OBJETO DO PROCESSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
ASSISTENTE
IRRECORRIBILIDADE
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário


I. A “igualdade de armas” em processo penal não obsta que ao arguido se reconheçam mais direitos que ao assistente, justificados pela superior densidade valorativa da defesa.
II. No nosso sistema, o objeto do recurso visa, em suma, a reapreciação da decisão recorrida. Mas o tribunal ad quem só pode conhecer do mérito da impugnação quando o recurso observar os pressupostos exigidos.
III. Entre os pressupostos processuais do recurso sobressai, desde logo, a tempestividade.
IV. Acórdão da Relação que rejeita o recurso, por intempestivo, não conhece, evidentemente, do objeto do processo penal.
V. A decisão de rejeição do recurso por motivos meramente adjetivos, não assume dignidade que justifique o seu reexame pelo STJ - art. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c) ambos do CPP.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:


A. RELATÓRIO:

1. a absolvição:

No Juízo local Criminal ...., no processo em epígrafe, mediante acusação do Ministério, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nºs. 1 e 2, do Cód. Penal, com pedido de indemnização civil deduzido (também contra Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A) pela assistente e demandante AA, viúva, na qualidade de cônjuge e cabeça de casal da herança deixada por óbito de BB e em representação dos filhos CC e DD, foi a arguida:

- EE, de 71 anos e os demais sinais dos autos.

julgada e, por sentença de 9.03.2020, absolvida da acusação e do pedido de indemnização (deste também a demandada seguradora).

Sentença que embora tenha sido lida em audiência realizada em 9.03.2020, somente foi depositada oito (8) dias depois, em 17.03.2020.

Em 19.03.2020 e em 27.03.2020 o Mandatário da assistente requereu que lhe fosse facultada cópia audível da gravação da prova produzida em julgamento para efeitos de interposição de recurso.

Requerimento que o tribunal deferiu apenas em 7.05.2020.

2. acórdão recorrido:

A assistente interpôs recurso em 8.07.2020, pagando multa pela prática de ato fora do prazo, acabando, mediante notificação da secretaria, a pagar o valor estabelecido no art. 107º-A al.ª c) do CPP.

O recurso foi admitido no tribunal recorrido.

Na resposta ao recurso, a arguida e a seguradora pugnam pela rejeição do recurso, alegando ter sido interposto para além do prazo legal.

O Tribunal da Relação ….., por acórdão de 23 de fevereiro de 2021, decidiu rejeitar, por ser extemporâneo, o recurso da assistente e demandante AA.

3. o recurso:

Assistente e demandante que, inconformada, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese): 

2 - interpôs recurso para o Tribunal da Relação ….. de sentença proferida em 1.ª instância, em 9 de Março de 2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca .... - Juízo Local Criminal  .....

3 - O recurso interposto para a Relação versa sobre matéria penal e matéria cível.

4 - A leitura da Sentença, em súmula e não entregue por não se encontrar disponível na data, ocorreu em 2020-03-09.

5 - A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determinou a suspensão dos prazos processuais com inicio em 2020-03-09.

6 - O depósito da sentença verificou-se em 2020-03-17.

7 - não foi notificada do depósito de sentença.

8 - É certo que não está prevista a notificação do depósito da sentença, mas não é menos certo que não estava prevista uma pandemia mundial (cujas consequências ainda são atuais), com os constrangimentos daí decorrentes, não se sabendo, à data, a longevidade e duração dos preceitos legais da promulgada Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.

9 - A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março limitou a atividade de processamento de actos pelos tribunais judiciais, aplicando-se o regime das férias judiciais até “à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública”. (Cfr. n.º 1, do art.º 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março)

10 - O depósito de sentença não se enquadra nas exceções elencadas no art.º 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e, por inerência, no n.º 2, do art.º 103.º do CPP.

11 - Só com a entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que veio produzir alterações à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, é que se previu, no art.º 6-B, n.º 5, alínea b) a exceção à suspensão de prazos e prática de actos processuais permitindo “a tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;”.

12 - Não tendo a Recorrente sido notificada do depósito de sentença, e sendo tal acto processual imprescindível para o início da contagem do prazo de recurso (cfr. artigo 411º, n.º 1, al. b), do CPP), só poderá produzir efeitos jurídicos, após a cessação da suspensão dos prazos para a prática de actos processuais, conforme decorre da Lei n.º 16/2020, de 6 de Abril.

