HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
CUMPRIMENTO DE PENA
REVOGAÇÃO
LIBERDADE CONDICIONAL
ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário


I. À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite que o direito fundamental à liberdade pessoal ambulatória possa sofrer restrições. Entre estas sobressai, “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.
II. O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade ambulatória, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.
III. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, não se destinando a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade.
IV. É um procedimento especial, no qual se requer ao STJ o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada por entidade não competente, ou por factos pelos quais a lei a não permite, ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida legalmente estabelecida ou judicialmente decretada.
V. O AUJ n.º 7/2019, do STJ, fixou jurisprudência no sentido de, tratando-se da execução, em cumprimento sucessivo de penas, do remanescente de penas de prisão decorrente de revogação de liberdade condicional, o condenado não pode beneficiar outra vez de liberdade condicional relativamente a essas penas, tendo, pois, de as cumprir por inteiro por força do disposto no artigo 63.º, n.º 4, do Cód. Penal.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, em conferência, acorda:


I. RELATÓRIO:

1. a petição:

O recluso no processo em epigrafe a correr termos no Tribunal de Execução de Penas ……:

- AA, com os demais sinais dos autos;

em petição que o próprio subscreve, apresentou a vertente providência de habeas corpus, argumentando nos seguintes termos:

Exmo. Sr. Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Manter-me para além dos prazos fixados pela Lei e pela decisão judicial, do Tribunal de Execução de Penas ... . Estou [a] cumprir pena [nos] seguintes processos, nº 67/17…, esse é de 3 anos e 2 meses, e do outro processo nº. 2885/10…, 2 anos e 3 meses ando desde que entrei a pedir ao TEP para fazer o cúmulo ou junção das penas, o qual não fez até agora. Tenho sido prejudicado pelo TEP, porque se estou a cumprir pena por pena acho que tinha direito a beneficiar da Lei nº. 1-A/2020, de 19-03. [Fui] informado pelo Tribunal de Execuções de Penas que a minha pena era 5 anos e 5 meses, como é verdade, mas se o TEP nunca me deu uma pena única. Nem sequer tenho liquidação das penas.

2. informação judicial:

A Juíza no Tribunal de Execução de Penas/TEP …… , cumprindo com o disposto no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, informou:

O recluso AA cumpre sucessivamente as seguintes penas:

A) pena única de 3 anos e 2 meses de prisão pela prática de 2 crimes de emissão de cheque sem provisão e 1 crime de falsificação resultante de acórdão cumulatório proferido no processo nº 67/17… e que englobou as penas aplicadas nesse e nos processos nº 679/… (cfr. fls 2 a 21, 25 a 43 e 97 a 117 dos autos de LC);

B) remanescente de 2 anos, 3 meses e 12 dias de prisão, resultante de revogação de liberdade condicional à ordem dos processos 1089/05… (7 meses), 373/94… (126 dias de prisão subsidiária), 327/97… (1 ano de prisão e 60 dias de prisão subsidiária) e 178/99… (66 dias de prisão subsidiária) (cfr. decisão de revogação proferida no apenso P);

- está ininterruptamente privado de liberdade desde 29.08.18, quando iniciou o cumprimento da pena à ordem do processo nº 679/16…, que agora perdeu autonomia (cfr. fls. 20 dos autos de LC);

- de acordo com a liquidação efetuada pelo processo nº 67/17… o recluso iniciou o cumprimento da pena em 29.08.18, atingiu o meio em 29.03.20, atingiria os dois terços em 09.10.20 e o termo em 29.10.21 (cfr. fls. 230 dos autos de LC);

- por despacho proferido em 16.03.20 (cfr. fls. 338 e 339 dos autos de LC), ao abrigo do disposto no art. 63º, nº 1 do CP foi determinado o desligamento do recluso do processo nº 67/17… e o seu ligamento ao processo nº 373/94…;

- no processo nº 373/94… foi feita a liquidação da pena que o recluso tinha para cumprir, iniciando-se o seu cumprimento no dia 29.03.20 e estando o seu termo previsto para o dia 09.08.20 (cfr. fls. 342 e 343 dos autos de LC);

