HABEAS CORPUS
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
PRAZO
REVISÃO
CESSAÇÃO
Sumário


I. A Constituição da República inclui, expressamente, as medidas de proteção, assistência e educação de menor em estabelecimento adequado, ao lado e ao nível das demais modalidades de restrição do direito fundamental à liberdade, apenas admissíveis pelo tempo e nas condições que a lei fixar ou decisão judicial determinar.
II. Conceção constitucional decisiva para se concluir pela aplicação do habeas corpus como providência processual extraordinária de reação expedita contra a privação da liberdade de criança ou jovem mantidos com abuso de poder, ilegalmente, em estabelecimento adequado de acolhimento (residencial).
III. O habeas corpus destina a proteger o direito fundamental à liberdade pessoal, permitindo reagir, imediata e expeditamente, “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.
IV. É um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento daquele direito pessoal, vulnerado por uma privação ou restrição da liberdade ordenada, autorizada ou executada por entidade não competente, ou fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada.
V. O acolhimento residencial”, prevista no art.º 35º n.º 1 al.ª f) da LPCJP, consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.
VI. Deve ser excecional, temporária, com prazo de duração necessariamente estabelecida em acordo de promoção e proteção ou na decisão judicial, obrigatoriamente revista até ao termo do prazo estabelecido. A revisão é um ato processual obrigatório e o prazo de duração fixado é perentório.
VII. Cessa se até ao termo do prazo não tiver sido acordada ou decretada a sua continuação ou prorrogado o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial.
VIII. A medida de acolhimento residencial das crianças, com a duração de 6 meses, iniciada em 11 de novembro de 2020, no tendo sido revista nem prorrogada, cessou em 10 de maio de 2021.
IX. O deferimento do habeas corpus determina a adoção de uma das medidas catalogadas no art.º 223º n.º 4, entre as quais, mandar que a pessoa privada da liberdade seja apresentada ao juiz no prazo de 24 horas.
X. Aplicando a norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto no art.º 223º n.º 4 al.ª c) do CPP com o disposto no art.º 92º n.º 1 da Lei n.º 147/99 da LPPCJ e, em consequência, determina-se que o Tribunal de Família e Menores onde o processo corre termos, habilitado como está com os dados necessário, no prazo de 48 horas, aplique, em favor dos menores, qualquer das medidas de promoção e proteção previstas no art.º35º da LPCJP. (incluindo o acolhimento residencial na mesma Casa de acolhimento onde se encontram).

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, secção criminal, delibera:


I. RELATÓRIO:

Os Requerentes:

- AA, e

- BB, residentes na Rua …, n.º …, em ... e os demais sinais dos autos

na qualidade de progenitores e representantes dos seus filhos menores:

- CC, de 5 anos e

- DD, de 2 anos, ambos de nacionalidade francesa, atualmente na …, da …, sita na …, …, em …,

vieram ao processo em epigrafe, a correr termos no Juízo de Família e Menores de … – Juiz …, invocando o disposto no artigo 31º da Constituição da República, requerer a vertente providência de habeas corpus alegando como fundamento a privação arbitraria da liberdade ambulatória daquelas crianças, seus filhos, afirmando manter-se para além do prazo judicialmente fixado no acordo de promoção e proteção, sem que tenha sido prorrogado. Peticionam que os menores sejam restituídos à liberdade.

1. a petição:

Para tanto argumentam:

1. Corre termos no Juízo de Família e Menores … - Juiz …, processo de promoção e proteção com o nº 2943/20…., referente aos menores CC e DD.

2. O aludido processo teve origem numa sinalização efetuada pela avó materna junto de autoridades francesas.

3. Os factos sinalizados pela referida avó materna não têm qualquer correspondência com a realidade nem, só de per si, são suscetíveis de enquadrar e/ou preencher o conceito de perigo.

4. Nunca os menores estiveram ou foram colocados em situação de perigo que exigisse a intervenção e aplicação de qualquer medida de promoção e proteção.

