PROIBIÇÃO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULOS MOTORIZADOS
CASSAÇÃO DA CARTA DE CONDUÇÃO
Sumário

A cassação administrativa da carta de condução (decretada ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada) implica a extinção da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados (decretada ao abrigo do artigo 69.º do Código Penal) que vigore no momento que tal cassação produz efeitos.

Texto Integral

Processo n.º 125/19.9GSAVR-A.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho proferido em 10/09/2020 no qual se decidiu sustentar e mantém o anterior despacho em que, não se aderindo ao promovido pelo Ministério Público, se determinava que não se procederia à extinção da pena acessória aplicada ao arguido/condenado B…, salvo quando esta atingisse o seu termo, dele veio aquele interpor recurso nos termos que constam destes autos e que aqui se consideram como reproduzidos, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição):

1. Por sentença transitada em julgado em 28 de Junho de 2019, foi aplicada a B… a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 anos, nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 69.° do Código Penal.

2. O condenado entregou os seus títulos de condução a 9 de Julho de 2019, pelo que a pena acessória terminaria a 9 de Julho de 2021.

3. Contudo, por decisão definitiva proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi determinada a cassação da carta de condução do condenado, por ter cometido dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, os quais implicaram a perda total de pontos da carta de condução, nos termos dos n.°s 2 e 10 do artigo 148.° do Código da Estrada.

4. A efectivação da cassação do título ocorreu com a notificação da decisão final de cassação, nos termos do n.° 12 do artigo 148.° do Código da Estrada, no caso, a 24 de Fevereiro de 2020.

5. O Ministério Público promoveu que a pena acessória referida em 1. fosse declarada extinta por força da decisão definitiva de cassação do título, por equiparação com o disposto no n.° 7 do artigo 69.° do Código Penal, norma que dispõe que quando é aplicada a medida de segurança de cassação do titulo de condução prevista no artigo 101.º do Código Penal, não é aplicada a pena acessória prevista no n.° 1 do artigo 69.° do Código Penal.

6. O Tribunal a quo, por despacho de 10 de Setembro de 2020, indeferiu a pretensão do Ministério Público com o fundamento de que a norma constante do n.° 7 do artigo 69.° do Código Penal, não tem aplicação à situação de cassação administrativa do titulo de condução por perda de pontos e, para além disso, que não pode uma decisão administrativa posterior alterar uma sentença transitada em julgado que aplicou uma pena (acessória de proibição de conduzir veículos com motor).

7. Ao decidir de tal forma, violou o Tribunal a quo o disposto no n.° 7 do artigo 69.° do Código Penal, artigo 148.° do Código da Estrada, e alínea b) do n.° 3 do artigo 130.° do Código da Estrada.

8. A norma constante da alínea b) do n.° 3 do artigo 130.° do Código da Estrada, relativa aos fundamentos do cancelamento do titulo de condução, equipara a cassação administrativa da perda de prontos prevista no artigo 148.° do mesmo diploma à medida de segurança da cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor prevista no artigo 101.º do Código Penal.

9. Consequentemente, deveria o Tribunal a quo, interpretando as normas acima referidas, extrair a conclusão de que a pena acessória teria que ser declarada extinta por força do cancelamento do título.

10. Assim sendo, deve o despacho de 10 de Setembro de 2020 ser revogado e substituído por outro que declare a referida extinção da pena acessória.

O recurso foi regularmente admitido.

Não houve resposta.

O Ex.mo PGA, quanto ao mérito do recurso, apôs um visto nos autos.

Notificado do parecer, e em resposta ao mesmo, o condenado/recorrido veio anotar que corroborava e subscrevia integralmente o teor do já descrito e alegado em sede de recurso interposto, concluindo que o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que declare a referida extinção da pena acessória de inibição de conduzir veículos.

Após exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, nada obstando a tal.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

No que aqui importa salientar, o despacho recorrido é do teor seguinte (transcrição):

