BUSCA DOMICILIÁRIA
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

– Traduzindo-se a busca realizada na mera recolha e apreensão de armas/objectos que se encontravam no quarto da ofendida/vítima, esta tinha legitimidade para autorizar que no mesmo se realizasse a diligência, mesmo depois das 21 horas [artigo 177.º, n.º2, al. b)]. E é assim já que a validade da realização da busca domiciliária basta-se com o consentimento da pessoa visada/afectada, ou seja, daquela que tenha a livre disponibilidade quanto ao local onde a diligência é efectuada e que possa ser por ela afectada, nomeadamente, in casu, o quarto da ofendida.

– Não haverá quaisquer dúvidas quanto à legalidade/validade da busca em questão, ainda que realizada depois das 21 horas, não se percebendo, sequer, a razão de o arguido levantar a questão em sede de recurso apesar de bem saber ter sido absolvido dos ilícitos criminais imputados referentes a armas e munições apreendidas – precisamente por estarem em poder/guarda e na disponibilidade da ofendida/ vítima e seu filho pelo que a diligência em causa não enferma de qualquer nulidade.

– A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo.

Texto Parcial

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 1002/18.6PAMTJ,
MAG, melhor identificado nos autos, foi pronunciado por factos susceptíveis de integrarem a prática em autoria material, na forma consumada e concurso real, de um crime de violência doméstica, p. e p. pela conjugação do artigo 152.°, n.° 1, alínea a) e n.° 2, al a), do Código Penal, e do artigo 86.°, n.°3, do NRJAM (Novo Regime Jurídico das Armas e Munições), e de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos   3.° n.° 2, al. e), 4.°, n.° 1 e 86.°, n.° 1, al. d), do RJAM (Regime Jurídico das Armas e Munições) e artigos 2.°, n.° 3, p), 3.°, n.° 4, al. a) e 86.°, n.° 1, al. c) do mesmo regime.

AFG deduziu pedido de indemnização civil contra MAG peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, a título de danos não patrimoniais sofridos e decorrentes da conduta do arguido/demandado.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

« Em face do exposto, o Tribunal decide:
I.A)-Absolver MAG pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.°s 1, al. a) e 2, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 86.°, n.° 3 da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro;
I.B)- Absolver MAG pela prática, como autor material, de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pela conjugação dos artigos 3.° n.° 2, al. e), 4.°, n.° 1 e 86.°, n.° 1, al. d) do Regime Jurídico das Armas e Munições e artigos 2.°, n.° 3, p), 3.°, n.° 4, al. a) e 86.°, n.° 1, al. c) do RJAM;
I.C)- Condenar MAG pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.°s 1, al. b) e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão;
I.D)- Suspender a execução da pena de prisão imposta, nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.ºs1, 3 e 5 e 53.º, n.º1, do Código Penal e 34.º-B, n.º1 da Lei n.º 112/2009, de 16/09 por idêntico período, sujeitando tal suspensão a regime de prova, o qual deverá contemplar necessariamente a frequência do “Programa para Agressores de Violência Doméstica – PAVD”;
I.E)-Condenar MAG na pena acessória de proibição de qualquer contato com AFG, designadamente mantendo-se afastado da mesma e do local da residência e de trabalho desta, pelo período de 3 (três)anos e 2 (dois) meses, sujeita a controlo à distância, nos termos do artigo 152.°, n.°s 4 e 5 do Código Penal.

(…)
II.Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido por AFG e, em consequência:
II.A)- Condenar MAG a pagar à Demandante Civil a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da prolação da sentença até efectivo e integral pagamento, à taxa de 4% e demais taxas que sobrevieram, absolvendo-o do demais peticionado;
(…).»