5. Como se pode aferir dos esclarecimentos prestados pelas autoridades francesas que se encontram junto àqueles autos de promoção e proteção.

6. A sinalização apresentada pela avó materna teve como único intuito o de instrumentalizar as várias entidades que intervêm na salvaguarda do superior interesse das crianças e jovens com o fino propósito de atingir a sua filha, aqui requerente, com quem, lamentavelmente, não tem boas relações.

7. Entendemos que as informações prestadas pelo Gabinete Nacional SIRENE foram erradamente interpretadas pelo Ministério Público, o que levou a fazer uso, injustificadamente, do procedimento judicial urgente previsto nos artigos 91.º e 92.º da Lei de Proteção com vista à confiança dos menores em Centro de Acolhimento Temporário.

8. Parece-nos ter sido também o entendimento do Tribunal num primeiro momento, veja-se a este propósito o despacho de abertura de instrução proferido no processo de promoção e proteção identificado no artigo 1º deste articulado, de 22 de julho 2020, com a ref.ª …195, cuja cópia se junta e se dá por integralmente reproduzido para os efeitos legais, quando se refere, além do mais, que  “… a instrução do pedido é muito escassa, pois que se limita à comunicação do Gabinete Sirene português, que reproduz o que, telegraficamente, consta da sinalização difundida pelo Gabinete no respetivo formulário.” (Doc. 1).

9. O processo que correu termos nos tribunais franceses encontra arquivado e por isso findo, sem que tenha sida aplicada qualquer medida protetiva ou ainda sem que tenha sido solicitado qualquer pedido de regresso dos menores a França ao abrigo da Convenção de Haia, como resulta de documentos apresentados no processo de promoção e que aqui se juntam para os efeitos legais. (Doc. 2).

10. Os menores encontram-se institucionalizados na Casa de Acolhimento …, desde 04 de Agosto de 2020 como resulta de documentos apresentado no processo de promoção e que aqui se juntam para os efeitos legais. (Doc. 3).

11. Em 10 de novembro de 2020, realizou-se conferência, onde estiveram presentes os requerentes e a avó materna EE, resultando dessa diligência um acordo de promoção e proteção de acolhimento residencial, concretizado na Associação de Solidariedade – …, medida que vigoraria por um período de seis meses, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, alínea f), 50.º, 55.º e 57.º da LPCJP.

12. Os progenitores, aqui requerentes, anuíram no acordo que lhes foi apresentado porque acreditaram que a medida era transitória e que as questões colocadas pela avó materna seriam, rapidamente, infirmadas pelo Tribunal, com a consequente entrega dos menores aos pais, aqui requerentes. 

13. Mas tal não se veio a verificar com grave e incalculável prejuízo para os menores, o que de resto é possível aferir da leitura do relatório.

14. Aquele prazo de seis meses fixado no referido acordo, encontra-se há muito ultrapassado, desde 9 de maio de 2021, sem que tenha sido observado o disposto no artigo 61.º da LPCJP e dado cumprimento ao disposto no n.º 62.º daquele mesmo diploma legal.

15. Perante tal facto e na ausência do cumprimento da Lei, no dia 14 de junho de 2021 os requerentes deram entrada, no mencionado processo de promoção e proteção, de requerimento a solicitar que a medida de promoção e proteção aplicada fosse declarada cessada pelo decurso do prazo, que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido (Doc. 4).

16. Sucede que até à presente data não foi proferida qualquer decisão.

Antes, e em face do relatório apresentado pelos Serviços Sociais e pela resposta apresentada pelos requerentes que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzida (Docs. 5), veio o tribunal a quo diferir para 12 de Agosto de 2021 a realização de conferência nos termos do 112º do LPCJP.                                                                           

17. Contudo, como facilmente se pode verificar pela posição que foi sempre assumida pela avó materna, não será possível qualquer tipo de acordo que salvaguarde os superiores interesses das crianças.

