CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
ACTO SEXUAL DE RELEVO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Sumário

I - São atos sexuais de relevo os que constituem uma ofensa séria e grave à intimidade do sujeito passivo e invadem de maneira objetivamente significativa aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano.
II - É ato sexual de relevo um beijo na boca de uma menor de nove anos, na sequência do envio de mensagens de teor amoroso.
III - É ato sexual de relevo a apalpar dos seios e da zona vaginal.
IV - O crime de trato sucessivo supõe uma unidade de resolução criminosa, uma conexão temporal entre os atos realizados e um único substrato de vida dotado de um significado social negativo.

Texto Integral

Rec. Penal n.º116/19.0JAAVR.P1
Comarca de Aveiro
Juízo Central Criminal de Aveiro.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório.
No Processo Comum Coletivo n.º 116/19.0JAAVR do Juízo Central Criminal de Aveiro, Juiz 6, onde é arguido B…, após julgamento foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
«Em face de todo o exposto, deliberam os juízes que compõem o Tribunal Coletivo, julgar a acusação deduzida parcialmente procedente por provada e, em consequência:
1. Absolver o arguido B… da prática de 19 crimes de abuso sexual de criança, previstos e puníveis pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal.
2. Condenar o arguido B… como autor material de:
-90 (noventa) crimes de abuso sexual de criança, previstos e puníveis pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal, tendo por vítima C…, cada um na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e ainda nos termos do disposto nos arts. 69º B, nº 2 e 69º C nº 2 para cada um dos 90 (noventa) crime, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 6(seis) anos, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, igualmente por um período de 6 (seis) anos.
-1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal, (tendo por vítima D…) na pena de 1 (um) ano e 3(três) meses de prisão e ainda nos termos do disposto nos arts. 69º B, nº 2 e 69º C nº 2 na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 6 (seis) anos), na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, igualmente por um período de 6 (seis) anos.
3. Condenar o arguido, nos termos conjugados dos arts. 67ºA, nº1, al. b) e nº3; 1º, al. f) e 82º A, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com o art. 16º da lei nº 130/2015 de 04.09, a pagar:
- A C… a quantia de 1.000,00€ (mil euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos em consequência da sua conduta.
- A D… a quantia de 600,00€ (seiscentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos em consequência da sua conduta.
4. Operando o cúmulo jurídico de penas condenar o arguido B…:
- Na pena principal única de 5 (cinco) anos de prisão, que se suspende na sua execução por igual período com regime de prova, impondo-se neste, nos termos do disposto nos arts. 54º, nº 3, 52º, nº 1º e 3 e 51º, nº 1, as seguintes obrigações e regras de conduta:
»Efetuar o pagamento do valor fixado a título de indemnização civil a cada uma das vítimas, no prazo de três anos, e mais precisamente decorrido o primeiro ano do período da suspensão da execução da pena comprovar o pagamento da quantia de 300,00€ relativos à indemnização a pagar à C… e de 200,00€ relativos à indemnização a pagar à D…, decorrido o segundo ano de suspensão comprovar o pagamento da quantia de mais 350.00€ relativos à indemnização devida à C… e de 200,00€ relativos à indemnização devida à D… e decorrido o terceiro ano de suspensão comprovar o pagamento dos últimos 350,00€ relativos à indemnização devida à C… e dos últimos 200,00€ da indemnização devida à D….
»Responder às convocatórias que lhe sejam feitas no âmbito deste processo por magistrado judicial e/ou técnico de reinserção social;
»Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
»Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
»Inscrever-se no centro de emprego ou em cursos de formação de modo a melhor se preparar para uma plena inserção no mercado laboral;
»Frequentar programa ministrado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais com vista a prevenir os riscos de reincidência.
- Na pena única acessória de proibição de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 9 (nove) anos);
- Na pena única acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, igualmente por um período de 9 (nove) anos.
5. Custas: Vai o arguido condenado nas custas do processo, fixando-se em 3Uc a taxa de justiça (art. 513º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas processuais, incluindo a respetiva tabela III anexa).
(…

*
Inconformado com a decisão o arguido interpôs recurso apresentando a competente motivação, que rematou com as seguintes conclusões:
«A. Por Douto Acórdão proferido nos presentes autos em 25 de janeiro de 2021, que julgou procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público, foi o Arguido, ora, recorrente condenado pela prática de 91 (noventa e um) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pela disposição do artigo 171º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
B. Desta decisão recorre o Arguido, ora, recorrente por dela não concordar, tendo o recurso como objeto toda a matéria da decisão condenatória.
C. Entende o Arguido, ora, recorrente que os factos constantes da matéria de facto supra mencionados, dados como provados no Acórdão recorrido não foram corretamente julgados, porquanto em relação aos mesmos a prova produzida, ou a ausência de prova, impunha decisão diversa,
D. Relativamente aos pontos da matéria de facto incluídos no Acórdão recorrido como matéria de fato dada como provada com os pontos 5 a 8, a decisão de 1º Instância fundamentou-se quase em exclusivo nas declarações da menor (prestadas em sede de declarações para memória futura e não em audiência de julgamento), tendo aquele Tribunal criado a convicção e interpretação errada relativamente à versão dos factos por ela narrada.
E. Considerou o Tribunal a quo, da interpretação que fez das declarações da menor C…, como provado o início da relação de namoro a 18 de abril a março de 2019, e que a partir dessa data e com a frequência de, pelo menos, duas vezes por semana, se encontravam em locais mais reservados.
F. E que em todas as ocasiões em que se encontrou com a menor C… o Arguido, abraçou-a, beijou-a na boca, apalpou-a na zona das mamas e na zona da vagina, sempre por cima da roupa que trazia vestida.
G. Das declarações para memória futura prestadas pela menor C…, em 11 de julho de 2019, resultou, sem qualquer certeza ali presente que, esta e o Arguido se encontravam mais ou menos duas vezes por semana.
H. Porém, a interpretação dada pelo Tribunal a quo, àquela declaração foi errada, pois considerou que os encontros com o Arguido ocorriam duas vezes por semana e ainda que nesses encontros ocorreram sempre os atos de cariz sexual, nomeadamente o apalpar na zona das mamas e na zona da vagina.
I. A prova testemunhal produzida em audiência de julgamento veio efetivamente demonstrar esse erro na interpretação das declarações e que não foram corretamente apreciados e valorados.
J. A testemunha E…, mãe da menor C…, confirmou em audiência de julgamento que a filha ia às aulas e das aulas regressava para casa, e que sempre chegou a casa à hora habitual.
K. Tendo em conta que, supostamente a menor se encontrava pelo menos duas vezes por semana com o Arguido, mas manteve a sua rotina e horários, não denotando esta testemunha qualquer alteração ou atrasos.
L. Então, não era viável que os encontros com o Arguido ocorressem com a frequência de quem acusado, de pelo menos duas vezes por semana, e muito menos nos locais mencionados.
M. Porém, quando confrontada com o seu depoimento prestado em inquérito, diga-se totalmente, contraditório, acabou por confirmar os fatos ali declarados, factos que lhe haviam sido relatados pelo seu filho e pela testemunha F…, alegando que já não se recordava.
N. Num outro contexto, num outro tipo de crime, poderíamos até conceber que, uma testemunha, atendendo ao hiato temporal das declarações, efetivamente não se recordasse de alguns pormenores.
O. Agora, sendo a testemunha a mãe da menor, não é credível, nem sequer concebível que, não se recorde do que supostamente aconteceu.
P. Até pela gravidade dos crimes imputados, que salvo opinião em contrário, é impossível esquecer-se de tudo e simplesmente vir ao Tribunal prestar declarações completamente contraditórias.
Q. E por isso, o depoimento desta testemunha, revelou-se impresso e incoerente e ao ignorar a relevância que esse facto tem para a apreciação dos pontos em causa, enquanto matéria de facto provada ou não provada, está a cometer-se uma apreciação arbitrária.
R. Sobre o mesmo facto prestou depoimento a Testemunha F…, que à data explorava o bar junto da G…, e que afirmou ter visto o Arguido e a menor, no café que explorava, portanto, um lugar público, à vista de todos, a trocarem caricias e beijos e nada mais que isso.
S. Testemunhou ainda H…, prima do Arguido, e que confirmou apenas ter visto um beijo apenas, nada referenciando atos de cariz sexual.
T. Do depoimento destas testemunhas, facilmente se alcança, a fragilidade da decisão do Tribunal a quo quanto á matéria de facto posta em crise.
U. Uma vez que, ao dar como provados os atos de cariz sexual, já enunciados, em todas as ocasiões em que se encontraram, o Tribunal a quo errou na interpretação e valorização da prova testemunhal, pois dos depoimentos das mesmas, resulta de forma clara e precisa que, efetivamente esses atos não aconteceram nos termos dados como provados.
V. Ademais, assentou o Tribunal a quo, a sua convicção, para dar como provado a duração da relação entre 18 de abril de 2018 a março de 2019, tendo por base, única e exclusivamente as declarações para memória futura prestadas pela menor.
W. Porém, nenhuma testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento, foi capaz de afirmar, com certeza, quantas vezes o Arguido e a menor C…, estiveram juntos ou com que periocidade e muito menos conseguiram dizer quanto tempo durou a apelidada relação de namoro.
X. Não poderia os Juízes a quo, dar como certo, e consecutivamente como provado, que a “relação” teve a duração sensivelmente de um ano, e muito menos a periocidade dos encontros semanais, quando a própria menor não conseguiu dizer com certeza essa periocidade.
Y. Quando diz em sede de declarações que “nem sei” foram “para aí duas vezes por semana”, sem certeza do que está a dizer, a credibilidade atribuída pelos Juízes a quo às declarações prestadas pela menor não poderia resultar num convencimento absoluto, nem poderia aquelas declarações serem suficientes para dar como provado este fato. Isto porque,
Z. Na verdade, neste tipo de situações, há sempre dificuldade em determinar deforma exata todos os factos que estiveram na base do alegado abuso sexual e é difícil de provar se os atos foram praticados efetivamente de todas as vezes.
AA. E é necessário determinar com rigor todos os factos e o número de vezes que a conduta do Arguido, aqui recorrente, preencheu o tipo legal de crime, o que não aconteceu.
BB. Porém, o Tribunal a quo bastou-se com imputações genéricas, sem especificar todas as condutas típicas e ilícitas praticadas, nomeadamente com indicação do tempo, lugar e modo da prática de todos os 90 crimes de abuso sexual imputados ao Arguido.
CC. Assim sendo, o Arguido apenas poderia ser condenado por tantos crimes quantos os atos levados a cabo e devidamente provados, em concurso efetivo de crimes, o que efetivamente não foi o caso!
DD. Não conseguindo o Tribunal a quo determinar com certeza que a “relação” durou um ano e que os supostos abusos/práticas sexuais ocorreram duas vezes por semana, por ausência de prova suficiente para o efeito, então deveria o Arguido, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser apenas punido por um crime.
EE. Não pode o Arguido conformar-se com o entendimento que o Tribunal recorrido faz quanto a esta matéria de facto, tanto mais que o mesmo fere claramente o bom senso e a razoabilidade, pilares essenciais dos quais um julgador não pode nunca afastar-se,
FF.E em face de tudo o exposto, padeceu o Acórdão em análise nesta parte de um erro notório na apreciação da prova e, devem os factos vertidos nos pontos 5 a 8 da matéria de facto julgada provada, serem considerados não provados e, em consequência ser o Arguido absolvido dos crimes de que vem acusado.
