CRIME DE BURLA
PRINCÍPIO DA OFICIALIDADE
CRIME SEMI-PÚBLICO
QUEIXA
TITULAR DO DIREITO DE QUEIXA
OFENDIDO
Sumário

I - O princípio da oficialidade do processo, segundo o qual, a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares, concretiza-se, no nosso ordenamento processual penal – logo por imperativo constitucional (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição) –, na atribuição ao Ministério Público da iniciativa e da prossecução processuais.
II - Contudo, o princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares.
III - Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa. É exatamente o que prescreve o art.º 49.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
IV - A queixa é um pressuposto processual (pressuposto positivo da punição), “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências cit., 19.º capítulo, I, §1059, p. 663
V - A função da queixa é tripla: de um ponto de vista político-criminal torna-se aconselhável que o procedimento penal respetivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa; visa evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem; finalmente, pode servir a função de específica proteção da vítima (ofendido) do crime.
VI - Nos termos do art.º 113.º, do Cód. Penal, para se averiguar quem pode ser considerado titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e, portanto, quem deverá apresentar queixa no respetivo processo, há que proceder a uma interpretação do respetivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação.
VII - Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função da conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso (cf. acórdão do TRC, de 09.11.2011, disponível em www.dgsi.pt.)
VIII - O ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada.

(sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 60/18.8GALNH.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Águeda – J1 – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do processo de Comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 60/18.8GALNH foi proferida decisão de rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Publico contra o arguido B…, com oportuno arquivamento dos autos.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1.- O Ministério Público não se conforma com o teor do douto despacho proferido a 13.12.2020 (ref.ª 113903836), que rejeitou a acusação pública ora deduzida, pelo que interpõe recurso.
2.- Para fundamentar tal rejeição, a Mma. Juiz invocou, em síntese que da leitura da acusação proferida pelo Ministério Público, vislumbra-se que o arguido B…, por meio de astúcia (usando indevidamente os elementos de identificação de C…) convenceu a operadora de telecomunicações D… a celebrar um contrato e, por via disso, a fornecer-lhe serviços de telecomunicações próprios da sua atividade, sem que com isso tivesse intenção de pagar, causando assim à D… um prejuízo patrimonial equivalente ao custo do serviço por esta prestado e pelo arguido não pago; a denunciante C… (pessoa em nome de quem o contrato foi, abusivamente celebrado) não teve qualquer prejuízo patrimonial com a conduta do arguido; pelo que só a D… foi prejudicada pela atuação do arguido, só esta teria legitimidade para apresentar queixa e como assim não fez, decidiu rejeitar a acusação pública deduzida contra o arguido B…, nos termos do disposto no artigo 311º, do Cód. de Processo Penal.
3.- Porém, estava a Mma. Juiz amplamente habilitada a sindicar a legitimidade do Ministério Público para promover a ação penal, pois os mesmos não permitem dúvidas quanto à identidade da ofendida nos autos (C…) sendo certo que esta manifestou de forma expressa nos autos a sua intenção de proceder criminalmente contra o arguido e sendo ainda certo que foi a única pessoa a fazê-lo.
4.- Consta da acusação que C… se viu prejudicada patrimonialmente pela conduta do arguido, portanto com legitimidade para apresentar, como fez, a devida queixa crime que deu origem aos presentes autos.
5.- No caso dos autos há duas vítimas, a operadora D… e a ofendida C…, que foram prejudicadas patrimonialmente, como resulta da descrição fáctica da acusação proferida. A operadora D…, porque prestou serviços de telecomunicações ao arguido, em contrapartida exige o pagamento desses serviços, eventualmente não teria prestado ao arguido tais serviços se o arguido tivesse fornecido os seus dados pessoais, e não os meios astuciosos e fraudulentos criminais que utilizou para obter tais serviços, por montantes ainda não pagos à D….
A ofendida C…, que em consequência desse facto, viu os seus dados pessoais serem utilizados sem a sua autorização, e em face ao não pagamento da prestação dos serviços de telecomunicações, viu o seu nome inserido nas bases de dados da operadora D…, constando como devedora, passível de ser instada a ter de pagar, que qualquer momento, voluntariamente ou coercivamente, a aludida dívida, contraída não por si, mas pelo arguido.
6.- Não é admissível, s.m.o., que a Mma. Juiz tenha rejeitado a acusação, por manifestamente entender que C… não é a ofendida, mas apenas a operadora D…, sob pena de violação do princípio acusatório.
