VIOLAÇÃO AGRAVADA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
PENA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário


1 - Na impugnação da matéria de facto e tratando o recurso de uma mera questão de opinião ou plausibilidade devem permanecer intocados, os factos fixados em 1ª instância.
2 - A análise crítica da prova deve referir-se a grupos de factos com interligação entre si, no sentido de se perceber a razão por que o Tribunal decidiu em determinados termos.
3 - Não pode pois tornar-se numa tarefa hercúlea e irrazoável de tudo fundamentar, aos mais ínfimos pormenores, sob pena de nulidade.
4 - A nulidade por ausência de fundamentação refere-se pois à total ausência de fundamentação da decisão e não à sua eventual deficiência, num ou noutro pormenor.
5 - A falta de fundamentação de pequenos pormenores dos factos não tem qualquer relevância, quer ao nível da "revista alargada", quer da fundamentação e exame crítico da prova.
6 - Para um Pai que viola a filha menor por três vezes e se bem que já tenham ocorrido cerca de dez anos, a pena única de sete anos e quatro meses de prisão, só peca por benevolente.
7 - Tal como a indemnização cível por danos não patrimoniais e ocorrendo as sequelas psicológicas infelizmente comuns neste tipo de crimes, nunca deverá ser inferior a sessenta mil euros."

Texto Integral


1 – Relatório

Por Acórdão de 15 de Julho de 2 020, foi o arguido F. S. condenado, nos seguintes termos:

- um crime de violação agravada, p. e p. pelos arts.º 164º/1, a), 177º/1, a) e n.º 6), C.P.pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
- um crime de violação agravada, p. e p. pelos arts.º 164º/1, a), 177º/1, a), e n.º 5), C.P.pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de violação agravada, p. e p. pelos arts.º 164º/1, a), 177º/1, a) e n.ºm 5), C.P.pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
- foi ainda o arguido e demandado condenado a pagar a D. A., sua filha e ofendida, a quantia de 20 000€ (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais, com juros de mora, desde a data da decisão e até integral pagamento.

Discordando da decisão proferida, da mesma interpôs recurso o arguido F. S., apresentando no mesmo, as seguintes conclusões:

“1. O douto acórdão impugnado condenou o Recorrente pela prática de: um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts 164°, n° 1, al. a), e 177°, n° 1, ai. a), e n° 6, do GP, na pena (parcelar) de 5 (cinco) anos e dois (dois) meses de prisão; um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts, 164°, n°1, al. a), e 177 n° 1, ai. a), e n° 5, do GP, na pena (parcelar) de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; e um crime de violação agravado, p. e à data da prática dos factos, pelos arts. 164°, no 1.aLa),e177°,n°1,al. a),e n°5, do Q, na pena (parcelar) de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
2. Em cúmulo jurídico de penas de prisão, condenou o Recorrente na pena única de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
3. Condenou-o, ainda, a pagar a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros), por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a decisão até integral pagamento, à Assistente D. A..
4. Entre outros, o Tribunal recorrido considerou provados os factos 4, 9, 10, 11, 14, 19,22,23e24.
5. Tais factos não estão assentes na prova produzida em audiência de julgamento e, por isso, incorreu o Tribunal num erro de apreciação da prova.
6. Em momento algum é referido pela Assistente ou resulta de qualquer outra prova produzida em audiência de julgamento a razão da sua ausência de S. S. descrita no facto provado 4, sendo que a fundamentação do douto acórdão é completamente omissa quanto aos elementos de prova em que se baseia este facto.
7. Sem prejuízo disso, o Tribunal deu como provado que, nesse dia, não concretamente apurado, S. S. teria saído de casa para trabalhar.
8. Deve, por isso, ser o facto provado 4 alterado e do mesmo deixar de constar o motivo de ausência de S. S., porque assim o impõe as declarações da Assistente acima transcritas a partir da respetiva gravação.
9. Também não resulta das declarações da Assistente ou de qualquer outra prova produzida que nas situações de dezembro de 2008 e a segunda situação do ano de 2009 o Recorrente, tenha ejaculado no decurso da relação sexual.
10. É, aliás, referido pela Assistente não saber se houve ejaculação ou não.
11. Independentemente disso, o Tribunal dá como provado que ocorreu ejaculação, mesmo contra as declarações da Assistente.
12. Por esta razão, devem os factos provados 11 e 23 ser alterados e dos mesmos deixar de constar que o Arguido ejaculou, porque assim o impõem as declarações da Assistente, acima transcritas.
13. Nos factos provados 14 e 24, o Tribunal de primeira instância dá como provado que o
Recorrente obrigou a Assistente a tomar a pilula do dia seguinte.
14. Mais uma vez, tal conclusão está despida de prova, na medida em que a Assistente — cujas declarações, mais uma vez, são o único elemento de prova existente a tal respeito — disse desconhecer que comprimido lhe terá sido entregue pelo Recorrente.
15. Razão pela qual, devem os factos provados 14 e 24 ser alterados e dos mesmos deixar de constar que o Recorrente obrigou a Assistente a tomar a pilula do dia seguinte, porque assim o impõem as declarações da Assistente, acima transcritas a partir das respetivas gravações.
16. O facto provado 19 deve, também, ser alterado, uma vez que, nunca foi referido pela
Assistente a houve “introdução do pénis na vagina daquela”.
17. Não tendo a Assistente referido tal acontecimento nem tendo sido questionada quando a ele, não pode este constar dos factos provados, porque assim o impõem as declarações da Assistente.
18. O Tribunal incorreu em erro ao considerar provados os factos supra transcritos que estão assentes em meras considerações que não permite nem consente as ilações que, a partir dela, retirou.
19. As conclusões do Tribunal estão fundamentadas em meras associações injustificadas.
20. Incorreu, em suma, o Tribunal num erro notório de apreciação na prova, violando os limites impostos ao artigo 127° do Código de Processo Penal, o que determina a anulação do decidido em sede de matéria de facto provada, para, sem necessidade de reenvio do processo e por mero efeito do princípio in dubío pro reo considerar não provados os excertos supra transcritos dos pontos 4, 11, 14, 19, 23 e 24 do douto acórdão.
21. O Tribunal incorreu no vício de nulidade ao considerar provados os factos 9, 10, 11, 19, 22 e 23 que deram origem à decisão de condenação, sem que os mesmos estejam fundamentados.
22. Tal falta completa de fundamentação implica a nulidade prevista nos artigos 379 n° 1 alínea a) e 374, n°2 do Código de Processo Penal.
23. Eliminando dos factos provados, como se propugna, os segmentos que ficaram assinalados quantos aos factos descritos nos números 9, 10, 11,19, 22 e 23, o que deles resta não permite considerar preenchido os requisitos típicos do crime de violação p. e p. pelo artigo 164° do Código Penal.
24. Tais factos integrariam, no limite, o crime de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163° do Código Penal.
25. A violação é um crime de execução vinculada: tem que ser cometido por meio de violência, ameaça grave ou ato que coloque a vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir.
26. A parte restante dos factos atinentes, não descreve a violência (n°s 9, 10, 11, 22 e 23) nem a cópula (n° 19).
27. Assim sendo, o Recorrente não poderia ter sido, como foi, condenado pela autoria material do crime previsto no artigo 164° do Código Penal..
28. O Recorrente impugna, pelas razões que expressou, a pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão adstrita ao crime de violação agravada, que sustenta não corresponder ao melhor enquadramento do caso (segunda situação relatada no douto acórdão).
29.E defende que, pelo diverso crime de coação sexual, não deve sofrer pena superior a dois anos.
30. A merecer provimento, como se espera, esta modificação do substrato em que assenta o cálculo da moldura penal, ela balizar-se-á, nos termos do artigo 77°n°2 do Código Penal, com as respetívas agravantes, entre o mínimo de 1 (um) ano e 6 (meses) e o máximo 12 (doze) anos.
31. Ponderando a conduta do arguido à luz dos critérios legais de fixação da pena concreta, nos exatos termos em que a pondera e aplica o douto acórdão em mérito (que numa moldura penal de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão aplica 4 anos e 6 meses de pena), não deverá ser-lhe imposta uma pena não superior a 2 (dois) anos pelo crime de coação sexual (em que a moldura penal é de 1 ano e 3 meses a 10 anos e 6 meses de prisão).
32. Na ponderação da medida das penas aplicadas, o Tribunal de primeira instância considerou que o grau de ilicitude do Recorrente é elevado e para o justificar, entre outros, utiliza o facto de o arguido, ter ejaculado e ter dado à Assistente a pílula do dia seguinte.
33. Tais factos não podem ser valorados na ponderação da medida da pena.
34. O Tribunal não considerou e deveria ter considerado na medida das penas aplicadas que tais condutas ocorreram há mais de dez anos e que desde 2018 que o Recorrente não tem qualquer contacto com a Assistente, nunca a tendo procurado.
35. Além disso, o Recorrente não tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.
36. Conforme consta do relatório social junto aos autos, o Arguido sempre foi uma pessoa trabalhadora e inserida socialmente.
37. O cumprimento de uma pena de prisão, mais de dez após os factos, não contribuirá para uma interiorização do desvalor da conduta, mas sim, para um completo desligar da vida em sociedade.
38. O Recorrente tem 49 anos, apresentar uma trajetória de vida estável e conta com o apoio constante da sua família
39. Sempre se dirá que o cúmulo jurídico aplicado ao Recorrente é elevado.
40. Seguindo os elementos enunciados, a pena única adequada ao concurso dos crimes punidos, não deve exceder os cinco anos, cuja execução deve ser suspensa, nos termos aplicáveis do artigo 50º n° 1 do Código Penal, por se verificarem todas as finalidades da punição.
41. O Tribunal a quo condenou, ainda, o Recorrente a pagar à Assistente D. A. a quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a decisão até integral pagamento.
42. O valor de indemnização atribuído à Assistente é manifestamente elevado.
43. Tal valor deve obedecer a critérios de equidade e proporcionalidade.
44. É certo que a compensação por danos não patrimoniais deve constituir uma efetiva possibilidade compensatória que tem que ser significativa.
45. No entanto, tem também que ser adequada às condições económico-financeiras do Arguido e realista.
46. Face às condições económico-financeiras do Recorrente, que constam do douto acórdão, é impossível que este consiga pagar o valor da indemnização a que foi condenado.

O M.P. apresentou contra-alegações. Nas mesmas, refere em síntese, que os factos foram todos corretamente fixados, a fundamentação da matéria de facto é lógica e racional, os crimes foram corretamente imputados e que as penas parcelares e única foram doseadas de forma justa. Sustenta pois que deve ser negado provimento ao recurso do arguido, devendo assim manter-se na íntegra a decisão recorrida.
Contra-alegou também a assistente D. A., para quem os factos não devem ser alterados, o Acórdão está devidamente fundamentado nomeadamente com a necessária análise crítica da prova, os crimes imputados devem permanecer, as penas foram corretamente aplicadas e a indemnização cível atribuída é reduzida e desproporcional, pelo que apresentou recurso subordinado que foi admitido. Considera pois, que o recurso do arguido deve ser declarado improcedente, na íntegra.
No referido recurso subordinado, a assistente considera dever ser ressarcida pelas graves sequelas psicológicas que ficaram, no montante de 85 000€ (oitenta e cinco mil euros), quantia que considera ajustada ou se assim não se entender, em quantia não inferior a 60 000€ (sessenta mil euros).
O arguido contra-alegou também, no recurso subordinado interposto. Considera que a sua situação económica e financeira não lhe permite pagar, sequer 20 000€ (vinte mil euros), afirmando também que a Jurisprudência tem atribuído quantias inferiores. Defende assim, a improcedência do recurso subordinado.
neste Tribunal, teve vista neste Proc.º o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, que remeteu para as contra-alegações do M.P. e da assistente, em 1ª instância. Justificou ainda não se estar perante caso a que seja aplicável o princípio “in dúbio pro réo”, não ocorrer “erro notório” na apreciação da prova, nem ocorrer qualquer nulidade por falta de fundamentação. Considera pois, que o recurso do arguido deve ser julgado improcedente.
Notificado nos termos do art.º 417º/2 C.P.P., respondeu o arguido reiterando o anteriormente referido por si.
Os autos vão ser julgados em conferência, como o impõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentos

Para melhor concretização das questões em causa nos autos, transcrever-se-á de seguida, a decisão final proferida:

“1. RELATÓRIO 1

1.1. Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo, contra:
F. S., nascido em -.12.1971, casado, portador do C.C. n.º ……, filho de … e de …, natural de ..., residente na Rua …, n.º …, em Esposende, imputando-lhe factos susceptíveis de o constituírem como autor da prática, em concurso real, de:

- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 7, do CP;
- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do C.P.
- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelosarts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP; e
- um crime de coacção agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 163.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP.
1.2. D. A. veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido F. S., pedindo a condenação deste pagar-lhe a quantia de 85.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

*
1.3. Pelo despacho de 20.03.2020 foi saneado o processo, recebida a acusação pública e definido o estatuto processual do arguido. Foi ainda recebido o pedido de indemnização civil.
1.4. O arguido, devidamente notificado, veio apresentar rol de testemunhas. *
1.5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
1.6. O processo continua isento de nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer e obstem à apreciação do mérito da causa.
* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1.1. Julgamos provados os seguintes factos:

A. Da acusação pública

1.D. A., nascida em -.04.1995, é filha do arguido F. S. e de S. S..
2. No ano de 2008, o arguido F. S. estava emigrado em França e D. A. residia com a sua mãe, S. S., e os seus irmãos mais novos, S. e AF., na habitação sita na Rua ..., em Esposende.
3. No mês de Dezembro de 2008, o arguido F. S. regressou a Portugal para passar o Natal com a mulher (S. S.) e os seus três filhos, na residência referida.
4. Em dia não concretamente apurado, posterior ao seu regresso e anterior ao dia 24.12.2008, pela manhã, S. S. saiu para o trabalho, enquanto a D. A., à data, com 13 anos, ficou em casa com o arguido F. S., a cuidar dos seus irmãos S., com 2 anos de idade, e AF., com 3 meses.
5. Enquanto o arguido F. S. se encontrava deitado no seu quarto, a D. A. entrou naquela divisão, a pedido da sua mãe, para dar um biberão de leite ao AF., que ali dormia num berço.
6. Assim que terminou e quando se preparava para sair do quarto, o arguido F. S. chamou pela D. A., pedindo-lhe que se deitasse consigo na cama, o que aquela recusou, tendo ido dormir para o quarto dela.
7. Quando a D. A. já se encontrava a dormir (no seu quarto), o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da mesma, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais.
8. Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. dirigiu-se ao quarto da sua filha, removeu a roupa da cama e deitou-se em cima da D. A., que, de imediato, acordou assustada, tentando logo afastar-se dele, empurrando-o para o chão e levantando-se para sair dali.
9. Para a impedir de fugir, o arguido F. S. agarrou-a pelos braços e começou a puxar-lhe as calças de pijama e as cuecas que ela tinha vestidas, deixando-a semi-nua, ao mesmo tempo que a empurrava para o chão, onde aquela acabou por cair, obrigando-a a permanecer deitada de costas no solo.
10. Perante a resistência oferecida pela sua filha D. A., que chorava e pedia para que a deixasse, o arguido F. S., para a manietar, deitou-se em cima dela, colocou-lhe uma das mãos sobre a boca e, de seguida, afastou-lhe as pernas, apesar dos pedidos desta para que não lhe fizesse mal.
11. O arguido, ignorando os apelos da sua filha D. A. e contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada no chão com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina da ofendida, friccionando-o até ejacular.
12. Durante esse período de tempo, por várias vezes, a D. A. tentou libertar-se do arguido a gritar, mas foi sempre impedida por este.
13. No final, o chão, que ficou sujo com sangue, foi limpo.
14. Após, o arguido F. S. dirigiu-se a uma farmácia onde comprou a pílula do dia seguinte, a qual entregou à sua filha, obrigando-a a tomar na sua presença e dizendo-lhe “não podes contar a ninguém o que se passou, porque senão ficas sem família, ninguém vai gostar de ti pelo que fizeste, tu é que tens a culpa, és uma puta”, o que a menor fez por ter ficado com medo.
15. Em Janeiro de 2009, o arguido F. S. voltou para França.
16. O arguido regressou a Portugal, no início do mês de Agosto de 2009, para passar férias com a sua família, na habitação referida supra.
17. Em dia não concretamente apurado, mas situado no início do mês de Agosto de 2009, de manhã, quando a sua esposa não estava em casa, o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da D. A., à data, com 14 anos, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais.
18. Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. entrou no quarto da D. A., aproximou-se daquela, que estava a dormir, deitou-se em cima dela, afastando-lhe as pernas e tentando introduzir o seu pénis na vagina.
19. Nessa altura, a D. A. acordou e, apercebendo-se do que o arguido se preparava para fazer, tentou afastá-lo e pediu-lhe que a deixasse, mas o arguido F. S. ignorou-a e, contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada na cama com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o.
20. Volvidos alguns dias, em dia não concretamente apurado, mas ainda situado no mês de Agosto de 2009, da parte da manhã, quando a sua esposa não estava em casa, o arguido F. S. decidiu abordar a D. A., enquanto esta se encontrava na sala, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, mais uma vez, manterem relações sexuais.
21. Nas referidas circunstâncias, o arguido F. S., que tinha apenas uns boxers colocados, sentou-se no sofá ao lado da D. A., acariciou-lhe o cabelo e, de seguida, agarrou-a, puxando o corpo dela de encontro ao seu, enquanto a mesma se debatia para se libertar.
22. Perante a resistência oferecida pela D. A., o arguido F. S. voltou-a de costas, empurrou-a para o chão e colocou-lhe um dos braços em volta do pescoço para a manietar, conseguindo, deste modo, retirar-lhe a roupa que a mesma tinha, deixando-a nua da cintura para baixo.
23. De seguida, mantendo a D. A. de costas voltadas e com um braço a segurar-lhe o pescoço, para a impedir de se libertar, colocou-a de joelhos, abriu-lhe as pernas e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o até ejacular.
24. No final, o arguido F. S. deu-lhe a pílula do dia seguinte, que a obrigou a tomar na sua presença, enquanto lhe dizia: “vês o que me fazes, não podes contar a ninguém, ficas sem família”.
25. O arguido F. S., ao proceder nos termos supra descritos, agiu sempre de vontade livre e consciente, com o propósito alcançado de, usando da sua força física e violência, e colocando-a na impossibilidade de resistir, manter relações e actos sexuais com a D. A., contra a vontade desta, para satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente à oposição que a mesma manifestava à prática de tais actos.
26. Não ignorava o arguido que a pessoa com quem manteve e que consigo obrigou a manter contacto de natureza sexual era sua filha, era menor de idade e que os comportamentos que prosseguiu eram atentatórios da sua liberdade e autodeterminação
sexual.
27. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser proibida e punida a sua conduta por lei como crime.

B. Do pedido de indemnização civil

28. D. A., desde os primeiros dos actos descritos, passou a viver momentos de terror, aflição e desespero sempre que o seu pai regressava a Portugal.
29. Ficava apavorada sempre que se encontrava sozinha com o seu pai em casa, refugiando-se em qualquer compartimento da casa onde não estivesse o seu progenitor.
30. Passou horas, dias, meses de enorme tristeza e desgosto, chorando compulsivamente na solidão do seu quarto.
31. Com receio de contar à sua mãe o ocorrido.
32. A demandante é, hoje, uma pessoa triste e traumatizada, que jamais esquecerá os abusos de que foi vítima.
33. Necessita de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para lidar, dentro do expectável, com tais episódios que permanecem presentes na sua memória, que a perturba e que a irão acompanhar durante toda a sua vida.
34. O arguido sabia que, com o seu comportamento, perturbaria a alegria e a felicidade da filha D. A., e prejudicava gravemente o seu desenvolvimento físico e psíquico.
35. D. A. ficou afectada, com o comportamento do arguido, no seu crescimento, na estabilidade emocional e na sua personalidade.
36. Ficou ofendida na sua honra, no seu bom nome, na sua paz, na sua tranquilidade, e na sua liberdade e autodeterminação sexual.
37. Tais actos causaram-lhe traumas, medos e inquietações, ficando receosa de que voltasse a ocorrer.
38.A demandante sentiu-se profundamente perturbada, magoada, desconsiderada, desgostosa e humilhada com os actos praticados pelo arguido.
39. O arguido agiu indiferente às repercussões dos danos físicos e psíquicos que iria provocar sobre a mesma.
40. Antes, D. A. era uma pessoa alegre, tranquila, sociável, bem-disposta, carinhosa e afável.
41. Depois, passou a demonstrar frequentemente comportamentos inquietos, nervosos e de inconformismo.
42. Passou a ser uma pessoa traumatizada, triste, abalada, pesarosa, revoltada, complexada.
43. Passou a demonstrar comportamentos emocionalmente instáveis.
44. Chegou mesmo, por vezes, a urinar na cama.
45. Os factos foram recentemente conhecidos pela família materna, deixando-a apreensiva e envergonhada.

