I. Entre as restrições do direito à liberdade expressamente previstas na Constituição da República, encontra-se a “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos” – art. 27º n.º 3 al.ª b).
II. A prisão preventiva é abusivamente ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica aquela medida de coação, verificados os respetivos pressupostos; tiver sido motivada por factos pelos quais a lei a não permite ou for mantida para além dos prazos fixados na lei – art. 222º n.º 2 do CPP.
III. A Constituição da República, no art. 28º n.º 2 consagra a excecionalidade, subsidiariedade e precaridade da prisão preventiva.
IV. O juiz procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva sempre que tal lhe seja requerido pelo arguido ou pelo Ministério Público e, oficiosa e obrigatoriamente, no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame e também quando é deduzida acusação, proferido despacho de pronúncia ou decisão que conheça do objeto do processo e não implique a extinção da própria medida.
V. O requerimento apresentado nos termos do art. 212º n.º 1 do CPP, sempre que não coincidir com os prazos estipulados no art. 213º do CPP, antecipa a reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva, passando a constituir o “ultimo reexame” a que alude a parte final do seu n.º 1 al.ª a).
VI. Iniciando-se com o despacho correspondente que mantém a prisão preventiva novo prazo para o seguinte reexame obrigatório.
I. RELATÓRIO:
1. a petição:
Os arguidos no processo em epigrafe:
- AA, de 42 anos e os demais sinais dos autos;
apresentou a vertente providência de habeas corpus, “nos termos das als.) e c) do artigo 222.º do CPP” alegando:
1 - juntamente com outros arguidos, encontra-se privado da sua liberdade, sujeito à medida de coação de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos de Inquérito, desde 02.10.2021.
2 - Medida de coação que tem vindo a ser sucessivamente mantida, tendo sido reexaminados os pressupostos da sua aplicação de 3 (três) em meses (art. 213º nº. 1, al. a) do CPP.
3 - Sucedeu que, no último despacho de reexame dos pressupostos da prisão preventiva (refª. …307), datado de 07.05.2021, foram objeto dessa decisão todos os arguidos sujeitos à medida de coação da prisão preventiva, com exceção do aqui arguido.
4 - Aliás, não foi sequer notificado desse despacho, dele tendo conhecimento através dos demais arguidos, os quais comentaram não ter o arguido sido visado em tal despacho.
5 - O aqui arguido viu reexaminados os pressupostos para a aplicação da medida de coação, pela última vez, em 15.02.2021.
6 - Daí que, não tendo sido visado no aludido despacho de reexame em 07.05.2021, a esta data já decorrem mais de 4 (quatro meses) sem que se mostrem revistos os pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva.
7 - O que no caso do arguido mais pertinente se torna em razão de terem ocorrido novos fatos que podem e devem ser ponderados, nomeadamente a colaboração prestada em interrogatório complementar por si requerido, que permitiriam ao Julgador alterar os pressupostos de fato e de direito que determinaram a aplicação da medida de coação.
8 - Do exposto se conclui pela ilegalidade da medida de coação da prisão preventiva aplicada.
9 - Ocorrendo violação do direito à liberdade revisto no art. 27 n°. 1 da CRP e do artigo 5º da Convenção dos Direitos do Homem e art. 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
10 - Por consequência, estamos perante uma prisão preventiva verdadeiramente ilegal, por fato que a lei não admite.
11 - Dispõe o artigo 31 n°. 1 da CRP, que "haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ilegal detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente"
Termos em que, requer a Vªs Exª se dignem concede ao arguido habeas corpus, sendo o mesmo imediatamente devolvido à liberdade.
2. informação judicial:
A Juíza de instrução no tribunal onde correm termos os atos jurisdicionais do inquérito, em obediência ao disposto no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, exarou concisa informação sobre a privação da liberdade do Requerente, elucidando:
O arguido AA foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 02.10.2020, na sequência da sujeição a 1.º interrogatório judicial, por se ter considerado fortemente indiciada a prática por aquele de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 com referências às Tabela I-A, I-B e I-C do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Em cumprimento do disposto no artigo 213.º, n.º 1 do Código Processo Penal, em 17 de Dezembro de 2020, 15 de Fevereiro e 20 de Abril de 2021 procedeu-se ao reexame obrigatório dos pressupostos da prisão preventiva, tendo-se determinado que continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva que lhes foi aplicada em 2 de Outubro de 2020, sem que houvesse recurso que a não mantivesse.