GG. Quanto à decisão de 1º Instância relativa à matéria de facto dada como provada nos pontos 20 e 21, unicamente fundamentada nas declarações para memória futura prestadas pela menor D…, errou igualmente o Tribunal a quo, ao valorar sem qualquer reserva aquele depoimento.
HH. A menor afirma que esta, e o Arguido eram amigos, mas depois acaba por dizer que deram um beijo, do tipo “encostar de lábios”, mas não se verificou qualquer outra prova que sustentasse estas declarações.
II. E ao dar como provado esta matéria, tendo por base apenas as declarações da menor, verifica-se claramente, uma insuficiência de prova, para que se pudesse condenar o Arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças sobre aquela.
JJ. Com efeito, não conseguindo o Tribunal a quo determinar com certeza a ocorrência deste beijo, por ausência de prova suficiente para o efeito, então deveria o Arguido, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser absolvido da prática do mesmo.
KK. No que concerne à decisão de 1º Instância relativa à matéria de facto dada como provada no ponto 10, quanto à parte (“…com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos) e no ponto 22, a mesma resulta novamente e unicamente das declarações para memória futura prestadas pelas menores,
LL. Ou seja, é do depoimento das menores que o Tribunal a quo conclui que o Arguido aproveitava os momentos em que alegadamente se encontrava com as menores para “satisfazer os seus instintos libidinosos”.
MM. Não foi, no entanto, o Arguido sujeito a qualquer exame ou avaliação psicológica, que pudesse esclarecer que instintos estariam em causa ou o que poderia eventualmente provocar os mesmos.
NN. Apesar de ter sido requerido pelo Arguido, e tal prova ter sido indeferido, pelo Tribunal a quo, por entenderem não resultar dos autos a existência de uma qualquer anomalia psíquica ou qualquer outro problema de foro psiquiátrico.
OO. De facto, uma avaliação psicológica e psicofisiológica ao Arguido permitiria clarificar a possibilidade de o Arguido ter ou não cometido os crimes de que vem acusado, dando maior ou menor certeza à decisão judicial.
PP. No entanto, para os Juízes a quo foi-lhes suficiente o depoimento das menores, para concluir pela necessidade do Arguido em satisfazer os seus instintos,
QQ. Apenas foi realizado ao Arguido um Relatório Social para determinação de sanção, elaborado por uma Técnica de Reinserção Social, cujas conclusões apontavam para uma imaturidade visível do Arguido.
RR. Entende assim o Arguido que existe quanto a estes pontos uma clara ausência de prova que, obviamente prejudica a conclusão a que os Juízes a quo chegaram.
SS. Assim, e face à prova testemunhal produzida nos presentes autos entendemos resultar não provado (e ao contrário do concluído pelos doutos Juízes a quo) os pontos 10 e 22., incluídos no Acórdão em crise como matéria de facto dada como provada, padecendo por isso o cordão recorrido nesta parte de um erro notório na apreciação da prova.
TT. Sem prescindir e admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que se assentou a sentença objeto de recurso, constatamos, claramente, um erro na determinação da norma aplicável, quando condenou nos termos do artigo 171º n.º 1 do Código Penal.
UU. O elemento objetivo do crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 171º n.º 1 do Código Penal, como decorre da própria letra da lei, é a prática de um ato sexual de relevo.
VV. De acordo com a sentença em apreço, e no que concerne à menor D…, entendeu o Tribunal a quo, considerar integrar o conceito de ato sexual de relevo um beijo que o Arguido terá dado a esta menor, na boca.
WW. E como tal, fundamentou que “apesar de se ter apurado que o arguido apenas numa das ocasiões em que se encontrou com a D… a beijou na boca, o certo é que este beijo surge num contexto de uma prévia troca de mensagens”.
XX.Com o devido respeito, tal consideração é de repudiar em absoluto.
YY. Tem sido entendimento de que o ato terá de assumir uma certa gravidade e intensidade, para se considerar que tem potencialidade para afetar significativamente a liberdade e autodeterminação sexual da vítima, veja-se No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.01.2016, Processo n.º 53/13.1GESRT.C1 em que foi relator o Juiz Desembargador Orlando Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt.
ZZ. Quanto à definição de relevo no âmbito dos atos sexuais entende a doutrina, designadamente, M.MIGUEZ GARCIA e J.M. CASTELA RIO que serão atos sexuais de relevo “os que não sendo irrelevantes, se mostram, quando encarados na sua globalidade e de acordo com o modo e intensidade do agir, perigosos para o bem jurídico protegido com a incriminação”.
AAA. Relativamente às mensagens descrita e já juntas aos autos, e que se analisadas devidamente o teor e a linguagem destas, não é um discurso aparente de um adulto com uma criança, mas antes o discurso de um pré-adolescente.
BBB. Entendeu o Tribunal a quo que, a qualificação do ato em causa como de “relevo” é a circunstância de a D… ter apenas 9 anos de idade e de o beijo ter sido dado por um homem de 23 anos de idade.
CCC. Ora, de notar, e conforme resulta quer da prova testemunhal quer da prova documental, nomeadamente o Relatório Social elaborado pela Técnica da DGRSP junto aos autos, sobressai a imaturidade emocional do Arguido.
DDD. Para além desta imaturidade emocional constatada pela técnica, é percetível que o próprio desenvolvimento físico deste, é insuficiente, não aparentado em momento algum o físico de um homem de 23 anos, como é dito no douto acórdão, mas sim, de um adolescente.
EEE. Aparte este erro de avaliação, e tendo em consideração o que se entende por ato sexual de relevo pela nossa jurisprudência, parece-nos que andou mal o Tribunal a quo, ao considerar a troca de mensagens e um beijo, aliado às idades das partes, como enquadrável no conceito em crise.
FFF. Se por um lado não se considera um beijo um ato sexual de relevo, de acordo com a consideração do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.06.2006, processo n.º 0610510, em que foi Relator o Juiz Desembargador Guerra Banha, disponível in www.dgsi.pt, muito menos o será uma troca de mensagens, de forma a sustentar uma condenação de abuso sexual de crianças, como o foi.
GGG. O bem jurídico tutelado pelo artigo 171º do Código Penal (liberdade sexual e o livre desenvolvimento da personalidade da menor na sua esfera sexual) não foi posto em causa com um beijo de “encostar de lábios” nem com mensagens.
HHH. E é neste sentido que o Tribunal a quo errou na interpretação e determinação da norma que aplicou, uma vez que, considera-se que não está preenchido o elemento típico do crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171º do Código Penal.
III. E o enquadramento jurídico que deveria ter sido aplicado era o disposto no artigo 170º do Código Penal.
JJJ. Relativamente à menor C…, e tendo por base o depoimento da testemunha H…, prima do Arguido, e de F…, ambas ouvidas em audiência de julgamento, tendo estas apenas presenciado beijos e caricias,
KKK. E ainda, o testemunho da mãe da menor, E…, também ouvida em audiência de julgamento, onde afirmou que a menor C… lhe disse que só davam beijos e abraços.
LLL. Atos estes que, por si só, também não são enquadráveis como sendo atos sexuais de relevo.
MMM. Pelo que, e por uma questão de economia processual, se reproduz todos os conceitos e considerações para o enquadramento e aplicação, do que se considera ser aprática de um ato sexual de relevo, já exposto.
NNN. Assim, o Tribunal a quo errou igualmente na interpretação e determinação da norma aplicável, quanto à menor C…, por se entender que também aqui não está preenchido o elemento típico do crime de abuso sexual de crianças, e o enquadramento jurídico que deveria ter sido aplicado pelo tribunal recorrido era o disposto no artigo 170º do Código Penal.
OOO. O Acórdão proferido nos presentes autos, condenou o Arguido em 90 (noventa) crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do artigo 171º do Código Penal tendo por vítima C…,
PPP. Ainda que se entenda, e por uma mera hipótese académica se concede, que estamos perante crime de abuso sexual de crianças, sobre a menor C…, salvo o devido respeito, que é muito, nunca poderia estar em causa 90 crimes. Isto porque,
QQQ. Tendo por referência o texto do acórdão, não há dúvida de que, estamos perante um crime exercido de forma reiterada e repetida num período de tempo, mais ou menos longo, ou seja, 18 de abril de 2018 a março de 2019.
RRR. Porém, quando temos por referência um período de tempo mais ou menos longo, surgem impreterivelmente dificuldades e imprecisões dessa delimitação temporal dos atos praticados/sofridos, nomeadamente, quando supostamente ocorreram diversas vezes por semana.
SSS. Perante isto, o tribunal a quo dá como provado que o crime de abuso sexual de crianças foi praticado, todavia não consegue contabilizar de forma precisa o número de crimes de abuso sexual cometidos.
TTT. Antes, cingindo-se a um puro cálculo matemático, nomeadamente, “um período constituído por 45 semanas, sendo que os aludidos atos sexuais de relevo ocorreram pelo menos duas vezes em cada semana, pelo que se conclui ter o arguido praticado 90 crimes de abuso sexual de crianças.
UUU. Para além de que, o Tribunal a quo deu como provado este período de tempo de um ano, com uma periocidade de duas semanas, com base apenas nas declarações da menor quando diz “nem sei. Para aí duas”, o que por si só, mostra a incerteza da própria menor.
VVV. O certo é que, esta contagem que é feita pelos Juízes a quo, para além de não ser idónea a sustentar a condenação, pode efetivamente ser considerada arbitrária.
WWW. Em face desta dificuldade de contabilização, alguma jurisprudência tem, nestes casos, optado por considerar que houve apenas um crime de abuso sexual praticado diversas vezes ou ao longo do tempo e por isso habitualmente designado como “crime de trato sucessivo”.
XXX. Trata-se de casos em que o tipo legal de crime é logo preenchido com os primeiros atos de execução, e que a repetição de atos e a produção de sucessivos resultados é imputada a uma realização única.
YYY. Considerando-se que os diferentes atos, mais ou menos idênticos quanto ao modo de atuação e realização e quanto à vítima, realizados sucessivamente, reiteradamente, sequencialmente no tempo, apenas integram um único crime.
ZZZ. E na esteira deste entendimento e aplicado ao caso em concreto, errou o Tribunal a quo na qualificação jurídica, quando considerou a prática de 90crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do artigo171ºdoCódigo Penal, em concurso real, quando deveria ter considerado e aplicado a prática de um crime de trato sucessivo.
AAAA. Até porque, para que o Arguido possa ser condenado na prática de 90 crimes de abuso sexual de crianças, é necessário que se mostrem individualizados e concretizados, e que haja prova e certeza cabal desse cometimento, o que não é o caso!
BBBB. Ainda que se considere de alguma forma legitima a análise e interpretação feita pelo Tribunal a quo à prova produzida, o que não se concede face às razões atrás apresentadas,
CCCC. Deve em todo o caso a decisão proferida pelo Juiz daquele Tribunal ser alterada, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
DDDD. Ora, o Tribunal a quo, para considerar como provado as matérias de factos provados dos pontos 1. a8. e 20e21, formou a sua convicção para os mesmos, unicamente, nas declarações das menores C… e D….