C. Da situação pessoal e de vida do arguido

46. O arguido F. S. nasceu em -.12.1971.
47. F. S., oriundo de ..., é parte integrante de um conjunto de nove filhos, de um casal de modesta condição social, cuja dinâmica familiar foi caracterizada como funcionalmente organizada, afetuosa e equilibrada, com preocupação na transmissão aos descendentes de um modelo educativo conforme os valores socialmente aceites. Cabia essencialmente à progenitora, doméstica, a gestão do quotidiano dos filhos, assumindo o progenitor, cozinheiro numa unidade hoteleira da região, um papel de rigor no cumprimento de regras e limites.
48. Frequentou o estabelecimento de ensino da área de residência (M.) até ao 4º ano de escolaridade e, simultaneamente, ajudava a progenitora na agricultura e no pastoreio dos animais.
49. Iniciou informalmente o seu percurso laboral aos 14 anos como operário na construção civil, atividade que sempre exerceu de forma regular. Em 2006, decidiu emigrar para França, com o objetivo de liquidar um empréstimo bancário contraído para a construção de uma casa, na altura, morada de família, sita na Rua …, nº …, M..
50. Ao nível familiar, o arguido constituiu agregado próprio em 1994, sendo pai de três filhos. Refere-se ao casamento como tendo sido uma relação estável e solidária.
51. O casal residiu desde o matrimónio, quando em Portugal, na morada de família situada em local tranquilo, de características rurais, predominando entre os vizinhos relações de proximidade.
52. Os seus tempos livres eram passados em família ou convívio com amigos e conhecidos da freguesia onde sempre viveu.
53. Ao longo da sua trajetória de vida familiar adotou rotinas orientadas em função do trabalho e do agregado constituído, bem como frequência de locais públicos onde confraternizava com conhecidos, vizinhos e amigos, e onde refere deter uma imagem positiva.
54. À data dos factos, o arguido exercia atividade como operário na construção civil em França, dispunha de enquadramento familiar, composto pelo cônjuge e os três filhos, a quem visitava quando vinha a Portugal.
55. Em 2012, o cônjuge e os três filhos acompanharam o arguido para França, onde passaram a residir em P. em apartamento arrendado.
56. A rutura matrimonial ocorreu em 2016, mas o casal optou por manter a coabitação até 2018, altura em que o ambiente familiar se tornou tenso e violento entre o casal, com repercussões nos filhos que com eles residiam.
57. A sentença relativa ao divórcio do casal é esperada para Julho de 2020.
58. Atualmente, F. S. reside sozinho em …, em apartamento arrendado, do seu patrão, situado numa localidade a cerca de 30 Km de P..
59. F. S. não estabelece contacto com os filhos desde a data da separação definitiva, em 2018.
60. O poder paternal dos dois filhos mais novos, atualmente com 17 e 11 anos
de idade, está atribuído à progenitora, cabendo ao arguido o pagamento da prestação de alimentos no valor mensal de 115,00 € para cada um dos menores.
61. F. S. regressa a Portugal durante as suas férias, preferencialmente nas férias de Verão e Natal, visita o seu agregado familiar de origem, progenitora e irmãos, com quem estabelece uma relação de proximidade afetiva.
62. O arguido encontra-se profissionalmente ativo como operário na construção civil. Aufere um salário de 2.000,00 € mensais, valor em que alicerça as suas despesas fixas mensais, nomeadamente o pagamento da renda de casa em França (400,00 € onde se inclui as despesas com água, luz e gás) e a amortização da prestação bancária para aquisição da habitação em Portugal (500,00 €).
63. O seu quotidiano é principalmente ocupado com o exercício da sua profissão, e nos seus tempos livres frequenta espaços públicos, onde convive com colegas de trabalho e amigos.
64. A existência dos presentes autos não é do conhecimento público na localidade de residência do arguido, em Portugal.
65. O grupo de elementos que deles tem conhecimento, essencialmente os familiares próximos, mostram-se surpreendidos e consternados, sem demonstrar hostilidade ou desconsideração pelo arguido.
66. Actualmente existe distanciamento e rutura do arguido com o ainda cônjuge, filhos e os familiares da família materna.
67. F. S. mostra-se preocupado pelas consequências da divulgação do processo em que se encontra implicado.
68. Quando confrontado, em abstrato, com situações passíveis de integrar a tipologia de crime subjacente aos presentes autos, o arguido mostra-se conhecedor da ilicitude, adotando um discurso socialmente expectável, embora evidenciando dificuldades em expressar o impacto e os danos causados a vitimas/ofendidos.

D. Dos antecedentes criminais

69. O arguido tem antecedentes criminais:
a. Pela prática, em 08.2018, de um crime de detenção de arma proibida e um crime de ameaça, tendo sido condenado, por sentença, de 4.04.2019, transitada em julgado em 20.05.2019, numa pena única de multa (280 dias à taxa diária de 7 €), declarada, entretanto, extinta pelo pagamento.
*
2.1.2. Julgamos não provados os seguintes factos.

a. O arguido despiu-se antes da remoção da roupa da cama aludido em 8.
b. O arguido obrigou D. A. a limpar o chão.
c. O arguido obrigou D. A. a lavar-se para que não ficassem nela quaisquer vestígios das relações sexuais que tinham mantido.
d. Aquando dos factos de Agosto de 2009, a esposa do arguido tinha saído para o emprego.
e. No momento referido em 18., o arguido retirou os boxers e baixou a D. A. as cuecas.
f. No momento referido em 19., o arguido ejaculou.
g. No momento referido em 20., D. A. estava a ver televisão.
h. Aquando o descrito em 21., o arguido, ao mesmo tempo, beijava-a nos lábios e baixava-lhe os calções e as cuecas.
i. Nas férias de Verão de 2010, em dia não concretamente apurado, mas situado no mês de Agosto de 2010, durante a manhã, assim que a sua esposa se ausentou de casa, o arguido F. S. entrou várias vezes no quarto da D. A., à data, com 15 anos, e depois de se despir, ficando nu, aproximou-se da menor, retirou-lhe as cuecas e deitou-se em cima dela, beijando-lhe a boca, ao mesmo tempo que esfregava o pénis na vagina daquela, que se debatia sempre para se libertar.
j. A demandante, devido à acção do arguido, chegou a ponderar pôr termo à vida (suicidar-se).
k. É uma pessoa sem alegria de viver.
l.
depressiva.
Deixou de ter (sempre) sonos tranquilos e evidencia sintomatologia

2.1.3. Fundamentação

2.1.3.1. A convicção do tribunal baseou-se na ponderação e análise, à luz das
regras da experiência, do conjunto da prova produzida, devidamente conjugada entre si, nos seguintes termos:
A prova produzida em audiência de julgamento subsume-se – no seu essencial – a prova documental, a prova pericial, a prova testemunhal e por declarações, nomeadamente, do arguido e da assistente.
O valor da prova testemunhal e por declarações, a sua relevância, depende fundamentalmente da sua credibilidade, da sua idoneidade e autenticidade.
A apreciação de tal prova – actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e do princípio da livre convicção – tendo em vista a carga subjectiva inerente, não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova – com os quais deve ser confrontada e criticamente analisada –, sendo que todos os meios de prova, como toda a prova (indiciária) de qualquer outra natureza, podem e devem ser objecto de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras da experiência2.
A actividade probatória – nas palavras de Santos Cabral3 – é constituída pelo complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência, ou inexistência, de uma determinada situação factual. Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação directa dos factos ocorridos e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras daexperiência nos ensinam poder inferir. É, pois, clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta, ou indiciária, se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova (v.g., uma coisa é ver homicídio e outra encontrar o suspeito com a arma do crime).

2 Neste sentido, vide o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9.02.2012, Proc. 4328/09.6TBBRG-B.G1, www.dgsi.pt; e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.10.2010, Proc. 72/08.0GTSRT.C1, www.dgsi.pt.
3 “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Julgar, N.º 17, 2012, p. 13.

A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios. Os indícios podem referir-se à integração dos elementos materiais do tipo legal (indicio do delito) ou à autoria material do crime. Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal4. Na lição, a este respeito, de Santos Cabral5, temos que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento6.

4 EUCLIDES DÂMASO SIMÕES, “Prova Indiciária”, Julgar, N.º 2, 2007, p. 205. A força da prova indiciária prende-se com a certeza do indício, a força do raciocínio inferencial, o grau de probabilidade da inferência efectuada e a gravidade da presunção resultante. De todos esses factores há-de resultar a certeza possível num processo judicial, certeza que deverá ultrapassar a dúvida razoável. Assim, SANTOS CABRAL “Notas breves sobre prova indiciária”, Revista do CEJ, 2019 – II, p. 69.
5 “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Julgar, N.º 17, 2012, p. 13 e ss., em especial, p. 21 e ss.
6 Daí que, segundo SUSANA AIRES DE SOUSA (“Prova Indirecta e Fundamentação da Decisão”, RPCC, Ano 29, N.º 2, 2019, p. 407-8), estando em causa prova indirecta de um facto, deve o tribunal:
i. Fundar em prova directa os factos que constituem a base da presunção de modo a que eles possam suportar a regra da experiência de que resulta a presunção;
ii. Descrever a regra da experiência que permite relacionar o facto presumido ao facto indício, identificando a regra da normalidade (ou de probabilidade) pressuposta pelo juízo de inferência.
iii. Por fim, comprovar que os (factos) indícios provados no caso concreto são subsumíveis naquela regra geral (enquanto “critério generalizante e tipificante de inferência factual”), afirmam a regra geral, não havendo outras circunstâncias que afastem aquela subsunção.

No exame crítico da prova indirecta, tribunal está obrigado a considerar a concreta ausência de contra-indícios, isto é, de outros factos que permitem explicar causalmente o facto que se pretende provar; factos estes que fazer aumentar o grau de dúvida sobre a prova do facto e diminuem a aptidão probatória do facto indiciante.
Nestes termos, de seguida, tendo presente toda a prova (directa e indirecta ou indiciária) produzida em audiência de julgamento, apreciaremos os diversos factos descritos no despacho de acusação (que constituiu, com a contestação, o objecto do processo), tomando posição sobre se os mesmos se provaram (ou não), em função da conjugação crítica de todos os elementos de prova recolhidos nos autos e analisados em audiência de julgamento.
Após, apreciaremos a restante matéria de facto como seja a do pedido de indemnização civil, das condições pessoais, profissionais, sociais e de vida do arguido e seus antecedentes criminais, realizando, em conformidade com a provada produzida em audiência de julgamento, que analisaremos de forma crítica e conjugada entre si, um juízo probatório positivo ou negativo, consoante concluamos no sentido de tal factualidade tenha ficado demonstrada ou não.
2.1.3.2. Do arguido e da vítima
A fls. 250 dos autos consta o assento de nascimento de D. A., nascida a -.04.1995 (matéria que julgamos como provada).
De tal assento de nascimento resulta que a mesma é filha do arguido F. S. e de S. S. (o que consideramos em conformidade, tendo presente que o arguido é pai de D. A.).
O arguido, a assistente D. A. e a testemunha S. S. (mãe de D. A. e ainda mulher do arguido – estão em processo de divórcio), ouvidos em audiência de julgamento, confirmaram isso mesmo.
Essa matéria de facto foi, assim, julgada como provada.
O arguido mais confirmou que, em 2008, estava emigrado em França. Nesse período, D. A. residia com a sua mãe, S. S., e os seus irmãos mais novos, S. e AF., na habitação sita na Rua ..., em Esposende.
D. A., nas suas declarações, confirmou também isso mesmo. Do mesmo modo, para além de outros depoimentos, S. S. o referiu nestes precisos termos.
Julgamos, nestes autos, tal matéria de facto que consta da acusação como provada.

2.1.3.3. Dos factos de Dezembro de 2008

O arguido, nas suas declarações, confirmou que, estando a trabalhar em França, no mês de Dezembro de 2008, e até ao início de Janeiro de 2009, esteve em Portugal, onde veio passar o Natal com a família.
O arguido negou, porém, que, nesse período, tenha praticado os actos descritos na acusação.
Instado a explicar, então, a razão de ser de tais acusações, fundamentadas nas declarações da sua filha D. A., o mesmo enquadra isso em vingança (da filha) por a ter colocado fora de casa (episódio que contou e enquadrou, referindo que se tivesse praticado os actos em causa teria medo da filha, que o denunciasse, pelo que nunca teria feito isso) e numa “jogada” entre elas, ou seja, segundo o mesmo, entre a sogra, a mulher (mãe da D. A. e sua ainda mulher – estão em vias de divórcio) e tia (da D. A.) para o prejudicar, referido que a mulher quer ficar com a casa.
Não deixou o arguido, nesse âmbito, de, espontaneamente, dizer que a filha tinha um comportamento muito mau na escola, no ciclo… começou a levar os colegas para casa, metia os colegas em casa (disse).
E referiu-se mesmo ao facto de a filha, quando tirou um curso em Viana (do Castelo), quando teria 15 anos, passou um homem lá, que passou a mão nela (apalpou-a, esclareceu), quando andava nesse curso cheio de outras colegas (querendo assim dizer que foi o seu comportamento que despoletou tal situação).
A este respeito, ainda disse o arguido que levou os filhos e mulher para a França (o que ocorreu em 2011), quando a filha “era conhecida por putinha” (na localidade onde moram). Tinha um mau comportamento (repetiu). Por essa altura, D. A. tinha cerca de 16 anos (nasceu em - de Abril de 1995).
Sobre os factos, ouvimos a vítima dos mesmos, a assistente D. A., actualmente com 25 anos, filha do arguido. Relatou, com grande rigor e precisão, claramente refletindo o grande sofrimento porque passou, e com recurso à memória de um tempo já com quase 11 e 12 anos, respectivamente.
Sobre o ocorrido em Dezembro de 2008, D. A., referindo-se aos factos de que foi vítima, explicou que, na 1ª vez, tinha 13 anos. Foi nas férias de Natal, antes do Natal, o pai tinha vindo de França. A mãe não estava em casa. Trabalhava numa confeição têxtil, saiu cedo de casa. Ela tomava conta dos 2 irmãos.
Relatou que o irmão, que dormia no quarto dos pais, acordou. Foi-lhe dar um biberão. O pai estava a dormir. Depois do biberão, que deu no quarto, o pai pediu que se deitasse ali com ele e ela disse não e foi para o seu quarto.
Depois – relatou – acordei com o meu pai em cima de si. Inicialmente (recordou) não estava a perceber, ele estava a esfregar-se, sempre em cima de mim. Pedia para não fazer barulho.
Mais descreveu como estavam vestidos (segundo o que se lembra), as circunstâncias que se seguiram, ficou de costas no chão, lembra-se de ter pedido para parar, mas ele continuou, relatou que teve dor, muita dor. Mais recordou: eu nem estava a acreditar, chorei.
No final, relatou, lembra-se de olhar para o chão, havia sangue, o pai foi à casa de banho e veio com uma esfregona, tendo sido limpo o chão.
Depois saíram de casa, fomos de carro, lembro-me de conhecer lugar onde foram de ir à feira de Barcelos. Em casa, o pai deu-lhe um comprimido. Disse-lhe para não dizer a ninguém, que ia ficar sem família, a culpa ia ser “minha”, ia para a rua, era uma puta. Relatou que ficou com medo. Pensou, na altura, que a minha família não ia acreditar em si.
E explicou que não contou esses factos a ninguém até 2018, referindo, para além do mais, que sempre teve receio de como a mãe ia reagir.
As declarações de D. A. acabadas de descrever nos seus pontos essenciais, num relato de grande sofrimento, foram, quanto a nós, absolutamente espontâneas e consistentes.
Na ficamos com qualquer dúvida acerca da verdade relatada pela vítima dos factos D. A.. Os factos ocorreram e ficamos convencidos disso mesmo.
A circunstância de estarmos perante factos praticados em 2008, quanto a vítima tinha 13 anos de idade, relatados por pessoa que, neste momento, já tem 25 anos, permite-nos compreender, por um lado, a dureza dos factos ocorridos nos seus traços essenciais e, por outro lado, a dificuldade em se descrever alguns pormenores do desenrolar dos factos e da interacção, no dia em causa, com o arguido.
Ouvimos em julgamento a este respeito, a mãe de D. A., a testemunha S. S., mas também a tia (por afinidade) materna L. A. e a avó materna M. F., que tomaram conhecimento dos factos em Agosto de 2018, nas circunstâncias que explicaram.
Todas não tiveram dúvidas em acreditar na veracidade do depoimento de D. A., e, assim, foram enquadrando o seu comportamento após os primeiros factos, que agora conhecem, bem como a relação que D. A. mantinha, ao longo do tempo, com o pai, o arguido nestes autos, que descreveram.
A este respeito, de forma esclarecedora, L. A., tia de D. A., que reside na Suécia, e que convive com a mesma, essencialmente, nas férias e períodos festivos, que presenciou várias atitudes do arguido em relação à filha D. A. (que explicou) e vice-versa, relatou em julgamento que já lhe tinha passado pela cabeça que o mesmo a poderia ter violado, tendo-a questionado sobre isso.
Ora, os factos foram relatados pela vítima à família (e às autoridades policiais) em Agosto de 2018.
Nesta altura, o arguido e a mulher estavam a iniciar o processo de divórcio. Pensamos que o divórcio dos pais, os conflitos surgidos no período em causa, foram de modo a fazer com que D. A. verbalizasse, perante terceiros, os actos de que foi vítima.
Na altura, segundo relatou D. A. – o que foi confirmado quer por S. S., mas também por M. F. e L. A., que, em Agosto de 2018, apreenderam isso mesmo – a mesma tinha um relacionamento (um namorado, portanto) com F. R., a quem tinha contado o sucedido algum tempo antes (explicou a testemunha que, por volta de Maio de 2018, ele assistiu a uma discussão e eu estava tão alterada, que lhe contei tudo). E essa segurança também é de modo a explicar a denúncia ocorrida no período em causa.
Existe aqui um sofrimento contido e prolongado no tempo, cujos acontecimentos do período em causa fizeram a vítima ganhar coragem e tomar a decisão de denunciar, primeiro, a nível familiar, e, depois, a nível de autoridades policiais.
É verdade que se pode questionar porque é que a vítima não o fez mais cedo. Recordamos o que a vítima disse a este respeito (por referência à actualidade):
isto é muito humilhante na família… ver o olhar deles, custa, custa muito.
Parece-nos bastante simples de concluir que foi a ruptura familiar, no período em causa, que despoletou o ocorrido, porém, isso não afecta a credibilidade do relato, antes, quanto a nós, o confirma e enquadra.
Na verdade, tais rupturas7 são momentos que explicam a mudança de atitude das vítimas.
Foi realizado nos autos uma perícia psicológica a D. A., cujo relatório de perícia consta de fls. 208 e ss.
Em tal avaliação psicológico visou-se aferir a veracidade e credibilidade das declarações prestadas por D. A..
O relatório baseia-se em três entrevistas individuais com D. A., numa entrevista com o seu namorado da altura, F. R., e uma entrevista com a avó materna, M. F., bem como em instrumentos padronizados de avaliação psicológica.

7 Enquadrando este fenómeno no âmbito da violência doméstica, vide INÊS FERREIRA LEITE, “Violência doméstica e violência interpessoal: contributos sob a perspectiva do direito para a racionalização dos meios de prevenção e protecção”, Anatomia do Crime, N.º 10, 2019 p. 54-55.