- em 20.04.20 o recluso solicitou que lhe fosse aplicada a Lei do Perdão (cfr. fls. 346 dos autos de LC);

- em 24.04.20 o MP liquidou o remanescente da pena à ordem do processo nº 373/… (126 dias de prisão subsidiária), indicando como data para o seu termo o dia 02.08.20 (cfr. fls. 347 e 348 dos autos de LC), liquidação esta que foi homologada (cfr. fls. 351 e 352 dos autos de LC);

- em 28.04.20, apreciando o requerimento apresentado pelo recluso em 20.04.20, o Tribunal proferiu o seguinte despacho:

Ao recluso AA foi, por decisão proferida no apenso P, transitada em julgado, revogada a liberdade condicional concedida quando cumpria, designadamente, a pena de 133 dias de prisão subsidiária à ordem do processo n.º 373/94… do atual juízo de competência genérica de ....

A revogação da liberdade condicional determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida (art. 64.º n.º 2 do código penal), in casu 126 dias de prisão subsidiária, sendo este o tribunal competente para a liquidação e homologação da pena atento o disposto no art. 141.º al. j) do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade.

O arguido foi ligado em 29/03/2020 ao processo sobremencionado para cumprimento do remanescente resultante da revogação da liberdade condicional. A liquidação que antecede mostra-se corretamente efetuada, pelo que a homologo. (…)

Caso o recluso não seja antes libertado, deve, em 02/08/2020, ser desligado do processo n.º 373/94… e ligado ao processo n.º 178/00… do juiz … do juízo local criminal de ..., para cumprimento da pena de 66 dias prisão subsidiária, o que desde já se determina.


***


Requerimento do recluso de 20/04/2020, com a referência n.º …589:

O recluso cumpre, em execução sucessiva:

i) a pena única de 3 anos e 2 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico efetuado no processo n.º 67/17… que, além da própria, englobou as condenações dos processos n.º 372/16… e n.º 679/16…;

ii) remanescentes por revogação da liberdade condicional no total de 2 anos 3 meses e 12 dias (sendo 7 meses de prisão reportados ao processo n.º 108905/…, 126 dias de prisão subsidiária referentes ao processo n.º 373/94…, 1 ano de prisão e 60 dias de prisão subsidiária, ambos do processo n.º 327/97… e 66 dias de prisão subsidiária reportados ao processo n.º 178/99…).

Está ininterruptamente privado da liberdade desde 29/08/2018, pelo que a data do termo das penas supra indicadas será 10/02/2024, como muito acertadamente enunciado pelo ministério público na promoção que antecede.

Acresce não ter o recluso a situação jurídica definida, pois aguarda julgamento no processo n.º 3527/16….

Como tal, não pode deixar de se concluir que o recluso cumpre penas em execução sucessiva que só se mostrarão integralmente cumpridas em prazo superior a dois anos, pelo que não lhe é aplicável o perdão a que se refere a lei n.º 9/2020, de 10 de abril (cfr. art. 2.º n.º 4 deste diploma). (…).

- o recluso foi notificado deste despacho;

- em 05.05.20 o processo nº 3527/16… informa que o julgamento agendado para o dia 08.04.20 foi adiado sem data para a sua realização (cfr. fls. 353 dos autos de LC);

- o processo nº 468/15… informou em 04.06.20 que não se considerava competente para efetuar o cúmulo jurídico, atribuindo tal competência ao processo nº 67/17… (cfr. fls. 354 dos autos de LC);

- em 03.07.20 o processo nº 3527/16… informou que o julgamento foi agendado para o dia 27.01.21 (cfr. fls. 361 dos autos de LC);

- em 22.07.20 o processo nº 67/17… informou que foi designado o dia 08.09.20 para a realização da audiência do cúmulo jurídico (cfr. fls. 364 dos autos de LC);

- em 02.08.20 o recluso foi desligado do processo nº 373/94… e ligado ao processo nº 178/00… (cfr. fls. 362 dos autos de LC);