2.O arguido recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A)-Conforme consta na douta sentença recorrida:" o arguido veio, em sede de contestação, arguir a nulidade da busca domiciliária efectuada à residência do casal no pretérito dia 15.11.2018”, uma vez que, que a busca domiciliária realizada em 15.11.2018 não foi autorizada ou ordenada por despacho pela autoridade judiciária competente (cfr. art. 174°, n.º 3, do C. P.P.).
B)-A medida cautelar de polícia de busca domiciliária sem prévia autorização judicial foi realizada, (e atendendo às declarações da arguida ao auto de notícia que foi elaborado com a denúncia da queixosa), por factos ocorridos nas residência por volta das 16 horas, tendo a busca domiciliária iniciado após as 21 horas ou seja mais 5 horas após os acontecimentos relatados pela queixosa, e assim sendo parece claro que a busca domiciliária ocorreu fora de flagrante delito.
C)-O arguido não deu consentimento à realização da busca domiciliária (foi cometida a nulidade do art. 177.º n.º1 do CPP),e mesmo que o Tribunal na douta sentença, tenho considerado que estamos perante criminalidade violenta e que a validação foi feita de forma implícita, entendemos que tendo sido presente o arguido a Juiz de Instrução no prazo de 48 horas, o Sr. Juiz de instrução teria ou não de validar de forma expressa a busca, e como não o fez, estamos perante nulidade insanável, e consequentemente as provas recolhidas através da busca domiciliária levada a cabo na morada do arguido, sem autorização da competente autoridade judiciária, nem com o consentimento do visado, são nulas.
D)-Atendendo ao princípio in dubio pro réu, o Tribunal a quo devia ter tido em conta que o arguido negou peremptoriamente a prática de todos os factos de que vinha acusado [vide na douta sentença a fls. 16: "Quanto à factualidade descrita no libelo acusatório, o arguido nega a sua prática e justifica as acusações da vítima com o facto de ter recusado a compra de nova casa, a outorga de procuração ao filho desta e de lhe continuar a entregar a quantia de € 200,00 mensais).
E)-O Tribunal, porém, optou por não dar valor às suas declarações e apenas acolher na sentença, a versão dos factos que a alegada vítima trouxe aos autos e que foi transformada em verdade absoluta, mesmo quando contrariada por testemunhos de pessoas arroladas pelo arguido, e que privaram com o casal (arguido/assistente)ao longo dos anos de forma viva, permanente e efectiva e assim não descortinamos nas declarações da assistente/testemunhas que fossem considerados FACTOS PROVADOS os factos 1 a 6, 8,13 a 16, 28 e segs. do pedido de indemnização cível.
F)-Em relação ao Facto Provado n.º 8 é incongruente que o Tribunal dê como provado um objecto que nem sequer consegue identificar ou seja indeterminado, e que dê como provado os Factos 13 a 15, uma vez que o Tribunal a quo não consegue identificar termos espaço-temporais quando ocorreram tais crimes e assim sendo o objecto do crime é indeterminado - afirmar que ocorreram tais crimes sem especificar datas e locais é genérico e inviabilizador da defesa do arguido.
G)-O Tribunal a quo também deu como provado quanto ao pedido de indemnização civil: os factos 28 a 26, quando não deviam ser dados como provados, até porque como refere o facto 28: "Durante mais de 40 anos e até Novembro de 2018 que a Demandante e o Demandado viveram sob o mesmo tecto, em situação análoga à dos cônjuges", pois como se poderia comprovar pela certidão de nascimento a assistente viveu no mesmo tecto com outros maridos que não o arguido [como foi mencionado pela testemunha JBG) e por isso o Tribunal deveria ter requisitado à Conservatória do registo Civil o assento de nascimento da assistente que prova as diversas relações da assistente.