Da avaliação realizada, devidamente fundamentada, resulta, em conclusão, que
“o relato de D. A. parece-nos compatível com as características de um relato verdadeiro, já que se apresenta congruente, descritivo e detalhado relativamente aos factos alegados, fazendo referência ao contexto de ocorrência dos factos e à sequência de eventos proferidos pela ofendida, a menção acerca do seu estado emocional durante e após os incidentes relatados e ainda a reprodução dos discursos utilizados pelos intervenientes no decurso das interações abusivas. O seu relato caracterizou-se ainda pela sua espontaneidade e consistência com outros informantes e, pese embora algumas inconsistências com outros momentos de recolha de informação (designadamente os autos de inquirição da avaliada), tal não inviabiliza este parecer, podendo ser explicado pelo quadro de vitimação continuada e hiato temporal e hiato temporal entre os alegados abusos e a perícia (patrocinador da deterioração do traço mnésico)”.
Foi esta também a avaliação que o Tribunal fez das declarações de D. A. em julgamento.
Não deixa de ser curioso que, contrapondo às declarações do arguido, apreendemos da vítima D. A., mas também dos depoimentos de S. S., sua mãe, e de M. F., sua avó, que a mesma não saía de casa, até porque o pai não a deixava, pelo que não podia ter o comportamento que o pai relatou, sendo peremptórias em qualificar como mentira a imputação, nesse período, de tal comportamento à vítima nestes autos.
E explicou ainda D. A. que, em Viana, fui apalpada por uma pessoa, que vieram a apurar que era doente (o que também aconteceu a uma colega).
Parece-nos bastante significativo que o arguido enquadre e culpabilize a filha por este acontecimento.
Não podemos deixar de credibilizar em absoluto, porque conforme à verdade, as declarações da vítima D. A..
*

Poder-se-á enunciar (algumas) omissões em tais declarações e até algumas (pequenas) discrepâncias com o que consta na acusação.
Uma delas decorre do facto de D. A. não ter relatado a factualidade
referente ao Verão de 2010 (a descrita na acusação).
Quanto a nós, efectivamente o relato, relativo a esse período, não ocorreu em termos pormenorizados e temporalmente circunstanciados.
Porém, D. A. referiu-se a outros episódios, para além das 3 “violações”, que decorreram temporalmente depois desses anos. Referiu D. A. nas suas declarações: em outras vezes, ele tentou…, esfregava-se contra mim…, tocava-me… ele entrava nu no meu quarto, beija-me na boca, às vezes. E eu evitava-o. Explicou ainda que chegou a esfregar-se em mim várias vezes, sem penetração.
Apesar disso, avaliamos tal omissão pormenorizada e circunstanciada de tais factos no facto de estarmos perante declarações absolutamente espontâneas, emotivas, sofridas e com recurso à memória de um tempo já distante, mas que deixou marcas profundas na declarante.
Isso não aconteceria se estivéssemos perante declarações previamente preparadas – o que não foi claramente o caso. Recordo que a vítima e assistente nestes autos tem actualmente 25 anos, pelo que, muito facilmente, poderia, se esse fosse o caso (o que não é), decorar e debitar a matéria que consta da acusação, a qual lhe foi oportunamente notificada.
Não foi isso que aconteceu. E não foi isso que aconteceu porque, quanto a nós, a sua actuação, enquanto vítima dos factos objectos destes autos, e o seu relato (e os seus termos) em julgamento demonstra que a mesma está (absolutamente) comprometida com a verdade e apenas com a verdade.
Igual avaliação fazemos quanto às declarações de S. S., sua mãe, e de M. F. e L. A., sua avó e tia (por afinidade do lado materno).
Todo o exposto e as circunstâncias referidas, na nossa apreciação, credibilizam as declarações da assistente e não deixam qualquer margem para dúvida sobre o que ocorreu no período de Dezembro de 2018 (bem como, nos termos infra analisados, no Verão de 2019).

Outra questão que se pode colocar é o facto de a mesma ter ido ao psicólogo,
uns tempos antes, e nada a mesma relatou acerca de tal acontecimento.
Não nos parece nada – nada – estranho que tal tenha acontecido. Não houve confiança para tal. Não houve nem tempo para isso, nem trabalho realizado pelo psicólogo para que tal tivesse ocorrido. Mas, principalmente, D. A. ainda não tinha decidido que tinha de verbalizar o que lhe aconteceu e ainda não estava preparada para o fazer.
Obviamente que, perante a avaliação que esteve em causa (recordemos o que a mesma disse a esse respeito), nenhum psicólogo consegue identificar seja o que for, nomeadamente um abuso sexual no âmbito familiar.
O medo que sentiu aos 13 anos, foi o mesmo que se prolongou ao longo da sua vida, até ocorrer a “ruptura”, que lhe permitiu despoletar a queixa com que se iniciou este processo.
É medo do agressor, o seu pai, mas é receio de não ser compreendida, mas também é incompreensão do que lhe aconteceu.
E pode questionar-se o porquê da vítima ter tido medo do pai ausente, emigrado em França.
A influência do pai, que, apesar de estar a trabalhar em França, vinha regularmente a Portugal ao longo do ano, conforme o próprio explicou, é de modo a não comprometer o essencial: D. A., naquela tenra idade, não quis ser a causa da ruptura daquela família, tinha receio e medo que não acreditassem em si. Sempre teve receio de como a mãe ia reagir (verbalizou em julgamento). Apreendemos isso mesmo das declarações da vítima, analisadas à luz do conhecimento e da experiência de outros tipos de casos, que revelam as mesmas questões e os mesmos problemas de compreensão.
E ainda pode suscitar-se a dúvida do porquê de a mesma só relatar o que lhe aconteceu com o pai, quando a mãe, ao mesmo tempo, também se queixa de violência doméstica (ou actos semelhantes). Pensamos que o enquadramento já foi feito nesta decisão: a ruptura familiar deu à vítima, a D. A., a força e a coragem para contar o que lhe aconteceu.
D. A. não deixou de verbalizar em julgamento que ficou aliviada por ter contado o que lhe aconteceu. E assim – mais disse, referindo-se à família – também compreendem a minha mudança de comportamento (referindo-se aos anos que se seguiram aos actos de que foi vítima).
Não nos parece que a tal “expulsão de casa” do pai à filha – ou até as duas expulsões de casa de que se falou em julgamento – sejam fundamento para qualquer “vingança”, que nos remeta para a denúncia de factos com esta relevância e gravidade.
Na nossa avaliação (crítica) da prova, com imediação, devidamente ponderada à luz das regras da experiência e conjugada entre si, não consideramos (de modo nenhum) que isso seja assim e não achamos que, na situação dos autos, isso seja sequer possível. Acreditamos, pelos termos vários a que nos vimos referindo, na veracidade do relato da assistente D. A..
*
Assim, em conformidade, julgamos como provado que:
- No mês de Dezembro de 2008, o arguido F. S. regressou a Portugal para passar o Natal com a mulher (S. S.) e os seus três filhos, na residência referida.
- Em dia não concretamente apurado, posterior ao seu regresso e anterior ao dia 24.12.2008, pela manhã, S. S. saiu para o trabalho, enquanto a D. A., à data, com 13 anos, ficou em casa com o arguido F. S., a cuidar dos seus irmãos S., com 2 anos de idade, e AF., com 3 meses.
- Enquanto o arguido F. S. se encontrava deitado no seu quarto, a D. A. entrou naquela divisão, a pedido da sua mãe, para dar um biberão de leite ao AF., que ali dormia num berço.
- Assim que terminou e quando se preparava para sair do quarto, o arguido F. S. chamou pela D. A., pedindo-lhe que se deitasse consigo na cama, o que aquela recusou, tendo ido dormir para o quarto dela.
- Quando a D. A. já se encontrava a dormir (no seu quarto), o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da mesma, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais (os factos que ocorreram de seguida não deixam margem para dúvidas sobre a intenção do arguido, o que julgamos como provado).
- Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. dirigiu-se ao quarto da sua filha, removeu a roupa da cama e deitou-se em cima da D. A., que, de imediato, acordou assustada, tentando logo afastar-se dele, empurrando-o para o chão e levantando-se para sair dali (o que julgamos como provado). A acusação refere que o arguido fez isso mesmo depois de se despir, porém, D. A. não o assegurou de forma peremptória. Relatou que, ao que julga, estava de “boxers”, mas não tem a certeza. Não julgamos, por isso, esta matéria como provada.
- Para a impedir de fugir, o arguido F. S. agarrou-a pelos braços e começou a puxar-lhe as calças de pijama e as cuecas que ela tinha vestidas, deixando-a semi-nua (D. A. relatou que ficou apenas vestida da cintura para cima), ao mesmo tempo que a empurrava para o chão, onde aquela acabou por cair, obrigando-a a permanecer deitada de costas no solo (recordo que a relação sexual ocorreu no chão e daí que tenha sido o chão a sujar-se com sangue).
- Perante a resistência oferecida pela sua filha D. A., que chorava e pedia para que a deixasse, o arguido F. S., para a manietar, deitou-se em cima dela, colocou-lhe uma das mãos sobre a boca e, de seguida, afastou-lhe as pernas, apesar dos pedidos desta para que não lhe fizesse mal.
- O arguido, ignorando os apelos da sua filha D. A. e contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada no chão com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina da ofendida, friccionando-o até ejacular. - Durante esse período de tempo, por várias vezes, a D. A. tentou libertar-se do arguido a gritar, mas foi sempre impedida por este.
- No final, o chão, que ficou sujo com sangue, foi limpo.
- Após, o arguido F. S. dirigiu-se a uma farmácia onde comprou a pílula do dia seguinte, a qual entregou à sua filha, obrigando-a a tomar na sua presença e dizendo-lhe “não podes contar a ninguém o que se passou, porque senão ficas sem família, ninguém vai gostar de ti pelo que fizeste, tu é que tens a culpa, és uma puta”, o que a menor fez por ter ficado com medo. O relato e o enquadramento do que ocorreu nos termos das declarações de D. A. apontam neste exacto sentido, o que julgamos, por avaliarmos como credível, como provado.
- Em Janeiro de 2009, o arguido F. S. voltou para França.
Dos factos relevantes que constam da acusação, tendo presente as declarações de D. A., ficamos apenas com dúvidas sobre quem limpou o sangue que caiu no chão daquela primeira relação sexual de D. A.. Não ficamos certos de que o arguido obrigou a filha a proceder a tal limpeza, o que julgamos não provado. Julgamos apenas provado que ocorreu essa limpeza. Do mesmo modo, em conformidade com tais declarações, não ficamos certos e seguros de que o arguido obrigou D. A. a lavar-se para que não ficassem nela quaisquer vestígios das relações sexuais que tinham mantido (o que não julgamos também provado).
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2.1.3.4. Dos factos de Agosto de 2009

Julgamos como provado que:
- O arguido regressou a Portugal, no início do mês de Agosto de 2009, para passar férias com a sua família, na habitação referida supra.
O arguido, desde logo, confirmou que estava em Portugal no período em causa. Neste sentido, também as declarações de D. A. e o depoimento de S. S., sua mãe.
D. A., nas suas declarações, relatou que, no Verão de 2019 (“no ano a seguir, no Verão”, disse), numa primeira vez, estava a dormir, foi de manhã, tendo acordado com a presença do pai. E, nesse dia, disse, voltou a violar-me. Tentei que ele parasse, ele mexia-me… eu pedia para parar, dizendo que me estava a magoar. E, no fim, voltou a ameaçar-me para não dizer nada a ninguém.
Num curto espaço de tempo, continuou a assistente D. A., voltou a acontecer. Estava a tomar pequeno almoço no sofá, ele desceu as escadas, de boxers, sentou-me ao meu lado. Fez-me festas no cabelo. Amarrou-me pelo braço, fiquei com a barriga no sofá, agarrou no braço e prendeu-me a cabeça pelo pescoço contra o sofá. E voltou a violar-me. Disse “xiu, xiu… não queria barulho”. Desta vez (e não da anterior), recordou, deu-me um cumprido e um copo de água, que a obrigou a tomar (mas desta vez, portanto, não saíram para ir à Farmácia).
Sobre o comprimido, disse D. A., na altura, não sabia o que era. Nem ele me disse. Obrigava-me a tomar. Hoje, porém, tendo presente a deslocação que fez à farmácia da primeira vez, está convencida de que era a pilula do dia seguinte.
Estamos também convencidos de que assim tal sucedeu, estando os factos absolutamente descritos, enquadrados e justificados.

Assim, em conformidade com tais declarações absolutamente consistentes, julgamos como provado que:
- Em dia não concretamente apurado, mas situado no início do mês de Agosto de 2009, de manhã, quando a sua esposa não estava em casa (a acusação refere que tal ocorreu quando “a sua esposa saiu para o emprego”, porém, apenas podemos ter por certo que a mesma não estava em casa, o que julgamos como provado8), o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da D. A., à data, com 14 anos, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais.
- Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. entrou no quarto da D. A., aproximou-se daquela, que estava a dormir, deitou-se em cima dela, afastando-lhe as pernas e tentando introduzir o seu pénis na vagina.

8 Da acusação decorre que a mãe de D. A. e mulher do arguido não estava em casa, em concreto, porque tinha saído para o emprego. Ora, perante o que consideramos demonstrado, não existe qualquer alteração relevante a este respeito, já que a matéria julgada como provada consta daquela que estava descrita na acusação.

(Não apreendemos, quando a este dia, o momento em que o arguido retirou os boxers, nem o que exactamente fez às cuecas da vítima, nomeadamente que as baixou no momento referido na acusação, que, por isso, não consideramos demonstrado).
- Nessa altura, a D. A. acordou e, apercebendo-se do que o arguido se preparava para fazer, tentou afastá-lo e pediu-lhe que a deixasse, mas o arguido F. S. ignorou-a e, contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada na cama com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o (o que julgamos como provado). Não temos por certo que o fez até ejacular. O facto de não ter dado o comprimido que deu das demais vezes, aponta no sentido de que tal não ocorreu. D. A. não soube assegurar que tal tenha ocorrido. Daí que não tenhamos julgamos isso como provado.

Mais julgamos como provado que:
- Volvidos alguns dias, em dia não concretamente apurado, mas ainda situado no mês de Agosto de 2009, da parte da manhã, quando a sua esposa não estava em casa (a acusação refere que tal ocorreu “depois da sua esposa ter saído para o emprego”, porém, apenas podemos ter por certo que a mesma não estava em casa, o que julgamos como provado9), o arguido F. S. decidiu abordar a D. A., enquanto esta se encontrava na sala, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, mais uma vez, manterem relações sexuais. Não apuramos apenas que D. A. estava “a ver televisão”, o que não julgamos como provado (e apenas isso).
- Nas referidas circunstâncias, o arguido F. S., que tinha apenas uns boxers colocados, sentou-se no sofá ao lado da D. A., acariciou-lhe o cabelo e, de seguida, agarrou-a, puxando o corpo dela de encontro ao seu, enquanto a mesma se debatia para se libertar. Não apuramos, com rigor, se, ao mesmo tempo a beijava nos lábios e lhe baixava os calções e as cuecas, o que não julgamos como provado.
- Perante a resistência oferecida pela D. A., o arguido F. S. voltou-a de costas, empurrou-a para o chão e colocou-lhe um dos braços em volta do pescoço para a manietar, conseguindo, deste modo, retirar-lhe a roupa que a mesma tinha, deixando-a nua da cintura para baixo (o que se mostra conforme às declarações da
assistente, que explicou os exactos termos em que o arguido a “voltou a violar”).

9 Vide o que escrevemos a este respeito na nota anterior.

- De seguida, mantendo a D. A. de costas voltadas e com um braço a segurar-lhe o pescoço, para a impedir de se libertar, colocou-a de joelhos, abriu-lhe as pernas e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o até ejacular.
- No final, o arguido F. S. deu-lhe a pílula do dia seguinte, que a obrigou a tomar na sua presença, enquanto lhe dizia: “vês o que me fazes, não podes contar a ninguém, ficas sem família”.
As declarações de D. A. são absolutamente claras e esclarecedoras a este respeito e merecem a nossa total credibilidade.
E isso não é colocado em causa, ao nível do apuramento dos factos, tal como descrito e fundamentado supra, pelos depoimentos abonatórios quer de M. D., irmão do arguido, e, sobretudo, o depoimento de J. S., que foi patrão do arguido.
O comportamento social e até laboral deste tipo de agressor esconde aquilo que ocorre no âmbito doméstico (como é o caso).
M. D., irmão do arguido, nas suas declarações, reportou-se a declarações da vítima, com quem tentou falar, após a denúncia dos factos, como sendo uma “treta”. Não apreendemos, porém, que estejamos perante um depoimento minimamente sustentado, seja a que título for, de modo a colocar em causa a credibilidade, a sustentabilidade e a veracidade dos factos objecto destes autos e julgados como provados.
*
2.1.3.5. Dos factos de Agosto de 2010

A factualidade relativa a este período temporal não foi enunciada de modo preciso, razão pela qual tal matéria foi julgada não provada.
D. A. relatou que existiram outras vezes em que o pai tentou, esfregou-se contra si, tocou-lhe. Ele entrava nu no seu quarto, beija-me na boca, às vezes. Por isso, quando vinha a Portugal, evitava-o.
Não subsumiu, porém, tais factos como sendo os que ocorreram em Agosto de 2010.
E a verdade é que, perante o sofrimento demonstrado com o que foi relatado, de forma muito precisa e espontânea, não foi possível concretizar-se tais factos e, em especial, o seu enquadramento temporal preciso.
Assim, tal matéria, embora relatada pela vítima em parte, porque não concretizada a nenhum período temporal concreto, tal como consta da acusação, foi julgada como não provada.
Quanto a nós, é a espontaneidade e a seriedade das declarações de D. A., que permitem compreender a não concretização desta factualidade por referência ao período do Verão de 2010. Isto significa que a vítima não decorou um discurso que pretendeu reproduzir em julgamento, antes o fez com recurso à memória de um tempo passado, já com alguns anos, cujo sofrimento patente de tal memória impede esse esquecimento.
Sem prejuízo disso, e repetindo, a matéria a que se reporta a acusação no período de Agosto de 2010 foi julgada não provada.
*
2.1.3.6. Do conhecimento e vontade do arguido

Perante o descrito supra, fundamentado nas declarações referidas, julgamos ser
de concluir, sem margem para qualquer dúvida, de que:
- O arguido F. S., ao proceder nos termos supra descritos, agiu sempre de vontade livre e consciente, com o propósito alcançado de, usando da sua força física e violência, e colocando a vítima na impossibilidade de resistir, manter relações e actos sexuais com a D. A., contra a vontade desta, para satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente à oposição que a mesma manifestava à prática de tais actos.
- Não ignorava o arguido que a pessoa com quem manteve e que consigo obrigou a manter contacto de natureza sexual era sua filha, era menor de idade (cuja data de nascimento, enquanto pai, conhecia) e que os comportamentos que prosseguiu eram atentatórios da sua liberdade e autodeterminação sexual.
- Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser proibida e punida a sua conduta por lei como crime.
Julgamos, em conformidade, tal matéria de facto como provada.
*
2.1.3.7. Dos danos do pedido de indemnização civil

O Tribunal omitirá qualquer juízo sobre as considerações, qualificações, adjectivações e conclusões que constam do pedido de indemnização civil.
Neste âmbito, relevam apenas os factos alegados – matéria de facto –, que estejam relacionados com os danos sofridos pela demandante cível, em consequência dos actos ilícitos dolosos criminais que padeceu à mão do arguido e que são o objecto destes autos. E apenas sobre essa matéria seguirá o juízo probatório que se segue.
Ouvimos a este respeito em audiência de julgamento, a demandante cível (e assistente nestes autos) que, para além do relato dos factos, tal como descrevemos supra, referiu-se às consequências dos mesmos na sua vida.
Referindo-se aos primeiros factos, relatou D. A. que ficou com medo. A partir daí passou a afastar-se do pai o mais possível. Ia inclusive para a casa da avó quando o mesmo estava em Portugal (o máximo de podia).
Relatou que andava sempre com medo e nervosa. Tinha pânico quando o pai estava sozinho em casa. Não dormia tranquilamente. Fugiu para a casa da minha avó. Quando o pai estava, não saia do quarto, chegou a urinar na cama (etc.).
Mais relatou que o conhecimento dos factos é muito humilhante na família.
Ver o olhar deles, disse, custa, custa muito. Não esquecerei o que me aconteceu e porque passei.
Tudo danos que se mostram, quanto a nós, absolutamente conformes com os actos que padeceu.
Essa revolta e sofrimento foi testemunhado pela mãe, S. S., mas também pela avó M. F., que a isso que referiram.