EEEE. Com o devido respeito, discorda este em absoluto com essa apreciação, já que, ao contrário do que refere o Tribunal recorrido, quando considera os depoimentos aparentemente honestos, aquela prova, devidamente analisada e escalpelizada, mostra-se equívoca e incompleta.
FFFF. Se por um lado, relativamente à menor C…, o Tribunal a quo, deu como provado a prática de 90 (noventa) crimes de abuso sexual de crianças, sem nunca conseguir individualizar e determinar, de forma exata e com rigor, esses 90 crimes, ora imputados.
GGGG. Bastando-se com imputações genéricas e imprecisas, evidenciadas nas declarações desta menor, como suficientes para a condenação do Arguido, aqui recorrente.
HHHH. E, consequentemente, considerar plausível a aplicação de uma fórmula matemática, para conseguir determinar um número de crimes a imputar ao Arguido.
IIII. Violou, nitidamente, aquele tribunal o princípio in dubio pro reo, que não mais é impedir que se aplique uma pena sem prova suficiente, o que claramente se verificou no caso sub judice.
JJJJ. Por outro lado, deu como provado, sobre a menor D…, a prática de um crime de abuso sexual de crianças, por supostamente o Arguido ter dado um beijo na boca da menor, tendo unicamente por base as declarações desta.
KKKK. Ainda que assim não se entenda, e ainda que se considere credível e coerente a versão dos factos narrada pela menor, certo é que não poderiam as suas declarações serem o único de prova para se poder decidir pela condenação do Arguido.
LLLL. De facto, deveriam aquelas declarações serem comprovadas por outros meios que assegurassem uma decisão justa e fundamentada, sem que sobre a mesma pairasse qualquer sombra de dúvida ou incerteza.
MMMM. Sob pena de se ver ofendido o Princípio da Inocência.
NNNN. Lamentavelmente, bastou para os Juízes a quo a existência da convicção de que o discurso da menor era credível, para assim condenar o Arguido pela prática do crime de abuso sexual,
OOOO. No entanto, como da prova produzida resulta uma claríssima dúvida (insanável, razoável e objetivável) quanto aos factos pelos quais o Arguido, ora, recorrente vem acusado, a absolvição dos mesmos era a única decisão que o Tribunal de 1ª Instância podia adotar.
PPPP. Estamos assim, sem dúvida, perante a violação por um lado, do Princípio in dubio pro reo e, por outro lado, do princípio da presunção da inocência previsto no n.º 2, do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e, no qual o primeiro se funda.
Termina pedindo a procedência do recurso e, em consequência, revogado o Acórdão recorrido, proferindo-se Acórdão que absolva o Arguido pela prática dos crimes de que vem acusado.
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O recurso foi liminarmente admitido, após o que o MP veio responder, pugnando de forma fundamentada pelo não provimento do recurso, embora sem formular conclusões.
*
Nesta Relação o Excelentíssimo PGA emitiu parecer onde pugnou pela negação de provimento ao recurso.
Cumprido o artigo 417º n. º 2, do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
São as seguintes as questões a decidir:
- Impugnação da matéria de facto [factos 5 a 8, 10, 20, 21, 22.]. Violação do princípio in dubio pro reo.
- Errada subsunção jurídica dos factos.
Ato sexual de relevo
Crime de trato sucessivo.
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2. Factualidade e motivação, com o consta do Acórdão em recurso.
«Factos provados
1. À data dos factos, a menor C…, nascida a 07-04-2006, frequentava o 6° ano de escolaridade na Escola …, Estarreja.
2. Em data situada em meados de março de 2018, por intermédio de uma colega de escola de nome I…, de 15 anos de idade, a C… conheceu o arguido B…, este último nascido a 10-05-1995 e, nessa altura, namorado da referida I….
3. Algum tempo depois, a C… e o B… passaram a trocar mensagens através do Messenger da rede social Facebook.
4. Aquando daqueles contactos e porque tal lhe foi perguntado, a C… disse ao arguido qual era a sua idade real naquela altura.
5. No dia 18 de abril de 2018, numa altura em que a mesma contava 12 anos de idade, o arguido encontrou-se com a C… na Escola …, tendo ambos, nessa data, iniciado relação de namoro, a qual durou até, março de 2019.
6. Nesse mesmo dia 18-04-2018, estando ambos na biblioteca da referida escola, mais propriamente na zona onde se encontravam os computadores, o arguido beijou a C… na boca.
7. A partir de então e ao longo daquela relação de namoro que mantiveram, o arguido, com a frequência de, pelo menos, duas vezes por semana, foi ao encontro da C…, geralmente esperando-a junto à escola que a mesma frequentava, em …, Estarreja, ou no bar do G1…, sito em …, ou junto aos clubes denominados “J…” e “K…”, após o que se afastavam para locais mais reservados, onde deduziam não serem vistos por terceiros, designadamente, para o parque de merendas da …, ou até mesmo para locais mais escondidos dos referidos clubes, todos em …, Estarreja.
8. Já nesses locais e em todas as ocasiões em que se encontrou com a C…, com a referida frequência de, pelo menos, duas vezes por semana, o arguido B… abraçou-a, beijou-a na boca, apalpou-a na zona das mamas e na zona da vagina, sempre por cima da roupa que aquela trazia vestida.
9. A partir de certa altura e em número de vezes não apurado, o arguido propôs à C… manterem relações sexuais de cópula. Para tanto, aquando de alguns daqueles momentos de intimidade acima referidos, o arguido, pretendendo propor à menor manterem as referidas relações sexuais de cópula, perguntava à C… se ela “queria fazer”, o que a menor declinava, argumentando ser “muito nova para isso”.
10. Ao levar a cabo a conduta acima descrita ao longo do período referido, agiu o arguido B… com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a C… tinha apenas 12 anos de idade e que, por isso, carecia de capacidade para se autodeterminar sexualmente, não ignorando que ao agir daquela forma prejudicava gravemente o livre e são desenvolvimento da personalidade da mesma menor.
11. Agiu, o arguido, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
II
12. À data dos factos infra descritos, a D…, nascida a 07-04-2009, frequentava o 4° ano de escolaridade na Escola …, em ….
13. Naquela altura, a D… frequentava o G1…, em …, onde tinha treinos de futsal às 2ªs e 5ªs feiras, e onde também acompanhava os treinos do seu irmão, da mesma modalidade, às 3ªs e 6ªs feiras.
14. No Natal de 2018 a D… foi presenteada com um telemóvel da marca Alcatel, no qual passou a aceder à internet através da rede Wi-Fi.
15. Porque todos os seus colegas da equipa de futsal, denominada "Benjamins", tinham conta na rede Instagram, a D… convenceu a sua mãe a deixá-la criar uma conta naquela rede social, para desta forma receber notificações dos jogos e das datas dos jogos de Futsal.
16. Em data não concretamente apurada do mês de janeiro de 2019, a D… recebeu uma notificação do arguido B…, o qual tinha passado a ser seu seguidor no Instagram, constatando desde logo que se tratava de um rapaz mais velho que via muitas vezes no G1….
17. Pouco tempo depois, o arguido começou a encetar conversação com a D… através do Instagram, tendo esta acedido a trocar mensagens com ele, passando a fazê-lo, quer através do Instagram, quer através do Messenger da rede social Facebook.
18. A partir dessa altura, o arguido, bem sabendo que a D… contava apenas 9 anos de idade, passou a manter conversação com a mesma através das referidas redes sociais, designadamente, passaram a trocar mensagens, inicialmente em jogo de sedução, posteriormente já de cariz amoroso, tais como as que se encontra copiadas a fls. 13 a 23 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, agindo ambos como se de dois namorados se tratassem.
19. Entre aquelas mensagens que o arguido trocou com a menor D…, contam-se as seguintes:
Em 18-01-2019:
B…: “Gosto muito de ti Nao dizes nada?”
D…: “Porque que perguntas”
B…: “Quero um beijinho teu”
D…: “Agora não”
TB…: “Ok ja sei que nao vais dar” Daqui a pouco vais embora e fico triste”
D…: “Como é que sabes”
B…: “Porque se quisesses dar ja tinhas dado”
D…: “Não nao”
B…: “Entao vais dar?
“Qual é a resposta?
Diz por aqui”
D…: “Desculpa mas não”
B…: “Ok sabia que era não Tou triste Vou embora para casa
D…: “Desculpa”
B…: “Nao queres um beijinho pois não?”
D…: “Já disse que não
Mas desculpa”
B…: “Ok sei que sou um parvo”
D…: “Não nao”

Em 20-01-2019:
B…: “Tao linda”
D…: “Sou igual a ti”
B…: “Tao fofa”
“Quero um beijinho depois se quiseres mas ja sei que nao queres”
D…: “Quero sim”
B…: “Ah ok ainda bem fofa”
D…: “No intervalo”
B…: “Ok e agora nao?”
D…: “Não”
B…: “(…) Se queres namorar comigo”
D…: “No intervalo digo te”
B…: “Dizes mesmo?”
D…: “Sim”
“O que achas que vou dizer”
B…: “Ok”
Se queres um beijo meu é porque queres namorar comigo”
D…: “Talvez sim”
B…: “Ok entao devia tar no intervalo”
D…: “Porque”
B…: “Porque quero um beijo teu” “Mais que um claro”
D…: “Sim” “Ok”
(…)
B…: “Adoro te” (…)
B…: “Ola D1…”
D…: “Olá meu rei”
B…: “Tudo bem princesa?”
D…: “Sim”
B…: “Alguem ta a ver as mensagens?”
D…: “Não”
(…)
D…: “Obrigada amor da minha vida”
B…: “Entao o meu beijinho não deste”
D…: “Estava com a minha tia”
B…: “Vais dar amanha no treino”
D…: “O que achas”
B…: “Acho que sim minha menina”
D…: “Sim”
“Gostas de mim mesmo queres seres meu namorado”
B…: “O que achas?”
D…: “Que lindo”

Em 22-01-2019:
B…: “Eu amo te tou triste bebe”
D…: “Já percebi”
B…: “Não me queres beijar eu quero namorar contigo e tu?”
D…: “Não vou responder”
B…: “Não queres?”
D…: “Não digo deixa me em pás”
B…: “Ok ta bem”
(…)

Em 25-01-2019:
B…: “Ainda estas no G1…?”
D…: “Sim”
B…: “Ok eu vim a casa e vou para ai”
D…: “Ok”
“O que foste fazer a casa meu amado”
B…: “Quero um beijinho teu”
D…: “Ok”
B…: “Vim buscar a mochila” “Tou quase a chegar”
“Anda para ca para fora para te beijar”
D…: “Já está o padrinho do L…
B…: “Ok mas quero um beijo rápido”
D…: “Já vou”
B…: Onde?” (…)
B…: “Que fofinha a minha menina Amo te”
D…: “Quero beijos e corações”
B…: “Quando?” “Amanhã?”
D…: “Estou com o coração loucab” “Estou louca por ti”
“Amor”
“AMOR”
“Responde”
B…: “Eu também meu amor”
D…: “Vais ao jogo do meu irmão”
B…: “Vou”
D…: “Amoooooooorrrr” “Sabias que és muito lindo”
B…: “Não sabia”
D…: “Vamos falar pelo mensager”
B…: “Vamos estar mais tempo juntos amanhã?”