7.- Só com a realização da audiência de discussão e julgamento é que se poderá concluir se a mesma se viu prejudicada patrimonialmente, pois na negativa, em abstrato e por mera hipótese, incorreria o arguido na prática do crime de burla, na forma tentada (artigo 217º, n.º 2, do Cód. Penal).
8.- Não pode a Mma. Juiz recusar o recebimento da acusação e a não sujeição do arguido B… a julgamento com fundamento num entendimento jurídico não unívoco sendo que, em nossa opinião, é até discutível.
9.- Face ao exposto, entendemos que não se pode considerar que a factualidade pela qual foi deduzida acusação seja, inequivocamente de se concluir de que C… não ficou lesada patrimonialmente através do engano causado pelo arguido, tendo determinado, s.m.o., erradamente, a ilegitimidade de C…, e a consequente rejeição da acusação proferida.
10.- Em face das razões supra expostas, há que concluir pela falta de fundamento do despacho recorrido o qual deve ser revogado e substituído por outro que, não considerando a acusação manifestamente infundada, designe dia, hora e local para audiência (artigos 311º e 312º, do C.P.P.), se não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.
Termina pedindo seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, seja revogada a decisão proferida e substituída por outra que determine o recebimento da acusação e designe data para a realização da audiência de julgamento.

Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso apresentado pelo Ministério Público.
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, que consta dos autos, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, o arguido apresentou resposta, mas nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
1) Com data de 25.09.2020, (ref.ª Citius n.º 112711294) o Sr. Procurador da República proferiu a seguinte acusação:
“ACUSAÇÃO PÚBLICA:
Para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 2, al. b) e 283.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público acusa:
B…, filho de E… e de F…, nascido na freguesia e município …, a 20 de fevereiro de 1978, de nacionalidade portuguesa, solteiro, residente na Rua …, n.º ., … (adiante, B…); porquanto:
1. B… teve uma relação de namoro com C… durante cerca de sete a oito meses, tendo terminado em dezembro de 2016.
2. Por tal motivo, tomou conhecimento dos elementos identificativos da ofendida, nomeadamente, o seu nome completo, número fiscal e residência e decidiu usá-los para contratar em nome da ofendida um serviço de telecomunicações e frustrar-se às obrigações daí decorrentes.
3. Assim, na execução de tal plano, no dia 27 de fevereiro de 2017, o arguido do seu contato ……… ligou para o número ….., a linha de apoio ao cliente da D…,, SA, solicitou e contratou o serviço de fornecimento «D1…», com internet móvel 30 GB para o telemóvel ……….
4. Em tal contato, com tal objetivo e sem conhecimento de C…, indicou-a para titular do contrato, forneceu o número de identificação fiscal e a residência desta, ou seja, o NIF ……… e a Rua …, n.º .., …, ….
5. Para o débito direto, o arguido indicou a conta bancária com o NIB ……………….. do G…, SA, da sua titularidade.
6. Tal serviço esteve ativo entre 28.04.2017 a 11/12/2017, com o n.º de conta ………., em nome da ofendida, com morada de faturação na Rua …, n.º .., …, ….
7. O arguido apesar de beneficiar de tal serviço, não procedeu ao pagamento das faturas inerentes, tendo sido devolvidos dois pagamentos por débito direto por insuficiência de fundos, ficando em dívida a quantia total de 656,52 Euros.
8. O arguido sabia que não estava autorizado por C… a celebrar o referido contrato com a D…, SA e, não obstante solicitou a este operador de telecomunicações a celebração do mesmo em nome desta, indicando para o efeito os dados identificativos desta, tudo para fazer crer ao operador que estaria devidamente autorizado por esta a celebrar o contrato em seu nome, o que sabia não corresponder à verdade e o que fez para se frustrar ao pagamentos decorrentes de tal contrato, provocando à ofendida um prejuízo equivalente.
9. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Pelo exposto, cometeu o arguido, em autoria material e na forma consumada 1 (um) crime de burla previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal.
PROVA:
- Testemunhal:
1. C…, ofendida melhor id. a fls. 34
- Documental: A dos autos, nomeadamente,
Auto de denúncia de fls. 3 e 4
Documentos de fls. 7 e 8
Informações e faturas da D… de fls. 14 a 23
CD de fls. 23-A
Informações bancárias de fls. 44 a 46 e 59 a 63
Certificado de registo criminal de fls. 52
Pesquisas de identificação civil de fls. 54 a 55
Informação policial de fls. 67
Transcrição
› Estatuto coativo: promovo que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito ao termo de identidade e residência prestado (artigos 193.º, nº 1, e 196º do C. P. Penal).