H)-As imputações de factos dados como provados, tiveram por base as declarações da assistente, embora o Tribunal a quo, tenha considerado que as declarações da assistente eram algo hesitantes e no entanto o arguido é condenado com base nas declarações da assistente!!! (vide a fl. 17 da douta sentença consta o seguinte: "AFG, vítima nos autos, prestou declarações algo hesitantes, pouco circunstanciadas no tempo e no espaço e manifestando um certo afastamento emocional dos factos. "
I)-E os factos provados não foram pela assistente narrados de modo concreto mas sim de forma genérica e abstracta e dessa mesma forma genérica vieram a ser dadas como provadas numa sentença que vem aplicar uma condenação penal.
J)-Sem prescindir e atenta a desconformidade entre a condenação e prova produzida em julgamento, entende o recorrente que os dados como assentes na douta, sentença condenatória foram incorrectamente julgados ao serem dados como provados, quando deveriam ter sido dados como não provados e dando como provado que são verdadeiras as declarações que o arguido prestou em julgamento - como claramente fica demonstrado dos depoimentos gravados e da motivação do presente recurso que aqui se dão por integralmente reproduzida e em consequência modifique a matéria de facto, nos termos dos art. 412.º n.º 3 e 431.º, als. a) e b) do CPP.
K)-Sendo certo que o tribunal, se pretendia apurar factos concretos poderia e deveria, dar uso aos poderes de investigação que tem ao seu dispor e como se sabe o processo penal encontra-se subordinado ao princípio da investigação oficiosa, estatuído nomeadamente, nos art-s 323.º al a) e 340.º n.º 1 do CPP, o que seguramente decorre da circunstância do tribunal recorrido ter à sua disposição meios para averiguar - nomeadamente requerendo certidões de nascimento/ casamento e, consequentemente obter informações que lhe permitem afastar eventuais situações de insuficiência de prova.
L)-Poderes estes que o tribunal bem poderia ter utilizado para averiguar e esclarecer as circunstâncias em que aqueles factos alegadamente ocorreram, pelo que no caso ocorreu o vicio previsto no art. 410/2.ª alínea a) CPP que é de conhecimento oficioso, vicio esse que aqui expressamente se invoca.
M)-Os factos provados não especificam as circunstancia de tempo e lugar, e nomeadamente em termos temporais também não se diz sequer em que data ocorreram as supostas agressões, mas o que é certo é que a terem ocorrido terão acontecido há cerca de 30 anos (ou seja quando o filho da assistente, tratava aliás o arguido por pai , e assim sendo os factos provados estarão prescritos e assim se requer a extinção da responsabilidade criminal por prescrição.
N)-O Arguido foi, ainda condenado a uma indemnização no montante de € 5.000,00 pelos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela assistente., ora, caso o arguido não seja absolvido, e tendo em conta as condições sócio-pessoais do demandado e da demandante dadas como provadas, considera-se manifestamente excessivo o montante fixado, devendo consequentemente a indemnização fixada, ser, sempre reduzida a montante inferior a €5.000,00 em que vem condenado o arguido.
O)-Também, salvo o devido respeito não se compreende que o arguido seja condenado na pena acessória constante no I.E) da douta sentença: uma vez que há mais de 2 anos que o arguido não tem qualquer contacto com a assistente e na pendência do processo foi aplicada como medida de coacção o Termo de Identidade e Residência, que se mantém até ao momento presente, e também por isso não deverá o arguido em caso de improcedência do recurso ser condenado em tal pena acessória.
P)-Pelo que deve ser dado provimento ao recurso , e consequência o recorrente ser absolvido

