir é constituída pelo contrato de arrendamento e pelo facto que, legalmente, constitui fundamento da sua cessação.
Já o pedido consiste, dito muito simplesmente, no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação.
Na ação de reivindicação, o pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta.
Na ação de despejo, o pedido é a declaração da cessação do contrato de arrendamento, a desocupação do locado e a sua entrega”.
Segundo o n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro (NRAU), “A ação de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo”.
Como elucida Rui Pinto[20], “...pode dizer-se que a acção de despejo é uma acção que permite ao senhorio obter uma alteração potestativa de uma situação jurídica (...) que extrajudicialmente não conseguiria, ou seja, é uma acção constitutiva (cf. art. 4.º, n.º 2, al. c) CPC (...).
A acção de despejo é, assim, uma acção privativa do contrato de arrendamento e neste sentido, materialmente especial”.
E, mais à frente: “Actualmente, o pedido de uma acção de despejo admitido pelo art. 14.º, n.º 1, NRAU é constitutivo extintivo (...), pelo que será conveniente o senhorio pedir também a condenação na desocupação do local e, ainda, a sua entrega com as reparações que incumbem ao arrendatário (cf. art. 1081.º, n.º 1, CC).
[...] Configura-se, assim, uma cumulação inicial de objectos pois pretende obter-se dois efeitos jurídicos diferentes: cessação e desocupação/entrega.
Naturalmente que a procedência do primeiro pedido é sempre prejudicial da procedência do segundo, pois sem extinção do contrato não se constitui a obrigação de restituição do imóvel”.
Diz a decisão recorrida: “Toda a invocação dos autores - como resulta da petição e como os próprios vieram explicitar em resposta à contestação, a convite do tribunal - se alicerça na existência de um contrato de arrendamento com os réus/inquilinos e na sua caducidade (geradora da obrigação de entrega do locado aos autores/senhorios).
A ação é proposta contra os inquilinos, pessoas que legitimamente ocupavam o prédio na vigência do contrato de arrendamento, e que não se apoderaram ilicitamente daquele; não se tratam de quaisquer terceiros, sem causa fundadora da sua ocupação do prédio, que abusivamente vieram a usá-lo e fruí-lo, violando o direito de propriedade dos autores.
Pelo contrário, desde o início do arrendamento que ocupam o prédio, licitamente, apenas não o tendo entregado, na versão dos autores, imediatamente após a cessação do contrato com a sua caducidade, nele permanecendo.
Julgamos, por conseguinte, que da alegação dos próprios autores está patente e claro não estar em causa o seu direito de propriedade, mas tão somente um dos efeitos da cessação do contrato de arrendamento que invocam.
Se os ocupantes do prédio arrendado fossem pessoas alheias ao contrato de arrendamento, a ação própria para reavê-lo seria efetivamente a de reivindicação; todavia, estruturando-se a causa de pedir, notoriamente, no contrato de arrendamento celebrado com os réus (que, por força desse contrato, obviamente reconheceram o direito de propriedade dos autores/senhorios sobre o locado) e na cessação dele por alegada caducidade, forçosamente é de concluir que a ação própria é a de despejo.
Tratando-se a caducidade de uma forma de extinção do arrendamento, é apropriada a ação de despejo para obter a desocupação do arrendado, e não a ação de reivindicação intentada pelos autores. A conclusão a extrair é que a causa de pedir da ação não se compatibiliza com os pedidos deduzidos pelos autores. Com efeito, embora os autores peçam, em último lugar, a entrega do prédio – o que é pretensão comum à reivindicação e ao despejo -, sempre haveria que, de acordo com a causa de pedir dos autos, fazer o inerente e primordial pedido, de declaração de cessação do contrato de arrendamento por caducidade, em vez de um pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, que não se lhe adequa”.
Traduzindo-se o petitum no efeito jurídico[21] pretendido pelas partes, aquele desdobra-se em duas vertentes:
i) a declaração jurídica propriamente dita – pronunciatio (que na acção de reivindicação conduz à declaração/reconhecimento do direito de propriedade e na acção de despejo passa pela declaração da cessação da relação contratual do arrendamento); e
ii) a subsequente consequência material – condennatio (v.g. entrega ou restituição do imóvel: na acção de reivindicação, como consequência do reconhecimento do direito de propriedade por quem reivindica esse reconhecimento e ocupação do imóvel por quem não disponha de título que legitime essa ocupação; na acção de despejo, em consequência da cessação do arrendamento que, enquanto a respectiva relação contratual vigorou entre as partes, legitimou a ocupação do local arrendado por parte dos inquilinos).
Inequivocamente, o efeito jurídico perseguido pelos Autores com a propositura da acção é a entrega do imóvel que os Réus ocupam. Para o alcançarem, reclamam a condenação dos Réus no reconhecimento do direito de propriedade de que os Autores se arrogam titulares.
Porém, o reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, instrumental para o efeito jurídico que visam obter (entrega do imóvel), nunca foi questionado, sequer pelos Réus que, ao celebrarem com o Autor marido contrato de arrendamento tendo por objecto o imóvel reivindicado, implicitamente lhe reconhecem tal direito de propriedade.
O quadro factual transposto pelos Autores para a petição inicial reflecte realidade bem distinta: a existência de contrato de arrendamento celebrado entre Réus e Autor marido, que na sua vigência legitimou a ocupação do local arrendado, mas que chegou ao seu termo, não pretendendo o Autor renová-lo, como comunicou ao Réus/inquilinos.
A exposição, pelos próprios Autores, do acervo factual que constitui a causa de pedir esbarra inevitavelmente no contrato de arrendamento celebrado com os Réus, de cuja cessação – efeito jurídico que, devendo ser deduzido pelos demandantes, não o foi – dependerá a condenação dos Réus na entrega do imóvel/desocupação do local arrendado.
Daí a evidência da falta de harmonia entre a causa de pedir da acção declarativa proposta pelos Autores e os pedidos nela formulados. Ou seja, “A conclusão a extrair é que a causa de pedir da ação não se compatibiliza com os pedidos deduzidos pelos autores”, como constata a decisão sob recurso.
O que inevitavelmente nos remete para a conclusão de que, por se configurar o vício tipificado no n.º 2, alínea b) do artigo 186.º do Código de Processo Civil, a petição inicial deve considerar-se inepta, com as consequências processuais que daí extraiu, com acerto, a decisão recorrida.
É, por isso de manter tal decisão, improcedendo o recurso dos apelantes.