Fls. 79-80 e 81: antes de mais, haverá que deixar expresso que o acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 12-02-2014 trata de situação diversa daquela que está em apreço nos autos, o que resulta óbvio do próprio sumário: “por força do principio geral da prevalência da medida de segurança não privativa da liberdade (cassação ou interdição da concessão do título de condução de veículo com motor) sobre a pena acessória (proibição de conduzir veículos com motor), consagrado no n.º7 do artigo 69º do Código Penal, não é possível condenar-se o arguido na dita pena acessória quando o título de condução lhe é cassado”.
Assim, não só a cassação administrativa que foi imposta ao condenado é posterior ao do trânsito em julgado da sentença proferida nos presentes autos, como não poderá deixar de se plasmar que a medida de segurança a que o acórdão se refere é a prevista pelo artigo 101º do Código Penal e não a cassação administrativa por perda de pontos.
Nesta medida, apesar de o Ministério Público aderir aos fundamentos da ANSR, o Tribunal sustenta e mantém o despacho proferido a fls. 78.
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Para que se entenda, a promoção que ditou o despacho de fls. 78, naquilo que aqui importa destacar, é o seguinte teor (transcrição):

Mostrando-se definitiva a decisão de cassação do título de condução promovo que se declare extinta a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, por analogia com o disposto no n.º 7 do artigo 69.º do Código Penal (quando é aplicada a medida de segurança de cassação do título não é aplicada pena acessória), e se determine a remessa de boletim ao registo criminal, nos termos da alínea a) do artigo 6.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.
Mais promovo que se comunique à ANSR e que se remetam a carta e licença de condução à DRMT de Aveiro, como solicitado.
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Por seu turno, e também no que aqui importa salientar, o despacho de fls. 78 é o seguinte teor (transcrição):

No que respeita à posição assumida nos autos pelo Ministério Público, quanto à extinção da pena acessória, não se concorda com a mesa pelas seguintes razões:
- aquando da condenação o arguido encontrava-se habilitado a conduzir, e mesmo que o não estivesse, nada embargava a condenação na pena acessória;
- caso existisse uma razão para a cassação (judicial) da carta de condução da titularidade do arguido, aí sim não se poderia, simultaneamente, impor uma pena acessória e a cassação do título;
- a cassação da carta de condução por parte da ANSR corresponde a uma decisão administrativa que não tem a faculdade de alterar a decisão judicial proferida nos autos e transitada em julgado.
Assim sendo, não se procederá à extinção da pena acessória, salvo quando esta atingir o seu termo (em 09-07-2021).

A comunicação da ANSR, quando notificada para esclarecer se havia sido instaurado processo para efeito de cassação do título de condução, naquilo que se impõe destacar, é a seguinte (transcrição):