3.O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.
           
4.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer a fls. 436, acompanhando a posição do Ministério Público junto da 1.ª instância.

5.Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação
(…)

3.Apreciando

3.1.O arguido/recorrente começa por invocar a nulidade da busca domiciliária documentada nos autos, alegando não ter sido autorizada ou ordenada por despacho da autoridade judiciária competente, ter ocorrido após as 21h00, fora de flagrante delito, não tendo o arguido prestado o seu consentimento.

O tribunal recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:

« § Da nulidade da busca domiciliária
O arguido veio, em sede de contestação, arguir a nulidade da busca domiciliária efectuada à residência do casal no pretérito dia 15.11.2018. Alega, em síntese, que a mesma ocorreu sem despacho da autoridade judiciária competente, após as 21 horas e sem o seu consentimento.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da nulidade arguida com fundamento no termo de autorização de busca domiciliária assinado pela ofendida AFG, constante de fls. 8.
Cumpre decidir.
O artigo 177.° do Código de Processo Penal dispõe que «1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.
2- Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de:
a)- Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada;
b)- Consentimento do visado, documentado por qualquer forma;
c)- Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
3-As buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal:
a)- Nos casos referidos no n.° 5 do artigo 174.°, entre as 7 e as 21 horas;
b)- Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas.
4- É correspondentemente aplicável o disposto no n.° 6 do artigo 174.° nos casos em que a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito.
5- Tratando-se de busca em escritório de advogado ou em consultório médico, ela é, sob pena de nulidade, presidida pessoalmente pelo juiz, o qual avisa previamente o presidente do conselho local da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, para que o mesmo, ou um seu delegado, possa estar presente.
6- Tratando-se de busca em estabelecimento oficial de saúde, o aviso a que se refere o número anterior é feito ao presidente do conselho directivo ou de gestão do estabelecimento ou a quem legalmente o substituir»
- Quanto à hora em que a busca domiciliária foi efectuada
O arguido alegou que a busca domiciliária ocorreu sem despacho prévio da autoridade judiciária competente e teve início após as 21 horas, facto que, aliás, converge com a hora aposta no auto de apreensão de fls. 9-10 (i.e. 22H48).
Decorre da alínea a) do n.° 2 do citado artigo 177.° que a busca domiciliária pode ser realizada entre as 21 horas e as 7 horas, nos casos de criminalidade especialmente violenta.
O crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12.10.2017, proc. 89/17.3PGOER-A.L1- 9, relator: Desembargador Fernando Estrela, disponível em www.dgsi.pt).
Por conseguinte, a busca domiciliária poderia ter ocorrido após as 21 horas.
- Quanto à falta do despacho prévio de autorização do Juiz de Instrução e do consentimento do arguido.
O artigo 177.°, n.° 4 do Código de Processo Penal dispõe que «É correspondentemente aplicável o disposto no n.° 6 do artigo 174.° nos casos em que a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito».
O citado n.° 6 do artigo 174.° dispõe que «Nos casos referidos na alínea a) do número anterior, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação».
Ora, no caso dos autos, o arguido foi presente para primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 16.11.2019, ou seja, no dia seguinte à busca e apreensões efectuadas nos autos (cfr. fls. 53 e seguintes).
No âmbito de tal diligência, o Mm.° Juiz de Instrução Criminal - autoridade judiciária competente (art. 269.°, n.° 1, alínea c) do C.P.P.) procedeu à validação da detenção do arguido e aplicou medidas coacção de proibição de contactos, de aproximação da vítima e de frequentar a habitação desta.
No acórdão n.° 278/2007, publicado no DR, II Série de 20-06-2007, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais as normas constantes do n° 5 do artigo 174° e da parte final do n° 2 do artigo 177° do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que, efectuada busca domiciliária por órgão de polícia criminal sem precedência de autorização judicial, por se tratar de caso de criminalidade violenta e haver indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa, é de quarenta e oito horas o prazo para a comunicação ao juiz de instrução da efectivação da busca e a decisão judicial da sua validação pode resultar, de forma implícita, desde que inequívoca, da decisão de validação da detenção do arguido e de fixação da medida de coacção de prisão preventiva.
Termos em que, perfilhando desta orientação, entende-se que a busca domiciliária à residência do casal, consentida pela vítima (fls. 8), foi validada pelo Juiz de Instrução Criminal no período das 24 horas seguintes.
Face ao exposto, julgo improcedente a nulidade arguida.»

As buscas são, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no n.º 5 do artigo 174.º do C.P.P., ser efectuadas por órgão de polícia criminal sem a mencionada ordem ou autorização.
Tratando-se de uma busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada, a competência para a ordenar ou autorizar pertence ao juiz (artigo 177.º, n.º 1), sem prejuízo de, em determinados casos, poder também ser ordenada pelo Ministério Público ou efectuada por órgão de polícia criminal (n.º 3 desse mesmo preceito).
O regime da busca domiciliária está previsto no artigo 177.º, conjugado com o artigo 174.º e seguintes do C.P.P., normas que emanam do preceituado no artigo 34.º da Constituição da República (CRP), que consagra o domicílio como um direito inviolável, determinando o n.º2 desse artigo que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Por força dos artigos 34.º n.º2 e 202.º, n.º2, da Constituição, 177.º, n.º1 e 269.º, n.º1, alínea c), do C.P.P., a autoridade competente para decretar (autorizar ou ordenar) a busca domiciliária é, como já se disse, o juiz. Porém, o consentimento do visado, documentado por qualquer forma, legitima a realização de busca domiciliária, a qualquer hora e no âmbito de quaisquer infracções criminais [alínea b) do n.º 5 do artigo 174.º e n.º 3 do artigo 177.º do C.P.P.].
Atente-se, ainda, que o artigo 177.º, n.º2, permite a realização de busca domiciliária entre as 21 e as 7 horas nos casos de terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, estabelecendo o n.º4 do mesmo artigo que é correspondentemente aplicável o disposto n n.º6 do artigo 174.º nos casos em que a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito. O dito n.º6, por sua vez, preceitua que a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.
O tribunal recorrido integrou, correctamente, o crime de violência doméstica no conceito de criminalidade violenta, a que se reporta o artigo 1.º, alínea j), do C.P.P., conforme se pronunciou o acórdão desta Relação, de 12.10.2017, proc. 89/17.3PGOER-A.L1- 9.
Não atentou, porém, que o artigo 177.º, n.º2, al. a), não se reporta à criminalidade violenta [artigo 1.º alínea j), do C.P.P.], mas antes à criminalidade especialmente violenta [artigo 1.º alínea l), do C.P.P.].
Porém, importa dizer que, estando nos autos documentada a realização de busca domiciliária, autorizada pela ofendida, AFG, como resulta de fls. 8, nenhum dos objectos apreendidos encontrava-se em poder do arguido.