Por despacho de 20.04.2021 foi indeferido o pedido, formulado pelo arguido, de substituição da medida de coação de prisão preventiva pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, determinando-se que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva.
Por despacho de 8 de Março de 2021 foi declarada, ao abrigo do disposto no artigo 215.º, n.º 4, do Código Processo Penal, a especial complexidade do processo.
A prisão preventiva do arguido foi determinada e revista pela autoridade competente.
Nos termos do artigo 215.º, n.º 1, alínea a), n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal, a prisão preventiva do arguido extinguir-se-á quando, desde o seu início, tiver decorrido um ano sem que tenha sido deduzida acusação.
Em face do supra referido, somos do entender de que não existe qualquer situação de prisão ilegal, uma vez que está respeitado o prazo máximo de duração da prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, alínea a), n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, por se tratar de um dos crimes integrados na criminalidade altamente organizada nos termos do artigo 1.º, alínea m), do mesmo Código e ter sido determina da especial complexidade dos autos. Por outro lado, foi sendo efectuado o reexame da medida de coacção nos termos do artigo 213.º, n.º 1 do Código Processo Penal.
II. FUNDAMENTAÇÃO:
Dos elementos com que vem instruído o procedimento, com relevância para a decisão dos vertentes pedidos de habeas corpus, extraem-se os seguintes:
a) Factos (em súmula):
1. Contra o Requerente e outros foi instaurado e corre termos nos serviços do Ministério Público da comarca de ... o inquérito com o NUIPC 25/….
2. No âmbito do qual o Requerente foi detido em de 30.09.2020, em execução de mandados de detenção.
3. O Ministério Público apresentou o Requerente, ali arguido (e outros), detido, à Juíza de Instrução no Juízo de Competência Genérica de ..., para 1º interrogatório judicial e aplicação de medidas de coação.
4. Interrogatório judicial realizado em 1 de outubro de 2020, com observâncias das formalidades legalmente prescritas.
5. Mediante promoção do Ministério Público e audição do defensor, a JIC, por despacho proferido em 2 de outro de 2020, julgou fortemente indiciados os factos narrados no requerimento de apresentação dos arguidos, - com cuidada especificação - e a prática, pelo Requerente (e outros) de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-A, I-B e I-C referidas no n.º 1 do art. 2º daquele diploma legal e em anexo ao mesmo.
6. Julgando também verificar-se em concreto perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação de inquérito nomeadamente quanto à conservação ou veracidade da prova e ainda alarme social, decretou a prisão preventiva do Requerente, por ter concluído ser a única medida coativa capaz de satisfazer aquelas exigências cautelares.
7. O Requerente aguardar desde então os termos do inquérito em prisão preventiva.
8. Medida coativa que foi reexaminada em 17.12.2020, em 15.02.2021 e ininterruptamente mantida, com os mesmos fundamentos.
9. Mediante promoção do Ministério Publico, com contraditório facultado aos arguidos, por despacho judicial de 8.03.2021 foi declarada, ao abrigo do disposto no artigo 215.º, n.º 4, do Código Processo Penal, a especial complexidade do processo.
10. Em 2.04.2021, o arguido AA requereu a substituição da medida de coação de prisão preventiva em que se encontrava pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, fiscalizada através de vigilância eletrónica.
11. Ouvido o Ministério Público, que se opôs, a Juíza de Instrução, por despacho de 20.04.2021, indeferiu a pretensão do Requerente, determinando que continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
12. Decisão fundamentada na constatação de os autos não fornecerem novos elementos, nem o arguido os trouxe, que alterassem minimamente os pressupostos de facto e de direito que justificaram a aplicação da mais restritiva (privativa da liberdade ambulatória), das medidas coativas legalmente previstas.