13 - E ainda que tenha sido praticado, o efeito jurídico do acto (depósito de sentença) é inexistente, devendo ser considerado como um “acto aparente” e totalmente improdutivo, até que a lei o permita.

14 - O que só aconteceu no dia 03 de junho de 2020 (5.º dia posterior à publicação da Lei 16/2020, de 29 de Maio, art.º 10.º).

15 - Dia a partir do qual produz efeitos o acto de depósito de sentença, porque antes, e por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, era inexistente juridicamente para a Recorrente.

16 - O prazo de 30 dias para interposição do recurso iniciou-se no dia seguinte à produção de efeitos do depósito da sentença (2020-06-04), e não em 2020-06-03, conforme defende o Acórdão em crise proferido pela Relação …...

17 - O recurso foi interposto em 2020-07-08 (4.ª feira), 3.º dia útil subsequente ao prazo de 30 dias para interposição, que havia terminado em 2020-07-03 (6.ª feira), tendo a Recorrente pago a multa correspondente, nos termos da alínea c), do art.º 107.º-A, do CPP.

18 - Discorda a Recorrente do entendimento da Relação que acordou e decidiu que o 3.º dia útil subsequente ao prazo de 30 dias para interposição terminou em 2020-07-07 (3.ª feira).

19- O recurso interposto junto do Tribunal recorrido é tempestivo.

20 - Assim se pronunciou o Exmo. Juiz de Direito e Exma. Sr.ª Procuradora do Tribunal Judicial …, o Exmo. Sr. Procurador da República junto do Tribunal da Relação ….. e, no exame preliminar, a Exma. Relatora do Tribunal recorrido.

21 - A rejeição do recurso pela Relação constitui uma clara violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Peticiona a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que considerando tempestivo o recurso aprecie e julgue o respetivo objeto.

4. resposta do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto na Relação ….. contramotivou, defendendo a improcedência do recurso, sustentando (em síntese):

5  - o prazo de 30 dias para a interposição de recurso da sentença iniciou-se no dia 3-6-2020, terminando a 2-7-2020.

6  - A assistente interpôs recurso em 8-7-2020, pagando multa (artigo 139.° n.° 5 do CPC, aplicável por força do artigo 107.°-A do CPP), como se o ato tivesse sido praticado  no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo legal.

7  - o terceiro dia útil subsequente era o dia 7-7-2020.

8  - Pelo que, sendo extemporâneo, o recurso foi rejeitado, nos termos do artigo 420.° n.° 1 b) e 414.° n.° 2, ambos do CPP.

5. a arguida/demandada não contramotivou.

6. resposta da demandada seguradora:

A Ageas Portugal – Companhia de Seguros S.A. contramotivou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido, rematando com as seguintes conclusões (em síntese):

2. a Recorrente não traz aos autos qualquer argumento passível de reverter a decisão.

4. No caso, na audiência designada para a leitura de sentença, encontrava-se presente não só a Assistente/Demandante, como também o seu Ilustre Mandatário.

6. O prazo para recorrer da mesma, apenas teve início no dia 03 de junho de 2020, data em que a Lei n.º 16/2020, entrou em vigor, prevendo a cessação da suspensão dos prazos processuais não urgentes.

7. porque, publicada em 29 de maio, entrou em vigor 5 (dias) após.

8. o quinto dia posterior à publicação, foi 3 de junho, data em que iniciou a contagem do prazo da Assistente/Demandante para interpor recurso da sentença.

10. Nos termos do artigo 411.º, n.º 1, alínea b) do CPP, dispunha do prazo de 30 (trinta) dias para interposição de recurso.

11. iniciando-se a contagem no dia 03.06.2020, dispunha para o efeito até 02.07.2020.

13. o recurso poderia ser apresentado, nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ou seja, até 07.07.2020, conforme disposto no artigo 107.º-A, do CPP - o que não sucedeu.

14. o recurso interposto pela Recorrente é extemporâneo, porquanto foi interposto fora do prazo legalmente admissível para o efeito.

7. parecer do Ministério Público no STJ:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, em douto parecer, como questão prévia, pronuncia-se pela rejeição do recurso, nos termos dos arts. 400º n.º n.º 1 al.ª c) e 432º n.º 1 al.ª b) do CPP, argumentando (em síntese):

O acórdão recorrido não conheceu do objecto do processo, do mérito da sentença absolutória impugnada.