› Representações forenses: nomeio ao arguido o defensor oficioso indicado pelo SINOA.
Comunicações:
› Cumpra o disposto no artigo 283.º, n.os 5 e 6, do Código de Processo Penal.
› Cumpra o disposto no artigo 64.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
› Cumpra o 77.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Águeda, assinatura/data eletrónica – P. 280/2013, de 26-08.)”.
2) A 13.12.2020, (ref.ª Citius n.º 113903836) pela Sr.ª Juiz foi proferido a seguinte decisão:
“Registe e autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.

*
A fls. 115 e ss. dos autos o Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido B… imputando-lhe, em síntese, os seguintes factos:
- O arguido e C… tiveram uma relação de namoro, por força da qual o arguido tomou conhecimento dos elementos de identificação daquela.
- Nessa sequência, decidiu utilizar os elementos de identificação para contratar em nome da ofendida um serviço de telecomunicações e frustrar-se às obrigações daí decorrentes.
- No dia 27 de fevereiro de 2017 contratou com a D…, SA um serviço de fornecimento D1…, com internet móvel de 30 GB para o telemóvel n.º ……… em nome de C…, contra o conhecimento e a vontade desta.
- Para o débito direto o arguido indicou uma conta bancária por si titulada.
- O arguido beneficiou do serviço prestado pela D… e não procedeu ao pagamento da quantia de € 656,52 (o débito direto autorizado para a sua conta bancária não foi concretizado por falta de fundos).
- O arguido sabia que não estava autorizado a celebrar um contrato em nome de C…, provocando-lhe um prejuízo equivalente ao valor em débito - 656,52.
Os presentes autos iniciaram-se com o NUIPC n.º 60/18.8GALNH e por denúncia de C… (cf. fls. 3).
Em momento algum do inquérito e, por via disso, não consta da acusação que C… tenha pago ou sido obrigada a pagar a quantia de € 656,52.
Segundo o art.º 113.º, n.º 1, do Cód. Penal, quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
O crime de burla (p. e p. pelo art.º 217º do CP) desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos:
- intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
Ora, no caso concreto, o arguido, por meio de astúcia (usando indevidamente os elementos de identificação de C…) convenceu a D… a celebrar um contrato e, por via disso, a fornecer-lhe serviços de telecomunicações próprios da sua atividade, sem que com isso tivesse intenção de pagar, causando assim à D… um prejuízo patrimonial equivalente ao custo do serviço por esta prestado e pelo arguido não pago.
A denunciante, C… (pessoa em nome de quem o contrato foi, abusivamente celebrado) não teve qualquer prejuízo patrimonial com a conduta do arguido.
O que significa que o ofendido deste crime é a D…, SA e não C….
In casu, a D…, S.A. não apresentou queixa contra o arguido e a acusação foi deduzida imputando a prática de um crime de burla pelo arguido contra C…, quando a ofendida era a D…, S.A..
Assim, nos termos do arts.º 48.º, 49.º, n.º1 e 2 e 119.º, do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente por um crime de burla praticado contra D…, S.A. sem que esta tivesse apresentado queixa e, por maioria de razão, deduzir acusação pública.
Pelo exposto, rejeito a acusação deduzida contra o arguido B…, nos termos do disposto no art.º 311º, do CPP.
Notifique e dê baixa”.
*
Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1, 5ª Secção).
A questão que cumpre apreciar é a de saber se o Ministério Público tinha no presente caso legitimidade para promover o processo penal deduzindo acusação pública, como fez.
Vejamos.
Alega o Ministério Público, ora recorrente, que não se pode considerar que a factualidade pela qual foi deduzida acusação seja, inequivocamente, de se concluir que C… não ficou lesada patrimonialmente através do engano causado pelo arguido, pelo que não poderia o Tribunal, por ilegitimidade, rejeitar a acusação proferida.
Estipula o art.º 311.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe «Saneamento do processo» que: “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.
Uma dessas questões sobre as quais o Tribunal deverá pronunciar-se no momento do recebimento da acusação e que poderá obstar à apreciação do mérito da causa é a legitimidade do Ministério Público que, no presente caso, foi quem deduziu acusação pública contra o arguido.
