CRIME DE TRATO SUCESSIVO
REQUISITOS
UNIDADE DE RESOLUÇÃO
ACTO ILÍCITO
INTERRUPÇÃO
Sumário

I – É a unidade resolutiva, a par da homogeneidade de atuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de tratos sucessivos num só crime.
II – A interrupção dos atos criminosos durante mais de 22 anos (de 1994 a 2016) não autoriza a sua unificação e, consequentemente, que se considere por verificado um único crime, daí que haja a necessidade de extrair as devidas consequências quanto ao decurso do tempo sobre os atos que decorreram entre 1994 e 2016.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Proc.nº 377/19.4GAMCN.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo comum singular, a correr termos no Juízo local Criminal de Marco de Canaveses- Comarca de Porto-Este, foi proferida decisão, na qual se decidiu:

a) Condenar a arguida B… pela prática de um crime de violência doméstica, do artigo n.º 152/1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, nos termos conjugados dos artigos 50.º e 53.º e ss. do Código Penal, vocacionado para a prevenção da reincidência, do qual constará, entre outras que a DGRSP venha a reputar adequadas, a frequência de programa dirigido a agressores de violência doméstica, caso reúna condições para frequentar o mesmo.
b) Condenar a arguida B… na pena acessória de proibição de contactar com o ofendido C… e afastamento do local da residência deste, pelo período de 18 (dezoito) meses, sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
c) Condenar a arguida B… a pagar ao ofendido C…, nos termos dos artigos 82.º-A, do Código de Processo Penal, e 21.º, n.º 1 e 2, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
d) Condenar a arguida B… nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC. “

Inconformado, a arguida interpôs recurso, invocando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
“EM CONCLUSÃO:
1. - A R.te considera que foram incorretamente julgados os factos constantes nos pontos 4, 5, 6, 7, 12 e 13.
2. - O Tribunal a quo, no tocante ao crime de violência doméstica, formou a sua convicção, no essencial, quanto aos factos provados e não provados nas declarações do assistente e das testemunhas, D…, E… e F…;
3. - Não foi feita qualquer prova nos autos que o assistente tivesse sofrido danos físicos ou psíquicos.
4. - O crime de violência doméstica, apenas existe tipificado no Código Penal após a aprovação da lei 59/2007, de 4 de Setembro.
5. - Assim, os factos ocorridos anteriormente à entrada em vigor da nova lei, não poderiam ter sido apreciados nem valorados na audiência de julgamento, não tendo hoje qualquer tipo de relevância penal, por extinção do procedimento criminal, por falta de queixa do ofendido, elemento necessário até à data da entrada da lei supra mencionada.
6. - Na douta sentença recorrida, pelas datas invocadas nos factos dados como provados no que concerne à factualidade descrita nos pontos 5 e 6, observamos que os mesmos já se encontram prescritos, violando-se assim os arts.º 118º, nº 1, al. c) do CP e 121º, nº 3, do C.P.
7. - Nos termos da al. c) do nº 1 do art. 118º do CP, o procedimento criminal extingue- se por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos.
8. - Ora, estes factos, devido à sua escassa concretização temporal, e pese embora tenham sido dados como provados pelo Tribunal a quo, não são aptos a integrarem o crime de violência doméstica.
9. - Enquanto crime de dano, tal como configurado antes e depois da revisão de 2007, revela que nem todas as vítimas de violência doméstica merecem a mesma tutela e proteção jurídica, mas tão só as que tiverem à vista ou documentado as suas lesões físicas, psicológicas e/ou emocionais - Sandra Inês Feitor, jurista e doutoranda em Direito pela Universidade Nova de Lisboa, 30.03.2012, in Análise Crítica do Crime de Violência Doméstica.
10. - Na sentença recorrida não se fez prova de que o assistente tenha sofrido danos físicos ou psíquicos, não há nos autos quaisquer relatórios médicos ou sinais de agressões compatíveis com as ofensas alegadamente infligidas.
11. - As agressões que o assistente diz ter sido vítima, e descritas nos pontos 5, 6 e 7 da matéria dada como provada, não foram suficientemente graves para “afetar, de forma marcante, a sua saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
12. - Motivo pelo qual, consideramos que não estão verificados os elementos do tipo do crime de violência doméstica.
13. - Todavia, se por hipótese académica, se venha a entender que a R.te cometeu o crime porque vem acusada, deverá a sua pena ser reduzida para os mínimos legalmente previstos para este tipo de crime.
14. - Dos factos dados como provados retira-se que o grau de ilicitude não é de modo algum elevado - as necessidades de prevenção especial e geral, no presente caso, não revestem, um caracter elevado.
15. - Entendeu o Tribunal a quo arbitrar uma indemnização ao assistente por força do disposto no art.º 82.º-A do C.P.P.
16. - Todavia, não se encontram observados os requisitos especiais exigidos pela norma do art.º 82.-A do C.P.P para que aquela indemnização pudesse ser arbitrada.
17. - Não deve haver lugar ao arbitramento oficioso daquela indemnização quando não foi deduzido pedido de indemnização civil por negligência da vítima ou, beneficiando de patrocínio judiciário, de quem a representa processualmente.
18. - Todavia, no caso sub judice o pedido de indemnização civil foi efetivamente deduzido pelo assistente a 22-09-2020, mas desentranhado dos autos por ter sido considerado extemporâneo, por despacho datado de 14-10-2020, com a referência: 83576592.
19. - É por isso patente que o pedido de indemnização civil foi efetivamente deduzido pelo assistente.
20. - O Tribunal a quo deveria ter entendido que o pedido de indeminização civil foi deduzido, uma vez que apenas não foi admitido porque extemporâneo.
21. - Motivo, pelo qual, aquela indemnização não deve ser atendida e consequentemente, deve ser declarada a absolvição da arguida da indemnização condenatória fixada na sentença.
22. - Sem prescindir, entende ainda a R.te que a indeminização prevista no art. 82º-A do CPP tem como destinatários as vítimas particularmente carecidas de proteção e não todas elas.
23. - Da análise dos factos dados como provados na sentença recorrida, não ficou provado que estejamos perante uma situação particular de uma vítima carenciada de proteção, e que impunha o arbitramento de uma reparação ao abrigo daquele normativo.
24. - Mormente, considera a R.te que o princípio do contraditório, previsto n.º 2 do art.º 82º-A do CPP, impunha que fosse ouvida sobre os alegados prejuízos causados ao ofendido, bem como em relação ao nexo de imputação da sua conduta.
25. - Pelo exposto, a factualidade apurada pelo Tribunal não contém todos os factos necessários ao preenchimento dos pressupostos para a atribuição da indemnização fixada, carecendo, pois, a sua atribuição do respetivo suporte e fundamento fáctico.”

O assistente respondeu e concluiu:
“CONCLUSÕES:
I. Na petição de divórcio, o Assistente limitou-se a alegar os mesmos factos que havia alegado no âmbito do processo n.º 483/16.7GAMCN e que, por si só, bastam enquanto fundamento para aquela ação de divórcio, nos termos da alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil.
II. A Recorrente socorre-se de uma dualidade de critérios infundada, procurando atribuir maior valor probatório ao auto de notícia elaborado no âmbito do processo n.º 483/16.7GAMCN mas, ao mesmo tempo, defende a completa desconsideração do auto de notícia de 29 de julho de 2019, elaborado no âmbito dos presentes autos.
III. O auto de notícia limita-se a fazer prova da respetiva diligência, não fazendo prova plena dos factos que aí são descritos.
IV. Os depoimentos das testemunhas D…, E…, F… e as declarações do Assistente permitem-nos concluir, sem margem para dúvidas, que a Recorrente, durante vários anos, dirigiu-se ao Assistente, chamando-lhe “corno” e “filho da puta”.
V. A testemunha F… e o Assistente confirmaram, em depoimentos bastante coincidentes, a ocorrência do facto provado n.º 5.
VI. Ao contrário do defendido pela Recorrente, cremos que não existe uma diferença assim tão significativa entre a utilização da expressão «sapatada» (pela testemunha) ou da palavra «chapada» ou «estaladas» (pelo Assistente), pelo menos não ao nível que justifique que este facto seja considerado não provado.
VII. Ambas as palavras, pertencentes à linguagem informal, são comummente utilizadas para descrever uma só situação: ato através do qual alguém atinge outrem com a mão aberta.
VIII. As declarações do Assistente, a sua forma de estar em juízo e, inclusivamente, a sua notória dificuldade em localizar temporalmente os acontecimentos, só reforçam a sua credibilidade.
IX. Se o relato que este forneceu ao Tribunal fosse falso no mais mínimo aspeto, muito dificilmente teria o Assistente capacidade para manter o raciocínio acerca do mesmo, pelo que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por entrar em contradições, o que não se verificou.
X. Ao longo das suas declarações, o Assistente referiu vários episódios de violência física e verbal que a Recorrente exerceu contra ele. Sem precisão temporal, de facto, mas com detalhe suficiente e espontaneidade bastante que não há qualquer fundamento para o seu relato não gozar da credibilidade que o Tribunal a quo lhe atribuiu.
XI. O Assistente confirmou, no essencial, a verificação da circunstância dada como provada no facto n.º 7.
XII. A Recorrente confessou os factos provados n.os 12 e 13. O mesmo episódio foi confirmado pelo Assistente e, ainda, referido pela testemunha E….
XIII. A violência doméstica manifesta-se de diversas formas, podendo adotar diferentes tipos de abuso, nomeadamente violência emocional, social, física e financeira.
XIV. Todas estas manifestações da violência doméstica foram provadas em juízo.
XV. A Recorrente menosprezava a ligação do Assistente à sua família, o que obrigava o Assistente a encontrar-se com estes às escondidas daquela.
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XVI. A própria Recorrente manifestou, em plena audiência de discussão e julgamento, o desprezo que tem à família do Assistente, referindo que o Assistente «cheira a mãe, cheira o irmão», num claro e intensivo desdém pela relação que este mantém com os seus familiares.
XVII. A postura adotada pela Recorrente, mesmo em sede de juízo, mostra que não há qualquer sinal de arrependimento da sua conduta e, ainda mais preocupante, que esta não entende o alcance e a gravidade dos seus atos.
XVIII. As condutas descritas da Recorrente foram diretamente responsáveis por provocar danos na saúde física e mental do Assistente que, como se presenciou em sede de audiência de julgamento, se encontra visivelmente afetado por toda esta situação tendo, inclusivamente, necessitado de auxílio enquanto prestava as suas declarações, tal é o seu estado de stress, ansiedade e vergonha.
XIX. O Assistente manifestou, de forma clara e inegável, o seu estado de angústia e desespero, mostrando-se completamente esgotado, física e mentalmente, dizendo, por diversas vezes, que está sempre ameaçado, que está farto de levar porrada e que não tinha sossego.
XX. Face à prova produzida em juízo, só se pode concluir pela verificação do elemento subjetivo (dolo direto) e do elemento objetivo do crime de violência doméstica, porquanto, durante anos, a Recorrente adotou uma postura reiterada de violência física e verbal para com o Assistente, causando-lhe dor, angústia e medo, com o objetivo de o humilhar e o ofender na sua honra e, assim, atingindo-o na sua dignidade enquanto pessoa.
XXI. Não há prescrição dos factos n.os 5 e 6 porquanto os mesmos integram um só crime de violência doméstica, crime habitual, cujo último facto foi praticado a 17 de abril de 2020.
XXII. Considerando o grau elevado grau de ilicitude dos factos, o dolo direto, a integração social da Recorrente, a sua prévia condenação pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples contra o Assistente e a sua postura adotada em juízo, não demonstrando qualquer arrependimento nem sequer vê qualquer malícia na sua conduta, não a considerando merecedora de qualquer tipo de censura, inexiste fundamento para a redução da medida concreta da pena.
XXIII. Tratando-se de vítimas de violência doméstica, é necessário conciliar o artigo 82.º-A CPP com o n.º 2 do artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
XXIV. Não tendo a vítima manifestado qualquer oposição no arbitramento de indemnização ao abrigo daquele artigo 82.º-A, muito bem andou o Tribunal a quo pronunciando-se sobre o mesmo pois, caso não o tivesse feito, estaríamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia.
XXV. O Tribunal a quo cumpriu o princípio do contraditório quando, no dia 12 de janeiro de 2021, informando a arguida de que lhe poderia vir a ser aplicada a condenação no pagamento de uma indemnização, a questionou sobre as suas circunstâncias económico-financeiras e lhe reservou o momento necessário para que ela se pronunciasse sobre a questão.
XXVI. A Recorrente agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o único objetivo de maltratar, física e psicologicamente, o Assistente, ofendendo-o na sua honra e consideração.
XXVII. A conduta da Recorrente causou dor, humilhação, vergonha, medo e sofrimento ao Assistente.
XXVIII. A Recorrente sabia que a sua atuação é punida por lei mas não se coibiu de atingir a dignidade e saúde do Assistente, através de agressões, ofensas e ameaças.
XXIX. Ainda que tal não se considere (o que não se concede), nunca poderia a decisão de condenação no pagamento de indemnização ser objeto de recurso, por violação do artigo 400.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
XXX. O recurso sobre esta condenação não é legalmente admissível, em função do valor.”