A assistente invoca o Acórdão nº 107/2012, do Tribunal Constitucional, alegando perfilhar a inconstitucionalidade da al. c), do nº 1, do art. 400º, do CPP.

O juízo de inconstitucionalidade constante daquele acórdão não é aplicável à situação dos autos, como se apreende da leitura da respectiva decisão.

Aquele acórdão julgou “inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1.ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão.”

Ao contrário do que pretende a recorrente, o Tribunal Constitucional, no acórdão citado, não emitiu um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma constante da al. c), do art. 400º, do CPP e afirma mesmo que “não merece censura constitucional a interpretação que vede a reapreciação pela mais alta instância ordinária de recurso de todo e qualquer acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto”, mas apenas aqueles em que o direito de defesa do arguido é coarctado de forma intolerável.

Em conformidade com o exposto, o recurso interposto pela assistente para este Supremo Tribunal, não é admissível, devendo ser rejeitado nos termos do disposto nos arts 400.º,  nº  1, al. c) e 432.º n.º 1, al. b), do CPP.

A tal não obsta a circunstância de ter sido admitido no Tribunal da Relação, como estatui o nº 3, do art. 414º, do CPP e o recurso deve ser rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do nº 2, do art. 414º, do CPP, como decorre do nº 1, al. b), do art.  420º, do mesmo código.

7. contraditório:

Os sujeitos processuais notificados do parecer do Ministério Publico, nada vieram dizer.


*


Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

B. OBJETO DO RECURSO:

Vêm suscitadas as seguintes questões:

- rejeição do recurso por irrecorribilidade do acórdão recorrido;

- tempestividade do recurso interposto para a 2ª instância.

C. FUNDAMENTAÇÃO:

1. o direito:

i. a questão prévia:

A primeira questão a conhecer e dirimir, suscitada pela Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, consiste em saber se o acórdão recorrido admite recurso. Não sendo recorrível, deverá rejeitar-se. Sendo assim, resultará prejudicado o conhecimento do mérito do recurso. De outra perspetiva, obstará a que o Supremo Tribunal de Justiça possa reexaminar a decisão recorrida.

Em primeiro lugar, como ponto de partida, de capital relevância, realça-se que a recorrente, sujeito no processo penal, tem a qualidade de assistente e também de demandante cível. Consequentemente, o seu direito ao recurso não pode ancorar-se nas garantias de defesa que o art.º 32º n.º 1 da Constituição da República (em linha com o consagrado na DUDH – art.º 11º n.º 1 -, no PIDCPT – art. 14º -[1]  e no CEDH, Protocolo 7. art.º 4º) confere ao arguido, permitindo-lhe submeter a reexame por um tribunal superior, nos termos que a lei não pode deixar de estabelecer, qualquer decisão judicial que o declare culpado e que lhe imponha uma pena ou medida de segurança.

A proclamada “igualdade de armas” em processo penal não obriga a que os direitos e deveres dos sujeitos processuais sejam exatamente os mesmos. Não obsta, conforme vem de assinalar-se, que ao arguido se reconheçam mais direitos que ao assistente, justificados, precisamente, pela superior densidade do seu direito fundamental de defesa.

Em segundo lugar, nota-se que a decisão absolutória impugnada pela assistente é uma sentença de tribunal singular. Evidentemente impugnável perante a 2ª instância tanto pelo Ministério Público como pela assistente. Todavia, em matéria penal, não seria recorrível pelos mesmos sujeitos processuais perante o STJ. E mesmo a arguida somente poderia recorrer para o tribunal da cúspide da ordem judiciária comum se a sua absolvição decretada em 1ª instância fosse revertida pelo Tribunal da Relação em pena de prisão efetiva – cfr. Acórdão n.º 595/2018 do Tribunal Constitucional.

Em matéria cível, atento o valor do pedido, o acórdão da Relação que, reapreciando a causa, conhecendo do mérito, divergisse da sentença recorrida ou a confirmasse com voto de vencido, poderia admitir recurso em mais um grau, desde que o valor da sucumbência o admitisse – art.º 400º n.ºs 2 e 3 do CPP.