No art.º 48.º, do Cód. Proc. Penal, sob a epígrafe «Legitimidade», estabelece-se que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º”.
O princípio da oficialidade do processo, segundo o qual, a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares, concretiza-se, no nosso ordenamento processual penal – logo por imperativo constitucional (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição) –, na atribuição ao Ministério Público da iniciativa e da prossecução processuais.
O processo penal inicia-se com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público (cf. artigo 241.º do Cód. Proc. Penal). Aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público que pode surgir por várias vias: conhecimento próprio, auto de notícia do órgão de polícia criminal ou outra entidade policial (cf. art.º 243.º), denúncia, quer obrigatória (cf. art.º 242.º), quer facultativa (cf. art.º 244.º).
A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as exceções previstas (cf. art.º 262.º, n.º 2).
Contudo, o princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares.
Proclamando o art.º 48.º a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, logo aí se ressalvam as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, as quais conformam, justamente, as exceções a que o n.º 2 do artigo 262.º se refere.
Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa.
É exatamente o que prescreve o art.º 49.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal: “1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
Tendo por referência os normativos ora transcritos, vejamos então a situação dos autos.
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…, imputando-lhe factos capazes de consubstanciarem a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Para tanto, fez constar da acusação deduzida o seguinte (que se passa a transcrever): “1. B… teve uma relação de namoro com C… durante cerca de sete a oito meses, tendo terminado em dezembro de 2016. 2. Por tal motivo, tomou conhecimento dos elementos identificativos da ofendida, nomeadamente, o seu nome completo, número fiscal e residência e decidiu usá-los para contratar em nome da ofendida um serviço de telecomunicações e frustrar-se às obrigações daí decorrentes. 3. Assim, na execução de tal plano, no dia 27 de fevereiro de 2017, o arguido do seu contato ……… ligou para o número …., a linha de apoio ao cliente da D…, SA, solicitou e contratou o serviço de fornecimento «D1…», com internet móvel 30 GB para o telemóvel ………. 4. Em tal contato, com tal objetivo e sem conhecimento de C…, indicou-a para titular do contrato, forneceu o número de identificação fiscal e a residência desta, ou seja, o NIF ……… e a Rua …, n.º .., …, …. 5. Para o débito direto, o arguido indicou a conta bancária com o NIB ……………….. do G…, SA, da sua titularidade. 6. Tal serviço esteve ativo entre 28.04.2017 a 11/12/2017, com o n.º de conta ………., em nome da ofendida, com morada de faturação na Rua …, n.º .., …, …. 7. O arguido apesar de beneficiar de tal serviço, não procedeu ao pagamento das faturas inerentes, tendo sido devolvidos dois pagamentos por débito direto por insuficiência de fundos, ficando em dívida a quantia total de 656,52 Euros. 8. O arguido sabia que não estava autorizado por C… a celebrar o referido contrato com a D…, SA e, não obstante solicitou a este operador de telecomunicações a celebração do mesmo em nome desta, indicando para o efeito os dados identificativos desta, tudo para fazer crer ao operador que estaria devidamente autorizado por esta a celebrar o contrato em seu nome, o que sabia não corresponder à verdade e o que fez para se frustrar ao pagamentos decorrentes de tal contrato, provocando à ofendida um prejuízo equivalente. 9. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”.
Estipula o art.º 217.º, n.º 3, do Cód. Penal que o procedimento criminal em caso de crime de burla depende de queixa.
A queixa é um pressuposto processual (pressuposto positivo da punição), “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências cit., 19.º capítulo, I, §1059, p. 663
Tal como recorda o Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a função da queixa é tripla: de um ponto de vista político-criminal torna-se aconselhável que o procedimento penal respetivo só tenha lugar se e quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa; visa evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem; finalmente, pode servir a função de específica proteção da vítima (ofendido) do crime.
Estipula o art.º 113.º, sob a epígrafe «Titulares do direito de queixa» que: “1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Resulta, assim, da letra da lei que o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico.
Deste modo, para se averiguar quem pode ser considerado titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e portanto, quem deverá apresentar queixa no respetivo processo, há que proceder a uma interpretação do respetivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação.
Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função da conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso (cf. acórdão do TRC, de 09.11.2011, disponível em www.dgsi.pt.)
Reportando-nos aos autos, onde se investiga a prática de um crime de burla, e porque a legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime concreto que estiver em causa, importa verificar se a incriminação da burla admite, em concreto, a existência de um ou de mais do que um titular de interesse especialmente protegido pela incriminação, com o sentido acima especificado. E se a pessoa que apresentou a queixa – C… - se inclui em tal grupo.