18. Antevê-se, pois, que a diligência marcada não surtirá o efeito pretendido e só acarretará mais tempo em que os menores estão privados de estar no seu ambiente familiar, com os progenitores, atentando, claramente, contra os seus superiores interesses.   

19. Tal situação, a manutenção da medida aplicada, viola claramente os mais elementares princípios fundamentais de direito, designadamente, o princípio da liberdade, do interesse superior das crianças, da prevalência da família, da proporcionalidade e atualidade.

20. Os menores CC e DD, encontram-se, ainda hoje, privados da sua liberdade, “mutatis mutandis” “presos” na Casa de Acolhimento ....

21. E os contactos que mantêm com pais, aqui requerentes, têm sido dificultados por parte da instituição, que nas muitas vezes em que tentam estabelecer contacto através de videochamada, não obtêm resposta, aliás tal como se poderá inferir pelo requerimento apresentado pelos Requerentes (cfr. Doc 5).

22. O superior interesse dos menores não se compadece com as delongas processuais, nem com questões físicas, logísticas e de pessoal das instituições que acolhem estas crianças.

23. Todas as circunstâncias que respeitam ao acolhimento residencial dos menores CC e DD têm mostrado que os vínculos que os menores possuem com os progenitores têm vindo a fragilizar-se, tal é assumido pela instituição sem que esta, alguma vez, tenha procurado contrariar tal facto.

24. E tal não pode acontecer num verdadeiro Estado de Direito!

25. Tem sido entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça que é de aplicar, observando o princípio da igualdade, o regime do habeas corpus quando aplicada a medida de acolhimento residencial.

Pelo exposto, nos termos do artigo 31.º da CRP, requer-se a V. Ex.ª que se digne declarar ilegal a manutenção da medida de acolhimento residencial, ordenando-se a libertação imediata dos cidadãos suprarreferidos e, consequentemente, a entrega imediata destes aos seus progenitores, conforme é da mais elementar justiça.

1. informação judicial:

O Juiz em serviço de turno no tribunal onde o processo corre termos, elaborou informação, em conformidade com o estabelecido no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, esclarecendo:

A Merit.ª Juíza titular do processo principal, tendo em vista obter um acordo de promoção e protecção (artigos 112.º e 114.º, n.ºs 1 e 5, da LPCJP), designou para a realização de conferência com os pais, a avó materna, a Técnica da Segurança Social Coordenadora do

caso ou quem a substitua, o Técnico Gestor do Caso …… e o Ministério Público, o próximo dia 12 de Agosto, pelas 15h00.

Sucede que nesse despacho se refere que os pais pugnaram pela alteração da medida para apoio junto dos pais e constata-se agora que vieram deduzir a presente providência de Habeas Corpus, pretendendo a imediata libertação dos filhos do acolhimento residencial, por o considerarem ilegal.

Consequentemente, não há perspectivas de acordo, visto que os pais extremaram a sua posição, podendo a diligência marcada revelar-se inútil.

Caso tal conferência seja dada sem efeito, poderá marcar-se debate judicial, cumprindo-se previamente o disposto nos arts. 103.º e 114.º da L.P.C.J.P., pois na falta de acordo é obrigatório o debate [n.º 5, b), do art.º 114.º da L.P.C.J.P.].

Neste sentido refere Paulo Guerra, «Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo», 5.ª ed., p. 182, que, não havendo acordo para a decisão, terá de haver debate, o mesmo concluindo Tomé Ramião, «Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo», 9.ª ed., p. 247:

«Deve, pois, entender-se, que a realização do debate judicial imposto no âmbito da revisão, nos termos do n.º 5, pressupõe a impossibilidade ou ausência de acordo.»