Por isso mesmo, o arguido foi absolvido quanto aos imputados crimes de detenção de arma proibida, lendo-se na sentença recorrida:

« Quanto ao conceito de “detenção de arma”, devemos atender ao disposto no artigo 2.°, n.° 5, alínea g) da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, segundo o qual detenção de arma é o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor.
Resulta da matéria de facto provada que o arguido não detinha as armas apreendidas pois estas estavam em poder/guarda e na disponibilidade da vítima e seu filho APSoares.
Atentas as declarações confessórias do arguido, a conduta típica subsumível ao tipo legal é tão somente a compra e/ou aquisição por qualquer titulo das armas e/ou munições pelo arguido.
Todavia, tais factos ocorreram há mais de 33 anos, isto é, antes da vivencia conjugal do arguido e vítima.
Nos termos do artigo 118.°, n.° 1, alínea b) do Código Penal «O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez ano», como é o caso dos autos.
Assim, importa declarar prescrito o procedimento criminal contra o arguido quanto aos crimes de detenção de arma proibida.»

A sentença é claríssima, se cuidarmos de ler a sua motivação, no sentido de que arguido e ofendida, à data da apreensão, já não partilhavam quarto, sendo que as armas apreendidas, ainda que pertença do arguido, estavam guardadas no quarto da ofendida, desde pelo menos Agosto de 2018, mencionando-se:

«Quanto às armas objecto dos autos, da conjugação das declarações do arguido, da vítima e dos depoimentos dos agentes da PSP, de ACS  e JBG, com os autos de apreensão de fls. 9 a 15 e 32-33, resulta que, na habitação, foram apreendidas pela PSP as seguintes armas/objectos que se encontravam no quarto da vítima (e não na posse do arguido) desde, pelo menos, Agosto de 2018: três munições calibre 9mm, um coldre com mola para pistola de alarme, uma arma de alarme 9mm, um carregador para pistola de alarme, duas soqueiras e uma catana; a ACS, na Esquadra da PSP, foram apreendidos: um chicote, quarenta e oito munições calibre 6.35mm, uma plantina de pistola e duas caixas de esferovite, sendo uma própria para guardar uma pistola de calibre 6.35mm.
Portanto, em conclusão: o arguido não tinha a posse de nenhuma das armas apreendidas nos autos à data dessa apreensão não obstante ter explicado a sua aquisição há mais de 33 anos — tempo de residência em comum com a vítima — sendo certo que já as possuía aquando do seu casamento com a mãe dos filhos.»