O Ministério Público não respondeu ao recurso.

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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição de parte do recurso quanto a certos factos invocando o princípio ne bis idem, pugnando todavia pela manutenção da condenação crime, embora mais atenuada e cível.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):
«2.1 Factos Provados:
Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida B… e o ofendido C… contraíram matrimónio em 23.07.1994, tendo-se divorciado a 16.06.2020.
2. Após o casamento, a arguida B… e o ofendido C… fixaram residência inicialmente no Luxemburgo, e depois, a partir do ano de 2006, na Av. …, n.º …., nesta cidade de Marco de Canaveses.
3. Do casamento nasceu uma filha, nascida no ano de 1996.
4. Desde o início do casamento, em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, a arguida dizia ao ofendido que era um “corno”, e um “filho da puta”.
5. Em data não concretamente apurada, próxima do ano de 1994, porque o ofendido não acatou uma indicação de paragem que a arguida lhe deu quando seguiam num veículo automóvel por aquele tripulado, no qual se encontrava também a irmã do ofendido, a arguida desferiu-lhe um estalo na cabeça.
6. Em data não concretamente apurada do ano de 1994, quando o casal residia no Luxemburgo, a arguida, descontente com a hora tardia a que o ofendido chegou a casa do trabalho, desferiu-lhe um golpe na cabeça com uma garrafa, tendo o ofendido necessidade de ser assistido no hospital.
7. Em data não concretamente apurada, ocorrida no ano de 2017 ou 2018, a arguida tentou desferir uma pancada com um pau na cabeça do ofendido, não o logrando fazer porque aquele defendeu-se com o braço.
8. Em 15/08/16, a arguida agrediu o ofendido, tendo sido julgada e condenada por tais factos, qualificados como ofensa à integridade física, na pena de 80 dias de multa.
9. Desde o Verão de 2016 que o ofendido e a arguida dormem em quartos separados, não fazendo vida de casal e estando pendente o divórcio.
10. Frequentemente, a arguida diz ao ofendido que o mata.
11. O ofendido evitava estar em casa e dormia com a porta do quarto trancada, por receio da ofendida.
12. No dia 29/07/19, pelas 13h00, a arguida agarrou o colarinho da camisola que o ofendido vestia, pelas costas e exigiu-lhe a entrega da correspondência.
13. Como o ofendido lhe disse que já lhe tinha entregue toda a correspondência que lhe era dirigida, a arguida disse-lhe: “dá-me o correio se não eu desfaço-te e mando-te para o cemitério, meu filho da puta”, tendo a filha do casal intervindo.
14. Em data não concretamente apurada de Abril de 2020 a arguida partiu a fechadura da porta do quarto do ofendido, após este negar abrir tal porta.
15. No dia 17 de Abril de 2020, a arguida proibiu o ofendido de entrar em casa, pelo que este chamou a GNR.
16. O ofendido entrou em casa acompanhado pelos militares, por sentir medo da arguida.
17. A arguida apareceu e na presença dos militares interpelou o ofendido de forma agressiva e disse-lhe que “tu não és homem nenhum”.
18. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente o ofendido, bem como de o ofender na sua honra e consideração, causando-lhe humilhação, vergonha e sofrimento.
19. A arguida sabia que o ofendido era seu marido, pelo que, sempre que o humilhou, insultou, ameaçou e agrediu, agiu com o propósito de o ofender e maltratar, de modo a atingir a sua dignidade humana e saúde psíquica e física.
20. Bem sabia a arguida que a casa onde os factos ocorreram era a casa onde habitavam, bem sabendo que, ao praticar tais factos naquele local, lhe causava maior temor e intranquilidade.
21. Sabia que a sua actuação era proibida e punida por lei, como crime, não se coibindo, no entanto, de a levar a cabo, ainda que conhecendo o estado de fragilidade do ofendido, devido, em parte, à sua idade.
22. A arguida percepciona-se como vítima, apresentando dificuldades em colocar-se no papel do outro, mostrando-se centrada nas decisões quanto ao património que detém com o ofendido, tendendo a fazer uma atribuição externa da eventual responsabilidade à ingerência externa de familiares do ofendido.
23. O abandono da casa onde a arguida e o ofendido viviam, após aplicação de medida de coacção, causa na arguida angústia e raiva.
24. A arguida encontra-se a viver numa casa cedida por um irmão, pela qual paga a quantia de € 100,00.
25. A arguida frequenta um curso de formação profissional na área da geriatria, pelo qual recebe, em média, a quantia mensal de € 150,00.
26. A arguida, para além de quantia referida em 25), sobrevive com dinheiro próprio aforrado, e com dinheiro herdado.
27. A arguida despende mensalmente a quantia de € 26,00 em medicação, € 30,00 em passe de transporte público, € 25,00 de electricidade, € 10,00 de resíduos e saneamento e € 25,00 de telecomunicações.
28. A arguida realiza trabalhos indiferenciados, pelos quais recebe mensalmente a quantia aproximada de € 10,00.
29. A arguida completou o 6.º ano de escolaridade.
30. No seu meio social, a arguida e o ofendido são percepcionados de forma favorável, com padrões de comportamentos convencionais, sendo que a conflitualidade não era manifesta.
31. A arguida já respondeu e foi condenada:

a) no processo n.º 483/16.7 GAMCN, por sentença transitada a 09.02.2017, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta a 18.03.2017, pelo pagamento, por factos praticados a 15.08.2016;
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2.2 Factos Não Provados:
Com interesse para decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
1. Desde o início do casamento, a arguida dizia ao ofendido “não és nada”.
2. O descrito em 5) dos factos provados ocorreu dois meses depois do casamento do ofendido e da arguida, e o descrito em 4) a 6) dos factos provados ocorreu na presença da filha do casal, enquanto esta era menor.
3. A arguida deu vários estalos na cabeça do ofendido, e apenas cessou a conduta referida em 5) dos factos provados porque a irmã do ofendido interveio.
4. O descrito em 7) dos factos provados ocorreu na Páscoa de 2016. 5. Nas circunstâncias de tempo descritas em 7) dos factos provados, a arguida não logrou desferir uma pancada com um pau na cabeça do ofendido porque este fugiu. 6. Frequentemente, a arguida dirige ao ofendido as palavras “ladrão”, “não és homem”, “não tens piça”. 7. Frequentemente, a ofendida pega em utensílios de cozinha como copos e pratos para atirar ao ofendido, não o chegando a fazer porque este foge. 8. Nas circunstâncias de tempo descritas em 12) dos factos provados, a arguida dirigiu ao ofendido as palavras “eu mato-te”.
9. Na sequência do descrito em 13) dos factos provados, o ofendido fugiu.
10. No dia 30/07/19, por causa da correspondência, a arguida disse ao ofendido: “dá-me o correio senão eu desfaço-te, se eu fico na merda dou cabo de ti”.
11. Nas circunstâncias descritas em 16), a arguida dirigiu-se aos militares e disse-lhes que por razões monetárias não queria o ofendido em casa e ele que fosse para casa do irmão.
12. A arguida dirigiu-se ao ofendido com notório desprezo e em tom acintoso, sendo atente a forte pressão psicológica que a mesma faz sobre o ofendido, com o objectivo deque este abandone a casa.
13. O estado de fragilidade do ofendido, referido em 21) dos factos provados, deve-se a AVC que o deixou debilitado e com sequelas.
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Consigna-se que o demais alegado constitui matéria de direito, conclusiva, repetida ou sem interesse para a causa.
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2.3 Fundamentação da Decisão de Facto:
A convicção do Tribunal formou-se a partir da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, na sua globalidade, analisada à luz de juízos de senso comum e de normalidade. A arguida prestou declarações após a produção de toda a prova, e, globalmente, negou a prática dos factos que lhe são imputados na acusação - com excepção em relação a alguns dos mesmos, que assumiu, conforme indicaremos abaixo.
O facto provado n.º 1 resultou da análise da certidão de fls. 372-373 e o facto provado n.º 8 da análise da certidão extraída do processo n.º 483/16.7GAMCN, cuja junção aos autos foi determinada na audiência de julgamento realizada a 07.01.2021.
Os factos provados n.º 2 e 3 foram confirmados pelo assistente e pela própria arguida, que explicou terem regressado (a própria e o ofendido) do Luxemburgo para Portugal no ano de 2006, algo que a testemunha E…, irmão do ofendido, também relatara.
O facto provado n.º 4 resultou da análise conjugada dos depoimentos do ofendido e das testemunhas D…, E… e F…. De facto, o ofendido/assistente confirmou expressamente que que desde o início do casamento, a arguida chamava-o de “corno” e “filho da puta” (e não também que lhe dissesse, frequentemente, “não és nada”, sobre o que não houve prova – facto não provado n.º 1). Tal versão dos factos foi sendo confirmada por toda a prova testemunhal apresentada pelo Ministério Público, através de relatos fidedignos e que confirmaram episódios (presenciados pelas testemunhas) em que a arguida dirigiu ao ofendido palavras insultuosas como as dadas como provadas. A testemunha D…, que era vizinho do casal, cá em Portugal, referiu ter ouvido a arguida a “tratar mal” o ofendido numa discussão (relatando apenas ouvir a voz da arguida e não também do ofendido), e a chamar vários nomes ao ofendido, um dos quais “filho da puta”. A testemunha E… declarou ao Tribunal que, aproximadamente no ano de 2018, a arguida dirigiu ao ofendido as palavras “arruma-te, filho da puta, que nem te posso ver”, confirmando, portanto, que a arguida insultou o ofendido com a mesma expressão (“filho da puta”). Confirmou também que o ofendido, seu irmão, com quem tem uma relação de proximidade, queixava-se que a arguida chamava-lhe os nomes dados como provados (como este confirmou). Por fim, a testemunha F… relatou ao Tribunal que a arguida sempre tratou o irmão “do piorio”, descrevendo um episódio ocorrido no Luxemburgo, por volta do ano de 1994, no qual a arguida, após o ofendido sair de casa a contragosto daquela, foi à janela da habitação de ambos, debruçou-se na janela e chamou ao ofendido, entre outros nomes injuriosos, “filho da puta”. Ou seja, ainda que as primeiras duas testemunhas relatem episódios mais recentes, esta última testemunha reportou um episódio ocorrido no ano de 1994, pouco tempo após o casamento do ofendido e da arguida, demonstrando que este género de condutas da arguida não se limitam a um Passado recente, antes constituindo, conforme o assistente asseverou, um padrão de relacionamento que se iniciou após o casamento de ambos (ainda que, conforme resultou da prova, se tenha intensificado nos últimos anos do casamento). Aliás, diremos, a existência de uma conduta agressiva pela arguida em relação ao ofendido, desde pouco tempo após o casamento (uma vez mais, ainda que mais intensa na parte final deste), ficou também comprovada face à matéria constante dos factos provados n.º 5 e 6 – conforme nos referiremos. No entanto, não houve prova consistente quanto às expressões que constam do facto não provado n.º 6, pelo que sobre tal matéria não se criou convicção positiva.
O ofendido confirmou ainda o que consta do facto provado n.º 10, relatando que a arguida disse-lhe várias vezes “eu mato-te”, “desfaço-te e vais para o cemitério”, não confirmando, no entanto, o que consta do facto não provado n.º 7. Confirmou também o que consta do facto provado n.º 11, tendo referido, em síntese, que trancava a porta, por vezes com recurso a uma “cunha”, que entalava por baixo da mesma, e que sentia medo da arguida já antes de ter tido um problema de saúde, referindo ainda ter medo que esta regresse a casa – sendo que a própria arguida, denotando irritação, referiu que o ofendido passava muito tempo durante o dia em casa da mãe e do irmão: “cheira a mãe, cheira o irmão”. De resto, em linha com as declarações do seu irmão, a testemunha E… confirmou que antes do confinamento, o ofendido saía de casa de manhã e voltava à noite, por ter medo da arguida.
O ofendido confirmou ainda o episódio vertido no facto provado n.º 6, referindo que poucos meses depois do casamento, porque chegara tarde do trabalho, houve uma troca de palavras que culminou com uma agressão da arguida, que o atingiu na cabeça com uma garrafa, motivando que fosse ao hospital receber assistência médica (explicando que nesse momento disse ao médico que tinha caído).
As declarações do ofendido mereceram credibilidade, pela forma espontânea e natural como foram prestadas, tendo sido, em partes muito significativas, confirmadas pelas testemunhas acima referidas, sendo que, inclusivamente, a própria arguida confessou parte dos factos constantes da acusação, que confirmam ter actuado em relação ao ofendido de forma violenta, contra a integridade física deste (conforme diremos quanto ao facto provado n.º 12). O depoimento do ofendido foi algo empecido pelas limitações auditivas do mesmo, bem como por alguma dificuldade de expressão que manifestou. Apesar disso, o assistente transmitiu ao Tribunal a ocorrência de vários eventos em que foi vítima de comportamentos violentos (verbais e físicos) pela arguida, relatando-os com assertividade, ainda que, em certos momentos, não se lembrasse de alguns pormenores de um ou outro episódio (o que indicia até a ausência de um discurso preparado e ensaiado), por vezes até em favor da arguida, como aconteceu relativamente ao episódio referido nos factos provado n.º 12 e 13, já que não confirmou que nessa altura a arguida, para além de lhe dizer as palavras referidas em 13) dos factos provados, o tivesse agarrado pelo colarinho; algo que a arguida, no entanto, confessou ter feito por querer que o ofendido lhe entregasse a correspondência que recebera (não só a da arguida mas também a do ofendido), porque queria saber o destino da reforma do mesmo (facto provado n.º 12). O ofendido, nalguns momentos do seu depoimento, demonstrou desassossego (depoimento que até precisou ser interrompido, por aquele se ter sentido mal), mas este estado atribui-se, com segurança, ao desgaste e saturação sentidos pelo comportamento de que foi vítima ao longo do tempo e que, inevitavelmente, o impactou emocionalmente, e não pelo nervosismo causado por uma qualquer tentativa de apresentar uma versão dos factos que sabia não corresponder à verdade. Manifestou tal desgaste, paradigmaticamente, por exemplo, quando desabafou com naturalidade, na sequência de pergunta que lhe fora feita, “estou farto de levar porrada”. Manteve, ao longo do seu depoimento, no essencial, uma versão consistente e coerente sobre a actuação da arguida. Ou seja, ainda que o ofendido apresente um estado de saúde que aparentemente afecta a sua capacidade de expressão, o Tribunal ficou plenamente convencido de que depôs de forma afirmativa e verdadeira, apresentando relatos detalhados de alguns dos eventos de que melhor se recordava, em parte muito relevante confirmados pela demais prova (como, por exemplo, entre outros, o episódio constante do facto provado n.º 5), e que, no essencial, resultaram vertidos na matéria provada. Das suas declarações decorre, reitera-se, uma versão lógica e coerente, que foi corroborada, no essencial, pela prova testemunhal acima referida - claro está, com as limitações típicas deste tipo de crime, em que parte significativa dos comportamentos violentos normalmente não são testemunhados por terceiros, por praticados na intimidade do casal/lar.
As testemunhas D…, E… e F… também mereceram credibilidade, já que apresentaram relatos escorreitos e congruentes, não meramente confirmatórios da factualidade constante da acusação, e demonstraram conhecimentos directos e profundos sobre as realidades que relataram. Sendo que estas testemunhas também demonstraram ter conhecimentos indirectos (o que disseram claramente, quando tal sucedia), através de relatos que, ao longo do tempo, ouviram do ofendido sobre episódios de vivência com a arguida, que, globalmente considerados, suportam também as declarações prestadas por aquele.