A sentença da 1ª instância, como se referiu, absolveu a arguida da acusação e também absolveu as demandadas civis – arguida e seguradora - do pedido de indemnização civil contra as mesmas formulado pela demandante, aqui recorrente. Sentença absolutória que a assistente e demandante civil impugnou, recorrendo perante a 2ª instância, exercendo o direito ao recurso amparado pelo direito fundamental de acesso ao direito e ao tribunal para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, consagrado no art.º 20º n.º 1 conjugado com o direito de intervir no processo, nos termos da lei, conferido pelo art.º 32º nº 7, ambos da Constituição da República.

No regime adjetivo penal, o direito ao recurso do assistente e do demandante civil estão, na parte que aqui interessa, firmados no art.º 69º n.º 2 al.ª c). 74º n.º 2, 399º e 400º nº n.º 2 e 3 , todos do CPP.

Verifica-se que o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, tirado em conferência, conhecendo de questão suscitada pelos recorridos, não admitiu o recurso, por extemporâneo – porque apresentado para além do prazo legal. Não conheceu, pois, do mérito do recurso. Não reapreciou, por conseguinte, do objeto do processo em qualquer das referidas vertentes (penal e civil).

A Recorrente – assistente e demandante civil – pretende que o STJ reverta o acórdão recorrido, determinando que a Relação conheça da impugnação da sentença absolutória.

A Digna PGA neste Supremo Tribunal, em questão prévia suscitada, pronuncia-se pela não admissão do vertente recurso, em conformidade com o disposto no art.º 400º n.º 1 al.º c) do CPP.

Vejamos:

ii. acórdão irrecorrível:

O regime do recurso ordinário perante o Supremo Tribunal de Justiça está estabelecido no art. 432.º e 434º ambos do CPP. No segmento que aqui intercede, o n.º 2 al.ª b) do art. 432º citado estabelece a regra da recorribilidade para o STJ de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400.º”. Norma adjetiva remetida que contém um catálogo de “decisões que não admitem recursos”. Entre as que enumera no n.º 1 al.ª c), estabelecendo a irrecorribilidade dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo”.

O último e decisivo segmento dessa norma foi introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de setembro, substituindo a redação então vigente – que era a seguinte: “… que não ponham termo à causa” – resultante da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto.

O Legislador, justificando essa alteração, na Proposta de lei n.º 109/x , que resultou na Lei n.º 48/2007 citada, motiva:O conjunto de alterações introduzidas em sede de recursos pressupõe que o direito de recurso constitui uma garantia de defesa, hoje explicitada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, e um corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20, n.º 1, da Constituição), mas deve subordinar-se a um desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material. Para restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, substitui-se, no artigo 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e 8 anos de prisão por uma referência a penas concretas com essas medidas. Prescreve-se ainda que quando a Relação, em recurso, não conhecer a final do objecto do processo, não cabe recurso para o Supremo. Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal.”

É jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que “a formulação vigente restringe as causas de recorribilidade e amplia as causas de irrecorribilidade «a todos os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que ponham termo à causa, mas não conheçam do objecto do processo, o que o artigo 400.º, n.º 1, al.ª c), na redação de 1998, não incluía»[2].

Conforme sustentado no referenciado Ac. de 22.04.2015 deste Supremo Tribunal, (citando os Ac.s. de 26.02.2014, proc. n.º 78/12.4JAFUN.L1.S1 e de 31.01.2012, proc. n.º 171/05.0TAPDL.L2.S1), “o traço distintivo entre as duas formulações reside no facto de «anteriormente serem susceptíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que actualmente só são susceptíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito»”.

O objeto do processo penal, conforme se tem vindo a salientar, é delimitado pela acusação ou pela pronúncia. Fixando estas o thema probandum e o thema decidendum e, com isso, os poderes de cognição e de decisão do tribunal de julgamento. De qualquer modo, o tribunal só pode avançar para o conhecimento do mérito da acusação, ou da pronúncia - e do pedido civil enxertado no processo criminal -, quando se verificam os pressupostos ou as condições da ação penal.