Quer isto dizer que os objectos apreendidos nos autos tiveram duas origens: uns estavam no quarto da ofendida, alegadamente por esta guardados por temer que o arguido os utilizasse; outros foram entregues na Esquadra da PSP por ACS, filho da ofendida.
A busca traduziu-se, pois, na mera recolha e apreensão de armas/objectos que se encontravam no quarto da ofendida/vítima, pelo que esta tinha legitimidade para autorizar que no mesmo se realizasse a diligência, mesmo depois das 21 horas [artigo 177.º, n.º2, al. b)]. E é assim já que a validade da realização da busca domiciliária basta-se com o consentimento da pessoa visada/afectada, ou seja, daquela que tenha a livre disponibilidade quanto ao local onde a diligência é efectuada e que possa ser por ela afectada, nomeadamente, in casu, o quarto da ofendida.
Não temos, pois, quaisquer dúvidas, quanto à legalidade/validade da busca em questão, ainda que realizada depois das 21 horas, não se percebendo, sequer, a razão de o arguido levantar a questão em sede de recurso apesar de bem saber ter sido absolvido dos ilícitos criminais imputados referentes a armas e munições apreendidas – precisamente por estarem em poder/guarda e na disponibilidade da ofendida/ vítima e seu filho.
Repare-se, aliás, que da motivação da decisão de facto resulta que AGC e SAR, agentes da Polícia de Segurança Pública, deslocaram-se à morada dos autos na sequência dos factos ocorridos em 15.11.2018.
Essas testemunhas confirmaram a presença da vítima, o seu consentimento para a entrada dos agentes na residência (cfr. fls. 8),” à qual não foi efectuada busca, a postura colaborante do arguido e as armas entregues e apreendidas: arma de alarme, soqueira, munições e catana”.
O texto da motivação revela que, pese embora tenha sido documentada a realização de busca domiciliária, em rigor o que ocorreu foi a deslocação dos agentes da PSP à residência em questão, onde procederam à recolha e apreensão de armas/objectos que se encontravam no quarto da ofendida/vítima, razão por que dizem, de forma aparentemente contraditória, não ter sido “efectuada busca”.
Certo é que o arguido foi detido e apresentado no prazo legal ao Juiz de Instrução, que julgou válida a detenção e considerou fortemente indiciados os factos pelos quais o arguido foi apresentado a 1.º interrogatório, incluindo a apreensão das armas, subsumindo os factos à indiciação da prática dos crimes de violência doméstica agravada e de detenção de arma proibida, socorrendo-se, expressamente, além do mais, do “termo de autorização de busca domiciliária” e dos autos de apreensão. Tal significa que os elementos de prova resultantes da mencionada busca foram apreciados e tidos em conta para a prolação do despacho do Juiz de Intrução, pelo que foram apreciados e validados, de forma implícita, mas ainda assim inequívoca, que é quanto basta para a validação (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/2007, publicado no Diário da República n.º 117/2007, Série II, de 20-06-2007, e bem assim o Acórdão do S.T.J., de 20-09-2006, processo n.º 2321/06, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Conclui-se, pois, que a diligência em causa não enferma de qualquer nulidade.