13. O arguido pessoalmente e o seu defensor eletronicamente (Referência: …349), foram notificados desse despacho em 21.04.2021,
14. No Inquérito ainda não foi deduzida acusação.
15. O Requerente, mantêm-se em prisão preventiva, ininterruptamente desde 2 de outubro de 2020, atualmente no Estabelecimento Prisional de ....
b) o direito:
1. direito fundamental à liberdade pessoal:
O direito à liberdade pessoal – liberdade ambulatória- é um direito fundamental da pessoa individual, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.
Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.
No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.
Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH[1], no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.
Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. o Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[2].
Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.
E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França, em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [3].
Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.
Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.
Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[4].
A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos.
O direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, não é um direito absoluto.
À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.
Entre estas sobressai, desde logo “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.
Das medidas cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência em cada caso dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6) -, e dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do CPP).
Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou se exima à execução da fortemente previsível condenação.
2. a providência da habeas corpus:
A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[5], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[6].
A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. A prisão é abusivamente ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido motivada por factos pelos quais a lei a não permite ou for mantida para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial definitiva.
“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas”[7].
Entre nós, é na Constituição República de 1911[8] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[9] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[10], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[11]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[12] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[13].
A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[14] (remissão eliminada na revisão de 1971[15]).
Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[16], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.
Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se que o habeas corpus:
“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.
Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.
O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.
Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva, o outro, diferenciado, para a prisão ilegal.
Segundo Adriano Moreira “o habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.
“O habeas corpus, na sua função normal, não é, pois, mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum”[17].
No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[18]”.
Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[19], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.
E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.
Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[20].
E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantiva referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.
O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[21] pessoal, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal” .
“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”
“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[22].
3. regime legal e procedimento:
Dando expressão legislativa ao texto constitucional [23], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[24].
Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[25].
“Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[26].
O habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de a prisão ilegal é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.
É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o Juiz] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade”[27] .
Não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.
Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.
Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpus é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”[28].
O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória – art. 31º n.º 3 da Constituição.
Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:
a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;
b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;
c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou
d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.
4. pressuposto da atualidade:
Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[29], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magna Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[30].
A Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unanime[31] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[32] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.
E no Ac de 11/02/2016[33] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.
Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”. Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.
É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.
Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.
A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.
Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.
4. a prisão preventiva:
A Constituição da República, no art. 28º n.º 2 consagra a excecionalidade, subsidiariedade e precaridade da prisão preventiva, estabelecendo que “tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei”.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, estabelece que o direito à liberdade pode ser restringido, podendo a pessoa dela ser privada temporariamente “se for preso …, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido” – art.º 5º n.º 1 al.ª b) -, conferindo-lhe o “direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo” – n.º 3.
Por sua vez, o Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no art. 9º dispõe: “a prisão preventiva não deve constituir regra geral, contudo, a liberdade deve estar condicionada por garantias que assegurem a comparência do acusado no acto de juízo ou em qualquer outro momento das diligências processuais, ou para a execução da sentença”.
A prisão preventiva, se legalmente admitida e indispensável a assegurar a eficácia do processo penal (e nenhum outro), uma vez determinada só pode manter-se enquanto for justificada pelas necessidades de desenvolvimento regular do procedimento e/ou de assegurar a execução da condenação (futura ou já decretada, mas que ainda não é definitiva) e não pode, em qualquer caso, exceder o tempo que a lei determinar – art. 27º n.º 3 da Constituição da República.
Dando expressão ao comando constitucional citado –art. 28º n.º 3 da CRP -, os pressupostos legais da prisão preventiva estão explicitados no CPP.
Ademais dos requisitos gerais de qualquer medida coativa, excluindo-se, para este efeito, o termo de identidade e residência (TIR), - enunciados nos artigos 191º (legalidade), 192º (constituição de arguido; não haver de fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal), 193º (necessidade e adequação às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas) e 204º (fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas) - e ao procedimento específico estabelecido no art. 194º, a aplicação da prisão preventiva exige também a verificação de pressupostos específicos elencados nos arts. 193º n.º 2 (só pode aplicar-se como medida de último recurso, quando outra medida coativa legalmente prevista se revelar inadequada ou insuficiente) e no art. 202º (haver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; ou de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta[34]).
A decisão que impuser a prisão preventiva deve estar motivada – art. 205º n.º 1 da CRP - com a indicação da factualidade fortemente indiciada, respetiva qualificação jurídica, as razões de facto que justificam as exigências cautelares (máxime: os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação da investigação ou de perturbação da ordem e da tranquilidade pública) e das razões da inadequação e insuficiências das restantes medidas coativas.