A matéria vertida no facto provado n.º 5 resultou, de forma clara, da análise conjugada dos depoimentos, homogéneos no essencial, do assistente e da testemunha F…, irmã do assistente, cujo depoimento, conforme já se mencionou, mereceu credibilidade. O relato deste acontecimento, tal como de outros, foi feito de forma pormenorizada e escorreita, espontânea e segura; isto apesar de (tal como o ofendido) não ter conseguido concretizar o mês de tal acontecimento (primeira parte do facto não provado n.º 2) - algo que, desde logo, se considera absolutamente normal, se considerarmos que tal evento ocorreu no ano de 1994. Esta testemunha relatou ao Tribunal que em data próxima do ano de 1994, quando seguia no carro com o assistente e a arguida, esta agrediu o assistente com uma “sapatada” com a mão na nuca, com força, o que atordoou o seu irmão. O assistente confirmou igualmente tal acontecimento e o seu enquadramento, enquanto conduzia uma viatura, por não ter acatado uma indicação dada pela arguida, tendo referido ter recebido duas ou três estaladas; no entanto, considerando que estava a conduzir, portanto atento ao trânsito, e que ficou naturalmente atordoado com a actuação da arguida, o Tribunal julgou, nesta parte, mais fidedigno o relato da testemunha F…, em como foi apenas uma estalada, já que assistiu a todo o episódio com melhor perspectiva (seguia no carro com o ofendido e a arguida, sem ser a conduzir) e com maior distanciamento emocional – primeira parte do facto não provado n.º 3. Não resultou desses depoimentos que a arguida apenas tivesse cessado a sua conduta porque a irmã do ofendido interveio (facto não provado n.º 3, segunda parte). Acresce referir que não foi feita prova suficiente quanto ao facto de a filha do casal, enquanto menor (conforme alegado na acusação), tivesse assistido às condutas descritas nos factos provados n.º 4 a 6 (mormente, ter assistido a sua mãe e chamar nomes injuriosos ao seu pai) – uma vez que, aquando do episódio relatado no facto provado n.º 13, a mesma já era maior de idade (segunda parte do facto não provado n.º 2).
A arguida tentou abalar a credibilidade dos depoimentos das testemunhas E… e F…, referindo que depuseram por vingança, apresentando uma versão dos factos falsa. No entanto, esta alegação não encontra sustentação na prova, já que as testemunhas E… e F…, apesar de serem irmãos do ofendido, depuseram, conforme já se referiu, de forma espontânea, lógica e coerente. Concretamente, a testemunha F… assumiu estar de relações cortadas com a arguida; ou seja, a testemunha não se apresentou em Tribunal a dizer que não tem qualquer problema com a arguida e que as suas relações são normais. Pelo contrário, a testemunha não escondeu ter tido problemas com a arguida, com quem cortou relações. No entanto, também referiu que tais razões não constituíam, como se crê que não constituíram, motivo que a impedisse de falar a verdade em Tribunal.
Acresce que a arguida demonstrou dificuldade em explicar mais profusamente tal putativa motivação daquelas testemunhas, mantendo-se por uma alegação superficial, sendo que o alegado quanto à testemunha F… não merece credibilidade também quando analisado à luz de regras de experiência comum, uma vez que a arguida, alegadamente, ainda não revelou os conhecimentos que a testemunha quereria manter em segredo –premissa lógica da sua actuação por vingança.
Refira-se que os documentos juntos pela arguida durante a audiência de julgamento, mormente, o auto de denúncia constante do processo n.º 483/16.7GAMCN e a petição inicial da acção de divórcio, não abalam a credibilidade do Tribunal relativamente aos factos provados n.º 4-6, considerando não só o que já se referiu quanto ao modo como depuseram o ofendido e a testemunha F…, bem como pelo teor dos mesmos depoimentos, mas também porque as declarações atribuídas ao assistente foram prestadas em contextos específicos que importa considerar e que não devem ser obliterados aquando da sua análise. Ou seja, ainda que o alegado na petição inicial possa ser uma transposição das informações transmitidas pelo ofendido ao seu advogado, ainda assim, diremos que o alegado cumpre o objectivo a que se propõe, ou seja, constituir um fundamento para o divórcio. Para tal fim, a alegação de anteriores actos de violência (anteriores, diga-se, aos relatados) é inócua e, segundo o ofendido, foi esse o motivo para a alegação não se reportar aos factos ocorridos no (distante) ano de 1994. Confrontado com tal alegação, o ofendido referiu que o seu advogado, mandatário nestes autos (que estava presente na audiência de julgamento), lhe dissera que não era preciso alegar tudo (para obter o divórcio). Ou seja, não se procurou fazer uma descrição exaustiva, desde logo porque tal não era necessário. Tal como explicou que quando apresentou queixa, pela agressão que levou à condenação da arguida no âmbito do processo n.º 483/16.7GAMCN, o seu principal objectivo era apresentar queixa por aquela agressão, não por outros actos de que tivesse sido alvo anteriormente; sendo que se afigura normal que o ofendido se tivesse recordado os actos mais recentes. Ou seja, o facto de constar do auto de denúncia uma referência a ser vítima de violência física e psicológica há cerca de seis anos, ocorrendo desde então actos de forma pontual, não afasta a possibilidade (confirmada pela demais prova) de terem ocorrido outros actos de violência em momento anterior – concretamente, os que constam dos factos provados n.º 2 a 4. Da prova produzida resulta claramente que a relação entre o ofendido e a arguida deteriorou-se ao longo do tempo, que resultou num agravamento do tratamento que esta dava àquele – seja pela frequência das condutas agressivas da arguida, seja pela intensidade das mesmas. Crê-se que o ofendido, quando apresentou queixa na GNR, estar-se-ia a reportar a uma realidade última, mais recente, sem preocupação de ser rigoroso ou exaustivo no relato do seu passado.
O facto provado n.º 7 resultou o depoimento do ofendido, que relatou ao Tribunal que tal agressão ocorreu quando a arguida ficou presa, involuntariamente, na sua varanda e depois de o ofendido ter ido abrir a porta. A arguida confirmou a data em que ficou presa na varanda, dizendo que tal ocorreu no ano de 2017 ou 2018 (e não na Páscoa de 2016 – facto não provado n.º 4). Disse que ficou presa involuntariamente, que foi o ofendido quem lhe abriu a porta, mas negou contudo, ter agredido aquele. O assistente, pelo contrário, contou ao Tribunal que a arguida, munida de um pau, tentou acertar com tal objecto na cabeça do ofendido, o que apenas não conseguiu porque este defendeu-se com o braço direito (ou seja, não confirmou o que consta do facto não provado n.º 5, em relação ao que não houve prova).
Face a tudo o que já foi dito quanto ao depoimento do ofendido, o relato deste mereceu acolhimento, pela sua credibilidade.
O facto provado n.º 9, que resulta do depoimento do assistente, foi confirmado igualmente pela arguida.
O ofendido confirmou também, conforme já se fez referência, o descrito no facto provado n.º 13, sendo que a própria arguida, ao confessar o que consta do facto provado n.º 12, disse, neste trecho de forma espontânea, que a filha do casal estava em casa e disse à mãe para “deixar o pai”. De notar que a testemunha E…, confirmou no seu depoimento que o ofendido lhe contara esse episódio, fazendo uma descrição dos factos que se revelou, no essencial, semelhante ao relato apresentado pelo próprio assistente em julgamento. Não houve prova consistente quanto ao vertido nos factos não provados n.º 8 e 9, inexistindo também em relação ao facto não provado n.º 10.
Também conforme já se fez menção, a arguida confirmou ter partido a fechadura da porta do quarto do ofendido, tentando passar uma ideia de naturalidade na sua actuação (facto provado n.º 14). Partiu a fechadura porque queria arrumar a roupa do ofendido, que queria arrumar naquela altura, e que a fechadura partiu com facilidade. Acabou por confirmar, ainda que não num primeiro momento, em que as suas declarações demonstraram alguma confusão, que naquele momento o ofendido encontrava-se no quarto, e que momentos antes negara abrir-lhe a porta. Por sua vez, o ofendido relatou que se encontrava dentro do quarto quando a arguida rebentou com a fechadura da porta, agindo com violência sobre o mesmo.
De referir que a versão dos factos apresentada pela arguida também não mereceu credibilidade pela forma hesitante (por exemplo, quando disse não ter a certeza se alguma vez chamou ao ofendido “filho da puta”), e por vezes confusa, como prestou declarações. De facto, momentos houve em que a arguida não respondia directamente às perguntas que lhe eram colocadas ou em que dava respostas evasivas. Aconteceu começar a responder, tentando justificar alguma acção que teria tido (como quando respondeu à matéria invocada no ponto n.º 10 da acusação) mas que depois acabava por negar completamente; aconteceu negar uma realidade e depois assumi-la (como quando referiu que quando partiu a fechadura o ofendido não estava no quarto, mas depois confirmou realidade diversa, dizendo que pedira para abrir o ofendido negara a sua entrada). Refira-se ainda que os depoimentos das testemunhas de defesa não abalaram, em nada, a convicção do Tribunal, que se vem expondo, considerando que, por um lado, como é comum no crime de violência doméstica, o facto de (algumas) pessoas não terem percepcionado agressões (fossem verbais ou físicas) não significa que as mesmas não ocorressem; por outro lado, tais testemunhas não demonstraram um contacto com o casal tão intenso e diário como algumas das testemunhas de acusação, pelo que os seus conhecimentos apresentaram-se menos profundos. Acresce referir que as testemunhas de defesa não rebateram directa e consistentemente qualquer episódio descrito, especificamente, pela restante prova testemunhal, muitas vezes limitando-se, no essencial, a relatar genericamente a sua visão do casamento da arguida com o ofendido, em parte alicerçada em conversas que tinham com a própria arguida.
O episódio vertido nos factos provados n.º 15-17 resultou da análise integrada do depoimento do ofendido, com o da testemunha E…. O ofendido, em suma, relatou ao Tribunal que chamou a GNR porque tinha medo e porque a arguida não o deixava entrar em casa, tendo confirmado ainda que a arguida lhe disse, à frente dos militares, que “não era homem nenhum”. Por sua vez, coincidentemente, a testemunha E… reportou que em Abril de 2020, o ofendido chegou a casa da testemunha e disse que a arguida lhe tinha dito que não podia entrar em casa, pelo que chamaram a GNR, que se deslocou ao local. A data concreta de tal evento decorre do aditamento de fls. 198 e ss. (que apenas foi considerado quanto a tal elemento). Não foi feita prova quanto ao que consta dos factos não provados n.º 11 e 12, nomeadamente, que a actuação da arguida tivesse como objectivo que o ofendido abandonasse a casa.
Apesar de tal ter sido referido pela arguida no relatório social, bem como pelos familiares do assistente, certo é que este último foi notificado para apresentar documentos que comprovassem ter tido um AVC, e, nessa sequência, juntou aos autos os documentos médicos de fls. 395-401, de onde não se extrai tal diagnóstico (facto não provado n.º 13), sendo que resulta de juízos de normalidade que a fragilidade do ofendido resulta, certamente em conjugação com outros factores daí decorrentes (nomeadamente, relacionados com a saúde, que sofreu uma deterioração ao longo do tempo, como se extrai dos elementos clínicos juntos ao processo), pela idade do mesmo.
Os factos provados n.º 18 a 21 resultaram da análise da restante factualidade provada à luz de regras de experiência comum – uma vez que quem actua como a arguida, não só age em conformidade com o que pretende como tem consciência da ilicitude da sua conduta, e isto quando o fenómeno da violência doméstica tem tido um relevo crescente em todos os meios de comunicação social, sendo um assunto assaz debatido na nossa sociedade.
Os factos provados n.º 22-30 resultaram do relatório social junto aos autos (fls. 356 e ss.), em conjugação com as declarações prestadas pela arguida em sede de julgamento, que, nesta parte, foram valoradas por não terem sido contrariadas por outros elementos coligidos para os autos.
Os antecedentes criminais da arguida resultaram do Certificado de Registo Criminal de fls. 351-353.»
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