D…: “Sim”

Em 26-01-2019:
B…: “Oi”
D…: “Oi amor”
B…: “Tas a beira de alguem?”
D…: “Amanhã vamos para um sítio romântico”
B…: “Para onde queres ir”
D…: “Vou fazer uma coisa sex(…) Onde achas”
B…: “La sei no pescoço?”
D…: “Não”
B…: “Então?”
D…: “Vais estar deitado onde estivemos na seita feira”
B…: “Nas escadas”
D…: “Lá em cima na parte lisa”
B…: “Ok”
D…: “Vais gostar”
B…: “Nao sei o que é?”
D…: “Vais ver”
B…: “Vais deitar te em cima de mim?”
D…: “Queres ir para esse sítio ou queres ir para outro sítio” “Sim”
B…: “Para mim é igual”
D…: “Ok”
“Vou ver o jogo”
B…: “O que eu quero é estar contigo bebe” “Ok bebe ainda falamos hoje?”
D…: “Eu sei amor da minha vida”
“Sim”
“Tão crido”
B…: “Ok bebe ate ja morzinho”
D…: “Fixe meu rei”
“Amanhã tens quer ir bonito
B…: “Ok bebe”
D…: “Ok”
(…)
Em datas não apuradas do mês de janeiro de 2019 e até ao dia 02 de fevereiro de 2019:
B…: “Ola meu amor”
D…: “Olá”
B…: “Sabes uma coisa?”
D…: “Não”
B…: “Queres que te diga?”
D…: “Sim”
B…: “Eu amo te (…) E tu?”
D…: “Sim”
B…: “Ok princesa Ainda bem”
20. Para além de trocar as referidas mensagens de cariz amoroso com a D…, o arguido, ao longo do período compreendido, entre o dia 20 de janeiro de 2019 e o dia 10 de fevereiro de 2019, com a frequência de cerca de duas vezes por semana, encontrou-se com a D… no G1…, sito em …, Estarreja, alturas em que lhe oferecia gomas que previamente comprava no bar do referido G1….
21. Numa dessas ocasiões, num local mais escondido daquele G1…, que previamente combinaram, ao arguido beijou a D… na boca.
22. Também em relação à D…, ao levar a cabo a conduta acima descrita, agiu o arguido B… com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a menor D… tinha apenas 9 anos de idade e que, por isso, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente.
23. Não ignorava que ao agir daquela forma prejudicava gravemente o livre e são desenvolvimento da personalidade da mesma menor.
24. Agiu o arguido, também quanto à D…, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
25. O arguido B… é oriundo de família de características tradicionais e posicionamento pró social, sendo o primeiro de uma fratria de dois.
26. O seu desenvolvimento psicossocial decorreu no agregado de origem composto pelo seu pai, de 54 anos, tipógrafo na Empresa M…, pela sua mãe, de 45 anos, auxiliar no N…, e pela sua irmã, V… de 16 anos, estudante de 12º ano, no Curso de Gestão e Contabilidade, na Escola ….
27. A dinâmica familiar é caracterizada por relações saudáveis e equilibradas entre todos, existindo vínculos afetivos significativos e entreajuda entre os familiares.
28. O arguido ingressou na escola na idade habitual e sofreu duas retenções, sem referência a qualquer dificuldade de comportamento.
29. Concluiu o 11º ano de escolaridade com 18 anos na área de turismo, no modelo de Curso de Educação e Formação (CEF), com estágio curricular na O….
30. Em termos laborais, iniciou atividade aos 19 anos, com contrato temporário na P…, S.A. (6 meses) e Q…, S.A. (3 meses).
31. Em 2016 esteve 14 meses desempregado, nesse período colaborou com a família, prestando apoio ao pai em virtude de patologia da coluna, com limitações temporárias mas significativas na locomoção e autonomia.
32. Em 2017 retomou a atividade laboral, novamente com a assinatura de contratos temporários, na S…, S.A. (6 meses) e T…, S.A. (4 meses), cujo contrato cessou, no contexto da pandemia, em maio de 2020.
33. O arguido iniciou atividades extracurriculares aos 7 anos, na prática desportiva de futebol no U…, prática que manteve até aos 17 anos, passando pelos vários escalões, tendo ainda colaborado com o G1… no registo videográfico dos jogos realizados.
34. Com 21 anos, recebeu um convite da G… para assegurar os registos videográficos dos campeonatos nesta G..., onde permaneceu responsável por esta tarefa de 2017 a 2018.
35. O arguido tem um número reduzido de amigos, ainda que integrasse as atividades regulares nas estruturas desportivas referidas anteriormente.
36. O arguido assinala o vínculo de namoro a uma jovem de 16 anos, no período de 09/2017 a 06/2018.
37. O arguido segundo avaliação dos Técnicos da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais apresenta competências pessoais e sociais suficientes para resolver as situações plurais do quotidiano.
38. O arguido integra o agregado de origem, a residir em casa própria, correspondente a moradia com adequadas condições de habitabilidade, instalada em terreno disponível para agricultura de subsistência.
39. A nível laboral, em situação de desemprego e busca ativa de trabalho, organizando o seu quotidiano de acordo com estes objetivos concretos.
40. Em termos económicos a sua subsistência baseia-se no apoio familiar.
41. Mantém vínculos aos elementos da família, nomeadamente, à sua mãe.
42. Não foram identificados fatores de rejeição à presença do arguido no meio socio residencial.
43. No âmbito dos factos em discussão nestes autos a G…, suspendeu a colaboração do arguido, aguardando o desfecho processual, sem reportar outros indicadores de risco para conduta desajustada no contexto da associação.
44. O arguido é tido por quem o conhece como uma pessoa imatura mas responsável.
45. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
***
Factos não provados:
a) Tenha sido a C… a pedir amizade ao arguido B… na rede social Facebook, e que o tenha feito quando soube que este tinha terminado o namoro com a I….
b) A relação e namoro ente o arguido e a C… tenha terminado no dia 27 de março de 2019.
c) A mãe da D… partilhasse com esta dados móveis para que os utilizasse no seu telemóvel.
d) Sempre que o arguido B… se encontrou com a D… em locais mais escondidos do G1…, sito em …, Estarreja, aquele beijou a menor na boca.
***
Motivação da decisão de facto
Na fixação da matéria de facto provada o tribunal coletivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental e pericial com a prova oral e aferindo-se do conhecimento de causa, da isenção do depoimento e declarações prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais.
O arguido usou do direito ao silêncio apenas tendo prestado declarações acerca da sua situação pessoal e profissional, as quais foram neste conspecto atendidas.
Porém, apesar do silêncio do arguido foi possível ao Tribunal, conjugando a prova testemunhal, e documental produzida concluir pela forma vertida nos factos provados:
Assim, o Tribunal atendeu ao teor da certidão do assento de nascimento de C…, junto a fls. 53 e da certidão do assento de nascimento de D…, junto a fls. 8 e 9, no que concerne à idade de cada uma das vítimas.
No teor das declarações para memória futura prestadas por C… e por D…, reproduzidas em audiência de julgamento onde estas jovens relataram de forma séria, os factos ocorridos.
Ambas, de modo espontâneo e aparentemente honesto, referiram em que circunstâncias conheceram o arguido e como se desenrolaram os encontros entre ambos.
Neste contexto a C… referiu a data em que iniciou a relação de namoro com o arguido e, de forma clara e aparentemente sincera, referiu que este sabia a sua idade, porque tinha sido um assunto abordado entre ambos. Referiu ainda de modo igualmente claro e credível os encontros havidos entre ambos e sua periodicidade e os concretos atos que durante esse namoro levaram a cabo, referindo para além dos beijos na boca a forma como o arguido a acariciava no seu corpo.
A D… conseguiu, por recurso ao ano letivo frequentado e a outras épocas festivas, balizar temporalmente o período em que manteve os contactos com o arguido, descrevendo, onde e quando se encontravam. Esta menina, de forma aparentemente séria, referiu ainda que o arguido lhe deu um beijo na boca, mencionando onde este ocorreu.
Mais confirmou ter trocado com o arguido as mensagens que se mostram juntas a fls. 13 a 23 dos autos.
As declarações destas testemunhas mostraram-se sustentadas na restante prova produzida em designadamente no depoimento das testemunhas:
- E…, mãe da C…, prestado em inquérito, e lido em audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 356º, nº 2 e 5 do Código de Processo Penal, porquanto mais pormenorizado e coerente. Na verdade, finda a leitura daquele depoimento e confrontada a testemunha com aparentes contradições com o declarado em audiência de julgamento, esta expressamente declarou que o que se lhe havia lido era verdade, que na altura da prestação desse depoimento lembrava-se melhor do ocorrido, esclarecendo ainda que apenas o não reproduziu em audiência de julgamento porque não se estava a recordar desses factos, mas que eram verdadeiros.
Confrontada com o teor de fls. 141 a 157, reconheceu a letra da sua filha C…, tratando-se de documentos que foram apreendidos no quarto do arguido, como consta do auto de busca e apreensão de fls. 138 a 140 e documentos anexos de fls. 141 a 157.
- H…, amiga do arguido (primo do seu falecido marido) e da testemunha C… (prima do seu atual namorado) que descreveu o que se apercebeu do relacionamento entre ambos. Muito concretamente relatou uma visita da C… e do arguido a sua casa em que os viu a darem um beijo na boca e a chamada de atenção que fez ao arguido por a C… ser “menor”.
Com aparente sinceridade referiu que a C… tinha uma aparência correspondente à sua idade, e que à data esta teria 12 anos ou quando muito teria feito 13 anos de idade.
Relatou o que lhe é dado a conhecer da personalidade do arguido descrevendo-o como um individuo imaturo, mas responsável referindo que este nas matérias que são do seu interesse designadamente no desporto apresenta um discurso consistente, ou na expressão da testemunha “sabe ter uma conversa muito à frente”.
Confirmou o que consta do relatório social do arguido referindo ter-lhe conhecido trabalhos, ainda que de caracter temporário.
- W…, que descreveu como os factos vieram ao seu conhecimento (por intermédio da testemunha X…, seu filho e irmão da D…) e as diligências e contactos que encetou, quer na Escola quer junto do G1… onde a sua filha praticava futsal.
Relatou com seriedade ter visto as mensagens que a sua filha tinha trocado como arguido e ter sido a própria a exibi-las e a facultá-las para junção ao processo quando foi ouvida em inquérito, o que se mostrou de acordo com os elementos documentais juntos aos autos (cf. fls. 13 a 23).
Confirmou a data em que presenteou a filha (D…) com um telemóvel e a razão pela qual esta tinha conta no Instagram. Explicou o contexto em que a sua filha frequentava o G1… e a periodicidade com que o fazia.
Relativamente à aparência física da D…, referiu que esta com 9 anos aparentava precisamente ter essa mesma idade.
Explicou as reações que encontrou na sua filha após o ocorrido, descrevendo o apoio que lhe foi prestado, relatando um outro contacto que esta criança foi vítima e que se mostra sustentado nos elementos documentais de fls. 97 a 100 dos autos.