A decisão judicial que impuser a prisão preventiva pode ser impugnada através de recurso ordinário.
No art.º 28º n.ºs 2 e 4 plasmou a natureza da prisão preventiva e remeteu para a lei ordinária a fixação dos prazos de duração.
Certamente que o legislador ordinário dispõe de alguma liberdade no exercício do poder-dever de conformar aquele comando jus-constitucional. Contudo, não poderá fixar arbitrariamente prazos irrazoáveis, tanto por defeito, como, sobremaneira, por excesso.
Os prazos estabelecidos no art.º 215º do CPP - e não se perca de vista que não existe um prazo específico de cada fase, há sim um limite máximo de prisão preventiva até que se atinja um dado momento processual - fundam-se em primeiro lugar nas fases do processo penal conjuntamente com a gravidade do crime ou da fenomenologia criminosa e, mediante decisão fundamentada, também na complexidade da investigação, alargando-se depois, automaticamente, em função de incidências processuais determinadas.
Também em razão da fenomenologia criminosa e da gravidade do crime (n.º 2). E, no limite, ainda da excecional complexidade do procedimento (n.ºs 3 e 4).
Prazos estabelecidos com fundamento, por tempo razoável e com justa proporção aos avanços do processo na marcha para atingir a sua finalidade
O termo final de cada um dos prazos legalmente consignados é marcado pela prática de atos processuais determinados e não pela sua comunicação aos sujeitos processuais.
5. reexame dos pressupostos:
Para encurtar a privação da liberdade – através da prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação -, ao mínimo indispensável a assegurar as finalidades do procedimento penal, impõe-se controlar periodicamente se subsistem ou se, ao invés, se atenuaram ou cessaram as exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, devendo ser revogada ou substituída por outra medida de coação logo que as circunstâncias que motivaram deixaram de subsistir ou simplesmente enfraqueceram ou se atenuaram de tal modo que já não a justifiquem.
Por isso, estabelece o art.º 213º n.º 1 do CPP que o juiz procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva sempre que tal lhe seja requerido pelo arguido[35] ou pelo Ministério Público e, oficiosa e obrigatoriamente, no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame, podendo para o efeito “solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização”.
Os pressupostos da prisão preventiva são também obrigatoriamente reexaminados quando no processo for deduzida acusação, proferido despacho de pronúncia ou decisão que conheça do objeto do processo e não implique a extinção da própria medida.
Em qualquer altura, o juiz, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido a pedir a revogação ou substituição preso ou do Ministério Publico, reexamina os pressupostos da prisão preventiva e, se verificar que foi aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei ou que já não subsistem as exigências cautelares que a motivaram, decide se deve manter-se ou, decreta a revogação e/ou substituição por outra medida coativa legalmente admitida no caso.
O requerimento apresentado nos termos do art. 212º n.º 1 do CPP, sempre que não coincidir com os prazos estipulados no art. 213º do CPP, antecipa a reapreciação dos pressupostos da prisão preventiva, passando a constituir o “ultimo reexame” a que alude a parte final do seu n.º 1 al.ª a) da norma adjetiva em analise. Iniciando-se com o despacho correspondente (de manutenção) o decurso de novo prazo para o seguinte reexame obrigatório. No mesmo sentido, entende E. Maia Costa “que, se tiver havido uma antecipação do reexame devido a requerimento do arguido, é a partir da decisão então proferida que o prazo deve ser contado”[36].
É também no mesmo sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal. Assim, no Ac. de 15/10/2003 sustentou-se: “Se no requerimento do arguido foi reapreciada a prisão preventiva, parece óbvio que só, decorridos 3 meses sobre aquela data, o juiz será, oficiosamente, obrigado ao reexame, nos termos do art. 213º nº 1 CPP”[37]. E mais recentemente também assim no Ac. de 10-12-2020, 5ª sec.[38].