*


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensora do Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

II. FUNDAMENTAÇÃO:

a) factos:

Dos elementos com que vem instruído o processo, com relevância para a decisão da petição de habeas corpus extraem-se os seguintes dados de facto e processuais relevantes para a decisão:

a) Corre termos no Juízo de Família e Menores  ... - Juiz …, o processo de promoção e proteção com o nº 2943/20…, referente aos menores CC e DD, respetivamente, com 5 e 2 anos de idade, de nacionalidade francesa.

b) Processo que foi instaurado a requerimento do Ministério com base na informação inserida pelas autoridades francesas no gabinete Sirene, com o SIS …1.01, em que aquelas crianças aparecem referenciados como “menores desaparecidos” – Decisão art. 32º (2) SIS II –, por haver informação de que se encontravam em Portugal, com os seus pais.

c) O Tribunal, por decisão de 27 de julho de 2020, deferindo ao promovido pelo Ministério Público determinou “nos termos do art.º 37.º, n.º s 1 e 3, visto o art.º 35.º, n.º 1, al.ª f), da L.P.C.J.P., o acolhimento residencial cautelar das duas crianças, pelo prazo de dois meses, enquanto se procede ao diagnóstico da [sua] situação”.

d) Mais determinou a emissão e entrega às autoridades policiais, de mandados de condução daquelas crianças à instituição residencial que fosse, entretanto, indicada nos autos pelo SATT ….

e) Em cumprimento dos referidos mandados, a GNR e uma Técnica da Ação Social da Câmara Municipal de ..., no dia 5 de agosto de 2020 conduziram e, pelas 22h30m, entregaram os menores CC e DD, na Casa de Acolhimento ………., em ..., para execução da medida de acolhimento residencial decretada pelo tribunal.

f) No desenvolvimento do processo, na conferência havida em 10 de novembro de 2020, foi alcançado acordo de promoção e proteção do CC e do DD, com a concordância da Digna Magistrada do Ministério Público, da Técnica da EMAT, da Técnica da Casa de Acolhimento, dos Ilustres Advogados, dos pais e da avó materna dos menores.

g) Acordo que foi homologado por sentença da mesma data, exarada na ata da conferência e que, em síntese, se traduziu na adoção da medida de acolhimento residencial das crianças CC e DD, concretizado na Associação de Solidariedade – Asas de ... (nos termos dos artigos 35.º, n.º 1, alínea f), 50.º, 55.º e 57.º da LPCJP).

h) Medida de promoção e proteção que não se mostra ter sido revista nem que tenha sido determinada a sua continuação ou prorrogação.

i) Em 13 .97.2021 o Juiz exarou nos autos o seguinte despacho;

Revisão da medida aplicada

A Segurança Social propôs a prorrogação da medida de promoção e proteção aplicada de acolhimento residencial.

Os pais pugnaram pela alteração da medida para apoio junto dos pais.

Antevendo-se que a revisão possa levar à substituição da medida aplicada ou à prorrogação da execução da medida de colocação, concretamente acolhimento residencial, há que designar data para a realização de uma conferência, tendo em vista obter um acordo de promoção e proteção (artigos 112.º e 114.º, nos

1 e 5, da LPCJP).

Afigurando-se viável a obtenção de acordo de promoção e proteção, designo, para a realização de conferência, o próximo dia 12 de agosto, pelas 15h00.Por processo está designada conferência para o dia 12 de agosto de 2021 pelas 15 horas”.

j) Segundo a informação judicial prestada, não se perspetiva a obtenção de acordo nessa diligência.

k) Os menores CC e DD encontram-se atualmente acolhidos naquela IPSS, de onde não lhes tem sido permitido sair com os pais.

b) o direito:

1. direito fundamental à liberdade pessoal:

O direito à liberdade pessoal – a liberdade ambulatória - é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra: “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais), no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal ou detido ou preso nas situações tipificadas nas alíneas do n.º 1 daquela disposição normativa convencional.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a prisão ou detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[1].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação ilegal da liberdade, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[2].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos, de ir e vir (que não deve confundir-se com a liberdade de circulação, de mudar de local de residência). 

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.ºs 2 e 3, admite, expressamente, que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo – e para o que aqui releva - “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (e) “sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”.