- o recluso terminou o cumprimento da pena à ordem do processo nº 178/00… em 07.10.20 e nesse mesma data foi ligado ao processo nº 1089/05… (cfr. fls. 378, 380 e 382 a 385 dos autos de LC);

- em 07.10.20 o recluso foi desligado do processo nº 178/00… e ligado ao processo nº 1089/05… (cfr. fls. 398 dos autos de LC);

- o recluso terminou o cumprimento da pena à ordem do processo nº 1089/05… em 07.05.21 (cfr. fls. 423 dos autos de LC);

- o processo nº 67/17… entendeu que não existiam motivos para realizar outro cúmulo jurídico para além daquele que já tinha realizado e determinou que os processos nº 691/15… e 468/15… fossem informados de tal decisão (cfr. fls. 400 a 402 dos autos de LC);

- em 10.05.21 o processo nº 3527/16… informou que o julgamento foi reagendado para o dia 15.09.21, às 14h (cfr. fls. 420 dos autos de LC);

- em 07.05.21 o recluso foi desligado do processo nº 1089/05… e ligado ao processo nº 327/97… (cfr. fls. 423 dos autos de LC);

- em 18.05.21 o recluso foi transferido do EP ... para o EP ... (cfr. fls. 434 dos autos de LC);

- estando o julgamento no processo nº 3527/16… agendado para o dia 15.09.21, foi determinado em 05.07.21 que os autos aguardassem por 4 meses por oportuna decisão final a proferir nesses autos, nos quais é imputada ao recluso a prática de um crime de burla qualificada (cfr. fls. 456 dos autos de LC);

- atenta a data agendada para a realização do julgamento no processo nº 3527/16… a situação jurídica do recluso permanece indefinida.

- por todo o exposto, é nosso entendimento que o recluso não está sujeito a qualquer prisão ilegal.

«»

Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor dos Requerentes, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

II. FUNDAMENTAÇÃO:

Dos elementos com que vem instruído o procedimento, com relevância para a decisão do vertente pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:

a) Dados de facto e processuais (em súmula):

1. O Requerente foi preso em 29 de agosto de 2018, para cumprir a pena que lhe foi aplicada no processo n.º 679/16….

2. Pena que perdeu autonomia, por ter sido englobada, na pena única de 3 anos e 2 meses de prisão aplicada ao arguido, em cúmulo jurídico, realizado no processo n.º 67/17…, englobando as penas parcelares em que tinha sido condenado aplicadas nesses dois processos e no processo 372/16…;

3. Da liquidação efetuada e homologada no proc. 67/17… consta que o cumprimento daquela pena única se iniciou em 29.08.2018, atingiu o meio em 29.03.2020, atingiria os dois terços em 09.10.2020 e o termo em 29.10.2021;

4. Por lhe ter sido revogada liberdade condicional, tinha para cumprir, sucessivamente, o remanescente de penas que lhe foram impostas nos processos 373/94… (126 dias de prisão subsidiária), 327/97… (1 ano de prisão e 60 dias de prisão subsidiária), 179/99… (66 dias de prisão subsidiária) e 1089/05… (7 meses de prisão), que somadas perfazem 2 anos, 3 meses e 12 dias de prisão.

5. Por despacho judicial de 16.03.20, ao abrigo do estabelecido no art. 63º, nº 1 do Cód. Penal, o TEP determinou que, ao meio de cumprimento daquela pena única, fosse o Requerente desligado do processo nº 67/… e colocado a cumprir a pena de 126 dias de prisão subsidiária em que foi condenado no processo nº 373/….

6. Prisão subsidiária que cumpriu até 2.08.2020.

7. Em 20.04.20 o aqui peticionante requereu a aplicação do perdão de penas decretado na Lei n.º 9/2020 de 10 de abril.

8. O TEP, por despacho de 28.04.2020, indeferiu a pretensão do recluso por estar a cumprir penas, em execução sucessiva, que só resultarão integralmente “expiadas” em prazo superior a dois anos, pelo que não lhe é aplicável o perdão concedido pela referida Lei n.º 9/2020.