-os factos ocorridos anteriormente à entrada em vigor da nova lei que estabeleceu a violência doméstica não poderiam ter sido apreciados nem valorados na audiência de julgamento, não tendo hoje qualquer tipo de relevância penal, por extinção do procedimento criminal, por falta de queixa do ofendido, elemento necessário até à data da entrada da lei supra mencionada.
- Na douta sentença recorrida, pelas datas invocadas nos factos dados como provados no que concerne à factualidade descrita nos pontos 5 e 6, observamos que os mesmos já se encontram prescritos, violando-se assim os arts.º 118º, nº 1, al. c) do CP e 121º, nº 3, do C.P.
- Impugnação da matéria de facto dada como provada por erro de julgamento.
-Preenchimento dos elementos do tipo legal de violência doméstica.
- Medida da pena.
- Montante da indemnização.
*
Vejamos.

É jurisprudência pacífica a que considera que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão de resultar da própria leitura da decisão e que são detetáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente percetíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Compulsado o texto da decisão recorrida e vista a matéria de facto provada e não provada e respetiva motivação, bem como a decisão de direito que se baseou nesses elementos, há que concluir que a decisão proferida encontra ali suporte bastante e necessário – pois as conclusões de direito a que o Tribunal a quo chega estão suportadas pela matéria de facto fixada –, e que não se verifica erro notório na apreciação da prova. Poderá o recorrente não concordar com a análise efetuada pelo Tribunal a quo e espelhada na decisão recorrida mas a mesma não padece de qualquer vício de lógica num dos sentidos apontados.

Em suma, da leitura da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se deteta qualquer falha lógica evidente, qualquer interferência no percurso lógico do texto que seja patente à leitura pelo cidadão mediano e que leve a concluir pela existência que uma qualquer inconsistência ou incoerência lógica, ou mesmo uma contradição de raciocínio.

Da impugnação da matéria de facto por erro de julgamento na apreciação da prova.
Impugna a recorrente os factos 4, 5, 6, 7, 12 e 13.

Vejamos.
Nos termos do art. 428º do CPP, os tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto, na concretização da garantia do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, visando corrigir o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta, assim, da forma como foi valorada a prova produzida em julgamento e ocorre sempre que, analisando a prova produzida, seja de concluir que esta não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
No entanto, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida, como acontece com os vícios previstos no art. 410º., nº. 2, do CPP, alargando-se à apreciação da prova, quer da documentada quer da produzida em audiência, especificados pelo recorrente que tem que cumprir o ónus de especificação tal como previsto nos nºs. 3 e 4, do art. 412º., do CPP, visando o reexame do que considera serem erros de julgamento e, para a modificação da matéria de facto (art. 431º., al. b), do citado diploma legal).
A jurisprudência tem vindo a entender que esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, destinando-se antes a corrigir eventuais erros, na forma como o tribunal a quo apreciou a prova, apenas relativamente à matéria de facto identificada pelo recorrente. Ou seja, trata-se de uma reapreciação da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida.
Cita-se a este propósito o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010, proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, “(…) o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem “decisão diversa”.
(…)
Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido.
(…)
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção.”
Assim, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Daí a exigência feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar, respetivamente, os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.
In casu o ora recorrente cumpriu o ónus de especificação e indicou os factos que considera terem sido incorretamente julgados por referência às provas concretas que, em seu entender, impunham decisão diversa para demonstrar o seu ponto de vista.
Relativamente aos factos impugnados deu-se como provado que:

4. Desde o início do casamento, em datas não concretamente apuradas, mas frequentemente, a arguida dizia ao ofendido que era um “corno”, e um “filho da puta”.
5. Em data não concretamente apurada, próxima do ano de 1994, porque o ofendido não acatou uma indicação de paragem que a arguida lhe deu quando seguiam num veículo automóvel por aquele tripulado, no qual se encontrava também a irmã do ofendido, a arguida desferiu-lhe um estalo na cabeça.
6. Em data não concretamente apurada do ano de 1994, quando o casal residia no Luxemburgo, a arguida, descontente com a hora tardia a que o ofendido chegou a casa do trabalho, desferiu-lhe um golpe na cabeça com uma garrafa, tendo o ofendido necessidade de ser assistido no hospital.
7. Em data não concretamente apurada, ocorrida no ano de 2017 ou 2018, a arguida tentou desferir uma pancada com um pau na cabeça do ofendido, não o logrando fazer porque aquele defendeu-se com o braço.
12. No dia 29/07/19, pelas 13h00, a arguida agarrou o colarinho da camisola que o ofendido vestia, pelas costas e exigiu-lhe a entrega da correspondência.
13. Como o ofendido lhe disse que já lhe tinha entregue toda a correspondência que lhe era dirigida, a arguida disse-lhe: “dá-me o correio se não eu desfaço-te e mando-te para o cemitério, meu filho da puta”, tendo a filha do casal intervindo.

No ponto 8º dos factos provados consta que: 8. Em 15/08/16, a arguida agrediu o ofendido, tendo sido julgada e condenada por tais factos, qualificados como ofensa à integridade física, na pena de 80 dias de multa. E no item 31º 31. A arguida já respondeu e foi condenada:
a) no processo n.º 483/16.7GAMCN, por sentença transitada a 09.02.2017, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta a 18.03.2017, pelo pagamento, por factos praticados a 15.08.2016.

Da alegada prescrição.
Quanto aos factos 4 a 6.

Diz a recorrente que os factos em causa são anteriores ao ano de 2007 e portanto por força de lei penal mais favorável, não se aplica o crime de violência doméstica e portanto não poderiam ter sido apreciados, porquanto despojados de relevância penal.
Invoca ainda prescrição.
Vejamos.

O C. Penal de 1982 previu e puniu, pela primeira vez, o “crime de maus-tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges”, então com natureza pública e circunscrito a condutas referentes a maus-tratos físicos.
A reforma penal do Código de 95 (operada pelo Dec. Lei nº 48/95 de 15/3) introduziu significativas alterações neste domínio dos maus-tratos conjugais, enfrentando a importância crescente de agressões, humilhações, vexames, insultos e outros atos que acontecem, designadamente, no âmbito familiar e conjugal. A necessidade de criminalização de tais condutas adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social altamente lesivo e de proporções alarmantes, apesar de encapotadas, e com repercussões ao nível da formação individual e da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional.
Assim, com a reforma de 95, o normativo (então artigo 152º), além do mais, passou a contemplar na conduta punível também os maus-tratos psíquicos, foi alargada a qualidade de sujeito passivo do crime às pessoas equiparadas aos cônjuges, modificou a moldura da pena, que passou a ser a de prisão de 1 a 5 anos, e passou a fazer depender de queixa o respetivo procedimento criminal.
Com a Lei 65/98 de 2/9, mantendo-se a disciplina relativa ao crime de maus-tratos quanto à definição do tipo legal e medida da pena, foi, todavia, introduzida uma alteração de relevo relativa à natureza do crime que passou a ser “quase público”, uma vez que sendo o procedimento criminal dependente de queixa, se conferiu legitimidade ao Ministério Público para o iniciar sempre que (e desde que) considerasse que o interesse da vítima o impunha, e até à dedução da acusação o ofendido não manifestasse a sua oposição.
Com a publicação da Lei nº 7/00 de 27/5, o regime penal do crime de maus-tratos sofreu novas alterações, passando a prever a punibilidade com pena de prisão de 1 a 5 anos de quem infligisse ao cônjuge, ou a quem com ele convivesse em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos, acrescentando, a essa pena principal, uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência desta, por um período máximo de 2 anos (nº 6). Contudo, a principal modificação foi a referente à natureza do crime, a que, de novo, foi atribuído o carácter público.
E assim se manteve, no essencial, tal enquadramento entre 2000 e a vigência da atual redação conferida àquele artigo 152º pela Lei 59/2007, de 4/9 (11):
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…) 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (…)».

O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visam tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade.

O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser afetado por todos os comportamentos que ou que afetem a dignidade pessoal do cônjuge.

O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos».

Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito, não imprescindível –, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo. Há crimes que se consumam por atos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19º, nº 2 do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
Este crime «persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente».

Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma ação isolada do agente (tão-pouco com vários atos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excecional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu as aludidas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge (ou companheiro), esclarecendo-se agora expressamente que tal atuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.

Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143 nº 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a atuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima. E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse particular conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspetiva física, quer numa vertente psíquica e mental. Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico. Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos arts. 143º e ss.

Importa, assim, analisar e caracterizar se o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015 (21), «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.».

Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura mais impressiva, no sumário do Ac. Relação de Guimarães Tribunal de 15-10-2012 (22): «A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos” quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele

Doutrinalmente, o crime de violência doméstica, tem sido definido, de forma pacífica, como crime habitual.

«Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual».
Como se asseverou no acórdão da RP de 21/12/2016 (24), citando Lobo Moutinho, in “Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português”, p. 620, nota 1854, «O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados”. Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por “actos reiterados”. (...) Apenas se pode admitir a “consumação por actos reiterados” (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes “habituais” (seja qual for o entendimento a dar à “habitualidade” do crime, o mesmo é dizer, à “reiteração” dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles».Por outro lado, a distinção entre unidade e pluralidade de crimes é determinante para as consequências jurídicas do facto, ou seja, para a punição do agente. A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objeto de plúrimas violações, haja uma pluralidade de crimes. Esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo.
Dispõe o nº 1 do art. 30º que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Enquadrando-se o crime de violência doméstica, tal como o antecedente crime de maus tratos, a que vimos aludindo na figura de crimes habituais, os mesmos também não podem deixar de se considerar que integram a categoria de crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, mas, para tal, tem-se exigido que se confirme uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade de atuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos atos de tratos sucessivos num só crime.

A conexão temporal é assim fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infrações e, se entre os factos medeia um largo espaço de tempo, um hiato temporal, encontra-se comprometida a unificação das condutas. Foi o que se afirmou no acórdão do STJ de 29-11-2012 (25), :«(…) O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque)”.

Por outro lado, nos termos do art. 119º, nº 1 do C. Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, estabelecendo o nº 2, a) e b), do preceito que, nos crimes permanentes, continuados e habituais, tal se verifica no dia da prática do último ato.