Nestes termos, em conformidade com tais meios de prova, julgamos provado que:

- D. A., desde os primeiros dos actos descritos, passou a viver momentos de terror, aflição e desespero sempre que o seu pai regressava a Portugal.
- Ficava apavorada sempre que se encontrava sozinha com o seu pai em casa, refugiando-se em qualquer compartimento da casa onde não estivesse o seu progenitor.
- Passou horas, dias, meses de enorme tristeza e desgosto, chorando compulsivamente na solidão do seu quarto.
- Com receio de contar à sua mãe o ocorrido.
- A demandante é, hoje, uma pessoa triste e traumatizada.
- Que jamais esquecerá os abusos sexuais de que foi vítima.
- Necessita de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para lidar, dentro do expectável, com tais episódios que permanecem presentes na sua memória, que a perturba e que a irão acompanhar durante toda a sua vida.
Retiramos esta última matéria também, com toda a sustentação, da avaliação psicológica da vítima que consta de fls. 208 e ss. dos autos. Aí, na conclusão, refere-se exatamente à necessidades de D. A. de beneficiar de acompanhamento psicológico especializado, a fim de diminuir a sintomatologia psicopatológica actual, prevenir a sua eventual intensificação e promover condições de funcionamento adaptativo e de bem-estar.

Mais julgamos provado, com base em tais meios de prova e no que apuramos, com toda a segurança, em julgamento que:
- O arguido sabia que, com o seu comportamento, perturbaria a alegria e a felicidade da filha D. A., prejudicando gravemente o seu desenvolvimento físico e psíquico.
- D. A. ficou afectada, com o comportamento do arguido, no seu crescimento, na estabilidade emocional e na sua personalidade.
- Ficou ofendida na sua honra, no seu bom nome, na sua paz, na sua tranquilidade, e na sua liberdade e autodeterminação sexual.
- Causaram – tais actos – traumas, medos e inquietações, ficando receosa de que voltasse a ser violada pelo arguido.
- A demandante sentiu-se profundamente perturbada, magoada, desconsiderada, desgostosa e humilhada com os actos praticados pelo arguido.
- O arguido agiu indiferente às repercussões dos danos físicos e psíquicos que iria provocar sobre a mesma.

Julgamos, apesar do exposto e do que ouvimos em julgamento a este respeito, não demonstrado que:
- A demandante, devido à acção do arguido, chegou a ponderar pôr termo à vida (suicidar-se).
Pensamos que essa causalidade não ficou suficientemente demonstrada naquilo que ouvimos quer de D. A., mas também da sua mãe S. S..
Os casos relatados não foram suficientemente circunstanciados, principalmente, no tempo, de modo a nos permitir realizar esse juízo de causalidade, que consideramos necessário estabelecer e relacionar.
Até porque, neste período de tempo todo, muitas outras dificuldades ocorreram que podem, na idade em causa, despoletar acções próximas daquelas que foram enunciados pela vítima e pela sua mãe. S. S. relatou que sempre entendeu o ocorrido como uma “crise de adolescente”, de tal modo que, em nenhum das vezes, foi preciso deslocar-se ao hospital, não tendo a menor sido sinalizada para qualquer tratamento psicológico relevante.

Sobre a restante matéria alegada, tendo presente as declarações e depoimentos enunciados (de D. A., por um lado, e de S. S., M. F. e L. A., por outro lado) julgamos poder concluir no sentido de ter ficado demonstrado e provado que:

- Antes, D. A. era uma pessoa alegre, tranquila, sociável, bem-disposta, carinhosa e afável.
- Depois, passou a demonstrar frequentemente comportamentos inquietos, nervosos e de inconformismo.
- Passou a ser uma pessoa traumatizada, triste, abalada, pesarosa, revoltada, complexada (não julgamos como provado que seja uma pessoa sem alegria de viver; na apreendemos isso, com segurança, da sua actual situação de vida, que ouvimos em julgamento).
- Passou a demonstrar comportamentos emocionalmente instáveis.
- Chegou mesmo, por vezes, a urinar na cama.
- Os factos foram recentemente conhecidos pela família materna, deixando-a apreensiva e envergonhada.
Não temos por demonstrado que deixou de ter (sempre) sonos tranquilos, nem que evidencia sintomatologia depressiva, o que julgamos não provado.
*
2.1.3.8. A situação pessoal, profissional, social e de vida do arguido, apurada –
nos termos julgados como provado – resultou do relatório social elaborado pela DGRSP e juntos aos autos, de 26.06.2020 (cujos termos, que não foram colocados em crise por qualquer outro meio de prova, julgamos como provados) – fls. 372 e ss.
Não deixamos ainda de ter presente e ponderar a este respeito os depoimentos
abonatórios de M. D., irmão do arguido, e, sobretudo, o depoimento de J. S., que foi patrão do arguido e com quem se relaciona desde então (a nível profissional, disse, desde logo, a testemunha, sempre cumpriu o seu dever).
Os antecedentes criminais, tal como julgamos como provado, resultaram do
certificado de registo criminal do arguido de fls. 316 e ss. dos autos.
*
* *
2.2.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

2.2.1. Da responsabilidade criminal

Julgada a matéria de facto objecto deste processo, cumpre agora enquadrar
jurídico-penalmente essa factualidade, apreciando os tipos legais de crime de que o arguido vem acusado face à factualidade julgada como provada.
*
2.2.1.1. Do crime de violação agravado

2.2.1.1.1. O arguido encontra-se acusado da prática, em concurso real, de três crimes de violação agravado:
- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 7, do CP;
- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP; e
- um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP.
Os factos do caso sub iudicio remontam ao período de 2008 e 2009.
O princípio da legalidade, inscrito no art. 1º do CP, exige que um arguido “ pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática” (n.º 1).
Ao nível da aplicação da lei penal no tempo, impõe o art. 2º, n.º 1, do CP que:
As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”.
Releva, a este respeito, a lei penal em vigor aquando da prática dos factos.
O facto considera-se praticado – diz o art. 3º do CP – no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.
Apesar disso, define o art. 2º, n.º 4 do CP, que “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
Ora, no Código Penal, o tipo legal de violação, em vigor nos anos a que se reportam os factos, estava previsto no art. 164º do CP, seguindo a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (que tinha entrado em vigor no dia 15 de Setembro de 2007).

O referido artigo estipulava, então, que:
1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão até três anos.
Estamos perante um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual. A liberdade (sexual) de escolher o seu companheiro sexual e de dispor livremente do seu corpo.
No âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, o tipo fundamental é o abuso / coacção sexual. A violação é um caso especial de coação sexual; é a sua mais grave forma, uma coação sexual qualificada.
Na coação sexual pune-se, neste âmbito, o constrangimento. No abuso sexual (de crianças - art. 171º do CP) não há constrangimento ao acto sexual, não se verifica um desacordo da vítima com a acção sexual levada a efeito pelo agente; tutela-se aqui a sua autodeterminação perante certos ataques, neste caso de ordem sexual.
Ora, sendo a vítima menor de 14 anos, está em causa a autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, (mesmo sem coacção) prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual10.
O tipo objectivo de ilícito do crime de violação consiste em (al. a) o agente constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, ou (al. b) a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
O conteúdo da acção subsume-se a cópula (penetração da vagina pelo pénis), a coito anal (consiste na penetração do ânus) ou a coito oral (consiste na penetração da boca pelo pénis).
Para o conceito legal de “coito”, explica Jorge de Figueiredo Dias 11, exige-se uma conjugação de corpos com intervenção do órgão sexual masculino e não apenas do corpo com outros órgãos ou com quaisquer objectos.

10 Vide, nestes termos, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª ed., p. 834.
11 Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed., p. 750.

Mas também a introdução – isto é, penetração – vaginal (não na vulva) ou anal de partes do corpo (dedo, lábios, língua, etc.) ou qualquer objectos, possua ele conotação sexual ou não12.
As modalidades da acção consiste em – na al. a) – constrangimento que se traduza em a vítima “sofrer ou praticar, consigo ou com outrem” cópula, coito anal ou coito oral.
Na al. b), tal reconduz-se à circunstância de a vítima “sofrer introdução” vaginal ou anal (de partes do corpo ou objectos).
Constranger, no âmbito dos crimes sexuais, é obrigar outra pessoa a praticar ou a sofrer um acto sexual contra a sua vontade13.
Os meios típicos de coacção e de constrangimento à cópula, ao coito anal ou oral, e à introdução vaginal ou anal são “violência”, “ameaça grave”, ou “depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”.
A violência reconduz-se ao uso da força física, considerada idónea, destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. E tem de ser dirigida contra outra pessoa, a vítima ou mesmo uma terceira pessoa.
Por ameaça deve considera-se a manifestação do propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa não consentido – violência psíquica. Tem de ser uma ameaça grave (mais exigente do que a do art. 154º do CP), não só pelo seu conteúdo, mas também pela sua medida e sua intensidade. Também aqui a ameaça pode ser dirigida contra a vítima ou contra terceiro.
Para efeitos do “ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”, importa saber, ao nível do dolo, se isso ocorreu para a prática dos actos sexuais em causa ou se houve um aproveitamento de uma situação de inconsideração. Neste caso, estaremos perante o crime do art. 165º do CP (abuso sexual de pessoa incapaz de resistência).

12 cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, cit., p. 750. Não se encontram abrangidas acções como coito vulvular ou do vestibular ou da auto-masturbação.
13 PEDRO CAEIRO, “Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica”, RPCC, Ano 29, N.º 3, Set.-Dez., 2019, p. 644.

O constrangimento tipicamente relevante pressupõe (sempre) o dissentimento da vítima. Porém, segundo Pedro Caeiro14, não implica o uso da força, nem exige a resistência física da vítima. E isso decorre da incriminação das ameaças como meio típico do constrangimento e reforça-se com a introdução, em 2015, da incriminação do “constrangimento por outros meios”.
Antes de 2015, já Figueiredo Dias15 sustentava que o preenchimento do tipo, seja de coacção sexual, seja de violação, exigia apenas “a continuidade da vontade da vítima contrária ao acto, i. é, oposição intima séria ao acto sexual, até à consumação; mas já não a resistência” da vítima, que pode ser quebrada pela coacção inicial em função da perigosidade inerente: a resistência não é condição da verificação do tipo (embora o possa ser já da sua gravidade)16.
O assentimento (parcial) da vítima, escreve Figueiredo Dias17, não excluiu a tipicidade objectiva da violação, embora possa relevar para aferição do dolo, para a comprovação do erro ou para efeito de medida da pena.
Estamos perante um crime doloso, em qualquer uma das modalidades, ao nível do tipo subjectivo do ilícito.
*
.2.1.1.2. Depois da Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que entrou em vigor 30 dias depois da publicação (art. 3º de tal diploma), tal disposição normativa passou a dizer que (art. 164.º do CP - violação):

1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.

14 “Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais …”, cit., p. 645.
15 Comentário Conimbricense, cit., p. 724.
16 Cf. Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 10.09.2014, Proc. 1054/13.5JAPRT.P1, www.dgsi.pt: para prova da cópula violenta ou forçada a que se refere o artº 164º CP não é necessária a existência de lesões físicas nem de vestígios físicos e/ ou biológicos masculinos. A paralisação da vítima devido ao temor causado pela ameaça a que foi sujeita pelo arguido não se confunde com consentimento para o acto.
17 Comentário Conimbricense, cit., p. 751.

2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos.

A versão actual do tipo legal de crime em análise, resultante das alterações levadas a cabo pela Lei n.º 101/2019, de 6 de Setembro, prevê:

1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.
*

2.2.1.1.3. O crime de violação é agravado nas circunstâncias previstas no art. 177º do CP.

Ora, na sua redacção em vigor aquando da prática dos factos (após a Lei n.º 59/2007), o art. 177º do CP previa a agravação nos seguintes termos:
1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
(…)
5 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º, 164.º, 168.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
7 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
Estamos perante crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, uma vez que os elementos previstos contendem com um desvalor mais acentuado da acção e da conduta do agente18 (que agrava a pena).
Na al. a) do n.º 1 a pena é agravada quando entre a vítima e o agente exista um certo tipo de relação familiar: de parentesco, de afinidade e de adopção, bastando que tal relação exista para se considerar preenchido o tipo objectivo de ilícito.
Na al. b) isso abrange relação familiar (parentesco e afinidade), equiparada (tutela, curatela) ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, porém, a pena é agravada se o crime for praticado com aproveitamento da relação, não bastando que tal relação exista.
O n.º 6 agrava a pena em função da especial vulnerabilidade do menor e, nestes termos, com fundamento no maior desvalor do tipo de ilícito.
Deste modo, explica Maria João Antunes19, se traduz a ideia de uma protecção diferenciada em função de diferentes graus do desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, havendo uma agravação maior se a vítima for menor de 14 anos.

18 Cf. MARIA JOÃO ANTUNES, Comentário Conimbricense, cit., p. 888. 19 Comentário Conimbricense, cit., p. 893.
19 Comentário Conimbricense, cit., p. 893.

Com esta agravação em função da idade, fica claro que não existe concurso efectivo entre o crime de violação e o crime de abuso sexual de crianças (art. 171º do CP).
Havendo concurso de circunstâncias agravantes, optando pela regra de exasperação, o n.º 7 do artigo em análise, determina que se considere a circunstância que tiver efeito agravante mais forte, sendo as demais valoradas ao nível da medida da pena.
Ao nível do tipo subjectivo, exige-se o conhecimento de tais circunstâncias agravantes (desde logo, da relação de parentesco, mas também da idade da vítima).

2.2.1.1.4. A Lei n.º 83/2015, de 05 de Agosto, veio alterar o n.º 2, prevendo que “As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º”.

A Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, veio alterar:

- O n.º 1, al. b), que passou a dizer: “b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação”.
- Aditou-se o n.º 4 (passando o anterior a n.º 5) passou a prever que “As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
- Os n.º 6 e 7 passaram a prever: 6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos. 7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. O anterior n.º 7 passou para o n.º 8.
A Lei n.º 101/2019, de 6 de Setembro (última alteração à lei), aditou uma al. c) ao n.º 1, e alterou a redacção do n.º 6 e do n.º 7 do art. 177º do CP.

A versão actualmente em vigor do art. 177º do CP é a seguinte:

1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de
dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. 2 - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º
3 - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível.
4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas.
5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima.
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos;
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena”.
*

2.2.1.1.5. Perante uma violação plúrima deste mesmo bem jurídico (liberdade e autodeterminação sexual), numa única vítima, por várias condutas ilícitas do mesmo arguido – ou a prática de vários tipos de actos sexuais de relevo perante a mesma vítima –, estamos numa situação de concurso verdadeiro e efectivo20.
O art. 30º, n.º 2, do CP afasta a figura do crime continuado as situações de crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais, pelo que, conforme explica o STJ, no acórdão de 14.03.2013 21, reconstituindo a pluralidade de infracções em função do número de crimes ou de vítimas, restringe-se aquele a bens não eminentemente pessoais, seja uma ou mais vítimas.
O STJ, no acórdão de 1.10.2008 22, mais defende que a tese da continuação criminosa, em caso de menores que convivem com os pais, que deles abusam, de punição do arguido por um só crime – ou seja, pelo crime de maior gravidade, nos termos do art. 79.º do CP –, choca profundamente o sentimento jurídico, e carece de qualquer apoio legal e jurisprudencial, sendo pura e simplesmente rejeitada de há anos a esta parte.
*
2.2.1.1.6. No caso sub iudicio, a este respeito, mostra-se apurado que:

- Em Dezembro de 2018, quando D. A. se encontrava a dormir (no seu quarto), o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da mesma, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais.
- Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. dirigiu-se ao quarto da sua filha, removeu a roupa da cama e deitou-se em cima da D. A., que, de imediato, acordou assustada, tentando logo afastar-se dele, empurrando-o para o chão e levantando-se para sair dali.
- Para a impedir de fugir, o arguido F. S. agarrou-a pelos braços e começou a puxar-lhe as calças de pijama e as cuecas que ela tinha vestidas, deixando-a semi-nua, ao mesmo tempo que a empurrava para o chão, onde aquela acabou por cair, obrigando-a a permanecer deitada de costas no solo.

20 Assim, MOURAZ LOPES / TIAGO CAIADO MILHEIRO, Crimes Sexuais, Cimbra Editora, p. 68-9.
21 Proc. 294/10.3TJPRT, www.dgsi.pt. 22 Proc. 08P2872, www.dgsi.pt.

- Perante a resistência oferecida pela sua filha D. A., que chorava e pedia para
que a deixasse, o arguido F. S., para a manietar, deitou-se em cima dela, colocou-lhe uma das mãos sobre a boca e, de seguida, afastou-lhe as pernas, apesar dos pedidos desta para que não lhe fizesse mal.
- O arguido, ignorando os apelos da sua filha D. A. e contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada no chão com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina da ofendida, friccionando-o até ejacular. - Durante esse período de tempo, por várias vezes, a D. A. tentou libertar-se do arguido a gritar, mas foi sempre impedida por este.
Ora, o arguido, nas circunstâncias descritas, constrangeu outra pessoa (D. A.) a sofrer ou a praticar, consigo, cópula, isto é, penetração da vagina pelo pénis. Obrigou, portanto, outra pessoa a praticar ou a sofrer um acto sexual, neste caso de cópula, contra a sua vontade.
E usou para o efeito de violência, através de força física.
O preenchimento do tipo de violação exige, porém, apenas oposição intima séria ao acto sexual. E isso verificou-se (mostra-se provado).
Mostra-se, pois, preenchido o tipo objectivo de ilícito do crime de violação, p. e p., à data dos factos (lei penal aplicável), pelo art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP.
D. A., que nasceu em -.04.1995, tinha na data em causa (Dezembro de 2008), 13 anos de idade.
É, para além disso, filha do arguido.
Ora, nos termos do art. 177º do CP, isso é causa de agravação do tipo legal de violação.
Por um lado, por a vítima ser descendente do arguido – n.º 1, al. a); e, por outro lado, por a vítima ter menos de 14 anos – n.º 6 do artigo citado.
Por força do n.º 7 do art. 177º, concorrendo mais do que uma circunstância é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, isto é, neste caso, a do n.º 6 do art. 177º do CP, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
Em conformidade com a norma citada, a idade da vítima determinará a agravação da pena nos termos descritos. A situação de a vítima ser filha do arguido será considerada na medida da pena.
O arguido sabia que a vítima era sua filha e tinha, na altura, 13 anos de idade. Apesar disso, decidiu praticar o acto de cópula com D. A., mesmo contra a sua vontade.
Actuou, portanto, com pleno conhecimento dos factos, que decidiu praticar nos termos descritos supra.
O arguido actuou, pois, com dolo directo (art. 14º, n.º 1, do CP), preenchendo o tipo subjectivo do ilícito.
Praticou, nestes termos, o arguido um crime de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP, em vigor aquando da prática dos factos.
As alterações legislativas posteriores ocorridas não são, em concreto, mais favoráveis ao arguido. Não existe nenhum regime concretamente mais favorável ao agente que importe ponderar.
Actualmente, tal comportamento do arguido continua criminalizado nos mesmos termos, agora, nos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 7, do CP.
O arguido será, porém, punido pela lei penal em vigor aquando da data da prática dos factos, tal como determina o art. 2º, n.º 1 do CP.
*
2.2.1.1.7. Mais resulta da matéria de facto julgada como provada que:

- Em dia não concretamente apurado, mas situado no início do mês de Agosto de 2009, de manhã, quando a sua esposa não estava em casa, o arguido F. S. decidiu entrar no quarto da D. A., à data, com 14 anos, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, manterem relações sexuais.
- Na concretização deste seu desígnio, o arguido F. S. entrou no quarto da D. A., aproximou-se daquela, que estava a dormir, deitou-se em cima dela, afastando-lhe as pernas e tentando introduzir o seu pénis na vagina.
- Nessa altura, a D. A. acordou e, apercebendo-se do que o arguido se preparava para fazer, tentou afastá-lo e pediu-lhe que a deixasse, mas o arguido F. S. ignorou-a e, contra a vontade desta, socorrendo-se da sua força muscular para a manter deitada na cama com as pernas abertas, introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o.
- Volvidos alguns dias, em dia não concretamente apurado, mas ainda situado no mês de Agosto de 2009, da parte da manhã, quando a sua esposa não estava em casa, o arguido F. S. decidiu abordar a D. A., enquanto esta se encontrava na sala, com o propósito de, mesmo contra a vontade dela, mais uma vez, manterem relações sexuais.
- Nas referidas circunstâncias, o arguido F. S., que tinha apenas uns boxers colocados, sentou-se no sofá ao lado da D. A., acariciou-lhe o cabelo e, de seguida, agarrou-a, puxando o corpo dela de encontro ao seu, enquanto a mesma se debatia para se libertar.
- Perante a resistência oferecida pela D. A., o arguido F. S. voltou-a de costas, empurrou-a para o chão e colocou-lhe um dos braços em volta do pescoço para a manietar, conseguindo, deste modo, retirar-lhe a roupa que a mesma tinha, deixando-a nua da cintura para baixo.
- De seguida, mantendo a D. A. de costas voltadas e com um braço a segurar-lhe o pescoço, para a impedir de se libertar, colocou-a de joelhos, abriu-lhe as pernas e introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, friccionando-o até ejacular.