A Lei Fundamental é, pois, clara, catalogando expressamente as medidas de proteção, assistência e educação em estabelecimento adequado, ao lado e ao nível das demais, como modalidade de restrição do direito fundamental à liberdade, apenas admissíveis pelo tempo e nas condições que a lei fixar ou decisão judicial determinar. Conceção constitucionalmente firmada que contribui decisivamente para se concluir pela aplicação do habeas corpus como providência processual extraordinária de reação expedita contra a privação da liberdade de criança ou jovem que sejam mantidos com abuso de poder, ilegalmente, em estabelecimento adequado de acolhimento (residencial).

2. a providência da habeas corpus:

A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[3], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[4].

A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. Fora dos casos de detenção pelo prazo máximo de 48 horas, a privação da liberdade pessoal ambulatória é ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de privativa da liberdade, verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido efetuada por forma irregular; ultrapassar a duração estabelecida na lei ou fixada em decisão judicial.

Contudo, “não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrária ou gravosas[5].

Entre nós, é na Constituição República de 1911[6] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[7] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[8], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[9]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[10] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[11].

A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[12] (remissão eliminada na revisão de 1971[13]).

Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[14], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.

Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se:

“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva e outro, diferenciado, para a prisão ilegal.

Segundo Adriano Moreirao habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.

“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum[15].

No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[16]”.

Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[17], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.

Transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.

Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[18].

E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), que, na parte substantivo referente à prisão ilegal (art. 222º), não sofreu qualquer alteração.

O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que visa proteger é o direito fundamental à liberdade[19] pessoal, permitindo reagir, imediata e expeditamente, “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal” .

No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[20].

3. regime legal e procedimento:

Dando expressão legislativa ao comando constitucional [21], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade da privação da liberdade proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Tem como denominador comum configurar situações extremas de privação da liberdade mediante detenção (para execução de MDE, extradição ou expulsão), prisão preventiva, internamento preventivo, obrigação de permanência na habitação, prisão carcerária ou domiciliária, prisão disciplinar, internamento de menor em centro educativo, acolhimento de menor em estabelecimento adequado, medida de segurança de internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança ou destinado a inimputáveis, internamento de portador de doença mental, em suma, qualquer medida privativa da liberdade ambulatória determinada com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[22].

Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui uma via de impugnação de atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade de uma pessoa, nem um sucedâneo dos recursos - ordinários ou extraordinários - admissíveis, que são os meios adequados de questionar o mérito e a regularidade das decisões judiciais. Não se destina a apreciar erros de direito e a reexaminar as decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[23].

Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[24].

O habeas corpus contra a privação ilegal do direito fundamental à liberdade por abuso de poder é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento daquele direito pessoal, vulnerado por uma privação ou restrição da liberdade ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.

É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o Juiz] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade[25] .

Visa unicamente colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da privação da liberdade em que requerente ou outra pessoa se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Apreciando apenas se foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas ou judicialmente fixadas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpus é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação[26]. Obrigatoriamente decidida no prazo máximo de 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição.

Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:

a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;

b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;

c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou

d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.

4. pressuposto da atualidade:

Na arquitetura traçada pela Constituição da República a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal.

É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.

Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.

A colocação do detido ou preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a sua apresentação ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser detido ou preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.

Consequentemente, se a pessoa não está privada da liberdade, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.

5. direitos sociais da família e das crianças

A Constituição da República, no art.º 36º n.º 5, condensando direitos fundamentais da família e filiação, consagra (no que aqui releva) o direito e impõe o dever dos pais de educar e manter os seus filhos. No n.º 6 estatui que “os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”.

No art. 67º (“família”), no n.º 2, onera o Estado com o dever de proteger a família, impondo-lhe a adoção de políticas sociais e a aplicação de medidas adequadas a essa finalidade, designadamente, [al,ª c)] incumbindo-o de “cooperar com os pais na educação dos filhos”.

No art.º 68º, n.º 1 confere aos pais “direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos”.

No art. 69º (“infância”) consagra, no n.º 1, o dever do Estado, da sociedade (e dos pais) de garantir o direito das crianças “ao seu desenvolvimento integral”, protegendo-as, “especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”. No n.º 2, onera o Estado com o dever de assegurar “especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal”.