Ora, as condutas da arguida concretizadas na factualidade provada em 5 e 6 foram praticadas no ano de 1994, com exceção do facto 4 o qual abarca situações ocorridas, também, após o Verão de 2016. Assim, segundo os indicadores fornecidos pelo processo, existiu um longo hiato temporal, sem notícias, no qual, em conformidade com a matéria assente, não se verificaram os atos consistentes em maus tratos físicos e psíquicos no seio do casamento entre o arguido e a assistente.
Esta interrupção não é conciliável com a unidade resolutiva imprescindível para a afirmação da compleição de um único crime: os factos ilícitos praticados pela arguida não podem ser reconduzidos a um único crime de violência doméstica, devendo, antes, concluir-se que, em 2016, a mesmo renovou a resolução criminosa.
Com efeito, a interrupção dos atos criminosos durante mais de 22 anos (de 1994 a 2016) não autoriza a sua unificação e, consequentemente, que se considere por verificado um único crime, daí que haja a necessidade de extrair as devidas consequências quanto ao decurso do tempo sobre os atos que decorreram entre 1994 e 2016.
Próximo deste entendimento, ver Ac. R G de 9/10/2017.
A conduta delituosa em apreço, à data em que a mesma se consumou, ou seja, o dia da prática do último ato (ano de 1994), preenchia a previsão do crime de maus tratos contida no art. 153º do C. Penal, com a redação então vigente e era punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias, sendo, por isso, nos termos do disposto no art. 118.º, nº 1, al. c), do C. Penal, de 05 anos o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal.
Esse prazo, tendo-se iniciado, como se disse, em data não apurada de 1994, completou-se em 1999, sem que, no respetivo decurso, tenha ocorrido qualquer das suas causas de interrupção ou suspensão, previstas nos arts. 120º e 121º (nomeadamente, constituição de arguido e notificação da acusação) do C. Penal.
Portanto, encontrando-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal pelos factos imputados ao arguido no período de 1994, subsiste apenas a responsabilidade penal do mesmo pelos factos assentes por ele cometidos após o Verão de 2016, que, como já se evidenciou, preenchem todos os elementos típicos do mencionado crime de violência doméstica, previsto na atual redação daquele artigo 152º, nºs 1 e 2, e punível com pena de prisão de dois a cinco anos.
Relativamente à questão colocada em parecer PGA sobre o Ne Bis in Idem.
Não tendo a arguida sido julgada anteriormente por crime de violência doméstica, mas sim por crime de ofensas corporais simples, aqueles factos, não foram alvo de qualquer tipo de apreciação. Situação diferente seria se houvesse sido julgada por outro crime de violência doméstica. Neste caso teria pertinência, a nosso ver, dizer-se que factos agora conhecidos, mas ocorridos até àquela data e que pudessem se subsumidos no tipo legal de violência apreciado então, não podiam agora ser apreciados., sob pena de se por em causa a paz jurídica.
Estes factos a que estes autos se reportam - e pelos quais a arguida foi julgada - nada têm a ver com os factos pelos quais foi julgada no Processo 483/16.7GAMCN:
-Nestes autos está em causa a situação de violência doméstica);
- No outro processo a arguida foi julgada pela prática de um crime de ofensas corporais.
Não faz qualquer sentido pretender que a arguida já foi julgada pela prática dos factos a que estes autos se reportam, ou seja, pelo mesmo crime, pois que, por um lado, trata-se de condutas completamente distintas, que lesaram a vítima em momentos diferentes, e que correspondem sobretudo bens jurídicos diferentes, em suma, o tribunal não conheceu de qualquer factualidade de que antes já tivesse conhecido.
Por outras palavras, a violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem supõe que o agente seja julgado pela prática de factos que já foram conhecidos/apreciados/julgados num outro processo, anteriormente, ou seja, uma repetição de julgados.
Não faz qualquer sentido, pois, pretender que a arguida já foi julgada (e condenada) pela prática dos factos ilícitos a que estes autos se reportam e, consequentemente, a invocada violação do caso julgado ou do princípio ne bis in idem.
“O principio ne bis in idem, tem o seu enunciado primeiro no artº 29º5 CRP, que dispõe: “5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, e tem tradução em instrumentos internacionais, aceites e vinculativos para a Ordem jurídica portuguesa (artº 8º CRP) e como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (artº14.7) Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 22/11/1984 (4º do protocolo n° 7) e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (50º) e tem como fundamento e essência a exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, desse modo tem por finalidade limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural dos mesmos factos de forma simultânea ou sucessiva (cf. ac RLX 13/4/2011 www.dgsi.pt), funcionando como a excepção do caso julgado, que se traduz num efeito processual da sentença transitada em julgado, impedindo que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material), tendo em conta o principio da segurança jurídica, subjacente a todo o ordenamento jurídico.
Como comando constitucional, o que ali se proíbe “é o duplo julgamento” “pela prática do mesmo crime” pretendendo “evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do “mesmo crime” – JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, vol.I, Coimbra ed. 2007, 4ªed. pág.497;
Ora, como princípio inerente ao caso julgado, impõe que exista de um lado caso julgado (transito da decisão) e estejamos perante o mesmo crime, o que equivale a dizer perante o mesmo pedaço de vida real (que não apenas o seu nomem iuris) juridicamente valorado (facto típico) praticado pela mesma pessoa.

Haverá identidade de crime, se:
- o acto/ facto/ conduta for atribuída à mesma pessoa (agente do crime/ sujeito processual), para cuja compreensão não carece de explicitação, pois se trata da identidade da pessoa e se
- for o mesmo acto/ facto / conduta que lhe é atribuída, o mesmo objecto/ o mesmo pedaço da vida real e os factos serão os mesmos considerados não apenas como acção naturalística, mas também e eventualmente com apelo a critérios jurídicos sobre o objecto e o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.”

Afirma o Sr PGR que Apesar de não ter sido proferido um despacho de arquivamento, verifica-se que o Ministério Público no inquérito n.º 483/16.7GAMCN optou por deduzir acusação contra a arguida apenas quanto ao crime de ofensa à integridade física ocorrido em agosto de 2016 e não pelo crime de violência doméstica, sendo certo que, pouco antes dos factos em investigação nesse inquérito, por alturas da Páscoa de 2016, a arguida tentou desferir uma pancada com um pau na cabeça do ofendido, não o logrando fazer porque aquele fugiu (cfr. artigo 7.º da acusação). Contudo, o tribunal deu como provado que tal incidente terá ocorrido em 2017 ou 2018, pelo que já nem sequer se coloca a questão da impossibilidade de lançar mão dos factos ocorridos em data anterior a 15-08-2016 incluindo os da acusação, com invocação do principio ne bis In Idem que engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo M°P°, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.

Relativamente ao ponto 4 não obstante o tribunal a quo não ter feito o esforço devido de melhor concretizar a ocorrência dos insultos e tinha para tal os depoimentos prestados por diversas testemunhas onde se descrevia o contexto em que foram proferidos e mais ou menos os anos da sua ocorrência e tendo presente que apenas se considerarão os ocorridos após o verão de 2016, a fundamentação da sentença permite que se admita tal ponto, na medida em que também a arguida com recurso a tal fundamentação consegue compreender o seu conteúdo.
Na sequência do entendimento que perfilhamos não serão considerados para efeitos de preenchimento do crime de violência doméstica, os factos dados como provados constantes dos itens 5, 6 e 8 (sendo que estes serão considerados para efeitos de antecedentes criminais), sendo que relativamente ao item 4º só relevarão os insultos ocorridos após o Verão de 2016.

Factos 10 e 11.

Apesar de nos itens 10 e 11 dos factos dados como provados não se terem concretizado devidamente os factos ali assentes, a verdade é que nos demais itens encontramos factos que, suportam e justificam aqueloutros.

Restante impugnação.
- Em data não concretamente apurada, ocorrida no ano de 2017 ou 2018, a arguida tentou desferir uma pancada com um pau na cabeça do ofendido, não o logrando fazer porque aquele defendeu-se com o braço (cfr. item 7).
Na apreciação deste facto, como se pode verificar na sentença, o Tribunal procurou aprofundar as circunstâncias em que ocorreu a agressão, constando da fundamentação o seguinte: o facto provado n.º 7 resultou o depoimento do ofendido, que relatou ao Tribunal que tal agressão ocorreu quando a arguida ficou presa, involuntariamente, na sua varanda e depois de o ofendido ter ido abrir a porta. A arguida confirmou a data em que ficou presa na varanda, dizendo que tal ocorreu no ano de 2017 ou 2018 (e não na Páscoa de 2016 – facto não provado n.º 4). Disse que ficou presa involuntariamente, que foi o ofendido quem lhe abriu a porta, mas negou contudo, ter agredido aquele. O assistente, pelo contrário, contou ao Tribunal que a arguida, munida de um pau, tentou acertar com tal objeto na cabeça do ofendido, o que apenas não conseguiu porque este defendeu-se com o braço direito.
No que se refere a esta agressão, com as limitações inerentes a um acontecimento ocorrido há vários anos, foi possível localizar temporalmente os factos, sendo certo que a arguida se defendeu da imputação feita, contribuindo para a própria localização no tempo e no espaço do ocorrido.
- No dia 29/07/19, pelas 13h00, a arguida agarrou o colarinho da camisola que o ofendido vestia, pelas costas e exigiu-lhe a entrega da correspondência. Como o ofendido lhe disse que já lhe tinha entregue toda a correspondência que lhe era dirigida, a arguida disse-lhe: “dá-me o correio se não eu desfaço-te e mando-te para o cemitério, meu filho da puta”, tendo a filha do casal intervindo (cfr itens 12 e 13).
Sobre a fundamentação para estes factos terem sido dados como provados, refere-se na sentença: o ofendido confirmou também, conforme já se fez referência, o descrito no facto provado n.º 13, sendo que a própria arguida, ao confessar o que consta do facto provado n.º 12, disse, neste trecho de forma espontânea, que a filha do casal estava em casa e disse à mãe para “deixar o pai”. De notar que a testemunha E…, confirmou no seu depoimento que o ofendido lhe contara esse episódio, fazendo uma descrição dos factos que se revelou, no essencial, semelhante ao relato apresentado pelo próprio assistente em julgamento.
-Em data não concretamente apurada de Abril de 2020 a arguida partiu a fechadura da porta do quarto do ofendido, após este negar abrir tal porta (cfr. item 14).
Quanto a este facto, veja-se o que consta da decisão - a arguida confirmou ter partido a fechadura da porta do quarto do ofendido, tentando passar uma ideia de naturalidade na sua atuação (facto provado n.º 14). Partiu a fechadura porque queria arrumar a roupa do ofendido, que queria arrumar naquela altura, e que a fechadura partiu com facilidade. Acabou por confirmar, ainda que não num primeiro momento, em que as suas declarações demonstraram alguma confusão, que naquele momento o ofendido encontrava-se no quarto, e que momentos antes negara abrir-lhe a porta. Por sua vez, o ofendido relatou que se encontrava dentro do quarto quando a arguida rebentou com a fechadura da porta, agindo com violência sobre o mesmo.
- No dia 17 de Abril de 2020, a arguida proibiu o ofendido de entrar em casa, pelo que este chamou a GNR. O ofendido entrou em casa acompanhado pelos militares, por sentir medo da arguida. A arguida apareceu e na presença dos militares interpelou o ofendido de forma agressiva e disse-lhe que “tu não és homem nenhum”.
No que se refere a estes factos, a fundamentação para os dar como provados é a seguinte: o episódio vertido nos factos provados n.º 15-17 resultou da análise integrada do depoimento do ofendido, com o da testemunha E…. O ofendido, em suma, relatou ao Tribunal que chamou a GNR porque tinha medo e porque a arguida não o deixava entrar em casa, tendo confirmado ainda que a arguida lhe disse, à frente dos militares, que “não era homem nenhum”. Por sua vez, coincidentemente, a testemunha E… reportou que em Abril de 2020, o ofendido chegou a casa da testemunha e disse que a arguida lhe tinha dito que não podia entrar em casa, pelo que chamaram a GNR, que se deslocou ao local. A data concreta de tal evento decorre do aditamento de fls. 198 e ss. (que apenas foi considerado quanto a tal elemento).
Acresce que para além destes factos naturalísticos praticados pela arguida, se deu como provado o estado de debilidade do assistente, pessoa muito mais velha do que a arguida (cfr. item 21 ainda que conhecendo o estado de fragilidade do ofendido, devido, em parte, à sua idade)
Sobre este importante facto refere-se na sentença que apesar de tal ter sido referido pela arguida no relatório social, bem como pelos familiares do assistente, certo é que este último foi notificado para apresentar documentos que comprovassem ter tido um AVC, e, nessa sequência, juntou aos autos os documentos médicos de fls. 395-401, de onde não se extrai tal diagnóstico (facto não provado n.º 13), sendo que resulta de juízos de normalidade que a fragilidade do ofendido resulta, certamente em conjugação com outros fatores daí decorrentes (nomeadamente, relacionados com a saúde, que sofreu uma deterioração ao longo do tempo, como se extrai dos elementos clínicos juntos ao processo), pela idade do mesmo.
No demais, porque no seu recurso a arguida se limita a expressar a sua discordância da valoração da prova que o tribunal efetuou, pretendendo que a valoração da prova deveria ter sido outra, aquela que defende e não a efetuada pelo tribunal, como cremos ter demonstrado, a sua argumentação não colhe.
Na verdade, algumas afirmações extratadas da gravação da prova, descontextualizadas e sem considerar a apreciação global dos elementos probatórios constante da fundamentação da prova, são insuficientes para colocar em causa os factos dados como provados cuja impugnação se pretende no recurso.
Tal como também não lhe assiste qualquer razão quando argumenta no sentido de não ter sido feita prova de que o assistente tivesse sofrido danos físicos ou psíquicos porque não há nos autos quaisquer relatórios médicos ou sinais de agressões compatíveis com as ofensas alegadamente infligidas (cfr. conclusões 3 e 10).
Ora a decisão recorrida responde por si a esta crítica ao explicar que maus tratos físicos consistem em toda a ofensa corporal ao cônjuge, ou seja, em todo o ataque à integridade corporal, que tanto pode consistir na diminuição da substância corporal (perda de órgãos, membros ou pele), na lesão da substância corporal (equimoses, arranhadelas, ferimentos, fracturas, mutilações ou outras lesões do mesmo género), na produção de alterações físicas e na perturbação de funções físicas, desde que não sejam insignificantes. Está em causa “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante” (Eser apud Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense, tomo I, p. 207), ou seja, toda a acção violenta que perturbe, modifique ou altere desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa, sendo que a apreciação da gravidade da ofensa é feita com recurso a critérios objectivos. Já os maus-tratos psíquicos abarcam as humilhações, as provocações, as molestações e as ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaça.