Do exposto resulta que o arguido, em mais duas circunstâncias absolutamente autónomas, constrangeu D. A., sua filha, então com 14 anos, a sofrer ou a praticar consigo, cópula, isto é, penetração da vagina pelo pénis. Obrigou, portanto, outra pessoa a praticar ou a sofrer um acto sexual, neste caso de cópula, contra a sua vontade. E usou para o efeito de violência, através de força física.
A vítima é, em ambos os casos, descendente do arguido, pelo que fica preenchida a agravação do art. 177º, n.º 1, al. a) do CP. E, por ter menos de 16 anos (e mais do que 13 anos), a agravação do art. 177º, n.º 5, do C.P.
Em conformidade com o arguido 177º, n.º 7, do CP (em vigor aquando da prática dos factos), a situação de a vítima ser filha do arguido determinará a agravação da pena (de um terço, nos seus limites mínimo e máximo). A idade da vítima nos termos descritos será considerada na medida da pena.
Mostra-se, pois, em ambas as circunstâncias temporais referidas (diferentes), preenchido o tipo objectivo de ilícito do crime de violação agravado, p. e p., à data dos factos (lei penal aplicável), pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP.
O arguido sabia que a vítima era sua filha e tinha, nesta altura, 14 anos de idade.
Apesar disso, decidiu praticar o acto de cópula com D. A. contra a sua vontade.

Mostra-se, pois, provado que:

- O arguido F. S., ao proceder nos termos supra descritos, agiu sempre de vontade livre e consciente, com o propósito alcançado de, usando da sua força física e violência, e colocando-a na impossibilidade de resistir, manter relações e actos sexuais com a D. A., contra a vontade desta, para satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente à oposição que a mesma manifestava à prática de tais actos.
- Não ignorava o arguido que a pessoa com quem manteve e que consigo obrigou a manter contacto de natureza sexual era sua filha, era menor de idade e que os comportamentos que prosseguiu eram atentatórios da sua liberdade e autodeterminação sexual.
O arguido actuou, pois, com dolo directo (art. 14º, n.º 1, do CP), preenchendo o tipo subjectivo do ilícito.
Praticou, assim, o arguido dois crimes de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, em vigor aquando da prática dos factos.
Ao nível da agravação, por força do n.º 7 do art. 177º, concorrendo mais do que uma circunstância é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo que, neste caso, é indiferente, já que ambas produzem o mesmo efeito agravador, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena (conforme referimos supra, in casu, decidimos que a situação de a vítima ser filha do arguido determinará a agravação da pena e a idade da vítima será considerada na medida da pena).
As alterações legislativas posteriores ocorridas (e enunciadas supra) não são, em concreto, mais favoráveis ao arguido. Não existe nenhum regime concretamente mais favorável ao agente que importe ponderar.
Actualmente, tal comportamento do arguido continua criminalizado nos mesmos termos, agora, nos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP.
O arguido será, porém, punido pela lei penal em vigor aquando da data da prática dos factos, tal como determina o art. 2º, n.º 1 do CP.
*
2.2.1.1.8. O arguido praticou, tal como descrito, três crimes de violação agravado.

Estamos perante um concurso efectivo de crimes, decorrente de três violações autónomas e efectivas do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, em relação à mesma pessoa (vítima), por acção de três condutas ilícitas dolosas do mesmo arguido (cf. art. 30º do CP).
Será, pois, o arguido condenado nestes autos pela prática, em concurso real, de três crimes de violação agravado.
*
2.2.1.2. Do crime de coacção sexual agravado

2.2.1.2.1. O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de coacção agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, e, actualmente, pelos arts. 163.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6,
do CP.

Ora, aquando da prática dos factos (após a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2007), o art. 163º do CP previa que:

1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até dois anos.
Protege-te neste tipo legal de crime o bem jurídico da autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa. Na enunciação de Figueiredo Dias23: cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto ás práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar que a elas se entrega ou ao(s) parceiros(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m).
O cerne do tipo objectivo de ilícito é constituído pela prática de um acto sexual de relevo. Ao ser de relevo, excluiu a lei actos considerados insignificantes ou bagatelares, mas também exige que o acto represente um entrave à liberdade de determinação sexual da vítima24.
É acto sexual de relevo – escreve o Ac. da Relação de Coimbra, de 5.06.2013 25 – todo o que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas. Miguez Garcia e Castela Rio aludem aos seguintes actos: cópula vulgar, beijo lingual, excitação do clítoris, manipulação das “partes sexuais”26.

23 Comentário Conimbricense, cit., p. 715.
24 Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, cit., p. 718-20.
25 Proc. 204/10.8TASEI.C1, www.dgsi.pt.
26 Código Penal. Parte geral e especial, p. 719.

Explica o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 13.03.201327, que acto sexual é o comportamento que objectivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, podendo estar presente um intuito libidinoso do agente, conquanto a incriminação persista sem esse intuito. Considera-se acto sexual de relevo o comportamento pelo qual um homem adulto dá beijos na boca, mexe nos seios, mexe na vagina de uma menor de doze anos, ainda que por sobre a roupa, e lhe exibe o pénis, perguntando-lhe se gostava do que tinha visto.
Nas modalidades de acção, são diversos os actos previstos no “constranger a vítima a sofrer ou a pratica, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo”.
Distingue-se entre sofrer e praticar, o que nos remete para um comportamento puramente passivo ou activo da vítima, ficando claro que apenas o constrangimento a acto praticado na vítima se integra neste tipo legal de crime, exigindo-se que o acto seja praticado consigo ou com outrem, pelo que também não integra o tipo legal o acto sexual praticado pela vítima em si própria.
Não é, porém, indispensável, o mútuo contacto corporal, bastando toques com objectos (que não têm de ter natureza sexual) ou acções (como ejacular) para integral o tipo legal objectivo.
Abrange-se no tipo legal quer os actos levados a cabo com a pessoa consciente, mas também tornada inconsciente ou posta na impossibilidade de resistir para o efeito.
Os meios de coação o constrangimento são os mesmos do crime de violação já analisados supra: violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
“Para esse fim” vale para todos os meios de constrangimento.
A coacção é especializada aqui através da sua finalidade, tendo de existir entre ela e o acto sexual uma relação de meio fim 28.
Estamos perante um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades, ao nível do tipo subjectivo.

27 Proc. 1159/11.7JAPRT.P1, www.dgsi.pt.
28 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense, cit., p. 724.

A agravação da pena nos termos do art. 177º do CP obedece ao mesmo normativo legal do crime de violação (já analisado), e, portanto, às mesmas considerações jurídico-normativas enunciadas supra.
Com a agravação em função da idade, fica claro que não existe concurso efectivo entre o crime de coação sexual e o crime de abuso sexual de crianças (art. 171º do CP).
*
2.2.1.2.2. A Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, alterou o n.º 2, passando a estatuir: Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.
A Lei n.º 101/2019, de 6 de Setembro, veio aditar o n.º 1, prever o anterior n.º 1 como n.º 2 e prescrever um n.º 3 nos termos da redacção actualmente em vigor.

Assim, a redacção actual define que:

1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.
*

2.2.1.2.3. Apreciemos agora, em função do anteriormente exposto, os factos julgados provados.
Ora, a factualidade que sustentava este tipo legal de crime, reportava-se àquela que a acusação descreve como tendo ocorrido em Agosto de 2010.
Sucede que essa factualidade foi julgada como não provada.
Portanto, por falta de prova dos factos, objectivos e subjectivos, que sustentam
tal tipo legal de crime, importa concluir que o arguido não pode ser condenado pelo crime de coação sexual de que vem acusado.
Será, assim, absolvido da prática de tal crime.
*
* *
2.2.2. Determinação da pena

2.2.2.1. Da pena principal: pena (única) de prisão

Uma vez determinada a responsabilidade criminal do arguido, cumpre determinar a espécie e medida da pena a aplicar-lhe. O arguido praticou os seguintes crimes:

- um crime de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP (em vigor aquando da prática dos factos), que é punido com pena de prisão de três a dez anos, agravado de metade, nos seus limites mínimo e máximo, já que a vítima, à data, era menor de 14 anos; e
- dois crimes de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP (em vigor aquando da prática dos factos), que é punido com pena de prisão de três a dez anos, agravado de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, já que a vítima é descendente do arguido.
Apesar de concorrerem, nos citados crimes, mais do que uma das circunstâncias referidas nos números do art. 177º do CP, define o n.º 7 desse artigo que só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
Portanto, pelo primeiro dos crimes enunciados, o arguido incorre numa pena de prisão de 4 anos e 6 meses (limite mínimo) a 15 anos (limite máximo).
Pela prática dos dois demais crimes de violação agravado, o arguido incorre numa pena de prisão de 4 anos (limite mínimo) a 13 anos e 4 meses (limite máximo).
Não existem, no caso sub iudicio, quaisquer outras circunstâncias modificativas da moldura penal abstracta, razão pela qual, dentro das molduras penais (legais) supra enunciadas (de cada um dos crimes), será determinada a pena a aplicar ao arguido.
*

2.2.2.2. Da pena de prisão

2.2.2.2.1. As finalidades da aplicação das penas, nos termos do art. 40º do CP, residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e (na medida do possível) na reintegração do agente na comunidade.
A culpa, por sua vez, constitui o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, não podendo a medida da pena ultrapassar a medida da culpa.
Nos termos do art. 71º, n.º 1, do CP, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
A prevenção geral – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas na manutenção (e no esforço) da validade da norma jurídica violada – fornece uma moldura de prevenção, proporcional à gravidade do facto ilícito aferida pelo abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade, cujo limite máximo é definido pelo que a comunidade entende como necessário à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas, e cujo limite mínimo é definido, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para assegurar a finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica. Dentro destas considerações actuam as exigências da prevenção especial de socialização, à qual cabe encontrar o quantum exacto da pena valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização do agente evidenciadas no desvalor do facto ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais 29.
A culpa, enquanto censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num concreto tipo-de-ilícito, funciona como suporte axiológico-normativo da pena, estabelecendo o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade num quadro de um Estado de Direito democrático (“não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa”). A culpa desempenha o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas 30.
Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens31.

Na determinação concreta da pena, tomaremos em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo do crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente aquelas que estão prescritas no n.º 2 do art. 71º do CP:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

29 Cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, N.º 2, Abril-Junho, 2002, p. 177-182.
30 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 321-322.
31 MARIA JOÃO ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2010-2011, p. 31.

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto,
quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim, tendo presente o exposto, importa determinar a pena de prisão do arguido em relação aos crimes que praticou.
*
2.2.2.2.2. Do crime de violação agravado

Ora, considerando e ponderando o seguinte:

A moldura penal abstracta da pena de prisão aplicável a cada um dos crimes praticados pelo arguido:
- a um deles (o de Dezembro de 2008): de 4 anos e 6 meses (limite mínimo) a 15 anos (limite máximo) de prisão;
- a dois deles (os de Agosto de 2009): de 4 anos (limite mínimo) a 13 anos e 4 meses (limite máximo) de prisão.
O bem jurídico protegido pelo crime de violação (liberdade e autodeterminação sexual) foi afectado, com o comportamento do arguido, em termos muito relevantes.
O grau de ilicitude é elevado, atendendo ao modo de actuação do arguido, ao instrumento utilizado para praticar o facto ilícito e às consequências desse facto. O arguido, em cada uma das situações, aproveitou-se do facto de estar sozinho com a vítima para, na habitação onde residiam, violar a mesma, através de cópula – desvalor da acção e de resultado muito significativo.
No primeiro dos crimes (de Dezembro de 2008), temos presente a situação de a vítima ser filha do arguido (que agora consideramos na medida da pena).
Nos dois outros crimes (de Agosto de 2009), o facto de a vítima, à data dos factos, ter 14 anos (menor de 16 anos, portanto) (que agora consideramos na medida da pena).
Nestes últimos (de Agosto de 2009), não deixaremos de distinguir, ao nível da ilicitude, os primeiros dos segundos (isto seguindo a ordem cronológica). Estes, porque o arguido ejaculou e porque deu à vítima a pílula do dia seguinte, apresentam um grau superior de ilicitude em relação àqueles, principalmente ao nível do desvalor da acção.
O dolo é directo (e muito intenso).
O grau de culpa – que desempenha o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – é elevado: o comportamento do arguido, ao nível dos factos praticados, revelam uma muito significativa censurabilidade, não tendo qualquer enquadramento possível, que não seja o desrespeito pela liberdade e autodeterminação sexual de uma criança, em termos absolutamente inaceitáveis e censuráveis.
Os sentimentos manifestados no cometimento do crime – comportamento socialmente desajustado e absolutamente desconforme com as regras básicas de convivência humana e familiar.
Os motivos que estiveram na determinação dos crimes estão na incapacidade do arguido de respeitar a sexualidade de uma criança, sua filha.
A necessidade de pôr cobro na sociedade a este tipo de comportamento que se mostra ainda demasiado frequente nos dias que correm, em concreto, ao nível das relações familiares e domésticas.
As expectativas comunitárias na validade das normas jurídicas violadas são significativamente elevadas (seja pela gravidade dos factos ilícitos culposos praticados e os seus termos, seja pelo abalo provocado nas expectativas da comunidade na validade da norma violada).
Existem razões de prevenção geral muito elevadas a exigirem protecção. São, portanto, elevadíssimas as exigências de prevenção geral (o necessário à tutela das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e o absolutamente imprescindível para assegurar a defesa da ordem jurídica).
Sobre a situação pessoal, social e profissional do arguido, temos que o arguido está profissionalmente inserido e activo, trabalha em França, auferindo rendimento mensal de cerca de 2.000,00 € (trabalha na construção civil).
Familiarmente, tem apoio nos seus irmãos, progenitores e de amigos, estando em ruptura com a ainda mulher, os filhos e com a família da mulher.

O arguido tem antecedentes criminais pela prática de um crime de ameaça e por detenção de arma proibida (factos praticados em 2018).
Os factos foram praticados em 2008 e 2009, ou seja, há quase 11 e 12 anos, por referência à data da presente decisão.
Após a prática desses factos, nenhum outro facto semelhante (ao nível do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual) foi apurado como tendo sido praticado pelo arguido.
Apesar disso, não apuramos nenhum concreto juízo de censura por parte do arguido relativamente aos factos que praticou.
O arguido necessita de reconhecer e interiorizar o desvalor da conduta criminal praticada.
São elevadas as exigências de prevenção especial, desde logo, ao nível de socialização e de conformação do arguido com os valores de respeito pela liberdade e autodeterminação sexual, mas também ao nível das necessidades de intimidação e de segurança individual.

Assim, ponderando-se todos estes elementos enunciados, julgamos adequada a fixação das seguintes penas:
- Para o crime dos factos de Dezembro de 2008, a pena de 5 anos e 2 meses de prisão; e
- Para os crimes dos factos de Agosto de 2009, importa distinguir:
(i) para o primeiro crime (segundo a ordem cronológica), a pena de 4 anos e 6 meses de prisão; e
(ii) para o segundo crime, a pena de 4 anos e 9 meses de prisão.
*
2.2.2.3. Da pena do cúmulo jurídico

2.2.2.3.1. Ora, tendo nós concluído que o arguido deve ser condenado pela prática, em concurso real, de três crimes, o que ocorre antes do trânsito em julgado de qualquer um deles, importa, em conformidade com o disposto no art. 77º do CP, determinar – para efeitos de condenação – uma pena única, através da realização do
cúmulo jurídico.

Nos termos do art. 77º, n.º 1, do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
O cúmulo jurídico realiza-se entre penas principais (e não entre penas de substituição, pois só relativamente à pena conjunta é que se pode pôr a questão da sua substituição) e entre penas da mesma espécie 32 - ou todas de prisão ou todas de multa 33.
No caso de as penas serem de espécie diversa – ex. multa e prisão – a lei abandona o sistema da pena conjunta (obtido através de um cúmulo jurídico 34) e impõe a acumulação material (art. 77º, n.º 3, do CP). Ocorre aqui um abandono do sistema da pena única para seguir na essência um sistema de acumulação material (a diferente natureza das penas mantém-se na pena única).
Ora, sendo assim, estando em causa 3 penas de prisão, procederemos à definição da pena única de prisão, através da realização do cúmulo jurídico.
*
2.2.2.3.2. No âmbito do cúmulo jurídico, a pena aplicável – prescreve o n.º 2 do art. 77º do CP – tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, in casu, a moldura legal do cúmulo jurídico é a seguinte: o limite mínimo é de 5 anos e 2 meses de prisão e o limite máximo é de 14 anos e 5 meses de prisão (art. 77º, n.º 2, do CP).

32 Neste sentido, PAULO DÁ MESQUITA, O Concurso de Penas, Coimbra Editora, p. 27.
33 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 286.34 Sobre as possibilidades de tratamento do concurso de crimes, vide JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 279 e ss.
34 Sobre as possibilidades de tratamento de concurso de crimes, vide Jorge De Figeiredo Dias, op. cit., p. 279 e ss.

Neste âmbito, importa ter presente o conjunto dos factos dos quais emerge o
ilícito global, ponderar o comportamento global do arguido aí plasmado, praticado num período de tempo de cerca de 8 meses, portanto, num período relativamente curto, embora revelador de significativo desvalor de acção na prática dos crimes. Os crimes foram cometidos, apesar disso, num âmbito temporal relativamente curto, mediando já bastante tempo desde a sua prática (11/12 anos), tendo o arguido continuado a sua vida, nomeadamente integrado profissionalmente.
Apesar do tempo decorrido e o comportamento assinalado do arguido nesse tempo, julgamos ainda relevantes as necessidades de prevenção especial.
Assim, nos termos do art. 77º, n.º 1 e n.º 2 do CP, ponderando todos os factos praticados, bem como a personalidade do agente neles vertida, as necessidades individuais de prevenção (evidenciadas no desvalor dos factos praticados) e a repressão deste tipo de criminalidade, julgamos ser adequado a aplicação da seguinte pena única: 7 anos e 4 meses de prisão.
*

2.2.2.4. Definida, na sequência do cúmulo jurídico realizado, a pena única de prisão, importa saber se é legalmente possível a sua substituição por alguma das penas de substituição previstas no Código Penal e, após, ponderar se isso se mostra em concreto adequado às finalidades de prevenção.
Na verdade, só relativamente à pena conjunta é que se pode pôr a questão da sua substituição. Em caso de concurso de crimes, só à pena única é possível aplicar uma pena de substituição, perdendo as penas parcelares autonomia35. Portanto, só depois de determinada a pena conjunta (como é o caso), é que, sendo de prisão, o tribunal decidirá se ela pode ser legalmente e deve político-criminalmente ser substituída por pena não detentiva 36.

35 Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21.03.2018, Proc. 227/07.4JAPRT-I.P1, www.dgsi.pt.
36 JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 409. Vide também o Ac. do STJ, de 3.07.2003, Proc. 03P2153, www.dgsi.pt.

No caso sub iudicio, perante a pena concreta de prisão aplicada ao arguido (superior a 5 anos), não é abstractamente equacionável a substituição de tal pena (cfr. art. 50º do CP).