Com a introdução da carta por pontos, operada com alteração ao Código da Estrada através da Lei n.° 116/2015 de 28 de Agosto, todos os condutores, após 01/06/2016, têm 12 (doze) pontos no seu título de condução.
A prática e a condenação transitada em julgado de um crime rodoviário determinam a Subtração de 6 (seis) pontos ao condutor, nos termos do artigo 148.° n.° 2 do Código da Estrada.
No caso concreto, o condutor B…, titular da carta de condução n.° AV-…… e licença de condução n.° ALB-……, praticou dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previstos e punidos, nos termos do artigo 292.° do Código Penal, em/07/2016 (Processo n.° 177/16.3GDAVR e em 12/05/2019 (Processo n.° 125/19.9GDAVR) que transitaram em julgado em 03/10/2016 e em 28/06/2019, respetivamente, o que levou à perda total dos pontos atribuídos do seu título de condução, nos termos do artigo 148.° n.°s 2 e 10 do Código da Estrada.
Deste modo, foi aberto processo de verificação dos pressupostos da cassação do título de condução AV-…… e licença de condução n.° ALS-…… (Processo de Cassação n.° …/2019).
Assim, foi o condutor notificado em 25/10/2019, nos termos e para os efeitos do artigo 50.° do Regime Geral das Contraordenações, para vir ao processo pronunciar-se, não o tendo feito.
Posteriormente, o condutor foi notificado em 24/02/2020 da decisão final de cassação, a qual tornou definitiva, por não ter sido impugnada judicialmente, pelo que o título de condução foi cancelado, nos termos do artigo 130.º n.° 3 alínea b) do Código da Estrada.
A douta decisão do Tribunal Judicial da Comarca da Aveiro condenou o arguido em dois anos na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, que termina em 09/07/2021.
Sucede que nos termos do artigo 148.° n.° 12 do Código da Estrada, a efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação, ou seja, a cassação efetivou-se em 24/02/2020 uma vez que não foi impugnada a decisão final de cassação do título de condução, pelo que o condutor só pode obter novo título de condução após dois anos da efetivação da cassação, nos termos do artigo 148.° n.° 11 do Código da Estrada.
Ora, no caso concreto ao condutor só poderá ser concedido novo título de condução após 24/02/2022.
De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (processo n.° 165/13.1PCVCD.P1) de 12/02/2014, estamos perante uma dupla penalização, nomeadamente a aplicação da cassação do título de condução e da pena acessória de inibição de conduzir, uma vez que contraria o disposto do artigo 69.° do Código Penal, ou seja, conforme decorre do Acórdão “Na verdade, decorre do artigo 69°, n° 1, e suas alíneas, do Código Penal, o condicionalismo que permite a aplicação de proibição de conduzir veículos automóveis, e cuja verificação aqui ninguém discute.
Simplesmente, o seu n° 7 prevê depois que “Cessa o disposto no n°. 1 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de cassação ou de interdição da concessão do título de condução nos termos do artigo 101°.”, sendo que o Acórdão refere ainda que “Ora, no caso vertente, com base na mesma factualidade, e apenas no que aqui importa referir, foi aplicada ao recorrente uma dupla penalização, ou seja, a cassação e a proibição de conduzir, o que, seja qual for o enquadramento jurídico que aqui se queira emprestar, v.g. concurso aparente, aplicabilidade condicionada ou norma subsidiária, contraria ostensivamente a sobredita disposição legal.”. Ademais, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto diz o seguinte “Assim sendo, cremos linear que só pode subsistir a cassação aplicada, o que equivale a dizer, com Paulo Pinto de Albuquerque, que vale aqui “...o princípio geral da prevalência da medida de segurança não privativa da liberdade (cassação ou interdição da concessão do título fundada no perigo) sobre a pena acessória (proibição de conduzir veículos fundada na culpa”.
Por fim, o Tribunal da Relação do Porto acordou, por unanimidade, a inaplicabilidade da pena acessória de inibição de conduzir, mantendo-se a cassação do título de condução.
De acordo com o Assento n.° 5/99 do Supremo Tribunal de Justiça de 20/07/1999 foi acordado o seguinte “Segundo ainda o Dr. Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 307), a condução sob efeito do álcool é punida, além da pena principal, com a medida de segurança do artigo 101.°, n.ºs 1 e 2, alínea c), ou com a pena acessória do artigo 69.º do novo Código Penal». É evidente que a condução aqui tida em vista é a que integra o crime previsto no artigo 292.°
E mais à frente, afirma: «Este sistema punitivo acessório funciona deste modo: em primeiro lugar, o julgador deve, em face da gravidade dos factos e da perigosidade do agente (... averiguar se há indícios de inaptidão para a condução automóvel ou se há perigo de reiteração da condução sob o efeito de álcool. Caso se tenham apurado indícios dessa inaptidão ou do perigo de continuação criminosa, deve aplicar-se a cassação. Caso não se verifiquem esses indícios, deve então, e só então, o julgador aplicar a medida de proibição de conduzir do artigo 69.°, n. ° 1, alínea a), do Código Penal. Se não ocorre, no caso, qualquer circunstância que se possa integrar no n.° 1 do artigo 101.º, então só á que aplicar, como pena acessória, a medida prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a). “.
Com a alteração ao Código da Estrada que introduziu a carta por pontos, por um lado temos um Tribunal a aplicar a pena acessória de inibição de conduzir e por outro a Autoridade Administrativa a aplicar a cassação administrativa.
Ora, perante esta nova realidade, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária sufraga da posição tomada pelo Tribunal da Relação do Porto, uma vez que estamos perante uma dupla penalização e sendo a cassação do título de condução uma medida preventiva de segurança, deverá sempre prevalecer esta última em detrimento da aplicabilidade da pena acessória de inibição de conduzir.
Assim, e no caso concreto, somos do entendimento, com todo o respeito por opinião diversa, que a pena acessória aplicada pelo Tribunal da Comarca da Aveiro, que termina em 09/07/2021, deverá ser subsumida no período em que decorre a cassação do título de condução, tendo em conta que a efetivação da cassação ocorreu em 24/02/2020 e o condutor só poderá obter novo título de condução após decorrerem dois anos após essa efetivação.
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Esta comunicação mereceu a seguinte promoção (transcrição):

O Ministério Público adere na íntegra aos fundamentos constantes da comunicação da ÀNSR, a qual vai ao encontro da promoção de 24 de Junho de 2020 e que, por essa razão, se renova.
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b) apreciação do mérito:

Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, devendo sublinhar-se também que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede no caso vertente.
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Neste contexto, e em face daquilo que se apreende das efetivas conclusões trazidas à discussão pelo recorrente importa saber se a pena acessória teria que ser declarada extinta por força do cancelamento do título derivado da sua determinada cassação administrativa.