Por sua vez. a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990, (aprovada para ratificação pela Resolução da AR n.º 20/90, de 12 de setembro), no respetivo Preâmbulo, considera “a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a protecção e a assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade;

Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão”.

6. medida de acolhimento residencial:

Dando execução aos comandos constitucionais atinentes à infância e juventude, o legislador ordinário, publicou a Lei de proteção das crianças e jovens em perigo/LPCJP – a vigente Lei n.º 147/99 de 1 de setembro -, com o escopo de poder intervir, na promoção dos direitos e/ou na proteção das crianças e dos jovens em perigo, que residam ou se encontrem no território nacional, “por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral”.

Dos princípios orientadores da intervenção – legitimada nas situações enunciadas no art.º 3º - sobrelevam aqui os: do interesse superior da criança; da intervenção mínima; das responsabilidades parentais; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; e da prevalência da família, especificados no art.º 4º da LPCJP.

Uma das medidas de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo, é o “acolhimento residencial”, prevista no art.º 35º n.º 1 al.ª f) da LPCJP. Consistindo na colocação (definida na lei como medida de colocação) da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados. Tendo como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral – art. 49º n.ºs 1 e 2 da LPCJP.

Tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos – art.º 50º n.º 1 da LPCJP.

A sua duração, necessariamente limitada, tem de fixar-se no acordo de promoção e proteção que a adotar ou na decisão judicial que a decretar – art. 61º da LPCJP.

Precisamente para obrigar ao acompanhamento e ao controlo permanente da evolução da situação de perigo para a promoção dos direitos e a proteção da criança ou jovem e, preparar o seu regresso ao meio natural de vida logo que tal se revele possível, impõe-se – obrigatoriamente – a revisão, “findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses – art. 62º da LPCJP.

A revisão periódica da medida de colocação da criança ou jovem num estabelecimento adequada, para fins de assistência, proteção ou tratamento físico ou mental, é um direito que lhes assiste, consagrada no art. 25º da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de janeiro de 1990

A decisão de revisão, necessariamente fundamentada de facto e de direito, “em coerência com o projeto de vida da criança ou jovem”, procede à verificação das condições de execução da medida de acolhimento residencial (no que aqui releva), podendo determinar a continuação ou a prorrogação da respetiva execução ou a sua substituição por outra medida que se revelar mais adequada a evolução da situação do perigo que fundamentou que se tivesse acordado ou determinado, com a consequente retirada da criança do meio natural de vida (quando existente) – art.º 62º n.º 2 da LPCJP.

No art.º 63º estatui-se que as medidas de promoção e proteção cessam quando “decorra o respetivo prazo de duração ou eventual prorrogação” – art.º 63º n.º 1 al.ª a) da LPCJP.

Resulta do exposto que a medida de acolhimento residencial – única aqui em apreço - deve ser excecional, temporária, com prazo de duração necessariamente estabelecida em acordo de promoção e proteção ou na decisão judicial. É obrigatoriamente revista até ao termo do prazo estabelecido. Cessa se até lá não tiver sido acordada ou decretada a sua continuação ou prorrogado o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial. A revisão é um ato processual obrigatório e o prazo de duração fixado é perentório.

Recorda-se que por determinação da lei, o acolhimento residencial tem a dupla finalidade de contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos e, ao mesmo tempo, onera o Estado e as instituições com o dever de promover, como constitucionalmente imposto, uma intervenção no meio natural de vida da criança ou jovem que possa favorecer a sua reintegração em contexto sociofamiliar seguro, capacitado para promover a  educação e zelar pelo bem-estar e desenvolvimento integral da criança. O Estado e as instituições não podem, pois, atuar apenas sobre a criança ou jovem protegendo-a. Devem incidir também na modelação do meio socio-familiar, fomentando uma parentalidade responsável e, se necessário, apoiando economicamente e orientando a formação e inserção profissional e comunitária dos elementos do agregado familiar do meio natural de vida da criança e do jovem.