2.2.3. Da amostra biológica para a base de perfis de ADN
Julgamos que se mostra legal, proporcional e adequado que seja ordenada a recolha de amostra biológica para a base de perfis de ADN ao arguido.
A Lei n.° 5/2008, de 12 de Fevereiro, aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN (ácido desoxirribonucleico - cfr. art. 2°, al. a), para fins de identificação civil e de investigação criminal.
Nos termos do art. 8°, n.° 1 do referido diploma legal, “A recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no art.° 172° do Código de Processo Penal”.
Estipula o n.º 2 do referido art. 8º que “A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença”.
O arguido será condenado, in casu, por crime doloso com pena concreta igual ou superior a 3 anos 37.
Ora, perante a gravidade dos factos praticados, tendo presente os objectivos de investigação criminal da base de dados de perfis de ADN, julgamos ser perfeitamente proporcional e adequado, ponderando os valores em confronto, determinar a inserção nessa base de ADN do perfil respectivo do arguido referido supra (desde logo, também), tendo presente o modo como o mesmo é recolhido (cf. arts. 9º e 10º da Lei n.º 5/2008), com total respeito pela dignidade humana e a integridade física e moral individual do arguido condenado.

37 O Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.12.2018, Proc. 279/16.6PBCTB.C1, www.dgsi.pt, refere que é obrigatória a recolha de amostra de ADN em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos. Sendo o arguido condenado em pena de prisão de 3 anos e 9 meses, o facto desta pena de prisão ter ficado suspensa na sua execução por igual período, não retira a obrigatoriedade de recolha de ADN ao arguido.

Atento o exposto, verifica-se estarem reunidos os pressupostos formais para que se determine, com vista à criação da base de dados prevista pela lei em causa, a recolha de amostras de ADN ao arguido, para os fins previstos no artigo 18°, n.° 3, do mesmo diploma legal.
Em termos materiais, julgamos que tal recolha se mostra de igual modo justificada, considerando o tipo de criminalidade em análise, compatível com ulteriores investigações, o que decidiremos em conformidade.
* *
2.2.4. Do pedido de indemnização cível

2.2.4.1. D. A. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido F. S., pedindo a sua condenação na quantia de 85.000,00 €, por danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento.
Ora, a prática de um crime não gera apenas responsabilidade penal, pois pode dar origem a prejuízos patrimoniais e morais quanto aos lesados desses bens jurídicos, gerando responsabilidade civil.
O ressarcimento dos prejuízos (e danos), fundados na prática de crime, objecto do processo penal, é deduzido no processo penal respectivo.
Estabelece, nesta conformidade, o art. 71º do CPP que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo...”.
No pedido de indemnização civil deduzido ao abrigo da previsão normativa do art. 71.º do CPP, a causa de pedir é constituída pelos factos constitutivos da prática de um crime 38.

38 Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.10.2017, Proc. www.dgsi.pt.
68/11.4TAPNI.C1,

Define o art. 129º do CP que “A indemnização por perdas e danos emergentes
de crime é regulado pela lei civil”.
Portanto, apesar disso, é na lei civil que devemos procurar os pressupostos da responsabilidade civil, bem como os critérios para a fixação quantitativa da indemnização.
Explica Maia Gonçalves 39 que a prática de uma infracção criminal é possível fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes: uma acção penal, para julgamento, e, em caso de condenação, aplicação de reacções penais adequadas, e uma acção cível, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado lugar. A unidade de causa impõe entre as duas acções uma estreita conexão.
Contudo, o fundamento da responsabilidade civil a julgar num julgamento criminal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Tal significa, em caso de absolvição do crime, a consequente exclusão da responsabilidade civil decorrente de incumprimento contratual (fundada na violação contratual), que não decorra directamente da prática do crime (que só pode ser julgada em tribunal cível), podendo haver causas de extinção da responsabilidade criminal que não impliquem absolvição, como seja a prescrição ou amnistia, mas também, havendo absolvição do arguido pela prática de crime, haverá que considerar o pedido cível formulado se existir ilícito ou responsabilidade fundada no risco, ou seja, responsabilidade civil extra-contratual 40.
Tendo presente o exposto, importa, de seguida, apreciar o pedido de indemnização civil formulado nos autos.
*
2.2.4.2. Dos pressupostos da responsabilidade civil

39 Código de Processo Penal Anotado, 10ª edição, Almedina, 1999, p. 214.
40 Vide FERNANDO GAMA LOBO, Código de Processo Penal Anotado, p. 102-4. Cfr. Ac. da Relação de Coimbra, de 25.02.1998, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIII, Tomo I, 1998, p. 57; Assento do STJ n.º 7/1999, de 17.06.1999, DR. de 3.08.1999; Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2002, de 17.01.2002, DR., de 5.03.2002.

Nos termos do art. 483º, n.º 1 do CC (Código Civil), “Aquele que, em dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Sempre que se verifiquem os pressupostos ou requisitos do art. 483º, n.º 1 do CC nasce uma obrigação de reparar os danos causados 41.
Para se estabelecer a responsabilidade civil por factos ilícitos a título de culpa é necessário, portanto, que ocorram os seguintes requisitos: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. Estes reconduzem-se à existência de um facto humano qualificável como ilícito, nexo de imputação do facto ao agente, nexo de causalidade e dano.
A regra é a de que a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual pressupõe a existência de um facto voluntário ilícito, isto é, um facto controlável ou dominável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal ou um direito ou interesse de outrem legalmente protegido, censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico, ou seja, imputável a título de dolo ou culpa (nexo de imputação do facto ao agente), de um dano ou prejuízo reparável e de um nexo de causalidade adequada entre esse dano e aquele facto (arts. 483º, n.º 1, 487º, n.º 2, 562º, 563º e 564º, n.º 1, todos do CC).
Para que haja responsabilidade civil é indispensável que o facto praticado pelo agente ocasione um dano a terceiro. O dano é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
A obrigação de reparar um dano pressupõe ainda a existência de um nexo causal entre o facto e o dano (art. 563º do CC); não basta que o evento tenha produzido (naturalisticamente) certo efeito, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, adequada à produção desse efeito, desempenhando este a função de pressuposto da responsabilidade civil e de medida da obrigação de indemnizar.

41 SINDE MONTEIRO, “Rudimentos da Responsabilidade Civil”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano II, 2005, p. 359

Ora, in casu, provaram-se factos que consubstanciaram a prática, por parte do arguido, de três crimes de violação agravado, de que foi vítima a demandante cível. Tratam-se de factos ilícitos culposos (dolosos) que causaram danos não patrimoniais com bastante significado (os julgados como provados e analisados infra) à demandante cível (vítima de tais crimes), sendo que existe claramente um nexo de causalidade entre os referidos factos ilícitos culposos (criminais) e os danos (cfr. a matéria dada como provada).
Portanto, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que cumpre apreciar os danos não patrimoniais referidos e quantificar a reparação adequada aos mesmos.
*
2.2.4.3. Dos danos e sua quantificação

2.2.4.3.1. Quem estiver obrigado a reparar um dano “deve reconstituir a
situação que existiria” se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A obrigação de indemnizar tem como referencial, sem qualquer limitação, os “danos que o lesado não teria sofrido” se não fosse a lesão (art. 563º do CC).
Conforme resulta do art. 562º do CC, o sentido e fim da indemnização é a criação da situação em que o lesado estaria presentemente, no momento em que é julgada a acção de responsabilidade, se não tivesse tido lugar o facto lesivo – situação hipotética ou provável, portanto –, e não a reconstituição da situação anterior à lesão 42.
A reparação dos danos deve efectuar-se, em princípio, mediante a reconstituição natural; mas quando isso não for possível ou não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor, então haverá que proceder à reconstituição por equivalente em dinheiro (art. 566º, n.º 1 do CC). Nesta hipótese, o dano real ou concreto é expresso pecuniariamente, reflectindo-se sobre a situação patrimonial do lesado.

42 Cfr. CALVÃO DA SILVA, RLJ, Ano 134º, N.os 3927 e 3928, p. 113.

Portanto, na fixação da indemnização temos a valoração ou determinação do
dano e a liquidação, em dinheiro, do valor do dano estimado ou determinado. O momento da tradução em dinheiro da obrigação de ressarcimento do dano é o da data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (art. 566º, n.º 2 do CC), que, in casu, coincide com o momento do encerramento da discussão da 1ª instância (art. 663º, n.º 1 do CPC). A liquidação do dano ou a sua tradução em dinheiro deve ser feita na base do valor mais actual possível da moeda para assim se assegurar a reconstituição integral da situação patrimonial da vítima.
O dano – que pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme abranja prejuízo susceptível de avaliação patrimonial ou não – compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) – art. 564º, n.º 1 do CC (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado43 ou um aumento do passivo44) – para além dos danos futuros – art. 564º, n.º 2 do CC.
In casu, a demandante cível pretende ser ressarcida por danos não patrimoniais. Tomaremos, assim, posição, em função da factualidade julgada como provada, sobre tais danos peticionados nestes autos.
*
2.2.4.3.2. Danos não patrimoniais

A demandante peticiona nestes autos o pagamento de danos não patrimoniais,
que descreve e quantifica em 85.000,00 €.
Ora, comecemos por enquadrar os factos e enunciar os danos apurados nestes autos, analisando a matéria de factos julgada como provada.

Mostra-se provado que:

- D. A., quando tinha 13 e 14 anos (em 2008 e 2009), em três momentos temporais diferentes, foi obrigada pelo arguido, seu pai, a manter, com o mesmo, relações sexuais de cópula (vide a descrição de cada um dos actos em causa na matéria julgada como provada).

43 ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª Edição, Almedina, p. 546.
44 Neste sentido, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, 9ª ed., p. 621, nota

- E tal ocorreu na casa onde residiam.
- Em duas dessas ocasiões, o arguido obrigou a demandante cível a tomar a pílula do dia seguinte.
- E disse-lhe: “não podes contar a ninguém o que se passou, porque senão ficas sem família, ninguém vai gostar de ti pelo que fizeste, tu é que tens a culpa, és uma puta”, o que a mesma cumpriu até 2018.
- O arguido agiu sempre com o propósito de, usando da sua força física e violência, e colocando-a na impossibilidade de resistir, manter relações e actos sexuais com a D. A., contra a vontade desta, para satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente à oposição que a mesma manifestava à prática de tais actos.
- Sabia que essas actos eram atentatórios da sua liberdade e autodeterminação sexual.

Por força do exposto, mostra-se provado:
- D. A., desde os primeiros dos actos descritos, passou a viver momentos de terror, aflição e desespero sempre que o seu pai regressava a Portugal.
- Ficava apavorada sempre que se encontrava sozinha com o seu pai em casa, refugiando-se em qualquer compartimento da casa onde não estivesse o seu progenitor.
- Passou horas, dias, meses de enorme tristeza e desgosto, chorando compulsivamente na solidão do seu quarto.
- Com receio de contar à sua mãe o ocorrido.
- A demandante é, hoje, uma pessoa triste e traumatizada, que jamais esquecerá os abusos de que foi vítima.
- Necessita de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para lidar, dentro do expectável, com tais episódios que permanecem presentes na sua memória, que a perturba e que a irão acompanhar durante toda a sua vida.
- O arguido sabia que, com o seu comportamento, perturbaria a alegria e a felicidade da filha D. A., e prejudicava gravemente o seu desenvolvimento físico e psíquico.
- D. A. ficou afectada, com o comportamento do arguido, no seu crescimento, na estabilidade emocional e na sua personalidade.
- Ficou ofendida na sua honra, no seu bom nome, na sua paz, na sua tranquilidade, e na sua liberdade e autodeterminação sexual.
- Tais actos causaram-lhe traumas, medos e inquietações, ficando receosa de que voltasse a ocorrer.
- A demandante sentiu-se profundamente perturbada, magoada, desconsiderada, desgostosa e humilhada com os actos praticados pelo arguido.
- O arguido agiu indiferente às repercussões dos danos físicos e psíquicos que iria provocar sobre a mesma.
- Antes, D. A. era uma pessoa alegre, tranquila, sociável, bem-disposta, carinhosa e afável.
- Depois, passou a demonstrar frequentemente comportamentos inquietos, nervosos e de inconformismo.
- Passou a ser uma pessoa traumatizada, triste, abalada, pesarosa, revoltada, complexada.
- Passou a demonstrar comportamentos emocionalmente instáveis. - Chegou mesmo, por vezes, a urinar na cama.
- Os factos foram recentemente conhecidos pela família materna, deixando-a apreensiva e envergonhada.

Estamos, pois, perante danos não patrimoniais graves e relevantes.
Danos não patrimoniais são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado. E porque não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais natureza compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo, que não pode deixar de estar presente a vertente sancionatória 45.
O objectivo da reparação dos danos morais, para além de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente, é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, uma “compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções – porventura de ordem puramente espiritual – que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consistiria num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris”46.
Para os danos não patrimoniais, o art. 496º, n.º 3 do CC manda fixar o montante da respectiva indemnização equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade dos agentes, a situação económica destes e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e o correspondente sofrimento, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência ou as flutuações do valor da moeda47.
Deverá ter-se ainda em conta que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. A compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do art. 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
O montante da indemnização – segundo Antunes Varela 48 – deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir. E, citando G. Verga, mais escreve: “Embora a determinação dos danos desta natureza - danos não patrimoniais indemnizáveis - e do seu montante dependa do prudente arbítrio do juiz, deve este referir sempre com a necessária precisão o objecto do dano, para evitar que a sua liquidação se converta num acto puramente arbitrário do tribunal”.

45 Cfr. SOUSA DINIS, Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJ STJ, Ano IX, Tomo I, p. 6.
46 FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, 1999, p. 375.
47 Cfr. Ac. do STJ de 18 de Março de1997, CJ STJ, Ano V, Tomo I, 1997, p. 163 e ss., e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, Vol. I, 9ª edição, p. 629).
48 Op. cit., p. 627-629.

Para Mota Pinto 49, os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis; não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.
Resulta do exposto que, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que manda julgar de harmonia com a equidade, se deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.
Os danos supra descritos, sofridos pela demandante nestes autos, por não revestirem natureza económica, são danos não patrimoniais que, pela sua relevância e gravidade, são susceptíveis de ofender e ofenderam, de modo relevante, a personalidade física, psíquica e sexual da ofendida, demandante nestes autos – direitos de personalidade –, pelo que julgamos serem merecedores de uma adequada reparação pecuniária.

49 Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 115.

Nesta determinação monetária não podemos deixar de ter em consideração as
circunstâncias que determinaram os danos que mereceram a supra referida censura penal mas também agora civil, ou seja, os factos ocorreram sem qualquer justificação ou enquadramento possível que não seja a sua absoluta censurabilidade, no âmbito da prática de actos ilícitos culposos criminais de violação, de que a demandante cível foi vítima.
Portanto, tudo factores que se reflectem na ilicitude e na culpa da conduta do arguido demandado e que necessariamente se deve reflectir no montante indemnizatório a atribuir à lesado.
Para além disso, ter-se-á em consideração a situação económica do arguido / demandado nos termos julgados provados e (na medida do possível) da demandante cível.
Assim sendo, ponderando os danos morais (ou não patrimoniais) sofridos por D. A. enunciados supra, quer aquando da prática de cada um dos factos (e mostram-se provados 3 factos autónomos), quer no período de tempo (longo) que se seguiu, tendo presente os concretos danos apurados, a afectação da vida da demandante cível, numa tenra idade, em especial a nível psicológico e sexual, a actuação dolosa do arguido em casa um dos actos praticados e todas as demais circunstâncias enunciadas supra e agora aqui consideradas, julgamos ser de avaliar, de acordo com um juízo de equidade, os danos (não patrimoniais) em causa no montante de 20.000,00 €.
Nestes termos, o arguido, demandado nos autos, será condenado a pagar tal valor, valor este atribuído tendo em linha de conta o critério actualista definido no n.º 2 do art. 566º do CC, ou seja, a avaliação dos danos reporta-se à data desta decisão.
*
2.2.4.3.3. Dos juros de mora

A demandante deduz ainda um pedido de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento.
Resulta do art. 805º, n.º 3 do CC que o termo inicial da contagem de juros moratórios, no caso de responsabilidade por facto ilícito, é, em regra, a citação para a acção, quer o crédito seja líquido quer seja ilíquido.
Porém, a indemnização pecuniária referente a danos que foram calculados segundo um juízo actualista de equidade (art. 566º, n.º 2 do CC), de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002 50, vencem juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente) e 806º, n.º 1, ambos do CC, a partir da decisão actualizadora, e não da citação (o STJ uniformizou jurisprudência no sentido da inadmissibilidade da acumulação de juros de mora desde a citação com a actualização da indemnização em função da taxa de inflação).
Portanto, os juros de mora pelos danos não patrimoniais fixados com recurso à equidade de forma actualista são devidos, à taxa legal, desde a data desta decisão até efectivo e integral pagamento, o que decidiremos em conformidade.
50 DR., I Série, N.º 146, de 27 de Junho de 2002.
*
2.2.5. Das custas e encargos do processo

O arguido será condenado nestes autos nos termos descritos.
Assim, nos termos do art. 513º do CPC, será responsável pela taxa de justiça (n.º 1), sendo tal condenação individual (n.º 3).
A taxa de justiça é fixada nos termos prescritos no Regulamento das Custa Processuais.
Em processo penal, a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III (art. 8º, n.º 9 do RCP).
Nestes termos, tendo presente os limites da tabela III anexa ao RCP – para os casos de condenação em processo comum (2 a 6 UC) –, in casu, atenta a complexidade da causa, considerando, nomeadamente, as sessões de julgamento, a extensão e duração da prova produzida e dificuldade da presente decisão, fixaremos a taxa de justiça devida em 4 (quatro) UCs.

Para além da taxa de justiça, nos termos do art. 514º do CPP, o arguido é responsável pelo pagamento dos encargos do processo a que a sua actividade houver dado lugar (n.º 1).
Sem prejuízo do exposto, determinaremos o pagamento das facturas da DGRS (art. 2.º, n.ºs 3 e 4 da Portaria n.º 175/2011, de 28/04, e tabela Anexa), enquanto encargos do processo a adiantar pelo IGF (arts. 4.º n.º 1, al. a) (isenção), 19º e 20º, n.º 2 do RCP).
Uma vez que o Ministério Público está isento de custas nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do RCP, esse pagamento é adiantado pelo IGF, IP, sem prejuízo de o seu reembolso entrar na conta de custas como um encargo.
Relativamente à instância cível, as custas ficarão a cargo do arguido (demandado) e da respectiva demandante cível, na exacta proporção do respectivo decaimento (art. 527º, n.º 1 e 2 do CPC ex vi do art. 523º do CPP), tendo-se presente o valor do pedido e o valor fixado a título indemnizatório.
* * *

3. DECISÃO

3.1. Parte criminal.

Julgamos a acusação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:

a) Absolver o arguido F. S., pela prática de um crime de coacção agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, de que vinha acusado;
b) Condenar o arguido F. S. pela prática, em concurso real, de:
i. um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CP, na pena (parcelar) de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
ii. um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, na pena (parcelar) de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
iii. um crime de violação agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelos arts. 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), e n.º 5, do CP, na pena (parcelar) de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;
iv. em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
c) Determinar a recolha de amostras biológicas ao arguido para inserção na base de perfis de ADN; e
d) Condenar o arguido nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
*

Proceda-se ao pagamento das facturas da DGRS juntas aos autos, enquanto encargos do processo a adiantar pelo IGF, sem prejuízo do seu reembolso entrar na conta de custas.
*
Após trânsito:
- Comunique aos serviços de identificação criminal (SICRIM).

- Comunique-se para efeitos de recolha de amostra biológica ao arguido nos termos decididos.
- Passe mandados de condução do arguido ao estabelecimento prisional. *
Deposite (art. 372º, n.º 5 do CPP).
* *
3.2. Parte cível.

Julgamos o pedido de indemnização civil deduzido por D. A. nos autos parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
i. Condenar o demandado cível F. S. a pagar-lhe:
a. a quantia de 20.000,00 € (vinte mil euros), por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento;
ii. Absolver o demandado / arguido do demais peticionado.