Vejamos, pois.

O Ministério Público, ora recorrente, alega, em suma, que a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor aplicada ao arguido/condenado deveria ter sido declarada extinta por força da decisão definitiva de cassação do título, por equiparação com o disposto no n° 7 do artigo 69° do Código Penal, uma vez que, na sua óptica, a norma constante da alínea b) do n° 3 do artigo 130° do Código da Estrada, relativa aos fundamentos do cancelamento do titulo de condução, equipara a cassação administrativa da perda de prontos prevista no artigo 148° do mesmo diploma à medida de segurança da cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor prevista no artigo 101º do Código Penal, em termos que especifica e aqui se consideram renovados, contexto em que preconizava que o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que declare a extinção da referida pena acessória.

Não houve resposta.

O Ex.mo PGA, anotando que se lhe afigurava que nenhuma circunstância obstava ao conhecimento do recurso e que deveria ser mantido o efeito devolutivo fixado e ser julgado em conferência, quanto ao mérito do recurso apôs um visto nos autos, pelo que em bom rigor, não deveria ter sido cumprida a notificação a que alude o nº 2 do artigo 417º, do Código de Processo Penal.

Porém, notificado do parecer, e em resposta ao mesmo, o condenado/recorrido veio anotar que corrobora e subscreve integralmente o teor do já descrito e alegado em sede de recurso interposto, não podendo deixar de sublinhar ainda que acompanha o parecer quanto à emissão de visto ao mérito do recurso interposto, pois que também era seu entendimento que a norma constante da alínea b) do nº 3 do artigo 130º do Código da Estrada, relativa aos fundamentos do cancelamento do título de condução, equipara a cassação administrativa à perda de pontos prevista no artigo 148º do mesmo diploma à medida de segurança da cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo a motor prevista no artigo 101º do Código Penal, pelo que, e na esteira deste entendimento, deveria o tribunal “a quo” ter decidido de acordo com a interpretação das normas supra indicadas, concluindo pela extinção da pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor por força do cancelamento do título de condução, contexto em que preconizou que o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que declare a referida extinção da pena acessória de inibição de conduzir veículos.

Apreciando.

Clarificando o objecto do recurso, convirá anotar que, pese embora tenha aderido à comunicação da ANSR em matéria de desconto do período de proibição de conduzir no fixado para a cassação, o certo é que das aportadas conclusões consta apenas a questão supra erigida, ou seja, a de saber se a pena acessória teria que ser declarada extinta por força do cancelamento do título derivado da sua determinada cassação administrativa.

Adiante.