No nosso sistema, o objeto do recurso é, em suma, a reapreciação da decisão recorrida. Mas o tribunal ad quem só pode conhecer do mérito da impugnação e entrar no reexame da decisão impugnada, quando o recurso observar os pressupostos formais legalmente exigidos. A decisão sobre o preenchimento ou não dos requisitos formais do recurso (máxime: legitimidade, interesse em agir, tempestividade) tem natureza processual, precedendo o conhecimento do objeto do recurso e se não cumpridos, obstando ao conhecimento do mérito. Entre os pressupostos processuais do recurso sobressai desde logo a sua tempestividade. Isto é, que o recurso tenha sido apresentado no prazo legalmente firmado no art.º 411º n.º 1 ou, no limite, no prazo alargado e nas condições estabelecidas nos art.º 107 e 107-A, ambos do CPP.

Acórdão da Relação que julga não verificados pressupostos formais do recurso, não conhece, evidentemente, do objeto do processo penal. Não reaprecia da justiça material da decisão recorrida nem tão-pouco da sua regularidade processual. Rejeitando o recurso por extemporâneo, não pode o tribunal ad quem conhecer, a final, do mérito da causa.

Na conceção do legislador, quando assim sucede, a decisão de rejeição do recurso por motivos meramente adjetivos, não assume dignidade que justifique o seu reexame pelo Supremo Tribunal de Justiça. Por isso, firmou a respetiva irrecorribilidade – cfr art. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c) do CPP..

No caso, a assistente e demandante civil interpôs recurso ordinário impugnando sentença da 1ª instância que, na improcedência da acusação absolveu a arguida do crime de que vinha acusada e aquela e a seguradora também do pedido de indemnização civil contra as mesmas formulado. Repetindo, o Tribunal da Relação decidiu rejeitar, por extemporâneo – isto é, porque interposto para além do prazo legalmente firmado -, o recurso da assistente e demandante civil. Não conheceu, por isso, a final do objeto do processo

Pelo que, conforme determina a norma legal em análise, não é recorrível perante o Supremo Tribunal de Justiça.

Procede, pois, a questão prévia da inadmissibilidade do recurso suscitada pela Digna Procuradora-Geral Adjunta.

iii. a questão de constitucionalidade:

A recorrente, confundindo a sua qualidade de assistente e demandante civil, considera-se cotitular das garantias da defesa, incluindo o direito ao recurso consagrado no art.º 32º n.º 1 da Constituição da República.

O direito de defesa é próprio e exclusivo do arguido. Não é direito que o assistente possa invocar para si. O assistente em processo penal está do lado da acusação e, diversamente do Ministério Público, nem sequer pode recorrer no interesse da defesa. Nem a Constituição da República nem os instrumentos convencionais sobre os direitos fundamentais amparam “uma perspectiva de total simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modo de concretização das garantias de acesso à justiça” conforme se adverte no Ac. 205/2001 do Tribunal Constitucional (citando o acórdão nº 27/2001).

Ainda que, por hipótese meramente académica, o assistente pudesse invocar aquele comando da Lei Fundamental, nem assim se impunha a admissão do recurso aqui em apreço. Desde logo porque aquela norma não dispensa a observação das exigências formais e dos pressupostos processuais estabelecidos na lei. Requisitos que os recorrentes – seja qual for a sua qualidade de sujeito processual - não podem deixar de observar.

Assim tem entendido e decidido o Tribunal Constitucional. Em linha com outros que o antecederam[3] (entre os quais, o amplamente citado pela Digna PGA), no Acórdão n.º 690/2016 decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não serem recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos das relações que considerem intempestivos os recursos, admitidos na primeira instância, de decisões que condenem os arguidos em pena de prisão”.

No Acórdão n.º 400/2013, expendeu-se: “as garantias de defesa no processo criminal não exigem a possibilidade de o arguido recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto de decisão condenatória e anteriormente admitido pelo tribunal de primeira instância, desde que ao arguido tenha sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre essa questão antes da prolação do acórdão em causa”.

Fundamentando: “no regime processual penal vigente, apesar de um recurso ser admitido em primeira instância, na relação o mesmo recurso deve ser rejeitado por decisão sumária do relator, se tiver sido interposto fora do prazo (cfr., respetivamente, o artigo 417.º, n.º 6, alínea b), e o artigo 420.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 414.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal). Dessa decisão sumária cabe reclamação para a conferência (cfr. o n.º 8 do artigo 417.º, do citado Código; quanto à composição e competência da conferência, v. o artigo 419.º do mesmo diploma). Deste modo, pode o arguido impugnar livremente os fundamentos invocados na decisão sumária e que tenham determinado a rejeição do recurso, cabendo a última palavra sobre a intempestividade do recurso ao tribunal que seria competente para apreciar o recurso, isto, naturalmente, independentemente da gravidade da concreta pena aplicada.