3.2.Alega o arguido/recorrente que a sentença recorrida enferma do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, invocando também os artigos 412.º, n.º3 e 431.º. als. a) e b), do C.P.P., e bem assim o princípio da presunção de inocência.
No que concerne à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º, do C.P.P., que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º3 do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.
A situação prevista na alínea a), do artigo 431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta dos autos, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al. c) do artigo 431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P..
No que concerne à impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma, a reapreciação da prova faz-se dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
No recurso em apreço, o arguido/recorrente invoca o vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, al. a), do C.P.P.
Tal vício, como os restantes previstos na mesma disposição, é de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, tornando impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, cuja verificação há-de, necessariamente, como resulta do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo intrínseco à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento, nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
O artigo 410.º, n.º2, contempla mais dois vícios paara além da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).
Resulta da análise do recurso que o arguido/recorrente, em rigor, sob a invocação do vício do artigo 410.º, n.º2, al. a), insurge-se, também, contra a apreciação da prova efectuada pelo tribunal recorrido no quadro da sua livre apreciação.
Por outras palavras: sem deduzir impugnação ampla, pois nem no corpo da motivação, nem nas conclusões, cumpre o ónus de triplice especificação, o recorrente, ainda assim, pretende sindicar a convicção a que chegou o tribunal recorrido para fixar a matéria de facto provada.
As sentenças devem ser fundamentadas, em obediência ao artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, estando, no caso das sentenças penais, subordinadas às exigências do artigo 374.º do C.P.P., exigindo-se, além do mais, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto (que, naturalmente, hão-se ser seleccionados de entre os factos provados e não provados) e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A fundamentação visa permitir a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial e não promover, necessariamente, o convencimento do destinatário da decisão quanto ao bem fundado dessas razões. Perante as provas cada pessoa formará a sua convicção. O que importa é que o julgador dê a conhecer, de forma clara e no quadro do que é razoável exigir, as razões da sua convicção, de forma que possam ser compreendidas, e não que logre convencer todos da sua razão, pois à convicção do tribunal sempre se contrapõem as convicções divergentes de outros sujeitos processuais.
Percebidas as razões do julgador, assiste aos sujeitos processuais, com recurso ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada. Aqui, porém, já se está em sede de impugnação da matéria de facto e não de qualquer vício da decisão.
No caso em análise, a fundamentação da decisão de faco presentada suscita reservas, quanto à sua suficiência e compatibilidade interna, como passaremos a explicitar.
No ponto de facto n.º1 diz-se que arguido e ofendida mantêm relação como se marido e mulher fossem há 33 anos, sendo que já mantinham relação amorosa oito anos antes da vivência conjugal.
Por outras palavras: uma relação de 41 anos, sendo que, nos últimos 33 anos, como se marido e mulher fossem.
Porém, no ponto 28 dos factos provados diz-se que arguido e ofendida, durante mais de 40 anos e até Novembro de 2018, viveram sobre o mesmo tecto em situação análoga à dos cônjuges.
Este facto manifestamente está em contradição com o ponto de facto n.º1: afinal, arguido e ofendida mantiveram relação como se marido e mulher fossem durante 33 anos ou durante mais de 40 anos?
No ponto de facto 50, por sua vez, refere-se “45” – presume-se que se pretendia dizer “45 anos”, pois a “45 anos de relacionamento” se refere o pedido de indemnização civil, além de que o  ponto de facto 52 refere-se a 45 anos de “clima de permanente terror”, enquanto a fls. 384, da motivação da decisão de facto, mencionam-se “cerca de 47 anos de maus tratos”.
Desnecessário é assinalar que existe incompatibilidade entre estes factos, de inegável relevância para caracterizar e dimensionar o ilícito.
Por outro lado, diz-se na fundamentação da decisão de facto que a ofendida/demandante civil foi casada duas vezes, para além de se mencionar um terceiro casamento, com o arguido, que o tribunal deu como não provado, não tendo cuidado de averiguar a situação como claramente estava ao seu alcance.
Inclusivamente, nas sínteses das declarações de arguido e ofendida, constantes da motivação, diz-se que quando aqueles iniciaram a sua relação, ambos estavam casados com terceiras pessoas e que,  mais tarde, a ofendida contraiu novo matrimónio, referindo-se esta ao reatamento da relação “após o falecimento do seu segundo marido”. Escreve-se, até, na síntese das declarações do arguido, que o marido da ofendida faleceu “cerca de quatro anos após o casamento, altura em que o arguido já havia terminado o seu casamento”.