Nem a letra da lei nem a teleologia da norma permitem diferente interpretação. Diferente entendimento redundaria no absurdo de a parte final daquela norma adjetiva ficar destituída de sentido e utilidade prática e poder obrigar, no limite, a que o tribunal tivesse de reexaminar os pressupostos da prisão preventiva num dia e no seguinte. Bastava que o preso preventivo requeresse a revogação ou substituição da medida coativa em data muito próxima, num dos dias antecedentes ao termo do prazo de reexame obrigatório aos 3 meses. E poderia desembocar no entendimento espúrio de a prisão preventiva sempre ter de reexaminar-se obrigatoriamente de 3 em 3 meses, ainda que tivesse sido, entretanto, efetuado reexame. Foi exatamente esse o procedimento anómalo que o legislador quis prevenir com a expressão da parte final da alínea a) do n.º 1 do art, 213º do CPP.
Em qualquer caso e conforme sustentado no Ac. de 20/12/2006, rec. 4715/06-3: “a imposição do reexame periódico não tem que ver directamente com as condições em que a prisão preventiva pode ser decretada e muito menos com as condições em que a medida se extingue, as quais estão arroladas, taxativamente, nos art.ºs 202.º e 204.º, por um lado, e 214.º e 215.º, por outro, todos do CPP. Constitui antes mero reflexo da natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, sem dúvida para que a medida seja revogada, ou substituída por outra menos gravosa, sempre que deixem de subsistir ou se alterem os pressupostos substantivos que a determinaram. Não é, pois, remédio para o decurso do prazo máximo da sua duração, que se encontra acautelado pelo art.º 215.º do CPP”.
6. no caso:
i. por factos pelos quais lei a permite:
O Requerente encontra-se em prisão preventiva desde 2 de outubro de 2020. Medida coativa aplicada por haver no processo fortes indícios de ter cometido factos que integram um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22/01, que é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão e que está legalmente qualificado de “criminalidade altamente organizada”, na definição plasmada no art. 1º al.ª j) do CPP.
Os crimes que se integram nesta definição legal admitem prisão preventiva nos termos do art.º 202º n.º 1 al.ª c) do CPP. Como, em razão da moldura penal máxima, também se encontra abrangido pela previsão da alínea a) da mesma disposição legal.
ii. ordenada pela Juíza competente:
A prisão preventiva do Requerente foi decretada pela Juíza de instrução criminal material e territorialmente competente, na sequência do 1º interrogatório judicial do arguido detido.
A decisão judicial que lhe impôs a prisão preventiva à ordem do Inquérito acima identificado, ademais da forte indiciação dos factos e crime referido, motiva-se na indispensabilidade, adequação e proporcionalidade daquela medida coativa para garantir que o procedimento penal se desenvolve sem perturbações graves, designadamente na fase de a investigação e permita alcançar a boa decisão da causa.
O Requerente está, assim, desde então e atualmente, privado da liberdade, em prisão preventiva, por decisão judicial motivada na verificação dos pressupostos de que depende a indispensabilidade do recurso à mais gravosa das medidas de coação legalmente previstas.
iii. prisão preventiva em prazo:
Porque se encontra preventivamente preso à ordem dos autos desde 2 de outubro de 2020, completam-se na próxima sexta-feira, 2 de julho, 9 (nove) meses de continua privação da liberdade.
Quando imposta em casos de criminalidade altamente organizada em que seja declara a excecional complexidade do processo, (como ali sucedeu) o prazo máximo da prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação, é de um ano – art.º 215º n.º 3 do CPP.
Assim, nesta data (30-06-2021), a prisão preventiva do Requerente à ordem do Inquérito NUIPC 25/… mantem-se no prazo legalmente estabelecido.
iv. quanto ao reexame periódico:
Conforme se salientou os pressupostos da medida coativa de prisão preventiva (e da obrigação de permanência na habitação) aplicada num determinado processo podem ser reexaminados a todo o tempo, mediante requerimento ou oficiosamente e obrigatoriamente -cfr art. 213º n.º 1 do CPP:
a) no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame;
b) quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.