Se a relação, em conferência, indeferir a reclamação apenas por não considerar procedentes as razões invocadas pelo recorrente contra a decisão reclamada – como sucedeu no caso sub iudicio  – não ocorre uma situação de indefesa constitucionalmente ilegítima e, por conseguinte, justificativa da abertura de um novo grau de recurso. Nessa hipótese, um eventual recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a ser admissível, não representa nem a única nem a primeira oportunidade de o recorrente se defender de decisão que implica o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida na primeira instância, uma vez que ainda antes da interposição de tal recurso o recorrente tem oportunidade de contrariar as razões em que a mesma se fundou, reclamando dela para a conferência. Por isso, e como referido no Acórdão deste Tribunal n.º 107/2012, não merece censura constitucional a norma que veda a reapreciação pela mais alta instância ordinária de recurso de todo e qualquer acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto.

A questão coloca-se necessariamente em moldes diferentes nos casos em que o acórdão da conferência indefere a reclamação de decisão que considera intempestivo um recurso admitido na primeira instância com base em fundamentos novos e diferentes dos invocados na decisão reclamada, sem previamente – e com violação do princípio do contraditório – dar oportunidade ao recorrente de sobre eles se pronunciar. Esta foi, aliás, a situação objeto do mencionado Acórdão deste Tribunal n.º 107/2012.

Situação transponível para o caso, se, hipoteticamente, a assistente pudesse abrigar-se ao comando do art.º 32º n.º 1 do CPP. Aqui, o recurso da assistente e demandante civil foi admitido pelo tribunal de 1ª instância. A arguida e a demanda cível, na respetiva resposta ao recurso, peticionaram a rejeição do recurso, defendendo ser extemporâneo. O Tribunal da Relação  ….., em conferência, julgou procedente a questão prévia assim suscitada pelos referidos recorridos e, sem que tenha acrescentado argumentos novos, decidiu rejeitar o recurso por extemporâneo.

Por conseguinte, mesmo que a recorrente fosse arguida – e, salienta-se é assistente e demandante civil – nem tão-pouco poderia admitir-se este seu recurso porquanto a tal se opõe o estatuído nos arts.º 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c), ambos do CPP. Disposição normativa que, como vem de evidenciar-se, não ofende, assim interpretada e aplicada nas concretas circunstâncias do vertente recurso, o comando constitucional que consagra as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso.

Em conformidade com o exposto o Supremo Tribunal de Justiça não pode senão rejeitar-se, por legalmente inadmissível, uma vez que não conheceu a final do objeto do processo, o vertente recurso da assistente e demandante civil – art. 432.º, n.º 1, alínea b) e 400º n.º 1 al.ª c), ambos do CPP. Rejeição que, conforme estatui o art.º 414º n.º 3 do CPP, não é obstaculizada pela admissão do recurso no tribunal recorrido.

A rejeição, por inadmissibilidade, prejudica o conhecimento do mérito do recurso, obstando a que o Supremo Tribunal possa reexaminar a questão da tempestividade do recurso para a Relação.

D. DECISÃO:

Assim e em conformidade com o exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide:

a) Rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso da assistente e demandante civil – art.º 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al,ª c) ambos do CPP.;

b) condenar a recorrente nas custas – art.º 515º n.º 1 al:º b) e 523º ambos do CPP -, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs - art.º 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


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Supremo Tribunal de Justiça, 27 de agosto de 2021

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

(Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[4] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

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[1]Toda a pessoa declarada culpada de um delito terá direito a que a sentença e a pena que lhe foram impostas sejam submetidas a um tribunal superior, conforme o previsto na lei.”
[2] Cfr. Acórdãos de 13/10/2011, proc. 141/06.oJALRA.C1.S1; de 26.02.2014, proc. n.º 78/12.4JAFUN.L1.S1; de 22.04.2015, proc 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1; e de 14/09/2016, proc. 11744/13.7IDPRT.P1.S1.
[3] Ao ali citados acrescenta-se o Ac. n.º 142/2015
[4]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.