Quando a intervenção no meio natural de vida seja impossível ou se revele ineficaz, ainda assim, não pode aceitar-se a inação do Estado e das instituições, permitindo que se conformem a arrastar e manter, ad infinitum, o acolhimento residencial, nem, consequentemente, deixem de diligênciar pela adoção de outras medidas que permitam estabelecer projetos de vida que salvaguardem, com perspetivas de futuro estável,  os superiores interesses da criança ou jovem (máxime: a sua proteção, assistência, educação, formação, desenvolvimento pleno da personalidade e integração social).

7. no caso:

Dos elementos constantes dos autos – e bem assim da consulta ao processo da 1ª instância (a que se acedeu no Citius) – verifica-se não ter sido, até ao momento, (como alegam os Requerentes), revista a medida de acolhimento residencial das crianças CC e DD que, com a duração de 6 meses, foi estabelecida no acordo de promoção e proteção celebrado em 10 de novembro de 2020, homologado por sentença da mesma data.

Conforme realçado, por disposição legal expressa, tinha de rever-se, obrigatoriamente, até 10 de maio de 2020, data do respetivo termo final e, ao mesmo tempo, termo final do prazo legal máximo para o efeito, nunca superior a 6 meses – art.º 62º n.º 1 da LCPJP.

Não foi revista ou determinada a sua continuação ou prorrogação nesse prazo, nem posteriormente e até à presente data (23/07/2021).

Não tendo sido acordada ou decidida judicialmente a continuação da execução da medida de acolhimento residencial, designadamente através da prorrogação do prazo, resultou cessada em 10 de maio de 2021, conforme resulta do disposto no art. 63º n.º 1 al.ª a) da LPCJP.

Não obstante ter cessado a medida de acolhimento residencial, pela expiração do prazo que lhe foi fixado, os menores CC e DD, mantiveram-se na Casa de Acolhimento ...., da ..., sita na Rua ..., …, em ..., onde até aí estavam em execução daquela medida de promoção e proteção.

Pelo que não resta senão concluir que, depois de 11 de maio e, para o que aqui releva, na presente data, 23 de julho de 2021, se encontram acolhidos naquele estabelecimento de acolhimento de crianças sem que seja em execução de medida de promoção e proteção estabelecida por acordo ou decretada em decisão judicial.

Conforme se realçou e decorre do art.º 27º n.º 3 al.ª c)  da Constituição da República, a restrição, parcial ou total, do direito à liberdade ambulatória das crianças e jovens, através de acolhimento em estabelecimento adequada, só é legal se consistir na execução de medida de promoção e proteção consentida (restrição consentida daquele direito) ou tiver sido decretada pelo tribunal judicial competente (homologatória de acordo de promoção e proteção ou em sentença judicial jurisdicional) .

Na providência de habeas corpus, em razão da sua natureza expedita e urgente, destinada unicamente a reagir contra a privação da liberdade ordenada ou mantida com abuso de poder, não cabe entrar na apreciação da natureza ou qualificação do vício resultante da omissão da revisão obrigatória periódica da medida de acolhimento residencial.

O deferimento da providência liberatória basta-se com a constatação da ilegalidade da privação da liberdade, sem que o Supremo Tribunal de Justiça deva entrar na apreciação do mérito de decisões judiciais ou na validade ou invalidade dos atos processuais.

Decorre do exposto que a situação em que atualmente se encontram os menores CC e DD, na Casa de Acolhimento identificada, configura uma situação de privação ilegal da sua liberdade, porque mantida para além do prazo fixado na sentença homologatória do acordo de promoção e proteção adotado em 10 de novembro de 2020, sem que, entretanto e até á data, tenha sido determinada a continuação da execução da referida medida de promoção e proteção. Privação do direito à liberdade que se enquadra, por conseguinte, na previsão do art.º 222º n.º 2 al.ª c) do CPP. E, assim, colhe amparo no estatuído no 31ª n.º 1 da Constituição da República.