Resulta dos factos e dados processuais acima enunciados que no período temporal que decorria entre o segundo e o terceiro reexame obrigatório, o Requerente foi aos autos peticionar a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação com VGE, assim provocando o reexame judicial antecipado (relativamente ao prazo de reapreciação trimestral) dos pressupostos daquela medida de coação. Apreciando o requerimento do arguido, a Juíza de Instrução, em 20 de abril de 2021, reexaminou os pressupostos da prisão preventiva do Requerente e, concluindo que se não se tinham alterado, decidiu que se mantivesse. Por isso, nos termos da lei –art. 213º n.º 1 al.ª a) do CPP -, esse passou a ser o último reexame da sua prisão preventiva. Pelo que o seguinte reexame dos pressupostos da mesma medida coativa em que o arguido se encontra à ordem do inquérito, se outro facto o não impuser entretanto, tem de ocorrer até 20 de julho de 2021, ocasião em que se completam 3 meses sobre a data do último reexame da sua privação cautelar da liberdade ambulatória à ordem dos autos.
Consequentemente, contrariamente ao alegado pelo Requerente, não foi inobservado o prazo de reexame dos pressupostos da sua prisão preventiva.
Efetivamente, na data da apresentação do pedido de habeas corpus em apreciação, já havia sido proferido, há muito, despacho judicial de reapreciação da medida de coação a que se encontra sujeito. Pelo que, é manifesto que o fundamento invocado não está em conformidade com a realidade processual.
O que o arguido e o seu Defensor bem sabem porquanto foram notificados daquele despacho judicial, não se aceitando que venham alegar que a Juiz de instrução reexaminou os pressupostos da prisão preventiva dos demais arguidos no processo, mas não os da sua.
É, pois, evidente que o Requerente não se mantém em situação de prisão para além do prazo legal.
Conclui-se, isso sim, que a atual prisão preventiva do Requerente não é ilegal porque foi decretada pela Juíza material e funcionalmente competente, por factos que a lei admite que seja aplicada, mantem-se no prazo legalmente estabelecido. Inexistindo, por conseguinte, qualquer ilegalidade ou abuso de poder que seja suscetível de integrar alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal que é a norma processual que delimita o âmbito de admissibilidade da providência contra a prisão ilegal em virtude de abuso de poder.
Por manifestamente falta de fundamento tem de indeferir-se a vertente providência de habeas corpus - artigo 223.º, n.º 4, alínea a) e n.º 6, do Código de Processo Penal. Não podendo, consequentemente, ordenar-se a peticionada libertação imediata do Requerente.
III. DECISÃO:
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, acorda em:
a) indeferir, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, apresentada nos autos pelo Requerente.
b) Condenar o Requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).
c) condenar o Requerente, nos termos do art. 223º n.º 6 do CPP. a pagar 7UCs
Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)
(Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[39] .
Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)
Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)
______
[1] Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
[2] Grand Chamber, caso AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Queixa n.º 27021/08), julgamento em 7 Julho de 2011
[3] Grand Chambre, caso KAFKARIS c. CHYPRE. (queixa n.º 21906/04), sentença de 12 fevereiro de 2008.
[4] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223.
[5] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[6] Autores e obra citada, pag. 508.
[7] Autores e obra citada, pág. 508.
[8] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[9] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[10] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[11] § 22. Dar-se-á o habeas-corpus sempre que o individuo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
[12] Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[13] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[14] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial”
[15] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[16] Diário do Governo n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[17] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[18] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[19] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[20] Funcionando a secção do STJ com todos os Juízes em exercício.
[21] E. Maia Costa, publicação cit., pág.. 236.
[22] E. Maia Costa, publicação cit., pág..
[23] Ao art. 31º da Constituição da República.
[24] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[25] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[26] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[27] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[28] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[29] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[30] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[31] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[32] 211/12.6GAMDB-A.S1, in www. Dgsi.pr
[33] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[34] Ou das restantes situações ali enunciadas.
[35] AUJ n.º 3/1996: “A prisão preventiva deve ser revogada ou substituída por outra medida de coacção logo que se verifiquem circunstâncias que tal justifiquem, nos termos do artigo 212.º do Código de Processo Penal, independentemente do reexame trimestral dos seus pressupostos, imposto pelo artigo 213.º do mesmo diploma”.
[36] Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pag 829.
[37] Proc. 03P3543, in www.dgsi.pt.
[38] Proc. 7760/19.3T9LSB-A.S1, in www.dgsi.pt.
[39] Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.