Assim, foi neste contexto que foi dado como provado que a arguida sabia que o ofendido era seu marido, pelo que, sempre que o humilhou, insultou, ameaçou e agrediu, agiu com o propósito de o ofender e maltratar, de modo a atingir a sua dignidade humana e saúde psíquica e física (cfr. item 19).

Este tipo de crime ocorre, sobretudo, no seio do agregado familiar, no designado espaço doméstico, a casa de morada de família, razão pela qual escapa, em larga medida, ao conhecimento público.
Por esta razão, veio progressivamente a aceitar-se na nossa jurisprudência, que quando está em causa este tipo de crime ou outros, cuja prática é menos visível, porquanto escondida entre as quatro paredes de uma casa, os depoimentos dos ofendidos devem merecer especial relevo probatório.
Todavia, como pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa, de 23.11.2010, “(...) com isto não se pretende significar que se deva ter como certo que o acusado mente e que a ofendida diz sempre a verdade, mas sim que o tribunal deve estar particularmente atento às declarações e à atitude de um e de outro, pois são eles, especialmente o ofendido, quem fornece as bases em que vai assentar a convicção do julgador.”

É certo que a arguida não está obrigada a dizer a verdade, todavia, querendo contar a sua versão dos factos que estão em julgamento, as suas declarações podem constituir um importante elemento de prova, cujo valor probatório o tribunal aprecia livremente, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
In casu, a arguida decidiu contar a sua versão dos factos, negando-os, mas como bem se diz na motivação da decisão da matéria de facto, a versão dos factos apresentada pelo arguido não foi credível
Por sua vez as declarações do ofendido, forma em si mesmas merecedoras de credibilidade, foram ainda corroboradas por depoimentos de testemunhas.

Pelo exposto e da leitura da motivação da sentença recorrida, constata-se que o tribunal “a quo” credibilizou o depoimento do ofendido e demais testemunhos em detrimento do depoimento da arguida, mas porque aqueles se revelaram isentos, credíveis e convincentes, que conjugados com a demais prova, não deixaram quaisquer dúvidas ao tribunal “a quo” de que a arguida praticou os factos dados como provados, integradores do crime de violência domestica.
Como bem pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 23-11-2010
“Há que ser cauteloso e evitar visões maniqueístas das situações: nem sempre o arguido é o demónio e a ofendida o anjo, a vítima cândida, inocente e indefesa que merece todo o crédito.”
Contudo, da leitura da motivação da matéria de facto, constata-se que o Tribunal “a quo” não menosprezou este facto, tendo feito uma apreciação crítica da prova, conjugando toda a prova produzida: testemunhal, documental, valorando-a de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova.
Como pode ler-se no Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.05 “quanto à apreciação da prova, atividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o principio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal quer direta, quer indireta, tendo em vista a carga subjetiva e inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão de basear-se na correção de raciocínio mediante a utilização das regras de experiência e conhecimento científicos, tudo se englobando na expressão legal regras de experiência.”
Ou seja, o juiz deve fazer a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, avaliando as provas de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, mereceram total credibilidade ao Tribunal “a quo” e não deixaram quaisquer dúvidas que os factos ocorreram tal como descritos pela ofendida.
Aqui chegados, cumpre agora dizer que “a intervenção do Tribunal de recurso em sede de avaliação da decisão proferida sobre matéria de facto, não visa a reapreciação sistemática e global da prova produzida em audiência, mas antes a deteção e a correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto,”– Acórdão da Relação de Lisboa de 23.11.2010.
É esse o corolário lógico do princípio da livre apreciação da prova, relevando elementos que apenas podem ser percecionados, apreendidos e valorados por quem os presencia, elementos esses que não ficam gravados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como o tribunal “a quo” formou a sua convicção, referimo-nos, desde logo, à ausência da oralidade, particularmente, da imediação. Restando, pois, ao Tribunal de recurso, apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência.
Ou seja, o juiz deve fazer a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, avaliando as provas de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum, como bem fez o juiz “a quo”, conforme se percebe da leitura da sentença recorrida, pelo que não nos merece qualquer reparo.

A recorrente, em termos gerais, aponta as razões da discordância relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu a factualidade em apreço.
Esta a sua convicção sobre a decisão fáctica e os elementos probatórios que, em seu entender, não permitem dar como provados os factos impugnados.
Na apreciação do processo de formação da convicção do julgador, importa não esquecer o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º., do CPP e, segundo o qual, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
No entanto, isto não significa que a atividade do julgador na valoração da prova seja arbitrária, pois que se encontra vinculada à busca da verdade e, sempre limitada pelas regras da experiência comum e da lógica.
Assim, numa margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
É exigido ao julgador que indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou foram por si credibilizados; ou seja, não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, importando acima de tudo apontar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Se o julgador, numa fundamentação compreensível, explica a opção por uma das soluções permitidas pelas regras de experiência comum e da lógica, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, com recurso àquelas mesmas regras.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, é necessária a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum ou de presunções naturais, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem à mesma e, não já quando o julgador optou, fundamentadamente, por uma das versões. Ou seja, o tribunal de recurso só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.

Da leitura da motivação da decisão de facto resulta que a Mmª. Juiz a quo se norteou pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, avaliando a prova globalmente produzida numa perspetiva crítica, expondo de forma clara e rigorosa, as razões que fundamentam a sua opção decisória, com exceção dos casos supramencionados, mas que em nada mexem como contexto global descrito.

Da qualificação jurídica dos factos provados.

No caso, resulta claramente da matéria de facto dada como provada, a verificação dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de violência doméstica.
Dispõe o artigo 152º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 44/2018 de 09/08, nos seus n.ºs 1 e 2, o seguinte:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
O tipo legal da violência doméstica visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.
Este tipo legal de crime encontra-se inserido no capítulo III, do título I da parte especial do Código Penal, o qual se intitula “dos crimes contra a integridade física”, contudo, a sua ratio é a proteção da pessoa individual e da sua dignidade, sendo o bem jurídico protegido pela incriminação a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.
Tem sido entendimento aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência que as condutas previstas e punidas por este artigo configuram maus tratos físicos, como ofensas corporais simples e maus tratos psíquicos, como humilhações, provocações, molestações, ameaças, ou qualquer tipo de conduta suscetível de ferir a dignidade humana, todavia, e à semelhança do que acontecia no regime pretérito, o que releva é a existência de maus tratos físicos e/ou psíquicos, exista ou não reiteração, o que afasta, desde logo a mera ofensa à integridade física.
De facto, o conceito de maus tratos abarca não apenas aquelas situações em que a conduta do agente se pauta pela reiteração, em determinado período de tempo, ainda que não assuma um carácter de habitualidade, mas também aquelas outras situações, já então consideradas como integradoras da prática deste tipo de crime, que embora consubstanciadas num comportamento singular, revistam uma gravidade intrínseca suficiente para ser enquadrada na figura dos maus tratos, designadamente, e a título de exemplo, o referido grau de violência, agressividade, crueldade ou insensibilidade, que poderá ser objeto da qualificação prevista no art. 145º do Código Penal, e, atenta a especial relação existente entre o agressor e a vítima.
Assim, o ponto fundamental, neste tipo de crime, é, por conseguinte, a de que os factos apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. Deste modo, pode concluir-se, que a maior gravidade do ilícito reside na circunstância de os maus-tratos ao cônjuge traduzirem uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos, legalmente descritos, de forma igualitária, para ambos os cônjuges.
Em face da letra da lei e da interpretação que a jurisprudência mais recente vem fazendo das condutas típicas subsumíveis ao tipo legal da violência doméstica, entendemos que o relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam suscetíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
No caso, face à factualidade provada, não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pela arguida preenche a factualidade típica da violência doméstica, quer quanto aos elementos objetivos, quer subjetivos.
A factualidade provada evidencia que a arguida manteve diversas condutas que ofenderam a liberdade pessoal e a integridade física e moral do ofendido, mas que para além disso se revelou especialmente censurável, permitindo concluir pela subjugação de um membro da relação a outro, pelo exercício de um domínio emocional de facto de um sobre o outro, neste caso da arguido sobre o ofendido, consubstanciando assim um “infligir de maus tratos psíquicos a este.
O conjunto dos factos provados, reiterados e as atitudes com comportamentos agressivos e violentos à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, são, a nosso ver, suscetíveis de colocar a vítima na situação de, permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
A arguida teve claramente atos atemorizadores e de humilhação, ofendendo claramente a dignidade do seu então marido. Enxovalhava-o e tratava-o com desprezo.
Por todo o exposto e de acordo com o que já acima se expôs, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal, em face da prova produzida, que a arguida, com a correção que se fez, praticou os factos, integradores do tipo de crime de violência doméstica e com o qual se concorda.