Em conjugação com este depoimento foi valorado aquele prestado pela testemunha X…, irmão da vítima D…, que, com aparente sinceridade, referiu como tomou conhecimento das mensagens trocadas entre o arguido e a sua irmã (por o próprio lhas ter mostrado) e a decisão que tomou, após se ter apercebido que o arguido e a sua irmã estavam próximos quando o depoente tinha treinos (e que aparentavam estar a trocar mensagens um com o outro) contar esses factos à sua mãe, a testemunha W… (o que esta também confirmou).
- F…, que explorava à data o bar junto da G…. Explicou conhecer o arguido da colaboração que este prestava na G… e de ser frequentador do seu bar. Neste contexto referiu o que logrou percecionar do relacionamento do arguido com a C… referindo tê-los como namorados, justificando de forma clara e coerente essa sua afirmação com os gestos que os viu trocar entre si, designadamente referindo que os viu abraçados, aos beijos e em troca de carinhos, o que acontecia designadamente num sofá de paletes que havia no bar, esclarecendo que aquele era um local fechado e onde estariam mais “escondidos”.
Relativamente à D… referiu ter visto por várias vezes o arguido a oferecer-lhe guloseimas, mas nunca ter presenciado qualquer facto ou atitude do arguido que a fizesse suspeitar de outras intenções.
Descreveu como é feito o acesso ao bar e designadamente a existência de umas escadas que não são visíveis das bancadas e por quem está ao balcão no interior do bar, o que se mostrou relevante na medida em que, em conjugação com o teor das mensagens recolhidas do telemóvel da D…, traz ainda mais credibilidade às declarações desta última, no sentido de que o beijo na boca ocorreu no referido trajeto para o bar.
- Y…, treinador e membro da Direção da G…, que por força dessas suas funções e designadamente como treinador da D…, descreveu a periodicidade com que esta se deslocava ao G1… para os seus treinos e também para assistir aos treinos do seu irmão X… (sendo a testemunha quem os transportava de e para o G1…). Neste contexto deu conta do que se apercebeu relativamente aos contactos havidos entre a D… e o arguido, referindo com sinceridade que os via a falarem um com o outro sobretudo quando o irmão da D… estava a treinar, referindo tê-los visto também a deslocaram-se para o bar.
No contexto da interação do arguido com a D…, referiu que esta é a única rapariga no G1… e que por isso é muito acarinhada por todos, não lhe tendo suscitado, por isso, à data, surpresa os contactos do arguido com aquela, tanto mais que não viu nenhuma ação que lhe despertasse a atenção.
Com aparente honestidade referiu que a D… (conhecida no G1… como “D1…” era uma menina com a aparência igual à idade que tinha (9 anos) referindo para acentuar essas características que ela era “uma bonequinha”.
No que concerne ao arguido descreveu as funções e colaboração que este prestava no G1… e a frequência com que este estava nas respetivas instalações.
No que concerne às repercussões desta situação na D…, referiu que após ter tomado conhecimento dos factos através da mãe desta, existiram contactos com a Diretora de turma da D… e entre a família a Escola e o G1… conseguiram uma rede de suporte, referindo ter a perceção que a D… é hoje uma criança feliz.
- I…, que prestou um depoimento que nos pareceu marcado pelo facto de se ter incompatibilizado com a C….
Porém esta testemunha reconheceu que teve uma relação de namoro com o arguido, situando-a temporalmente por referência ao ano letivo frequentado, referindo que, então, já era amiga da C….
Referiu saber que a C… à data tinha Facebook, referindo que esta tinha uma fotografia com a sua mãe como foto de perfil e que constavam do mesmo os seus dados.
Negou ter apresentado o B… à C…, sendo certo que esta última o afirmou, e pela densidade e credibilidade que nos mereceram as suas declarações quando em confronto com as desta testemunha, entendeu o Tribunal dar relevo às daquela.
Em conjugação com estes depoimentos o Tribunal considerou ainda o auto de pesquisa informática junto a fls. 159 e 160.
No que concerne em específico ao conhecimento por parte do arguido da idade das vítimas, cumpre referir que a C… de forma clara mencionou que o assunto da sua idade foi conversado entre ambos, sabendo o arguido que este tinha 12 anos à data, o que nos mereceu credibilidade, sendo certo que o arguido nada trouxe aos autos que permitisse afastar ou informar o que foi referido por aquela.
Quanto à idade da D…, esta conclusão resultou da conjugação de toda a prova produzida.
Na verdade, apesar de a D… não ter sido capaz de, quando inquirida, se recordar se o assunto da sua idade foi abordado, o certo é que o arguido exercia funções no G1…, onde a vítima jogava futsal. Ora da prova testemunhal produzida resulta que a D… tinha efetivamente à data 9 anos de idade e tinha uma aparência coincidente com essa mesma idade (veja-se o depoimento das testemunhas Y… e W…).
Acresce que a D… era atleta do G1… onde o arguido prestava assistência designadamente gravando os respetivos jogos, e integrava o escalão próprio da sua idade. Isto é, apuraram-se um conjunto de indícios todos congruentes entre si que apontam, de acordo com as regras da experiência comum para o arguido saber da idade da D… e aos autos não foram trazidos quaisquer contraindícios que permitissem abalar esta conclusão.
Deste modo, os elementos apurados, todos conjugados, apontam para que efetivamente o arguido soubesse que a D… tinha 9 anos e como tal foi esse facto dado como provado.
A atuação livre, voluntária e consciente, com a intencionalidade descrita nos factos provados e a consciência da ilicitude da sua conduta por parte dos arguidos, retira-se da análise dos factos objetivos descritos à luz das regras da experiência comum. Com efeito, tratando-se de factos atinentes ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, quando não surgem admitidos pelo agente não são suscetíveis de serem apreendidos pelas testemunhas ou por outros elementos de prova.
Ora, os factos objetivos apurados levam-nos a concluir - em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum – pelo processo de vontade que lhes subjaz. Na verdade, a forma como o arguido agiu em relação a cada uma das menores e o contexto em que beijou a D… (vejam-se as mensagens trocadas entre ambos nesse período de tempo) são reveladoras das conclusões vertidas nos factos provados.
Mais se teve em consideração o teor do relatório social junto aos autos com o qual o arguido foi confrontado e ainda o teor do certificado de Registo Criminal.
Os factos não provados resultaram da insuficiência da prova para - com a certeza que se impõe – concluir que corresponderam à realidade vivida.
Como referido o arguido não prestou declarações e dos depoimentos e elementos documentais recolhidos não foi possível concluir que o namoro entre a testemunha C… e o arguido tenha terminado no dia 27 de março, resultando das declarações da C… apenas o respetivo mês de março (o que foi transposto para os factos provados).
Por outro lado, a D… negou que o arguido a tivesse beijado na boca mais do que uma vez, o arguido não prestou declarações e a restante prova produzida não permite com a certeza que se impõe, concluir que tenha havido outros beijos para além do assumido pela D…, e assim foi este facto dado como não provados, não tendo resultado das suas declarações ou das da sua mãe que houvesse entre ambas a partilha de dados móveis.
*
3.- Apreciação do recurso.
3.1.- - Impugnação da matéria de facto [factos 5 a 8, 10, 20, 21, 22.]. Violação do princípio in dubio pro reo.
§1º.
Invoca o recorrente a existência de um erro de julgamento relativamente aos supra referidos factos.
Para tanto, e relativamente aos factos 5 a 8, invoca como erradamente apreciados os depoimentos das testemunhas E…, H…, F…, prestados em audiência de julgamento e, bem assim, as declarações da ofendida menor D… prestada para memória futura em 11 de Julho de 2019, cujos trechos extratou por transcrição,
Vejamos.
Impõe-se, antes de mais, elucidar os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento [«O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com a livre apreciação da prova constante do art. 127º do CPP.»- vide Ac. do STJ de 12.06.2008, proc.07P4375, disponível em texto integral, in WWW.dgsi.pt.].
Decorre do disposto no artigo 428.º, n.º 1 do Código Processo Penal, que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no artigo 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
De acordo com o artigo 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”. Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Portanto, para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados, a prova de que se pretende fazer valer, identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova.
O reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, com efeito «…o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa à repetição do julgamento na 2.ª Instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente todas as provas produzidas em audiência.» - vide Ac. do STJ de 16.06.2005, proc. 05P1577, disponível em texto integral in www.dgsi.pt.
«Na verdade, dir-se-á sinteticamente que os recursos, como remédios jurídicos que são, destinam-se a reexaminar decisões já tomadas e não provocar decisões sobre matérias novas.» - cfr. o mesmo Ac. do STJ de 16.06.2005
«O recurso em matéria de facto não pode consistir numa reapreciação total pelo tribunal de recurso do complexo de elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida. Diversamente, apenas poderá ter como objecto uma reapreciação autónoma do tribunal de recurso sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham decisão diversa da recorrida (…).» - cfr. o AC. do STJ de 20.01.2010, proc. 149/09.7JELSB-E1.S1, in www.dgsi.pt.
Daí que esse reexame esteja sujeito aos referidos ónus de impugnação, com efeito «[A] delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui, por isso, um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.»- cfr. o Ac. do STJ de 15.10.2008, proc. 08P2894, disponível em texto integral, in www.dgsi.pt.
É que, muito embora, atento o disposto no artigo 127.º, o tribunal seja livre na formação da sua convicção, o princípio da livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária, antes vinculado o julgador às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que o juízo seja motivado de forma objectiva, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “in dubio pro reo”.
Deste último, enquanto emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (32.º, n.º 2 Constituição), decorre que o ónus probatório cabe a quem acusa e que em caso de dúvida, séria, razoável e objectiva [motivada], relativamente aos factos que consubstanciam a prática de um crime por parte do arguido, deve tal dúvida ser resolvida a favor deste.
Consideramos que o recorrente especifica os pontos de facto que considera erradamente julgados. E indicou provas que segundo a sua avaliação conduziriam a que tais factos fossem não provados.
Porem, sem razão.
Na motivação da decisão, e relativamente aos factos que concernem à C… como vítima, o Tribunal alicerçou-se no seguinte:
- No teor das declarações para memória futura prestadas por C… reproduzidas em audiência de julgamento onde esta(…) joven(…)s relata(…) de forma séria, os factos ocorridos.
(…) de modo espontâneo e aparentemente honesto, referi(…)u em que circunstâncias conhece(…)u o arguido e como se desenrolaram os encontros entre ambos.
Neste contexto a C… referiu a data em que iniciou a relação de namoro com o arguido e, de forma clara e aparentemente sincera, referiu que este sabia a sua idade, porque tinha sido um assunto abordado entre ambos. Referiu ainda de modo igualmente claro e credível os encontros havidos entre ambos e sua periodicidade e os concretos atos que durante esse namoro levaram a cabo, referindo para além dos beijos na boca a forma como o arguido a acariciava no seu corpo.
(…)
As declarações (…) mostraram-se sustentadas na restante prova produzida em designadamente no depoimento das testemunhas:
- E…, mãe da C…, prestado em inquérito, e lido em audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 356º, nº 2 e 5 do Código de Processo Penal, porquanto mais pormenorizado e coerente. Na verdade, finda a leitura daquele depoimento e confrontada a testemunha com aparentes contradições com o declarado em audiência de julgamento, esta expressamente declarou que o que se lhe havia lido era verdade, que na altura da prestação desse depoimento lembrava-se melhor do ocorrido, esclarecendo ainda que apenas o não reproduziu em audiência de julgamento porque não se estava a recordar desses factos, mas que eram verdadeiros.