É consabido que o recorrido foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, para além da pena principal aplicada, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de dois anos.
Ora, o referido artigo 69º do Código Penal prevê no seu nº 1 a condenação na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos, no caso de condenação por algum dos crimes ali elencados nas suas três alíneas ali insertas.
Porém, o seu nº 7 prevê que “Cessa o disposto no n.º 1 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de cassação ou de interdição da concessão do título de condução nos termos do artigo 101º”.
Ou seja, prevê-se ali, além da interdição, a possibilidade de condenação na cassação do título de condução, caso em que não pode haver lugar à condenação naquela proibição de conduzir.
No entanto, a cassação só ocorrerá nas circunstâncias plasmadas no artigo 101º do Código Penal, ou seja, “Em caso de condenação por crime praticado na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbem, ou de absolvição só por falta de imputabilidade, o tribunal decreta a cassação do título de condução quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente:
a) Houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie; ou
b) Dever ser considerado inapto para a condução de veículo com motor”, seguindo--se o elenco dos crimes cuja prática é suscetível de revelar inaptidão, entre os quais se engloba precisamente o crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto no sobredito artigo 292º do Código Penal.
Daqui decorre, pois, um regime especial que, naquelas específicas circunstâncias, pode determinar a cassação do título de condução, isto é, um regime peculiar que não é de aplicação automática.
Conforme o ora relator já antes sustentou em anterior acórdão proferido em 06/05/2020 no âmbito do processo nº 305/19.7Y9PRT.P1, decisão também subscrita pela aqui Adjunta e não publicada, aquele regime não é confundível com o plasmado no artigo 148º do Código da Estrada, pois que este trata de realidades e circunstancialismo diferentes e traduz um alargamento da previsão legal em matéria de cassação do título de condução, como forma de dar resposta às crescentes infrações de natureza estradal, o que vale por dizer, conforme vinha anotado na decisão ali recorrida, que “A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública”.
E aqui impõe-se abrir um parêntesis para sublinhar que a situação descrita no aresto que a ANSR cita na sua comunicação[2], e tal como se anotava no despacho recorrido, é diversa da presente, pois que naqueloutro processo, em que estava em causa o regime previsto no artigo 69º do Código Penal, com referência ao artigo 101º da mesma codificação, o tribunal condenou simultaneamente na pena acessória de proibição de conduzir e na cassação do título de condução, em violação directa do estatuído no nº 7 daquele primeiro normativo. E daí ter-se considerado que, no caso, existia uma dupla penalização, tendo-se sustentado, com Paulo Pinto de Albuquerque, que deveria prevalecer a cassação, com base no princípio geral da prevalência da medida de segurança não privativa da liberdade.
Realidades perfeitamente distintas, portanto.
Aqui chegados, e do que se apreende, o tribunal que condenou o ora recorrido nos moldes acima sumariados não ponderou sequer a possibilidade da cassação do título de condução, pelo que deverá depreender-se que tal não faria parte da acusação.
Posteriormente, na decorrência da prática desse ilícito e de um outro da mesma natureza, foi instaurado o processo de cassação n° …/2019, que correu termos na ANSR, no âmbito do qual foi determinada a cassação do título de condução do ora recorrido, uma vez que a prática daqueles dois ilícitos implicou a perda total de pontos, ou seja, doze pontos, decisão transitada em julgado e nem sequer alvo de impugnação judicial.
Ora, sendo consabido que o que está na origem da cassação é, actualmente, a sucessão de ilícitos, contra-ordenacionais ou criminais, e que o regime previsto no artigo 69º do Código Penal, com referência ao artigo 101º da mesma codificação, é um regime específico que não é confundível com o plasmado no artigo 148º do Código da Estrada, cremos que não poderá ter aqui lugar a alegada analogia com o disposto no nº 7 do artigo 69º do Código Penal para alicerçar a promovida extinção da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor aqui em apreço.
Contudo, esta extinção impunha-se aqui, muito naturalmente.
Na verdade, a cassação efetivou-se em 24/02/2020, ou seja, antes de terminar o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, que só ocorreria em 09/07/2021.
Porém, e tal como consta da própria decisão que a determinou, a cassação implica o cancelamento do título de condução, no caso, com efeitos a partir de 24/02/2020, só podendo o condenado obter novo título a partir de 24/02/2022.
Significa isto que o cancelamento do título de condução sobrepôs-se à decretada proibição de conduzir[3] que, por via disso, ficou inoperante a partir de então, razão pela qual, e em bom rigor, impunha-se que se declarasse extinta a pena acessória em questão, o que, a suceder, não colidiria com o firmado caso julgado da decisão que decretou uma tal proibição de conduzir, conforme se anotava na decisão recorrida, já que tal decorreria como efeito natural da ulterior decisão de cassação do título de condução, o que significa que tal pena acessória não se extinguiria apenas no seu termo, este entretanto já ultrapassado, pelo que seria perfeitamente inútil determinar nesta altura que se declarasse a promovida extinção da pena acessória, permanecendo, pois e apenas, desde 24/02/2020, a decretada cassação do título de condução.
Flui do exposto que, e embora por fundamento diverso, deve considerar-se provido o recurso interposto pelo Ministério Público, embora não se determine a almejada extinção da pena acessória de proibição de conduzir dada a inutilidade decorrente do seu ultrapassado termo.
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Ainda que por fundamento diverso, e embora sem consequências práticas em face do peticionado, procede o recurso interposto pelo Ministério Público, o que, para além da legal isenção estatuída, sempre implicaria a não condenação em custas (cfr. artigo 522º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes desta Relação acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, por consequência, determinar que, por força da decretada cassação do título de condução, deverá permanecer, desde 24/02/2020, apenas a decretada cassação do título de condução, em prejuízo da proibição de conduzir então ainda em curso, com as inerentes consequências.

Sem tributação.

Notifique.
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Porto, 08/09/2021[4]
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
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[1] Vide, entre outros no mesmo e pacífico sentido, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Trata-se do acórdão proferido em 12/02/2014 no âmbito do processo nº 165/13.1, relatado pelo ora relator e subscrito pela aqui Adjunta.
[3] De resto, a lógica que está patente no nº 7 do artigo 69º do Código Penal decorre justamente da simultaneidade da possível condenação em pena acessória de proibição de conduzir e em cassação, posto que esta última absorve naturalmente os efeitos daquela.
[4] Texto composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).