Em suma, a atividade empreendida pela arguida, ora recorrente, segundo as regras da experiência comum, no circunstancialismo em concreto em que se desenvolveu, é adequada a preencher o tipo legal de crime por que veio acusada e condenada, pelo que deverá manter-se a sua condenação.

Da pena.
Na determinação da medida da pena o tribunal ponderou:
As necessidades de prevenção geral são muito fortes, atentos os crescentes índices de violência que se verificam no seio do lar, na sociedade portuguesa e o reflexo que têm na própria dignidade humana, princípio constitucionalmente consagrado.
A violência doméstica, caracterizada pelo Conselho da Europa como acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um ou outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade é, cada vez mais, um problema social, perdendo terreno a corrente abstencionista da “não intervenção” selectiva do Direito estadual na instituição familiar. (in Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 335, pág. 5 e segs.).
Comportamentos como os que aqui estão em causa assumem gravidade individual e social, em relação à qual, felizmente, tem vindo a intensificar-se a consciencialização ético-social.
O comportamento da arguida é reprovável.
O grau de ilicitude dos factos criminosos é já elevado, quer atento o modo de actuação [especialmente, quanto aos episódios descritos em 6) e 7) dos factos provados], quer pelo número dessas actuações (especialmente no que concerne às injúrias, que se iniciaram desde o casamento e foram-se prolongando no tempo, por mais de vinte anos, ainda que se creia que de forma mais intensa nos últimos anos do casamento) e as consequências para o ofendido (as lesões físicas e, numa ocasião, a necessidade de se ausentar da sua casa). A arguida conta com uma condenação, transitada em julgado a 09.02.2017, pelo que parte dos factos foram praticados em momento posterior a tal condenação, pela qual foi aplicada uma pena de multa.
Considera-se também o dolo da arguida, que reveste a forma de dolo directo.
Importa também referir que o crime de violência doméstica é considerado pela sociedade como uma conduta tipificada particularmente censurável. Por essa razão, a moldura penal aplicável é rigorosa (que se fixa entre dois e cinco anos).

O grau de ilicitude da conduta da Recorrente é elevado, especialmente se tivermos em consideração a duração e o tipo de agressões (física e verbais),o facto de a Recorrente não se inibir de praticar condutas ilícitas na presença de terceiros nem na presença de militares da GNR e que as condutas da Recorrente debilitaram também o Assistente.
Relativamente às exigências de prevenção, não podemos ignorar que a Recorrente já conta com uma condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples contra o Assistente, o que mostra que a sua reeducação para o Direito foi completamente infrutífera e que a mesma não mostra qualquer melhoria a nível de necessidades de prevenção, não manifestando qualquer arrependimento nem representa, sequer, que as suas condutas sejam suscetíveis de qualquer juízo de censura, o que revela uma necessidade de prevenção acima da média.
Tendo presente os factos que suportam a incriminação, face à sua redução, o que implica um encurtamento do período de agressão e atenuação da gravidade e ainda tendo presente os critérios em que se baseou a sentença, deve fixar-se a pena de 2 anos e seis meses de prisão, mantendo-se a suspensão por igual período pelas razões apresentadas na sentença e com a pena acessória que foi fixada que se justifica tal como refere a sentença.

Do pedido cível.

A sentença condenou, ainda, a Recorrente no pagamento da quantia de €1.200,00 (mil e duzentos euros), a «título de reparação pelos prejuízos sofridos», ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.
Uma vez que está em apreço o crime de violência doméstica, é necessário conjugarmos o regime processual penal com a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Este diploma consagra, no artigo 21.º, o direito a indemnização e a restituição de bens que é reconhecido à vítima deste crime.
A Recorrente insurge-se contra esta condenação, alegando que a mesma não se poderia verificar porque «não se encontram observados os requisitos especiais exigidos pela norma do art. 82º-A do C.P.P».
Num primeiro argumento, entende a Recorrente que não caberá lugar a esta indemnização porquanto houve dedução de um pedido de indemnização cível no processo penal, que não foi aceite por ser extemporâneo e assim, na opinião daquela, não se preenche o requisito da primeira parte do n.º 1 do artigo 82.º-A CPP, uma vez que não foi deduzido PIC por “negligência da vítima”.
Porém, a Recorrente não conciliou o disposto neste n.º 1 do artigo 82.º-A CPP com o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que é inequívoco quando, no n.º 2, estabelece que «há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».
Assim, enquanto o raciocínio da Recorrente faz perfeito sentido para a generalidade dos crimes/indemnizações a conceder às vítimas, tratando-se de vítimas de violência doméstica o mesmo não será de aplicar, por determinação do n.º 2 daquele preceito, diretamente aplicável in casu por força do artigo 1.º daquele diploma legal.
Como entende a Relação de Lisboa, no Acórdão de 16/09/2015 (referente ao processo n.º 67/14.4S2.LSB.L1-3; disponível in dgsi.pt), «o advérbio sempre que o legislador fez constar no nº2 do citado artº 21 (há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal) permite apenas e tão-somente um único entendimento – o de que a lei impõe que seja arbitrada indemnização (isto é, não se mostra necessária a formulação de pedido cível enxertado) a todas as vítimas que se mostrem abrangidas pela dita Lei nº112/09, o que, como decorre do seu nº1, serão todos os ofendidos pela prática de um crime de violência doméstica».
Conclui-se, por isso, que não tendo a vítima manifestado qualquer oposição no arbitramento de indemnização ao abrigo daquele artigo 82.º-A, muito bem andou o Tribunal a quo pronunciando-se sobre o mesmo pois, caso não o tivesse feito, estaríamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia, como bem defende o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 06/07/2016, referente ao processo n.º 267/14.7PAMGR.C1 (disponível in dgsi.pt).
Entende, ainda, a Recorrente que não haveria lugar à atribuição daquela indemnização porquanto, na sua opinião, não só não foi cumprido o princípio do contraditório como não se verificam particulares exigências de proteção da vítima.

Ora, o Tribunal a quo cumpriu o princípio do contraditório quando, no dia 12 de janeiro de 2021, informando a arguida de que lhe poderia vir a ser aplicada a condenação no pagamento de uma indemnização, a questionou sobre as suas circunstâncias económico-financeiras e lhe reservou o momento necessário para que ela se pronunciasse sobre a questão.
Em relação às particulares exigências de proteção da vítima, resulta da matéria provada que a «arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente o ofendido, bem como de o ofender na sua honra e consideração, causando-lhe humilhação, vergonha e sofrimento» e que a «arguida sabia que o ofendido era seu marido, pelo que, sempre que o humilhou, insultou, ameaçou e agrediu, agiu com o propósito de o ofender e maltratar, de modo a atingir a sua dignidade humana e saúde psíquica e física».
Relevando, ainda, que a arguida «[sabia] que a sua [atuação] era proibida por lei, como crime, não se coibindo, no entanto, de a levar a cabo, ainda que conhecendo o estado de fragilidade do ofendido, devido, em parte, à sua idade», pelo que se demonstra o preenchimento deste requisito.

Tendo presente a irrecorribilidade da decisão de quantificação em €1.200,00 (mil e duzentos euros) da indemnização arbitrada oficiosamente pelo Tribunal a quo, na medida em que determina o n.º 2 do artigo 400.º CPP que «o recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada».
E que por seu turno, o n.º 2 do artigo 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, sob a epígrafe Alçadas, determina que em «matéria criminal não há alçada, sem prejuízo das disposições processuais relativas à admissibilidade de recurso», forçando, assim, a aplicação do n.º 1 do mesmo preceito que determina que «a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000 e a dos tribunais de primeira instância é de (euros) 5000».
Como resultado da leitura conjugada destes dois preceitos, pode-se concluir que estamos perante de uma decisão que não admite recurso, uma vez que a decisão impugnada (mil e duzentos euros) não é superior à alçada do tribunal recorrido (cinco mil euros) nem é desfavorável para a Recorrente em valor superior a metade da alçada (valor superior a dois mil e quinhentos euros).
Contudo, tudo sem prejuízo do que dispõe o art. 403º, n º 3 do CPP.
Conforme acima exposto, parte dos factos foram excluídos da contribuição para o preenchimento do tipo legal, o que teve consequências na pena concreta fixada e na gravidade ponderada em face do encurtamento do período considerado e número de factos.

Pelas mesmas razões, pelo encurtamento da matéria fáctica, deve o pedido cível reduzir-se a 1.000,00€, art. 403, n º 3 do CPP.
*
Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revoga-se em parte a decisão recorrida e, por consequência:

a) Declara-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal respeitante aos factos praticados pela arguida no ano de 1994;

b) Condena-se a arguida, como autora material de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152º nº 1, al. a), e nº 2 do C. Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão;

d) Suspende-se a execução dessa pena pelo período da respetiva duração, contado desde o trânsito em julgado desta decisão, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova fixado pelo tribunal a quo.

e) Reduz-se o montante indemnizatório devido pela arguida ao assistente a €1000,00 (mil euros).

f) Mantém-se, no demais, a decisão recorrida.

Sem tributação.

Sumário:
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Porto, 08 de julho de 2021
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.