Confrontada com o teor de fls. 141 a 157, reconheceu a letra da sua filha C…, tratando-se de documentos que foram apreendidos no quarto do arguido, como consta do auto de busca e apreensão de fls. 138 a 140 e documentos anexos de fls. 141 a 157.
- H…, amiga do arguido (primo do seu falecido marido) e da testemunha C… (prima do seu atual namorado) que descreveu o que se apercebeu do relacionamento entre ambos. Muito concretamente relatou uma visita da C… e do arguido a sua casa em que os viu a darem um beijo na boca e a chamada de atenção que fez ao arguido por a C… ser “menor”.
Com aparente sinceridade referiu que a C… tinha uma aparência correspondente à sua idade, e que à data esta teria 12 anos ou quando muito teria feito 13 anos de idade.
Relatou o que lhe é dado a conhecer da personalidade do arguido descrevendo-o como um individuo imaturo, mas responsável referindo que este nas matérias que são do seu interesse designadamente no desporto apresenta um discurso consistente, ou na expressão da testemunha “sabe ter uma conversa muito à frente”.
Confirmou o que consta do relatório social do arguido referindo ter-lhe conhecido trabalhos, ainda que de caracter temporário.
(…)
- F…, que explorava à data o bar junto da G…. Explicou conhecer o arguido da colaboração que este prestava na associação e de ser frequentador do seu bar. Neste contexto referiu o que logrou percecionar do relacionamento do arguido com a C… referindo tê-los como namorados, justificando de forma clara e coerente essa sua afirmação com os gestos que os viu trocar entre si, designadamente referindo que os viu abraçados, aos beijos e em troca de carinhos, o que acontecia designadamente num sofá de paletes que havia no bar, esclarecendo que aquele era um local fechado e onde estariam mais “escondidos”.
(…)
- I…, que prestou um depoimento que nos pareceu marcado pelo facto de se ter incompatibilizado com a C….
Porém esta testemunha reconheceu que teve uma relação de namoro com o arguido, situando-a temporalmente por referência ao ano letivo frequentado, referindo que, então, já era amiga da C….
Referiu saber que a C… à data tinha Facebook, referindo que esta tinha uma fotografia com a sua mãe como foto de perfil e que constavam do mesmo os seus dados.
Negou ter apresentado o B… à C…, sendo certo que esta última o afirmou, e pela densidade e credibilidade que nos mereceram as suas declarações quando em confronto com as desta testemunha, entendeu o Tribunal dar relevo às daquela.
Em conjugação com estes depoimentos o Tribunal considerou ainda o auto de pesquisa informática junto a fls. 159 e 160.
No que concerne em específico ao conhecimento por parte do arguido da idade das vítimas, cumpre referir que a C… de forma clara mencionou que o assunto da sua idade foi conversado entre ambos, sabendo o arguido que este tinha 12 anos à data, o que nos mereceu credibilidade, sendo certo que o arguido nada trouxe aos autos que permitisse afastar ou informar o que foi referido por aquela.
(…)
A atuação livre, voluntária e consciente, com a intencionalidade descrita nos factos provados e a consciência da ilicitude da sua conduta por parte do arguido, retira-se da análise dos factos objetivos descritos à luz das regras da experiência comum. Com efeito, tratando-se de factos atinentes ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, quando não surgem admitidos pelo agente não são suscetíveis de serem apreendidos pelas testemunhas ou por outros elementos de prova.
Ora, os factos objetivos apurados levam-nos a concluir - em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum – pelo processo de vontade que lhes subjaz. Na verdade, a forma como o arguido agiu em relação a cada uma das menores (…) são reveladoras das conclusões vertidas nos factos provados.
Mais se teve em consideração o teor do relatório social junto aos autos com o qual o arguido foi confrontado e ainda o teor do certificado de Registo Criminal.
Os factos não provados resultaram da insuficiência da prova para - com a certeza que se impõe – concluir que corresponderam à realidade vivida.
Como referido o arguido não prestou declarações e dos depoimentos e elementos documentais recolhidos não foi possível concluir que o namoro entre a testemunha C… e o arguido tenha terminado no dia 27 de março, resultando das declarações da C… apenas o respetivo mês de março (o que foi transposto para os factos provados).
(…)
Os trechos dos depoimentos e declarações transcritos pelo recorrente, descontextualizados e parciais, não infirmam a convicção do tribunal.
Com efeito, e agora numa convicção própria, a C… relata de forma muito precisa a data em que ocorreu o primeiro encontro com o arguido - 18/04/2018, referindo que era uma quarta-feira, que era uma e meia, hora a que saiu das aulas; Relata ainda como depois desse primeiro encontro passaram a encontrar-se quando tinha tempos livres na escola e os locais para onde se dirigiam (alguns públicos, outros mais reservados); refere que nesses encontros o arguido lhe dava beijos na boca e a apalpava “nos sítios”, precisando depois que se referia às mamas e à zona vaginal, mas por cima da roupa; precisou que o namoro durou até Março “deste ano” o que tendo em atenção a data em que prestou declarações para memória futura, remete ao ano de 2019, referindo ainda que o namoro terminou por causa da mãe, porque “ela tinha descobrido”; “encontrou-nos no Z… …”. Referiu ainda que se encontraram todas as semanas durante esse período de namoro, sendo que, quanto à periodicidade em cada semana, disse que eram “p’rái duas”, concluindo o tribunal que se encontravam com uma periodicidade de duas vezes por semana, como média estimada pela testemunha, à pergunta do Tribunal a que respondeu: - “E quantas vezes por semana mais ou menos?”.
É claro que o arguido que andava ali para se divertir, pois, propôs à recém adolescente relacionamento sexual, sobre o qual não terá insistido porque ela terá enfatizado que “era nova e isso”, não ia encontrar-se com ela para nada. Portanto, o entendimento do tribunal é uma interpretação de acordo com as regas do acontecer, quando se encontravam em média duas vezes por semana, ele praticava os atos relatados, e como se depreende eram para ele pouco. Esta é uma conclusão segura, dado o relato da C…. As outras testemunhas, viram o que o Tribunal relatou, o que corrobora o depoimento da C…, sendo seguro que o arguido que tinha inicialmente 22 anos, sabia muito bem o que era aceite ou o que não levantava grandes problemas e o que podia levantar esses problemas como seria apalpar em público ou em locais não resguardados, as mamas ou a vagina da menor. E, por isso, como deu a entender a testemunha F…, escondiam-se.
Quanto à mãe da menor, claramente a lei ultrapassou-a, porquanto a mesma, tendo a menor ido fazer o teste e concluindo-se que “a miúda é virge”, não só não tinha nada contra o B… e daí a posição laxista do seu depoimento, como entendia que o B… não lhe fez mal. Mas depois foi lembrada pelo Tribunal e teve de ter uma posição mais assertiva, concordante com o depoimento anterior, prestado em inquérito, e com o da Dª F… que foi quem lhe chamou a atenção para os encontros e que o rapaz lhe podia fazer mal.
As declarações da Testemunha F… evidenciam isso mesmo.
O Tribunal valorou as declaração da menor C… de acordo com o principio da livre apreciação da prova, e não se pode dizer que as declarações da C… são fantasiosas ou falsas, porquanto outras pessoas as corroboram, se não na sua totalidade na sua verosimilhança e em pormenores importantes; e o mesmo acontece com os papeis encontrados em causa do arguido escritos pela C…. Além disso, as mensagens provadas como enviadas à ofendida D…, evidenciam a capacidade do arguido para estes comportamentos.
Ouvidos os depoimentos das testemunhas os trechos esgrimidos e outros, verificamos que a prova que o tribunal usa para formar a sua convicção existe e tem as características e a interpretação que o tribunal lhe deu. Acrescem os papeis juntos autos a fls. 141 a 157, cuja letra foi reconhecida pela testemunha E…, mãe da C…, e cuja apreensão ocorreu no quarto do arguido, como consta do auto de busca e apreensão de fls. 138 a 140.
Não há qualquer imputação genérica, os atos praticados pelo arguido estão bem definidos e ele foi até onde teve a “frágil e inválida aquiescência” da ofendida C…, quanto ao resto era “nova e isso” (sic).
Quanto aos factos provados sob os pontos 20 e 21, nem sequer se percebe bem como é que o recorrente pretende impugnar tais factos, visto que aceita que a D… declarou que deram um beijo e não põe em causa as mensagens “asfixiantes” do arguido para uma menor de 9 anos, onde se fartava de lhe pedir beijos e cuja conversa só por si a desassossegava emocionalmente e, mesmo, sexualmente, como decorre da conversa mantida entre os dois.
Como decorre do teor das referidas mensagens o arguido por diversas vezes referiu à ofendida que queria beijá-la e até combinaram quando se encontrariam para o efeito.
Quanto aos pontos 10 e 22, vir esgrimir com a falta de uma perícia ao arguido para se averiguar que tipo de instintos estariam em causa, é uma perda pura de tempo. A satisfação de instintos libidinosos, nem sequer é exigida pela lei como um requisito do tipo subjetivo que se basta com o dolo em qualquer das sua formas, sendo que o recorrente não tinha qualquer dúvida sobre a idade da menor D… a quem chamava de “Bebe”[1].
Não obstante, como refere o MP na sua resposta “Quem adota para com terceiro, comportamentos que, de acordo com os padrões da normalidade, se dirigem à excitação da líbido e à procura de satisfação de natureza sexual, é porque tem intenção de obter tais efeitos de excitação e satisfação.”
Concluindo a perícia não faz qualquer falta para a prova dos referidos factos. E como o tribunal bem explicou «[A] atuação livre, voluntária e consciente, com a intencionalidade descrita nos factos provados e a consciência da ilicitude da sua conduta por parte do arguido, retira-se da análise dos factos objetivos descritos à luz das regras da experiência comum. Com efeito, tratando-se de factos atinentes ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, quando não surgem admitidos pelo agente não são suscetíveis de serem apreendidos pelas testemunhas ou por outros elementos de prova. Ora, os factos objetivos apurados levam-nos a concluir - em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum – pelo processo de vontade que lhes subjaz. Na verdade, a forma como o arguido agiu em relação a cada uma das menores e o contexto em que beijou a D… (vejam-se as mensagens trocadas entre ambos nesse período de tempo) são reveladoras das conclusões vertidas nos factos provados
Por outro lado, o facto de o arguido apresentar traços de personalidade compatíveis com alguma imaturidade, não se opõe às conclusões supra enunciadas.
Claramente, não foi apresentada qualquer prova que imponha decisão diversa. Impõe-se fazer notar ao recorrente que o tribunal tem uma visão global da prova e essa visão global, não se perde em transcrições parciais ou de conveniência, fixa-se no que interessa e pesa prudentemente a prova, com compreensão, mas também com rigor e objetividade.
Improcede, a pretensão de alteração dos factos impugnados.
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§ 2º. Violação do princípio in dubio pro reo.