Custas cíveis a cargo do arguido / demandado e da demandante cível, na exacta proporção do respectivo decaimento.
Notifique.”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Da Impugnação da Matéria de Facto
2.1.2. – Da Nulidade do Acórdão, por Falta de Fundamentação
2.1.3. – Do Crime de Violação
2.1.4. – Da Medida da Pena
2.1.5. – Do Montante da Indemnização Atribuída à Vítima

2.2. – Da Impugnação da Matéria de Facto

O recorrente F. S. põe em causa pequenas frações dos factos provados, quais sejam:
- facto 4 – que S. S. saíu para o trabalho;
- facto 11 – que tenha ejaculado;
- facto 14 – que comprou a pílula do dia seguinte;
- facto 19 – que introduziu o seu pénis ereto, na vagina daquela;
- facto 23 – que tenha ejaculado;
- facto 24 – que tenha dado à sua filha a pílula do dia seguinte.

Está pois em causa, nestes autos, o poder de o Tribunal da Relação alterar os factos provados, o que tem a ver com o exercício da dupla jurisdição em matéria de facto, pelo Tribunal da Relação.

Deve porém desde já esclarecer-se que em Processo Penal, só no julgamento em 1ª instância se está nas melhores condições para avaliar as provas, por só aí se beneficiar em pleno dos princípios da oralidade e imediação. Assim e por princípio, o Tribunal da Relação só deve alterar os factos quando se aperceber de qualquer erro nítido de julgamento, ilogicidade ou utilização de provas proibidas que tenha ocorrido em 1ª instância. Não se trata pois, de um segundo julgamento para pesar argumentos, quanto à solução ideal do pleito. Com efeito, só a 1ª instância analisou com imediação e oralidade os factos em julgamento – linguagem não verbal, reações corporais, expressões e tantos outros fenómenos que escapam a uma simples gravação – pelo que, em princípio é o Tribunal mais apto, a bem conhecer dos mesmos.

Aliás, o recorrente é obrigado a fazer referência às provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º/3, b), C.P.P.), o que é bem diferente de se referir a provas que podem conduzir a uma decisão diferente.

Como se disse no Acórdão da Relação de Coimbra de 12/9/2 012, Proc.º 245/09, em www.dgsi.pt,

“O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e oralidade.
Por outro lado, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.”

A questão da mera opinião ante as provas produzidas não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto, pois o Tribunal de recurso não beneficia dos mesmos princípios da imediação e oralidade, de que beneficiou o Tribunal da 1ª instância, nem pode pôr questões ao arguido/testemunhas sobre dúvidas que se lhe suscitem.
Vejamos pois, quais as questões sobre matéria de facto suscitadas pelo recorrente, no recurso apresentado.
Quanto ao referido facto 4), refere o arguido que o facto de a Mãe da ofendida ter ido trabalhar, não decorre de qualquer meio de prova, sendo que até a assistente disse não se recordar se a Mãe tinha ido trabalhar, não tendo a sua própria Mãe, S. S., referido em Tribunal a razão da sua ausência.

Porém e ouvida toda a prova produzida, temos que:

- o próprio arguido F. S. referiu que a sua Mulher trabalhava numa “fabriqueta” e que ficava em casa com os filhos, quando a mesma ia trabalhar;
- a assistente D. A. confirmou que a Mãe trabalhava numa confeção têxtil e saía cedo. Não se recorda da hora, nem se nesse dia era um dia útil;
- a testemunha S. S., Mãe da assistente, confirmou também que trabalhava nos dias úteis e por vezes ao Sábado, numa fábrica de confeções em Rio …, sendo pois possível que, por essa razão, o arguido, então seu Marido, tenha ficado em casa com os filhos.
É de facto verdade, que sob esta fração da factualidade provada, não havia prova direta. Porém, o Tribunal recorrido convenceu-se desta versão com base nesta prova indireta e com base no princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127º C.P.P.
O recorrente contra-argumenta, com a ausência de prova direta, nesse sentido. Porém, não consegue demonstrar que se impõe decisão diversa da assumida, isto é que a Mãe da ofendida não foi trabalhar – art.º 412º/3, b), C.P.P.
É o seu convencimento, contra o do Tribunal, que apontou até a existência de prova direta e de prova indireta.
Estes factos são laterais aos crimes cometidos, pelo que não pode invocar-se o princípio “in dúbio pro reo” – nada acrescentam ou retiram, à questão da prática dos crimes, pelo arguido.
A dupla jurisdição em matéria de facto não atribui ao recorrente um direito a uma segunda opinião, mas apenas à verificação sobre a lógica do juízo probatório da legalidade das provas obtidas.
Assim e estando apenas em causa questões subjetivas da apreciação da prova, não pode este Tribunal fazer prevalecer a opinião do recorrente sobre a do Tribunal, até por que o mesmo julgou com imediação e oralidade, de que este Tribunal não dispõe perante uma simples gravação, por vezes em mau estado, dos depoimentos/declarações prestadas.
Não pode assim, este primeiro argumento do arguido recorrente proceder.
Os factos 11) e 23) dos factos provados dizem respeito à mesma questão, em datas diferentes – se o arguido ejaculou, no 1º e 3º atos de violação, respetivamente em Dezembro de 2 008 e no último ato de violação, de Agosto de 2 009.
O arguido nega estes factos, dizendo que nunca violou a filha, nem foi a alguma Farmácia em Barcelos.
A sua filha D. A. refere que, após os factos o Pai a obrigou a tomar um comprimido, sendo que da primeira vez, o foi comprar a Barcelos, sendo que a Farmácia habitual da família era a mais próxima, em Esposende, junto das M.. Referiu ainda que quando o Pai apenas se “esfregava” nela, não haviam comprimidos.
E, como contra-alega e bem a assistente, que lógica faria ir comprar este comprimido a uma Farmácia mais longe e desconhecida, senão para ocultar o que comprava? Se fosse um simples analgésico, antipirético ou anti-inflamatório, porque não comprá-lo na farmácia mais próxima?
Aliás, o arguido nunca referiu à assistente para que servia o comprimido, apenas a obrigou a tomá-lo.

E que comprimido podia esse ser, que não a pílula do dia seguinte?

Que aliás é já há cerca de 15 (quinze) anos, de venda livre em Farmácias e noutros locais adequados, como Supermercados ou Bombas de Gasolina, que para isso tenham condições – D.L. n.º 134/05, 16/8, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 238/07, 19/6.
O que resulta diretamente até da consulta “on-line” do endereço “sns24.gov.pt” e da lista de medicamentos “M.N.S.R.M.” (Medicamentos Não Sujeittos a Receita Médica) constante do site da “Infarmed” – onde estão incluídos os medicamentos de marca “Postinor”, “Postinor Odis”, “Norlevo” e “Cumbran” e os genéricos “Levonorgestrel Mylan” e “Teva”, todos com esta substância ativa, que é ainda a única desta pílula de emergência (e não abortivo).
Aliás, o recorrente indica preceitos com sentido contrário ao que indica (o art.º 3º/1, b), L. 12/01, 29/5) que previa exatamente a possibilidade de alguns dos produtos serem de venda livre ou revogados (como o D.L. n.º 209/94, 6/8, revogado pelo D.L. n.º 30/8, 17/6).
É pois, nesta parte, manifesto o erro do arguido recorrente e também que a dita “pílula do dia seguinte” é um medicamento de venda livre e por isso completamente acessível em qualquer Farmácia e até em Supermercados e Bombas de Gasolina autorizados a vender medicamentos “M.N.S.R.M.”, vulgarmente conhecidos como de “venda livre”.
A assistente D. A. só mais tarde associou este comprimido tomado no dia seguine, como “pílula do dia seguinte”.
O arguido pura e simplesmente negou, não dando qualquer explicação para a toma desse medicamento, pela sua filha e a seu mando.
É pois mais do que legítimo e porque a assistente foi convincente nas suas declarações, pensar-se, como o fez a assistente anos mais tarde, que o medicamento dado pelo arguido à sua filha, ora assistente, foi a vulgarmente denominada “pílula do dia seguinte”.
E daí extrapolar-se ainda com segurança, que sempre que deu a “pílula do dia seguinte” à sua filha, o arguido teria ejaculado, em ato de cópula com ela.
É que, o citado medicamente foi dado a seguir à primeira violação (em Dezembro de 2 008) e também após a terceira (a última, de Agosto de 2 009), não tendo sido administrado quando da segunda (em inícios de Agosto de 2 008).
Mais, é a própria ofendida e assistente, D. A., que referiu nas suas declarações, que em outras ocasiões em que o arguido apenas se “esfregava”, não haviam comprimidos.
É pois perfeitamente legítimo e plausível pensar-se que o arguido dava à sua filha a “pílula do dia seguinte” à sua filha, sempre que com ela mantinha relações sexuais de cópula completa, isto é, ejaculando.
É óbvio que, como diz o recorrente, a Mulher pode engravidar, mesmo numa relação sexual sem ejaculação. Com efeito, o líquido pré-ejaculatório pode conter espermatozoides, o que pode ser suficiente para que uma Mulher engravide, no âmbito de uma relação sexual.
No entanto e como se sabe, esta hipótese não é comummente representada, pelo Homem comum. Assim, que continue a ser utilizado como método de contraceção o do “coito interrompido”, apesar das gravidezes que já gerou – apesar de diminuir o risco de gravidez, não o exclui totalmente. Bem se pode dizer que esta possibilidade de conceção, também por via do líquido pré-ejaculatório, não é tomada em conta pelo “Homem médio” ou “comum”, mas apenas ainda por uma minoria que conhece mais em rigor, estas questões biológicas.
O arguido tem a 4ª classe e exercia atividade profissional como Operário da Construção Civil, em França (pontos 48) e 54) da matéria de facto provada).
O normal é que não tivesse ou não valorizasse, estes conhecimentos da Medicina e da Biologia.
Compreende-se assim bem, que só valorizasse a possibilidade de a própria filha engravidar de si, quando ejaculasse e que só nesses casos usasse meios de contraceção de emergência, como a pílula do dia seguinte.

Os outros dois segmentos de pontos da matéria de facto provada que o arguido recorrente põe em causa, são os que se referem nos arts.º 14º e 24º, da matéria de facto provada e são relacionados com a referida “pílula do dia seguinte” e, mais concretamente:

- o facto de no ponto 14) da mesma, se referir que o arguido comprou a pílula do dia seguinte;
- o facto de no ponto 24) da mesma, se referir que o arguido deu à sua filha e ofendida S. S., a pílula do dia seguinte.

É certo que, como refere o recorrente, a assistente refere que não sabia o que era, esse comprimido. Mas, logo quando lhe perguntaram o que achava hoje que era, a mesma respondeu sem qualquer dúvida que se tratava da “pílula do dia seguinte”.
Ora e pelo que se referiu, o raciocínio que a assistente faz hoje é o único que faz sentido. Sai assim reforçado e com lógica, pela fundamentação dada pelo Tribunal, que muito se aproxima conclusão já antes exposta.
É que, o facto de a ofendida desconhecer ao tempo do que se tratava, não impede que o Tribunal tire outra conclusão, através de prova indireta. A conclusão é lógica e plausível e não se baseia em meios de prova proibidos.
Mais uma vez, o recorrente apresenta uma opinião diferente, mas não apresenta uma versão que finalmente se imponha, nos termos do disposto no art.º 412º/3, b), C.P.P. Tratando-se de mera questão de opinião ou de plausibilidade, deve permanecer a do Tribunal “a quo”, que julgou no domínio do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º C.P.P.) e com a necessária imediação e oralidade. Refira-se ainda que a fundamentação foi lógica, coerente e credível, aliás como nos pontos anteriores – muito relacionados com estes – se assinalou.
Quanto à questão de a menor ser já ou não menstruada, o certo é que a mesma já teria, à data dos factos, 13 (treze) anos e 8 (oito) meses ou cerca de 14 (catorze) anos e 4 (quatro) meses de idade, pelo que constitui facto público e notório que a mesma já seria fértil, na ausência de qualquer particularidade, que os Pais ou a própria não descreveram. Ou seja: se isso acontecesse, o normal seria o arguido colocar a questão nas suas declarações e não só agora, em “ultima ratio” e de forma não explicada.
Falta assim e agora, apenas referência ao segmento do facto 19 – “introduziu o seu pénis ereto, na vagina daquela”.
Refere o recorrente que a assistente não foi perguntada, sobre estes factos. E que o facto de a assistente ter dito que o pai a “voltou a violar” é insuficiente para que se tirem quaisquer conclusões, uma vez que o termo “violar” é polissémico. No seu entender, este termo não quer dizer que tenha havido cópula.
Considera que o referido termo “pode descrever uma situação de abuso, que tanto abrange a cópula, como a cópula vulvar, o coito ou o simples toque.” Questiona a seguir, “voltou a fazer o quê? A encostar? A tirar a roupa? O que é isso de violar, para a assistente?”
Porém e ouvida a assistente, aliás tal como toda a prova produzida em julgamento e lida a documental constante dos autos (art.º 412º/6 C.P.P.), verifica-se que a assistente já quanto à primeira vez dissera que o Pai lhe introduziu o pénis na vagina, que era virgem, que sentiu dor e que ficou sangue no chão.
A segunda vez (ocorrida no início de Agosto de 2 009) é a que está em causa, no art.º 19º), dos factos provados. A assistente não disse só, que foi outra vez violada. Referiu ainda que disse ao seu Pai: “por favor, pára”, “estás-me a magoar”. O Pai ameaçava-a e a Mãe não estava em casa, porque trabalhava.
Quanto à terceira vez, esclareceu mais uma vez que o Pai a violou, que lhe pôs o pénis na vagina.
Sabido que da primeira e da terceira vez houve violação, com introdução do pénis do arguido, na vagina da assistente, que a mesma teve dores e perdeu até a virgindade, a referida expressão “volyou a violar” só pode querer dizer que houve nova introdução do pénis do Pai, na sua vagina. Que aliás, lhe voltou a causar dores.
O que só é compatível com a ereção do pénis, como é óbvio – de outro modo, não entraria, nem causaria dor.
Deste modo, bem se entende que a ofendida sempre se referiu a violação, no sentido da introdução do pénis, na vagina, naturalmente ereto e de forma a causar-lhe dor.
Aliás, o termo violação está associado à noção de cópula, isto é de introdução do órgão sexual masculino, no órgão sexual feminino. Que, ao contrário do referido pelo recorrente não é polissémico, distinguindo-se plenamente das noções de coito vulvar, anal, oral, interrompido ou vestibular e que nunca pode ser confundido com um “simples toque”. O termo “coito” pode ter vários sentidos, mas o termo violação, em linguagem comum, não.

2.3. – Da Nulidade do Acórdão por Falta de Fundamentação

Considera ainda o recorrente que existe falta de fundamentação quanto aos atos de violência vertidos nos pontos 9), 10) e 11) dos factos provados e quanto à globalidade dos factos descritos em 22) e 23), também dos factos provados.
Em consequência discorre, devem tais factos ser considerados como não provados ou, no mínimo, deve ser declarada a nulidade do Acórdão, nos termos do disposto nos arts.º 374º/2 e 379º/1, a), C.P.P.
No que se refere ao facto 19), considera que existe erro notório na apreciação da prova e contradição, entre a fundamentação e a decisão – apesar de estes vícios se enquadrarem no disposto no art.º 410º/2, b) e c), C.P.P., esta referência foi colocada sob o título da “nulidade do Acórdão”.
Quanto aos pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto provada e na parte referente à utilização de violência, pelo arguido. Dizem estes factos respeito à violência utilizada pelo arguido, no sentido de violar a sua filha pela primeira vez, em Dezembro de 2 008.
A fundamentação destes factos consta efetivamente, como diz a assistente nas suas contra-alegações, de fls. 15 do Acórdão, em que se referem as declarações da assistente.
É certo, que quanto a alguns excertos ou partes de factos, os factos provados excedem a motivação para os mesmos.
Isso porém, não determina a declaração de nulidade do Acórdão, nos termos do disposto nos arts.º 374º/2 e 379º/1, a), C.P.P.
É que a nulidade é o vício para a sentença/Acórdão com falta de fundamentação e não para a deficiente fundamentação.
Com efeito e como se disse já no Acórdão da Relação de Lisboa de 2/10/18 (citado pelo Dignm.º Procurador Geral Adjunto junto desta instância), aliás de encontro ao decidido no Ac. do S.T.J. de 3/4/03, “C.J. – S.T.J.”, A. 11º, T. 2, pág. 157 e ao Acórdão do S.T.J. de 12/4/20, Proc.º 141/2 000 e quando tratava da análise crítica da prova
“A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o ato de decidir numa tarefa impossível.
(…) Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo.”
Neste sentido também, o Acórdão da Relação de Lisboa de 28/11/2 006, Vieira Lamim, Proc.º 9081/06, ao que se crê ainda inédito.
Aliás e quando trata da motivação do Acórdão, o art.º 374º/2 C.P.P. refere-se a “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico da prova”.
O legislador apela a que a fundamentação da decisão, de facto e de direito e a própria análise crítica da prova sejam “tanto quanto possível completa(s)” e “concisa(s), o que é bem diferente de serem exaustivas.
Ora, no caso concreto, dúvidas não restam sobre qual foi a opção do Tribunal e porquê, tendo o mesmo explicitado as razões por que aderia à explicação da assistente, quanto à prática de atos sexuais de cópula contra sua vontade e de forma ameaçatória e violenta.
São estes, os factos relevantes e que estão suficientemente concretizados.
Se a “agarrou pelos braços”, se “lhe colocou uma das mãos sobre a boca” ou se foi ele que lhe “afastou as pernas” são pormenores que não interferem com a decisão da causa. Aliás, bem se compreende que assim tenha sido, por ilação judiciária e tendo em conta os outros factos narrados.
A análise crítica da prova deve assim referir-se a grupos de factos com interligação entre si, no sentido de se perceber a razão por que o Tribunal decidiu em determinados termos. Mas não tornar-se numa tarefa hercúlea e irrazoável de tudo fundamentar, aos mais ínfimos pormenores, sob pena de nulidade.
A ausência de fundamentação da decisão de facto ou de análise crítica da prova não pode assim referir-se a todo e qualquer pormenor, até porque aí haveria quando muito uma fundamentação deficiente da matéria de facto, mas nunca a sua ausência.
A ausência de fundamentação referida nos termos do disposto nos arts.º 374º/2 e 379º/1, a), C.P.P. refere-se assim à total ausência de fundamentação na decisão e não à sua eventual deficiência, num ou noutro pormenor.
Aquela deve sempre ser analisada com um critério de razoabilidade e quando não tenham sido fundamentados certos pormenores da decisão de facto, deve verificar-se se os mesmos foram fixados de encontro à versão que fez vencimento e com um critério de razoabilidade, sob pena de, em certos processos mais complexos ou maiores, qualquer decisão poder ser anulada apenas devido a pormenores.
Sendo este o critério utilizado, não se pode dizer que confrontando os pontos 9), 10) e 11) da matéria de facto, sobretudo com fls. 398 da fundamentação da matéria de facto, aqueles não estejam suficientemente fundamentados.
Improcede pois e nesta parte, a nulidade do Acórdão arguida pelo recorrente.