9. Em 02/08/2020, foi desligado do processo n.º 373/94… e colocado em cumprimento da pena de 66 dias de prisão subsidiária aplicada no processo n.º 178/00… do juiz … do juízo local criminal ......

10. Prisão subsidiária que cumpriu até 7.10.2020.

11. Data em que foi desligado desse processo e colocado em cumprimento da pena de 7 meses de prisão aplicada no processo nº 1089/05….

12.   Pena de prisão que cumpriu até 7.05.2021.

13. Data em que foi desligado desse processo e colocado a cumprir as penas de 1 ano de prisão e 60 dias de prisão subsidiária aplicadas no processo n.º 327/97….

14. Penas que atualmente cumpre no estabelecimento prisional ..., em ....

15. Atingindo o cumprimento dessa pena de prisão em 7.05.2022.

16. E daquela pena de prisão subsidiária em 6.07.2022.

17. O Requerente tem outros processos pendentes, designadamente:

a. Os processos nº 691/15… e 468/15…;

b. O processo n.º 3527/16… onde está acusado da prática de um crime de burla qualificada, com julgamento reagendado para as 14h de 15.09.2021.

b) o direito:

1. direito fundamental à liberdade pessoal:

O direito à liberdade pessoal –liberdade ambulatória- é um direito fundamental da pessoa individual, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça ”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH[1], no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. o Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[2].

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França , em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [3].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[4].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.

Das medidas cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência em cada caso dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6) -, e dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do CPP).

Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou se exima à execução da fortemente previsível condenação. 

2. a providência da habeas corpus:

A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[5], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[6].

A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. A prisão é abusivamente ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido motivada por factos pelos quais a lei a não permite ou for mantida para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial definitiva.

“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas[7].

Entre nós, é na Constituição República de 1911[8] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[9] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[10], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[11]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[12] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[13].

A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[14] (remissão eliminada na revisão de 1971[15]).

Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[16], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.

Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se que o habeas corpus:

“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva, o outro, diferenciado, para a prisão ilegal.

Segundo Adriano Moreirao habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.

“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum[17].

No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[18]”.

Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[19], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.

E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.

Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[20].

E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantiva referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.

O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[21] pessoal, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.

No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[22].

3. regime legal e procedimento:

Dando expressão legislativa ao texto constitucional [23], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[24].

Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[25].

Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[26].

O habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de a prisão ilegal é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.

É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o Juiz] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade[27] .

Não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantém pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.

Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpus é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação[28].

O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição.

Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:

a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;

b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;

c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou

d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.

4. pressuposto da atualidade:

Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[29], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magna Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[30].

A Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unanime[31] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[32] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.

E no Ac de 11/02/2016[33] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.

Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”. Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.

É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.

Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.

A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.

Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.

4. prisão decretada em decisão judicial:

Conforme aflorado, o PIDCP consagra no art.º 9º que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Repete-se que a CEDH no art.º 5º n.º 1 al.ª a) admite a privação da liberdade através de prisão para execução de condenação decretada de acordo com o procedimento legal por tribunal competente

Por sua vez, o art.º 27º n.º 2 da Constituição da República admite igualmente a privação da liberdade pelo tempo fixado em “sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão”.

Ainda que não venha alegada a ilegalidade da manutenção da prisão por o Requerente não estar a beneficiar de liberdade condicional, salienta-se que o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão nº 7/2019 fixou a seguinte jurisprudência: «havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro por força do disposto no artigo 63.º, n.º 4, do CP, não podendo quanto a ela beneficiar de nova liberdade condicional.» Consequentemente, cumprindo o Requerente o remanescente de penas em virtude de revogação de liberdade condicional, não poderá, relativamente às mesmas, beneficiar outra vez daquele mesmo regime de cumprimento de penas de prisão carcerária.

5. no caso:

i. cumprimento de pena judicialmente fixada:

O Requerente, encontra-se preso desde 29 de agosto de 2018, em estabelecimento prisional do Estado (atualmente no EP….), a cumprir, sucessivamente, penas de prisão que lhe foram aplicadas em sentença/acórdão condenatória/o definitivo (transitado em julgado) proferida/o nos processos criminais supra identificados, que correram/correm termos no tribunal material e territorialmente competente.