Pelo que se impõe declarar a ilegalidade, neste momento, da privação da liberdade dos menores, com o consequente deferimento da vertente providência de habeas corpus 

Evidentemente, atenta tenra idade das crianças DD e CC – respetivamente com 2 e 5 anos de idade – não pode determinar-se a sua imediata libertação.

Por outro lado, entende-se que da não observância do dever de revisão da medida de acolhimento residencial e da sua cessão, ope legis, não pode decorrer, automaticamente, a entrega das crianças aos pais, por se correr o risco de as devolver à situação de perigo que determinou a adoção urgente de medidas cautelares de promoção e proteção adequadas a promoção dos seus direitos e à sua proteção. Não se pode desconsiderar que os direitos e o superior interesse das crianças, não podendo compadecer-se com soluções jurídicas pensadas essencialmente para situações materialmente diversas como seja a libertação imediata de um adulto ilegalmente detido ou preso, impõem a adaptação das mesmas, por interpretação extensiva, de modo a que não se corra o risco de as colocar, outra vez, em situação de perigo.

A situação concreta dos menores e dos seus parentes (pais e avó) pode aconselhar ou demandar a adoção de medidas de proteção, mesmo que cautelares, que se lafigurem necessárias e adequadas a salvaguardar a situação de perigo em que poderiam ser colocadas e a assegurar a promoção dos direitos e a proteção daquelas duas crianças. O tribunal onde o processo corre termos é o mais habilitado a decidir da necessidade de medidas de promoção e proteção e, sendo o caso, de qual a mais adequada a promover os superiores interesses das crianças.

Assim, entende-se aplicar a norma que se extrai da interpretação conjugada do disposto no art.º 223º n.º 4 al.ª c) do CPP com o disposto no art.º 92º n.º 1 da Lei n.º 147/99 citada e, em consequência, ser de determinar que o Tribunal de Família e Menores onde o processo corre termos, habilitado como está com os dados necessário, no prazo de 48 horas, aplique, em favor dos menores, qualquer das medidas de promoção e proteção (incluindo o acolhimento residencial na mesma Casa de acolhimento onde se encontram) previstas no art.º 35º da LPCJP.

III. DECISÃO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, decide

a) – declarar ilegal (por não ter sido prorrogada a continuação da respetiva medida de acolhimento residencial) a manutenção, atualmente, do acolhimento das crianças CC, de 5 anos e  DD, de 2 anos, na IPSS onde se encontram nesta data;

b) - determinar que a/o Sr.ª/º Juíza/Juiz no Juízo de Família e Menores de ... – Juiz … (ou aquela/e que ali agora está em serviço de turno) no mais curto prazo possível, sem exceder 48 horas, adote as medidas de promoção e proteção adequadas e necessárias (qualquer das previstas no art. 35º da LPCJP) a prevenir o perigo que poderia decorrer da imediata entrega das crianças aos Requerentes seus pais.

Sem custas.


*


Notifiquem-se os Requerentes através da sua ilustre Mandatária.

Com cópia integral, comunique-se imediatamente ao Juízo de Família e Menores de ... – Juiz 3, para os efeitos determinados em b).


*


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de julho de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)


Helena Isabel Moniz (Juíza Conselheira adjunta)


Maria Clara Sottomayor (Juíza Conselheira Presidente em serviço de turno)

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[1] GRAND CHAMBER, CASE OF AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Application no. 27021/08). JUDGMENT, in 7 July 2011
[2] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - n.º 29 – 2016, pag. 223.
[3] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[4] Autores e obra citada, pag. 508.
[5] Autores e obra citada, pag 508.
[6] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[7] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[8] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[9] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[10]  Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[11] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[12] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial
[13] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[14] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[15] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[16] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[17] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[18] Funcionando a secção do STJ com todos os Juizes em exercício.
[19] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[20] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[21] Ao art. 31º da Constituição da República.
[22] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[23] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[24] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[25] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[26] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.