Estipula o art.º 217.º, n.º 1, do Cód. Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com a pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de outra pessoa e não a verdade do comércio. Para efeitos penais, o património inclui, numa conceção jurídico-económica, todos os direitos, as posições jurídicas e as expetativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição atualizada, Universidade Católica, pág. 847).
O crime de burla é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido. É também um crime de resultado quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.
O tipo objetivo consiste na determinação de uma pessoa, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou, à prática de atos que causem prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a terceiro. O engano ou erro consiste na provocação de uma falsa representação da realidade.
O tipo subjetivo admite as formas de dolo direto e necessário.
Assim, para o preenchimento do tipo de ilícito objetivo, há a considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa, comissiva ou omissiva, que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano o lesado (demonstrando-lhe uma falsa representação da realidade, que funciona como vício do seu consentimento), e num segundo momento deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como resultado, portanto, da intenção do agente obter benefício ilegítimo, ou seja, benefício a que não corresponde a qualquer direito.
Em síntese, a doutrina a jurisprudência, de forma unânime, segundo cremos, entende que são requisitos deste tipo de ilícito: a) a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; b) com tal objetivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre os factos; c) assim determinando o ofendido à prática de factos que causem a este ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. Tratando-se, como se trata, de um tipo complexo, exige-se um triplo nexo causal, sendo, pois, necessário, que da astúcia resulte o erro ou engano; que do erro ou engano resulte a prática de ato(s) pela vítima; que da prática de ato(s) resulte prejuízo patrimonial.
Dissecando-o.
Dúvidas não há, que a astúcia é um elemento objetivo do tipo. Tal exigência restringe o âmbito da incriminação, porquanto sem astúcia não pode haver burla, nem sequer na forma tentada. Na verdade, não é suficiente que a atitude psicológica do agente seja astuciosa; é ainda necessário que a conduta exterior do agente se mostre astuciosa, por forma a preencher-se o tipo.
De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorrem os prejuízos patrimoniais, sendo certo que, tratando-se de um crime material ou de resultado/dano, o mesmo apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima (Vide Almeida Costa, in ob. cit., páginas 292 e 293).
Daqui decorre, sem margem para dúvidas que a burla é um crime de resultado parcial ou cortado caracterizado por uma descontinuidade entre os tipos objetivo e subjetivo uma vez que, se por um lado se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo do agente, a sua consumação, como se disse, não depende desse enriquecimento mas do empobrecimento da vítima, constatando-se a falta da respetiva causa justificativa (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, 463, página 276, que considera ter de se recorrer, para este efeito, ao conceito civilístico do enriquecimento sem causa – cf. artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil).
Considerando o que se deixa exposto, o ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada.
A ter ocorrido o crime de burla, o património da queixosa, C…, teria sofrido uma substancial redução, consubstanciadora do elemento típico de prejuízo patrimonial. Ora, analisando os factos constantes da acusação pública, não se vislumbra qualquer facto que demonstre que o património da queixosa – C… – esteja empobrecido de qualquer montante, ou seja, a referida C… ainda não viu a sua esfera patrimonial diminuída com a saída da quantia de € 656,52, valor correspondente à prestação de serviços de telecomunicações não paga relativa a contrato que foi, abusivamente, celebrado em seu nome.
Daqueles factos da acusação apenas poderemos concluir que a entidade prestadora do serviço de telecomunicações (“D…, S.A.”) é que está empobrecida no seu património no valor correspondente aos serviços prestados, porque, apesar de ter prestado tais serviços contratados ao arguido, não foi paga dos mesmos.
Contudo, a identificada entidade prestadora de serviços de telecomunicações não apresentou queixa.
Assim, entendemos que bem andou o Tribunal a quo quando, nos termos dos art.ºs 48.º, 49.º, n.ºs 1 e 2 e 119.º, do Cód. Proc. Penal, considerou que o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente por um crime de burla praticado contra “D…, S.A.” sem que esta tivesse apresentado queixa e, por maioria de razão, deduzir acusação pública, rejeitando, por isso, a acusação deduzida contra o arguido B…, nos termos do disposto no art.º 311º, do Cód. Proc. Penal.
Improcede, por isso, o recurso apresentado pelo Ministério Público.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Sem custas.

Porto, 07 de julho de 2021
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Élia São Pedro