Ora, não se esclarece na decisão de facto a sequência temporal dessas relações, o que não permite compreender como pode a ofendida ter mantido uma relação com o arguido em situação análoga à dos cônjuges, vivendo sob o mesmo tecto, durante 33 anos, mais de 40 anos (ponto de facto 28) ou mesmo 45 anos (quiçá 47) quando a motivação da decisão de facto aponta para uma relação descontínua, em função dos dois mencionados matrimónios. A menos que a ofendida estivesse, entretanto, casada com terceiros – dois casamentos - e ainda assim se mantivesse sempre a viver sob o mesmo tecto com o arguido e não com os sucessivos esposos…
Não se compreende…
Diz-se, ainda, no ponto de facto 5, que em data anterior a 2010, quando o casal residia na Damaia e, depois, na Amadora, o arguido agredia a vítima com um chicote e cabo de aço, sempre na residência do casal.
Mas se a relação do casal foi de 33 anos, mais de 40 anos ou 45 anos (quiçá cerca de 47!) conforme se diz em diferentes pontos da mesma decisão de facto (e da motivação), com a dificuldade de compreensão resultante das menções na motivação aos dois casamentos da ofendida e ao reatamento da relação após a morte do segundo marido – o que pressupõe, algures, uma ou mais descontinuidades na vida em comum -, dizer-se “em data anterior a 2010” remete-nos para um período de extensão desconhecida, sendo certo que não sabemos e nada se diz sobre em que altura arguido e ofendida viveram na Damaia e na Amadora. Além de que se refere, no ponto 3 dos factos provados, uma relação “pautada por agressões”, mas não se deu como provado, em XII, que fosse por mais de 30 vezes”, o que, tendo em vista as dúvidas quanto à temporalidade da relação sob o mesmo tecto, dificulta a percepção do que aconteceu, durante quanto tempo e com que regularidade.
No ponto de facto 17 refere-se o “bastão artesanal, apelidado como chicote”, dizendo-se que “era utilizado como arma de agressão à vítima”.
No ponto de facto 12 indicam-se os objectos apreendidos na sequência da busca domiciliária, onde não consta o dito “bastão artesanal”.
Nos pontos VII e IX dos factos não provados dá-se como não provado que o bastão – chicote tenha sido apreendido e haja sido construído pelo arguido.
E nada se diz, nos factos provados, quanto à apreensão do dito bastão/chicote.
Veja-se, ainda, o seguinte: no ponto de facto provado 8 o arguido surge empunhando “uma arma de características não apuradas mas parecida com um punhal”.
Ou seja: não se sabe o que era – não se apuraram as características -, mas assemelhava-se a um punhal.
Porém, no ponto de facto provado 38, referindo-se ao mesmo evento, diz-se que o arguido “de imediato empunhando um punhal na direcção da vítima”.
Pergunta-se: como é que o objecto, de características não apuradas, parecido com um punhal, transforma-se, na mesma decisão de facto, e agora sem dúvidas quanto ao que fosse, num “punhal”?
Estas observações ilustram o que entendemos configurar, além do referido vício de insuficiência da matéria de facto, o vício de contradição insanável previsto na alínea b) do artigo 410.º, n.º2.
Vícios que, não tendo sido deduzida impugnação ampla da decisão de facto, não temos como suprir.
Não podemos deixar de observar que também do ponto de vista das exigências de motivação da convicção, a sentença recorrida não é inteiramente satisfatória.
Realmente, o tribunal recorrido apresenta súmulas extensas das declarações e depoimentos prestados.
A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo.
No que concerne às declarações do arguido, a motivação assinala que este prestou declarações “de forma emotiva (i.e. o arguido chorou), denotando revolta pelos factos imputados e com os quais não se conforma e neles não se revê”.
Em contraste, referindo-se às declarações da ofendida/demandante civil, diz-se na motivação que “prestou declarações algo hesitantes, pouco circunstanciadas no tempo e no espaço e manifestando um certo afastamento emocional dos factos”.
Para além da matéria atinente ao dia 15/11/2018, ninguém parece saber do que se passou nos anos anteriores, para além da testemunha APCampos Soares, filho da ofendida, referindo-se, aparentemente (?), ao tempo em que residiu com o casal – diz-se na motivação, a dado passo, que até à idade adulta (22 anos), constando ter 46 anos à data em que prestou depoimento, sendo certo que na motivação da decisão de facto, noutro passo, diz-se que a mesma testemunha residiu com o casal e começou a  trabalhar a partir dos 17 anos, granjeando alguma independência económica. Fica-se na dúvida sobre se a testemunha, afinal, depôs sobre factos do seu conhecimento que terão ocorrido há mais de 22 ou 27 anos atrás.
Afigura-se-nos, pois, que a fundamentação da decisão de facto, cuidando de descrever o teor de declarações e depoimentos, claudica na fundamentação da convicção quanto aos factos anteriores a 15/11/2018, não explicando satisfatoriamente por que razão as declarações da ofendida, “algo hesitantes, pouco circunstanciadas no tempo e no espaço e manifestando um certo afastamento emocional dos factos”, lograram convencer o tribunal da sua veracidade.
Posto isto, conclui-se que a sentença recorrida enferma dos apontados vícios decisórios, o que determina o reenvio dos autos para novo julgamento quanto à totalidade do objecto do processo, de harmonia com o disposto nos artigos 426.º, n.º1 e 426.ºA, do C.P.P., prejudicando o conhecimento das demais questões.

***

III–Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes da 5.ª Secção desta Relação de Lisboa em, por enfermar a sentença recorrida dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, alíneas a) e b), do C.P.P., determinar o reenvio dos autos para novo julgamento, de harmonia com o disposto nos artigos 426.º e 426.ºA do C.P.P.

Sem tributação


           
Lisboa, 7 de Setembro de 2021


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)                                 
(Maria José Machado)