Quanto aos pontos 22) e 23).
Dizem os mesmos respeito ao terceiro ato de violação, ocorrido em data não apurada do mês de Agosto de 2 009 e à parte referente à forma como a ofendida foi manietada em concreto, para ter atos de cópula não consentida.
O excerto reproduzido pelo recorrente e referente às declarações da assistente, a fls. 17 do seu recurso, é já suficiente para que se dêem como provados os atos de cópula não consentida entre o ora arguido, Pai da menor ofendida e esta.
Mais, a fundamentação que consta do Acórdão a fls. 402v.º e 403v.º do Acórdão explicam bem a razão da prova destes terceiros atos de violação. Mais uma vez, pequenos pormenores como se foi pelo “pescoço” que foi agarrada ou se lhe “abriu as pernas” para introduzir o seu pénis na vagina são irrelevantes, a sua prova positiva vai de encontro aos restantes factos provados e não são mais que pequenos pormenores.
Como se referiu, o exame crítico da prova tem de ser julgado em recurso em termos de razoabilidade e no sentido de a segunda instância, que aliás não faz um segundo julgamento, não ser um “triturador de julgamentos”, tudo anulando à falta do mais ínfimo pormenor.
Como já se justificou, a fundamentação não tem de ser feita facto a facto, mas por grandes grupos de factos, o que ocorreu também neste caso.
Termos em que, improcede também o recurso apresentado pelo arguido, nesta parte.
A última parte do recurso apresentado nestes termos, vem ainda sob o título de nulidade da sentença.
Mais uma vez vem o recorrente atacar a decisão proferida, agora sob a nomenclatura de “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão” e de “erro notório na apreciação da prova” – agora, sem alusão a qualquer normativo.
Mais uma vez, está em causa um pequeno pormenor – que o Pai tenha mantido a sua filha na cama através da sua “força muscular) e “obrigando-a também a abrir as pernas”.
Depois de toda a prova, é isto que o arguido discute quanto ao ocorrido com sua filha.
No fundo, pretende agora o arguido e sob as vestes do art.º 410º C.P.P. (ns.º 2, b) e c) obter decisão que ponha em causa a decisão proferida.
Talvez por falta de convicção do recorrente, o recurso quase não vem fundamentado de direito.
Recorrendo aos argumentos já anteriormente utilizados, basta reafirmar-se que a fundamentação não tem de ser feita “facto a facto”, “pormenor a pormenor”.
O que interessa é que dirija aos grandes temas da prova, seja coerente, lógica e segundo as regras da experiência.
Quanto a estas parte do ponto 19 da matéria de facto (que se referem ao segundo ato de violação, ocorrido no início de Agosto de 2 009), a fundamentação consta de fls. 402/403V.º do Acórdão.
A falta na fundamentação desses pequenos pormenores não tem qualquer relevância pois, quer ao nível da “revista alargada” (arts.º 410º/2, b) e c), C.P.P.), quer ao nível da falta de fundamentação ou de exame crítico da prova (arts.º 374º/2 e 379º/1, a), C.P.P.

Termos em que, tudo o alegado pelo arguido recorrente nesta parte, só pode improceder.

2.4. – Dos Crimes de Violação

Entende o recorrente, que da procedência das alterações da matéria de facto propostas, resultaria que o arguido não terá cometido o crime de violação previsto no art.º 164º C.P., mas sim o de coação sexual previsto no art.º 163º C.P.
Sucede que se manteve toda a matéria de facto dada como provada, considerando-se também não haver qualquer nulidade ou vício do Acórdão.
Demais, deve dizer-se que estão em causa três atos de cópula não consentida, entre o arguido, Pai da assistente e esta, mediante o uso da força e coação. Estão pois preenchidos, como se disse na acusação e no próprio Acórdão, todos os elementos típicos, objetivo e subjetivo, do crime de violação.
Esta será agravada, em cada um dos três casos, por o arguido ser Pai da vítima, isto é seu ascendente – art.º 177º/1, a), C.P.
Tendo em conta a redação vigente à data dos factos (a imposta pela Lei n.º 59/07, 4/9) e porque outra posterior não é mais favorável ao arguido, no caso da primeira violação a conduta é ainda agravada pelo facto de a ofendida ser menor de 14 (catorze) anos – n.º 6), do art.º 177º C.P. então vigente – e, no caso das segunda e terceira, menor de 16 (dezasseis) anos – n.º 5), do art.º 177º C.P. então vigente.
Devem pois manter-se as imputações dos tipos de crime por que o arguido foi condenado.
Improcedem pois aqui e também, as alegações do recorrente.

2.5. – Da Medida da Pena

Está hoje ultrapassada a visão retribucionista da pena, segundo a qual esta varia apenas em função da culpa do agente. Ela estabelece antes, o limite máximo da pena a aplicar.
Considerações de prevenção geral, devem determinar o seu limite mínimo; senão, a pena seria considerada laxista pela comunidade social, e serviria como foco impulsionador de outras condutas desviantes.
Dentro destes parâmetros, são as exigências de prevenção especial ou, dito de outra forma, a necessidade de reinserção social do agente que há-de determinar a medida da pena a aplicar (neste sentido, F. Dias, "Direito Penal Português", Ed. Notícias, 1993, págs.214 e segs.; Robalo Cordeiro, "Escolha e Medida da Pena", em "Jornadas de Direito Criminal", págs. 235 e segs.; Anabela M. Rodrigues, "Rev. Port. Ciência Criminal", Ano1, Nº2, págs. 248 e segs.).

Na linguagem de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 227,

“As finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Como refere na mesma obra, pág. 230,

“A culpa traduz-se numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas”.

Ou ainda, a págs. 231,
“Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração (…) podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.”

São agravantes – além do contido no tipo e agravantes:
- a multiplicidade criminosa por parte do arguido, que afasta qualquer comportamento por impulso e que revela antes um reiterado desígnio criminoso (art.º 71º/2, a), C.P.);
- o dolo, direto e intenso com que atuou (art.º 71º/2, b), C.P.);
- os traumas psicológicos graves que, por via das suas condutas, o arguido causou à sua filha então ainda menor – pessoa que devia proteger, salvaguardar e cuidar (art.º 71º/2, a), C.P.);
- os “requintes” utilizados pelo arguido, nomeadamente por ter obrigado a filha a tomar a “pílula do dia seguinte” – naturalmente, para o salvaguardar a si, pois que se alguma criança nascesse fácil seria atribuir-lhe a paternidade, por via dos exames genéticos à filiação;
- a sua personalidade perversa, capaz de ejacular, isto é de atingir o máximo do clímax sexual em relações sexuais forçadas, com a sua filha menor (art.º 71º/2, d), C.P.);
- o facto de o mesmo ter violado por três vezes, a sua própria filha – e uma vez que esta agravante não será utilizada para a tipificação, nos termos do disposto no art.º 177º/7 C.P.

E como atenuantes:
- o facto de estar laboralmente inserido (art.º 71º/2, d), C.P.);
- o temo já passado desde a data da prática dos factos – cerca de 12 (doze) anos (art.º 71º/2, circunstância inominada, C.P.).

Os antecedentes criminais não são especialmente relevantes – uma condenação anterior por detenção de arma proibida, em pena de multa.

Não beneficia ainda, das atenuantes que decorrem da confissão e arrependimento.

A moldura penal varia entre:
- 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses a 15 (quinze) anos de prisão, para o primeiro crime de violação agravada – arts.º 164º/1, 177º/1, a) e ns.º 6) e 7) C.P., redação da L. n.º 59/07, 4/9;
- 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos de prisão, para os segundo e terceiro atos de violação – arts.º 164º/1 e 177º/5 C.P.

Assim e nos termos do disposto no art.º 177º/7 C.P., não será utilizada a agravante do art.º 177º/1, a), C.P. então vigente, que pode assim ser utilizada como agravante geral.
O tipo de crime em causa nos autos é amplamente repudiado pela comunidade social, até pelo que encerra em termos de falta de afetos e de perversidade da personalidade de quem os pratica. Estão em causa atos de desprezo pela liberdade sexual de crianças que muito as vai afetar no futuro e ainda por cima, na pessoa de uma filha.
O tempo decorrido não tem especial valor, ante a gravidade das condutas e personalidade do agente que das mesmas decorre. Aliás o mesmo, não mostrou qualquer contrição perante os atos praticados ou sentimento de autocensura – não confessou, nem demonstrou arrependimento.
A ausência de antecedentes criminais relevantes é também habitual, sendo conhecidas as ”cifras negras”, neste tipo de crimes.
São pois elevadas, as razões de prevenção geral.
Em termos de prevenção especial, basta dizer que está em causa um Pai que por três vezes violou a própria filha, ainda enquanto menor. A personalidade que daqui decorre exige também uma pena ajustada às fortes exigências de prevenção especial, que se fazem sentir.
Só por excesso de linguagem e ao arrepio dos princípios éticos e morais da nossa sociedade, se pode dizer que o arguido, ao dar por duas vezes a pílula do dia seguinte à sua filha “tentou atenuar as consequências da conduta, evitando uma gravidez” – cfr. fls. 20 do recurso do arguido. Dir-se-ia antes, que o mesmo pretendeu apenas que o Avô não fosse reconhecido como Pai, do filho da sua própria filha.
Isto reflete antes, o grau de argúcia e premeditação do arguido, relativamente aos atos que de uma forma consciente e premeditada obrigou a sua filha a sofrer – o que só pode ser considerado uma agravante.
Tal como é evidente que um Pai que consegue ejacular em relação sexual não consentida com a filha menor revela uma especial perversidade, que chega ao ponto de assumir condutas amplamente “contra-natura”.
A 1ª instância aplicou as penas de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão no primeiro crime, de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão no segundo e de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, no terceiro. São penas que se situam pouco acima dos mínimos legais e que assim, ante o exposto só pecam por defeito.
Na medida do cúmulo e ante o desrespeito manifestado perante o sistema de administração da justiça, também nos parece que o mesmo foi fixado no intervalo tido por adequado – muito ligeiramente acima do meio da pena.
Tal como não fica explicada a benevolência do Tribunal, ao fixar uma pena única nos termos do disposto no art.º 77º/1 C.P., em menos de uma quarto da pena aplicável.
A gravidade dos factos e personalidade revelada pelo agente mereciam bem assim, pena parcelares substancialmente superiores, tal como uma pena única também substancialmente agravada – o que só o princípio da proibição da “reformatio in pejus” não permite.
Depois de provados factos muito graves, não pode deixar-se de dos mesmos retirar as necessárias consequências.
É pois nítido que esta parte do recurso do arguido não pode proceder.
Tendo em conta a pena única aplicada que é superior a 5 (cinco) anos de prisão, é também óbvio que esta pena nunca poderia ser suspensa, na sua execução – art.º 50º/1 C.P., “a contrario”.

Improcede assim, de forma clara e na íntegra, o recurso apresentado pelo arguido F. S., nesta parte.

2.6. – Do Montante da Indemnização Atribuída à Vítima

No Acórdão recorrido, o Tribunal atribuiu à assistente/demandante D. A. a quantia de 20 000€ (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos, com juros de mora desde a data da decisão, até integral pagamento, a pagar obviamente pelo arguido/demandado e recorrente, F. S..
Este considera com efeito, que tal montante é “manifestamente elevado” e que não tem em conta, as suas condições económico-financeiras.
Estão em causa as relações Pai-Filha e danos causados a esta pelo arguido, pela prática de três crimes de violação agravada.
Notificada que foi do recurso do recurso do arguido/demandado, a demandante apresentou recurso subordinado (art.º 404º C.P.P.), que foi admitido – obviamente, apenas quanto à parte cível.
Este é um recurso dependente do recurso principal, que foi o do arguido e que deve com este ser apreciado.
No mesmo, defende a assistente/demandante, filha do arguido, que o valor fixado é “manifestamente insuficiente”, ante as sequelas psicológicas que o seu Pai lhe provocou. Considera que o montante peticionado, no valor de 85 000€ (oitenta e cinco mil euros), é o ajustado e que, caso assim não se entenda, lhe deve ser atribuída quantia não inferior a 60 000€ (sessenta mil euros).
Está em causa assim, em ambos os recursos, o valor da indemnização atribuída.
Esta tem por base a figura da responsabilidade civil, prevista nos arts.º 483º e segs. do C.C.
Trata-se de responsabilidade por factos ilícitos, que tem por base a violação ilícita de direitos de terceiros, por meio de atuação dolosa ou com mera culpa, que causa danos, que tenham um nexo de causalidade com a conduta assumida – arts.º 483º e segs. C.P.
No caso, a indemnização foi atribuída a título de compensação por danos não patrimoniais, ou seja aqueles que não são diretamente avaliáveis em dinheiro. Anteriormente denominados de “danos morais” são aqueles que decorrem da dor, sofrimento, sequelas psicológicas ou privações causadas pelo agente, na pessoa do ofendido.
O montante da indemnização deve ser fixado em termos atualistas – à data da sentença – (art.º 566º/2 C.C.) e tendo em conta um juízo de equidade, baseado na análise do grau de culpa do lesante, a sua situação económica e a do lesado e demais circunstâncias do caso concreto, que o justifiquem (arts.º 496º/4 e 494º C.C.).
A lei confere ao intérprete uma cláusula aberta para utilização dos argumentos que julgue relevantes, para basear o seu juízo equitativo, isto é, de justiça sobre o caso concreto.
São assim estes, os pressupostos de análise da questão única, colocada no recurso principal do arguido e no recurso subordinado da demandante.
Ora, a Jurisprudência tem assinalado que a atribuição de indemnizações “miserabilistas” em nada beneficiam a Justiça e a imagem dos Tribunais. A justiça, porque os ofendidos com danos não patrimoniais graves em pouco se podem ver confortados, com este tipo de indemnizações. A imagem dos Tribunais, porque surgem à comunidade social como dando respostas socialmente desadequadas e que são, muitas vezes, alvo de sátira.
Isto tanto quanto, para mais, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, os arts.º 496º/4 e 494º C.C. mandam atender ao “grau de culpa do agente”, o que só pode querer dizer que este tipo de indemnizações têm também um “caráter sancionatório” – cfr. o Acórdão do S.T.J. de 15/2/2 012, Santos Carvalho, Proc.º 476/09.0 PBBGC.P1.S1. (citado pela assistente).
Não há dúvida também, que em termos equitativos, cada “caso é um caso”.
Felizmente que no nosso País, casos de violações de Pais a filhas, ainda por cima múltiplas, são raras.

Assim, a recorrente demandante citou dois Acórdãos:
- o Acórdão do S.T.J. de 15/2/2 012, Santos Carvalho, Proc.º 476/09.0PBBGC.P1.S1 em que, a título de danos não patrimoniais e num caso de assédio sexual de um Psiquiatra a uma doente, grávida, foram atribuídos 100 000€ (cem mil euros), a título de danos não patrimoniais;
- o Acórdão proferido no Proc.º 461/17.9GABRR.L1.S1, de 4/7/2 019, Mário Belo Morgado, em que um Pai violou uma filha com 18 (dezoito) anos, tendo a esta sido atribuída indemnização por danos não patrimoniais, no valor de 60 000€ (sessenta mil euros).

Ambos os arguidos tinham porém vidas económicas desafogadas.

O arguido/demandado baseou-se também em dois Acórdãos para basear o seu Juízo, mas que, talvez por lapso, nada têm a ver com o caso concreto dos nossos autos.

Assim:
- no Acórdão do S.T.J. de 8/1/2 019, Catarina Serra, Proc.º 4 378/16.6T8VCT.G1.S1, estão em causa danos decorrentes de acidente de viação;
- no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5/12/2 020, Fátima Bernardes, Proc.º 1 562/18.1T9BJA.E1, está em causa uma decisão de reenvio do processo para novo julgamento, sem qualquer indemnização, não estando pois sequer transitada, a atribuída em 1ª instância.

Passemos pois, à análise do caso concreto.

Ter-se-á em conta, na parte agravativa:
- o dolo, direto e intenso do arguido;
- o facto de estarem em causa três atos de violação de Pai, a filha menor, o que denota que não se tratou de caso único e por impulso, refletindo antes uma propensão pessoal deliberada e premeditada;
- a frieza, que decorre do facto de o arguido, mesmo assim, ter a frieza de ânimo de dar à sua filha, pré-adolescente, a “pílula do dia seguinte”, no sentido de esconder eventual filiação;
- o facto de ter ejaculado, isto é de com tal comportamento “contra-natura” e muito censurável eticamente, ter conseguido ejacular por duas vezes, isto é, atingir o clímax do ato sexual, o que denota também uma completa ausência de espírito crítico ante o que fazia e frieza, com o mais elevado desprezo pelo valores éticos aceites por toda a comunidade;
- ter a sua filha, ora demandante, passado a viver momentos de terror, aflição e despero, sempre que o seu Pai regressava a Portugal (ponto 28 da matéria de facto);
- ficar a mesma apavorada, sempre que se encontrava sozinha com o seu Pai em casa, refugiando-se em qualquer compartimento da casa onde o mesmo não estivesse (ponto 29 da matéria de facto);
- ter passado horas, dias, meses de enorme tristeza e desgosto, chorando compulsivamente na solidão do seu quarto (ponto 30 da matéria de facto provada);
- ser hoje a demandante, uma pessoa triste e traumatizada, que jamais esquecerá os abusos de que foi vítima (ponto 32 da matéria de facto);
- necessitar a mesma de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para lidar com os episódios vividos, que permanecem presentes na sua memória, o que a perturba e irá acompanhá-la durante toda a sua vida (ponto 33 da matéria de facto);
- ter a mesma ficado afetada no seu crescimento, estabilidade emocional e personalidade, pelo comportamento arguido (ponto 35 da matéria de facto);
- saber o arguido que tudo isto podia acontecer (ponto 34 da matéria de facto);
- terem os atos do arguido causado à demandante traumas, medos e inquietações, ficando receosa de que tudo pudesse voltar a acontecer (ponto 37 da matéria de facto);
- ser a mesma anteriormente, uma pessoa alegre, tranquila, sociável, bem-disposta, carinhosa e afável (ponto 40 da matéria de facto provada);
- e passando a ser uma pessoa traumatizada, triste, abalada, pesarosa, revoltada, complexada e emocionalmente instável (pontos 42 e 43 da matéria de facto);
- passando a demonstrar comportamentos inquietos, nervosos e de inconformismo (ponto 41 da matéria de facto);
- tendo ficado apreensiva e envergonhada, dado o recente conhecimento dos factos pela família materna (ponto 45 da matéria de facto).

Têm valor atenuativo:
- os cerca de 12 (doze) anos decorridos desde a data da prática dos factos – sendo que e na ausência de arrependimento ou autocensura por parte do arguido, se desconhece se isso correspondeu a uma mudança interior ou a uma mera ausência de oportunidades ou receio;
- ganhar cerca de 2 000€ (dois mil euros)/mês e gastar 500€ (quinhentos euros) no pagamento da prestação bancária, para a sua aquisição, além das normais despesas fixas mensais (ponto 62 da matéria de facto).

Como já se disse os factos são muito graves e múltiplos, o que revela uma culpa muita intensa sob a forma de dolo e causaram sequelas graves, intensas e permanentes na pessoa da sua filha, sendo que a sua função era a de a proteger e salvaguardar. Os factos não se compadecem de todo, como amor que um Pai deve ter por uma filha sua.
O arguido tem um rendimento mensal médio, para o nível de vida Português.
Não sendo milionário, deve porém ter-se em conta que é normal que tenha feito algumas poupanças, tendo atualmente 50 (cinquenta) anos de idade. Salvaguardo o tempo em que estará preso, pode ainda lutar por aumentar as suas receitas próprias ou obter empréstimos através de terceiros, nomeadamente bancários.
O que não pode, é voluntariamente lesar-se tanto uma filha, aos níveis físico e psicológico, sendo estas últimas sequelas de difícil tratamento (recorde-se que a ofendida está em tratamentos psicológico e psiquiátrico, por via dos atos praticados por seu Pai) e depois dizer-se que se não tem dinheiro para pagar uma indemnização que não seja miserabilista.
É certo que tem dois outros filhos menores devendo pagar a cada um, a título de alimentos, 115€ (cento e quinze euros)/mês, não resultando porém provado se a vem pagando (ponto 60 da matéria de facto).
Vinte mil euros é o valor de um automóvel de gama baixa, que não pode confundir-se com os três crimes de violação agravada cometidos, sempre na pessoa de uma filha e de uma menor e com as sequelas psicológicas que estes atos causam.
O valor das indemnizações não pode cair no ridículo, a ponto de a comunidade social descrer completamente dos Tribunais.
Tudo considerado, considera-se razoável, adequado e equitativo atribuir-se à vítima a quantia de 60 000€ (sessenta mil euros).
Quantia superior continuaria a ser adequada, mas já seria desadequada à situação económica do arguido.

Termos em que improcede na íntegra o recurso da parte cível do arguido F. S. e procede parcialmente o recurso subordinado da demandante D. A., nos termos referidos.
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Razões por que, se decide

3- Decisão

a) julgar totalmente improcedente o recurso apresentado pelo arguido F. S. , quer na parte crime, quer na parte cível.
b) julgar parcialmente procedente o recurso subordinado da demandante D. A., por via disso se aumentando o montante a indemnizar pelo arguido, para o valor de 60 000€ (sessenta mil euros).
c) Custas da parte crime pelo arguido, com 4 (quatro) U.C.`s de taxa de justiça – arts.º 513º/1, a), 8º/9 e tabela 3), anexa ao R.C.P.
d) Custas do recurso do arguido na parte cível, por si.
e) Custas do recurso subordinado, na proporção do decaimento entre demandante e demandado.
f) Notifique.
Guimarães,

(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Furtado)