Sustenta o recorrente que lamentavelmente, bastou para os Juízes a quo a existência da convicção de que o discurso da menor era credível, para assim condenar o Arguido pela prática do crime de abuso sexual. Que resulta uma claríssima dúvida (insanável, razoável e objetivável) quanto aos factos pelos quais o Arguido, vem acusado, a absolvição dos mesmos era a única decisão que o Tribunal de 1ª Instância podia adotar. Estamos assim, sem dúvida, perante a violação por um lado, do princípio in dubio pro reo e, por outro lado, do princípio da presunção da inocência previsto no n.º 2, do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e, no qual o primeiro se funda.
Vejamos.
A convicção do juiz é uma convicção pessoal, mas ao mesmo tempo uma convicção objectivável e motivável, capaz de impor-se aos outros. E uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. É precisamente aqui que entronca o princípio in dubio pro reo.
Pois, a persistência da dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido.
De acordo com o princípio do in dubio pro reo “a dúvida insanável sobre factos deve favorecer o arguido. (…) O princípio do in dubio pro reo não é, pois, um princípio de direito probatório, mas antes uma regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos” Cf. Prof. P. P. Albuquerque in “Comentário do CPP”, pág. 61.
Se o tribunal mesmo através da sua atividade probatória, não logra obter a certeza de um facto mas antes permanece na dúvida, terá por princípio de decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de prova.- vide Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Reimpressão, 1984, págs. 188 a 271, que vimos seguindo.
«Só que, a violação do princípio in dubio pro reo exige, que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.”.
Ora, claramente tal não ocorre na decisão em apreço.
Resulta claro do texto da decisão recorrida que o tribunal não teve dúvidas sobre os factos que deu como provados e, nomeadamente, os impugnados.
Mas, mesmo que entendêssemos que o princípio é violado se da análise da motivação resultar objectivamente uma situação de dúvida relevante e insanável, mesmo assim entendemos não ter sido violado o referido princípio.
Considerando a motivação, as provas esgrimidas, as regras da experiência comum tal como foram invocadas, nada há a apontar ao raciocínio do tribunal que não se mostra que tenha violado, também, objectivamente, o referido princípio.
Com efeito, da convicção extravasada na decisão sob escrutínio, processo racional de motivação, decorre que o tribunal recorrido na análise e valoração da prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer dos referidos factos, nem da mesma motivação emerge qualquer situação de dúvida objectiva relevante e insanável.
Portanto e, em conclusão, não foi violado o princípio do in dubio pro reo.
Pelo exposto improcede também esta questão.
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3.2. - Subsunção jurídica dos factos.
Sobre a subsunção jurídica o recorrente traz duas questões a este Tribunal.
A consideração do beijo na boca dado pelo recorrente à ofendida D… como ato sexual de relevo.
Em relação à ofendida C… o arguido praticou apenas um crime de trato sucessivo.
Vejamos.
O Tribunal a quo fundamentou a subsunção jurídica do seguinte modo:
«Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico - penal.
Ao arguido imputa-se em autoria material a prática de:
- 104 (cento e quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº 1, 69º-B, n.º 2 e 69º-C, n.º 2, todos do Código Penal (sendo ofendida a menor C…);
- 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº 1, 69º-B, n.º 2 e 69º-C, n.º 2, todos do Código Penal (sendo ofendida a menor D…).
Cometerá o crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal, quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, (caso em que é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos).
Com esta incriminação protege-se o livre desenvolvimento da personalidade das vítimas face a condutas de natureza sexual que, tendo em consideração a pouca idade daquelas, possam, mesmo sem recurso a qualquer tipo de coação, prejudicar gravemente aquele livre desenvolvimento, uma das dimensões intangíveis da proteção da infância e da juventude [69.º, n.º 1 e 70.º, n.º 1 da Constituição]. ()
Na verdade, no que diz respeito aos jovens que ainda não dispõem de capacidade para decidir responsavelmente no âmbito sexual, os tipos penais orientam-se no sentido de que, no futuro, possam alcançar um livre desenvolvimento na esfera sexual, preservando-os de traumas e choques psicológicos impostos por terceiros. Há por isso quem entenda que, neste tipo de crime, o bem jurídico protegido é, mais exatamente, a liberdade sexual potencial. “A lei presume que actos de natureza sexual praticados com menores prejudicam o seu desenvolvimento. Por isso se entende que o tipo legal defende não a determinação sexual dos menores, mas o livre desenvolvimento da sua personalidade” - neste sentido, Cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado 27 de Janeiro de 2010 ().
Neste tipo de crime o agente pode ser qualquer pessoa. Por seu turno, a vítima é necessariamente uma criança ou um jovem menor de 14 anos, de qualquer sexo, sendo totalmente indiferente que a vítima seja já ou não sexualmente iniciada.
Constitui um crime de perigo abstrato, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objetivo de ilícito fique afastada.()
Pressupõe, ainda, o artigo que se pratique um ato sexual de relevo.
Ato sexual é “todo aquele… que, de um ponto de vista predominantemente objetivo assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem ou sofre ou o pratica”.()
Assim, sem deixar de se reconhecer a dificuldade de definir a noção do que sejam “atos sexuais de relevo”, tem-se dito que são aqueles que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano().
Na perspetiva da integração deste conceito Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja ato sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca.
Mas a lei exige, ainda, que o ato sexual seja de relevo, isto é “que constitua uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano.” Assim, sem deixar de se reconhecer a dificuldade de definir a noção do que sejam “atos sexuais de relevo”, tem-se dito que são aqueles que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano().
Ainda a propósito do ato sexual de “relevo” afirma o professor Figueiredo Dias () que “Ao exigir que o ato sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os atos insignificantes ou bagatelares mas que investigue do seu relevo na perspetiva do bem jurídico protegido (função positiva); é dizer, que determine - ainda que de um ponto de vista objetivo - se o ato representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima”.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo de ilícito em apreço exige-se o dolo.
Por outra perspetiva, abordando a questão da possibilidade da integração da conduta de um agente que relativamente a uma mesma vítima pratica vários factos ao longo do tempo, na figura do crime de trato sucessivo, vem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a afastar-se desta figura jurídica, designadamente quando entre os respetivos factos existe um lapso temporal que permite uma ponderação do arguido quanto ao comportamento que lhe era exigível ter.
Neste sentido o AC STJ de 06.04.2016 () sumariado do seguinte modo: “I- A conduta do arguido que, desde Julho de 2014 e até Janeiro de 2015, altura em que a vítima era menor de 13 e 14 anos, respetivamente, manteve com esta, relações sexuais, com cópula completa, com uma regularidade de 1 vez por semana, nos dois primeiros meses, e de 2 a 3 vezes por semana, nos meses subsequentes até à data da detenção do arguido, em Janeiro de 2015, é demonstrativa de uma renovação de vontade, que tem na sua génese a satisfação dos instintos sexuais, evidenciando-se pelo facto de entre a prática das mesmas relações mediar um lapso temporal mais do que suficientemente para que emergisse uma ponderação da conduta do recorrente à face daquilo que lhe era exigível no cumprimento de regras básicas de convivência e de conduta de vida e impostas legalmente.
II - Mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respetivo tipo incriminador há-de supor a reiteração.
III - Em face de tipos de crime como os imputados no caso vertente - crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP - não nos encontramos perante uma «multiplicidade de atos semelhantes» realizados duma forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários atos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversas resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido.
IV - Cada um destes atos não constituiu um segmento ou parcela duma globalidade factual desdobrando-se como parte duma única atividade, mas constitui por si mesmo facto autónomo. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de atos existe, pluralidade de crimes.
V - Se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo», ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as ações. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador.
VI - É evidente que o apelo à figura de trato sucessivo permite ultrapassar uma outra questão que é o da determinação concreta do número de atos ilícitos que devem ser imputados. Porém, esse é um tema que convoca a forma como se faz a investigação criminal e a diligência acusatória e não uma questão de dogmática penal.
VII - Perante a realização repetida do mesmo tipo de crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2 e 177.º, n.º 4, do CP, num espaço temporal de 6 meses, encontramo-nos perante uma situação de pluralidade de crimes, sendo certo que tal dessintonia não pode assumir relevância jurídica no caso concreto (em que o arguido recorrente foi condenado pela prática de um único crime) face ao princípio da proibição da "reformatio in pejus" na medida em que o recurso foi interposto unicamente pelo arguido. (…)
Em idêntico sentido – afastando a figura do crime de trato sucessivo - podem ainda consultar-se (entre outros) os AC STJ de 18.01.2018 e 22.03.2018, igualmente disponíveis in www.dgsi.pt.
Vejamos então:
Do conjunto dos factos apurados relativamente à jovem C… retiramos a prática pelo arguido de atos sexuais de relevo no período de 18 de abril de 2018 a março de 2019.
Na verdade, resultou provado que no dia 18 de abril de 2018, numa altura em que a
mesma contava 12 anos de idade, o arguido encontrou-se com a C… na Escola …, tendo ambos, nessa data, iniciado relação de namoro, a qual durou até, março de 2019. Nesse mesmo dia 18-04-2018, estando ambos na biblioteca da referida escola, mais propriamente na zona onde se encontravam os computadores, o arguido beijou a C… na boca.
Mais se provou que a partir de então e ao longo daquela relação de namoro que mantiveram, o arguido, com a frequência de, pelo menos, duas vezes por semana, foi ao encontro da C…, após o que se afastavam para locais mais reservados, onde deduziam não serem vistos por terceiros, e aí em todas as ocasiões em que se encontrou com ela, com a referida frequência de, pelo menos, duas vezes por semana, o arguido B… abraçou-a, beijou-a na boca, apalpou-a na zona das mamas e na zona da vagina, sempre por cima da roupa que a menor trazia vestida. A partir de certa altura e em número de vezes não apurado, o arguido propôs à C… manterem relações sexuais de cópula. Para tanto, aquando de alguns daqueles momentos de intimidade acima referidos, o arguido, pretendendo propor à menor manterem as referidas relações sexuais de cópula, perguntava à C… se ela “queria fazer”, o que a menor declinava, argumentando ser “muito nova para isso”.
Estes factos integram o conceito de atos sexuais de relevo pois concretizaram-se em beijos na boca da menor e na palpação da zona mamária e da vagina da menor, num contexto de namoro entre ambos, atos estes que são reconhecidos por um observador comum como possuindo caracter sexual e, por isso, integrativo do aludido conceito.
Este conjunto de atos invadiram, de forma significativa, a reserva pessoal da C… e o domínio da sua liberdade sexual, sendo que esta - tendo nascido a 07.04.2006- contava, à data da prática dos factos com 12 anos de idade.
Tendo-se ainda apurado que ao levar a cabo a conduta acima descrita ao longo do período referido, agiu o arguido B… com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a menor C… tinha apenas 12 anos de idade e que, por isso, carecia de capacidade para se autodeterminar sexualmente, não ignorando que ao agir daquela forma prejudicava gravemente o livre e são desenvolvimento da personalidade da mesma menor, o que fez de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, temos o preenchimentos dos elementos objetivos e subjetivos deste tipo de crime.