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Síntese conclusiva:
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso serão suportadas pelos apelantes.

[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]

Porto, 14.07.2021
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Lebre de Freitas, A acção declarativa, pág. 41; Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 64/72.
[2] Artigos 186.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, b), 577.º, b), 595.º, n.º 1, a, todos do Código de Processo Civil.
[3] Artigo 590.º, n.ºs 2, b) e 4 do Código de Processo Civil.
[4] Artigo 5.º, n.º 2, b) do Código de Processo Civil.
[5] Introdução, 2013, págs. 70, 71.
[6] “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, ed. Almedina, pág. 81.
[7] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil anotado”, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 343.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2007, processo nº 06A4150, www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 82.
[10] “Comentário ao Código de Processo Civil”, 2º, págs. 364 e 371.
[11] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, pág. 221.
[12] Cfr. acórdão da Relação do Porto de 29.09.2011, processo nº 1023/10.0TBVNG.P1, www.dgsi.pt.
[13] “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág. 253.
[14] Citado acórdão da Relação do Porto de 29.09.2011.
[15] “Notas ao Código Civil”, vol. V, 1997, pág. 64.
[16] “Código Civil anotado”, vol. III, pág. 112.
[17] ob. cit, pág. 65-66.
[18] Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., pág. 113; no mesmo sentido, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, págs. 846-847, Acórdão da Relação de Lisboa, 15/5/74, Boletim do Ministério da Justiça 237º-298.
[19] cf. Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit., pág. 113.
[20] O Novo Regime Processual do Despejo, Coimbra Editora, 2.ª ed., págs. 21 e seguintes.
[21] Cfr. artigo 581.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.