O Requerente está assim, desde então e atualmente, privado da liberdade, em prisão, por decisão judicial motivada na verificação dos pressupostos de que depende a indispensabilidade do recurso à mais gravosa das medidas de coação legalmente previstas.

ii. prisão em prazo:

Resulta da informação prestada pelo TEP, que a pena que atualmente está a cumprir, em prisão, é o “remanescente (…) resultante de revogação de liberdade condicional à ordem dos processos 1089/05… (7 meses), 373/94… (126 dias de prisão subsidiária), 327/97… (1 ano de prisão e 60 dias de prisão subsidiária) e 178/99… (66 dias de prisão subsidiária)”. Desde 7 de maio de 2021 o remanescente das penas de prisão e prisão subsidiária aplicadas no processo 327/97…. O termo de execução das mesmas está distante, ocorrendo o da pena de prisão (1 ano) em 7 de maio de 2022 e o da prisão subsidiária em 6 de julho de 2022.

Conforme se realçou, decorre do AUJ n.º 7/2019 citado que, tratando-se da execução, em cumprimento sucessivo de penas, do remanescente de penas de prisão decorrente de revogação de liberdade condicional, não poderá beneficiar outra vez de liberdade condicional relativamente a essas penas, tendo, pois, de as cumprir por inteiro por força do disposto no artigo 63.º, n.º 4, do Cód. Penal.

Consequentemente, nesta data (14-07-2021), a privação da liberdade em cumprimento das penas de 1 ano de prisão e de 60 dias de prisão subsidiária, remanescente das penas aplicadas no processo 327/97…, mantem-se no prazo judicialmente fixado.

Extrai-se da petição do Requerente que se insurge por não terem sido cumuladas as diversas penas numa pena conjunta. Todavia, essa é questão que não pode ser averiguada e decida na vertente providência urgente que mais não permite que verificar, expeditamente, se a privação da liberdade em que uma pessoa se encontra enquadra alguma das alíneas do art.º 222º n.º 2 do CPP. As questões de natureza substantiva ou processual podem e devem ser suscitadas no processo e perante o tribunal onde corre termos. Podendo a decisão que as resolver ser impugnada mediante recurso ordinário perante o tribunal imediatamente superior.

Conclui-se, conforme exposto, que a atual prisão do Requerente não é ilegal em virtude de abuso de poder, não sendo suscetível de integrar alguma das situações definidas nas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal que é a norma processual que delimita o âmbito de admissibilidade da providência contra a prisão ilegal em virtude de abuso de poder.

Assim, por falta de fundamento bastante tem de indeferir-se a vertente providência de habeas corpus - artigo 223.º, n.º 4, alínea a) e n.º 6, do Código de Processo Penal. Não podendo, consequentemente, ordenar-se a peticionada libertação imediata do Requerente.

III. DECISÁO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, acorda em:

a) indeferir, por falta de fundamento bastante, a petição de habeas corpus, apresentada nos autos pelo Requerente.

b) condenar o Requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).


Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[34] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

________

[1] Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
[2] Grand Chamber, caso AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Queixa n.º 27021/08), julgamento em 7 Julho de 2011
[3] Grand Chambre, caso KAFKARIS c. CHYPRE. (queixa n.º 21906/04), sentença de 12 fevereiro de 2008.
[4] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223.
[5] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[6] Autores e obra citada, pag. 508.
[7] Autores e obra citada, pag 508.
[8] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[9] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[10] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[11] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[12]  Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[13] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[14] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial
[15] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[16] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[17] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[18] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[19] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[20] Funcionando a secção do STJ com todos os Juízes em exercício.
[21] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[22] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[23] Ao art. 31º da Constituição da República.
[24] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[25] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[26] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[27] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[28] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[29] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[30] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[31] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[32] 211/12.6GAMDB-A.S1, in www. Dgsi.pr
[33] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[34]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.