Ora, apurou-se que no período de 18 de abril de 2018 a março de 2019 o arguido com a frequência de duas vezes por semana praticou os referidos atos sexuais de relevo, que estão distanciados entre si por alguns dias, tempo suficiente para permitir ao arguido uma adequada ponderação da sua conduta, em face daquilo que lhe era exigível em face das normas vigentes. Temos também a sucessiva criação de situações favoráveis – designadamente procurando os locais mais escondidos - aptos à concretização do resultado proibido, a que estão, por isso. associados diversos processos volitivos autónomos e por isso estaremos perante tantos crimes quantas as ocasiões em que tais atos tiveram lugar.
Nos autos sabe-se que a primeira dessas ocasiões ocorreu a 18.04.2018 e a última em março de 2019, desconhecendo-se em que concreto dia deste mês estes cessaram, pelo que se terá que considerar como limite máximo desse período temporal, o dia 1 de março de 2019, pois que é a interpretação, dentro das possíveis, que mais beneficia o arguido.
Deste modo, temos um período constituído por 45 semanas, sendo que os aludidos atos sexuais de relevo ocorreram pelo menos duas vezes em cada semana, pelo que se conclui ter o arguido cometido 90 crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal.
No que concerne à D… nascida a 07-04-2009, apurou-se que em janeiro de 2019, o arguido, bem sabendo que a menor contava apenas 9 anos de idade, passou a manter conversação com a mesma através das redes sociais, designadamente, passaram a trocar mensagens, inicialmente em jogo de sedução, posteriormente já de cariz amoroso (acima transcritas no ponto 19 dos factos provados) como se de dois namorados se tratassem.
Para além de trocar as referidas mensagens de cariz amoroso com a menor, o arguido, ao longo do período compreendido, entre o dia 20 de janeiro de 2019 e o dia 10 de fevereiro de 2019, com a frequência de duas vezes por semana, encontrou-se com a menor D… no G1…, sito em …, Estarreja, alturas em que lhe oferecia gomas que previamente comprava no bar do referido G1 e numa dessas ocasiões, num local mais escondido daquele G1…, que previamente combinaram ao arguido beijou a D… na boca.
Apurou-se ainda que também em relação à D…, ao levar a cabo a conduta acima descrita, agiu o arguido B… com a intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que a D… tinha apenas 9 anos de idade e que, por isso, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, não ignorando que ao agir daquela forma prejudicava gravemente o livre e são desenvolvimento da personalidade da mesma, o que fez de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Esta atuação integra também, em nossa opinião, o conceito de ato sexual de relevo.
Na verdade, apesar de se ter apurado que o arguido apenas numa das ocasiões em que se encontrou com a D… a beijou na boca, o certo é que este beijo surge num contexto de uma prévia troca de mensagens onde o arguido claramente aborda a D… de onde se infere o caracter sexual da sua ação – veja-se que o arguido a questiona se quer namorar consigo, lhe pergunta se não o quer beijar dizendo-lhe que pretende namorar consigo, e onde lhe refere que a ama, obtendo dela idênticas respostas. Parece-nos ainda ser de salientar na qualificação do ato em causa como de “relevo” a circunstância de a D… ter apenas 9 anos de idade, e de, consequentemente este ato - que se materializou, é certo, apenas num beijo na boca- mas que foi dado por um homem com 23 anos de idade, num local escondido para onde se deslocou após prévia combinação com a D… e após uma troca de mensagens, durante vários dias, onde o arguido aborda uma criança de 9 anos para uma relação e namoro, onde são marcados encontros e onde trocam juras de amor - assumir relevo pois representa um verdadeiro perigo para o desenvolvimento físico e psíquico harmonioso da D… e um entrave com importância para a sua liberdade de determinação sexual.
Concluímos, pois, que a sua atuação integra um ato sexual de relevo que invadiu igualmente a esfera de privacidade e o domínio da liberdade sexual da D…, que - tendo nascido a 07.04.2009 – tinha 9 anos de idade. Resultando dos factos provados igualmente o preenchimento dos elementos subjetivos do tipo, concluímos ter o arguido cometido um crime de abuso sexual de criança, previsto e punível pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal.
Apesar de ao arguido vir imputada a prática de 6 crimes de abuso sexual de criança previstos e puníveis pelo art. 171º, nº 1 do Código Penal, concluímos, face à matéria de facto provada, apenas pelo cometimento por este de um desses crimes.
Na verdade, não se apurou que noutras circunstâncias o arguido tenha igualmente beijado a D… na boca ou que tenha sobre ela ou com ela praticado quaisquer atos que possam integrar o referido conceito de ato sexual de relevo.
Na verdade, apesar de as mensagens trocadas com a D…, assumirem relevo na integração do beijo trocado entre ambos como ato sexual de relevo, pelas suas características objetivas não assumem relevância autónoma (designadamente por não integrarem o definido no art. 171º, nº 3 al. b) do Código Penal) e consequentemente terá o arguido que ser absolvido destes outros cinco crimes que se lhe imputavam.
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Cumpre analisar.
Dispõe o n.º 1 do art. 171º do CP, sob a epígrafe “abuso sexual de crianças”:
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
A propósito e na anotação do artigo em questão escreve Figueiredo Dias,[2] “o cerne do tipo objetivo de ilícito é constituído pelo ato sexual de relevo, “ato sexual” é no sentido do art. 163º, todo aquele comportamento [ativo, só muito excecionalmente omissivo…] que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade, e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de que o sofre ou pratica”
Colocando-se a questão de saber se à conotação objetiva deve acrescer uma conotação subjetiva, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer em si ou em outrem, a excitação sexual (dita também intenção libidinosa).
Esta última parece ser a posição do recorrente.
A esta questão dá diretamente resposta o mesmo Professor, no mesmo Comentário, entendendo que deve considerar-se irrelevante o motivo da atuação do agente, sem deixar de acentuar que a circunstância de não se conferir relevo típico à intenção libidinosa não significa atenta a multiplicidade de formas que a sexualidade pode assumir, que o carácter sexual do acto deva ser examinado na sua pura individualidade exterior; relevante para a determinação do seu conteúdo e significado pode ser também o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo.
Examinemos, então, as circunstâncias em que ocorreu o beijo na boca, como o fez o tribunal a quo.
Assim, importa ter em atenção as mensagens de cariz amoroso trocadas entre o arguido, aqui recorrente, e a ofendia D…, de onde se destaca as enviadas pelo arguido, “eu amo-te”; Não me queres beijar eu quero namorar contigo”; Olá meu amor eu amo-te”; Vais deitar-te em cima de mim”; “O que eu quero é estar contigo bebe” - (bebé). Mensagem ocorridas entre os dias 18.01.2019 e os dias 2.02.20219. Provou-se que para além de trocar as referidas mensagens de cariz amoroso com a D…, o arguido ao longo do período compreendido, entre o dia 20 de janeiro de 2019 e o dia 10 de fevereiro de 2019, com a frequência de cerca de duas vezes por semana, encontrou-se com a D… no G1…, sito em …, Estarreja, alturas em que lhe oferecia gomas que previamente comprava no bar do referido G1…. E numa dessas ocasiões, num local mais escondido daquele G1…, que previamente combinaram, o arguido beijou a D… na boca.
Ora, um beijo rodeado destas circunstâncias tem inequivocamente um significado de relevo como acto sexual. Por outro lado, o arguido rondou a ofendida com palavras mansas e foi vencendo resistências como se constata pelas mensagens trocadas, especialmente se forem comparadas as mensagens do dia 18.01.2019 e as do 20.01.2019. Acresce que o arguido sabia muito bem que estava a fazer algo de proibido e errado e também passava essa mensagem à D…, como decorre das mensagens em que perguntou em duas ocasiões distintas coisas com o mesmo significado: “alguem tá a ver as mensagens?”; “tas a beira de alguém?”.
No sentido de o acto sexual de relevo incluir o toque com objectos ou partes do corpo na boca - vide o Ac. do TRL de 28,05.1997, CJ XXII, 2, 149; no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-01-1997, no processo n.º 96P712 e o ac. do TRP de 13-03-2013, Rel. António José Alves Duarte, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, entendemos, como o tribunal a quo que o beijo na boca da ofendida D… nas circunstâncias apuradas é um acto sexual de relevo, pelo que a questão é claramente improcedente. E se assim é relativamente à D… dúvidas não há que os actos praticados com a C… também o são, os beijos na boca, o apalpar as mamas e a vagina, ainda que por cima da roupa.
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Quanto à segunda parte da questão parece-nos ser de meridiana clareza a sua improcedência manifesta.
Com efeito, e como é consabido, a categoria do “crime de trato sucessivo” foi criada pela jurisprudência, para obviar a uma incerteza, quando sabendo, embora, o tribunal que o crime de abuso sexual de menor foi praticado, não consegue, todavia, contabilizar de forma precisa o número de crimes de abuso sexual cometidos [os abusos foram realizados, por exemplo, quando o menor regressava da escola; os abusos ocorreram diversas vezes por semana, sempre que o menor se encontrava com o arguido no estabelecimento onde o arguido trabalhava, etc.]
É nestes casos que alguma jurisprudência tem optado por considerar que houve apenas um crime de abuso sexual praticado diversas vezes “Crime de trato sucessivo” ao longo do tempo e por isso designado como “crime de trato sucessivo”. Integram o “crime de trato sucessivo”, segundo a jurisprudência, aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva” (pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções) e uma conexão temporal entre os actos realizados.
Descendo ao caso concreto, não só os factos provados não espelham uma unidade resolutiva que abarque toda a actuação do arguido, com efeito o arguido começa por beijar a ofendida, para depois passar a abraçar, beijar apalpar nas mamas e na vagina, e a partir de certa altura e em número de vezes não apurado, o arguido propôs à C… manterem relações sexuais de cópula. Para tanto, aquando de alguns daqueles momentos de intimidade acima referidos, o arguido, pretendendo propor à menor manterem as referidas relações sexuais de cópula, perguntava à C… se ela “queria fazer”, o que a menor declinava, argumentando ser “muito nova para isso”; além disso os referidos catos prolongaram-se por um período de cerca de um ano, duas vezes por semana.
Revelando ainda os factos que o arguido ao procurar lugares escondidos tudo fazia para vencer as resistências da ofendida e assim procurava oportunidades para ir mais além o que não conseguiu porque a ofendida lhe dizia que era muito nova e o namoro veio a terminar porque a mãe da ofendida descobriu.
Como ultimamente vem sendo evidenciado, definitivo é o critério do significado social do facto. “…o substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico penal” vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I; Coimbra Editora, pag. 988, 4. § 26.
E no caso há vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis, atentos os factos provados.
Posto o que deixamos exposto, entendemos que não há que agrupar todos os actos praticados pelo arguido num único crime de trato sucessivo - – cfr. no mesmo sentido Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo”? Revista Julgar Online, Abril de 2018.
Em conclusão, mantém-se a condenação pelos crimes em que o arguido vem condenado.
Improcede, assim, o recurso na totalidade.
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III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto.
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Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º e 514º do CPP (e artigo 8º do Regulamento das custas processuais e, bem assim, tabela anexa n.º III), fixando-se a taxa de justiça em 5 [cinco] UC.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 14 de julho2021
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares
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[1] Dado que raramente se usam acentos nas mensagens e atento o contexto do uso da palavra queria dizer “Bebé´”
[2] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1ª edição, págs. 447.