I - Uma cidadã estrangeira a viver em Portugal foi condenada pelo Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … – Juiz …, na pena de 9 anos de prisão pela prática de um crime de Homicídio Qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos Art.s 22, 23, 73, 131 e 132 n.º1 e 2 alíneas a) c) e j) do CP.
II - Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de …, o qual, por Acórdão de 16/02/2021, reconheceu a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, vício que supriu, ao abrigo do disposto no art. 431, do CPP, procedendo à alteração do facto provado no ponto 80 do elenco dos factos provados. Porém, confirmou, em tudo o resto, o Acórdão proferido pela 1.ª Instância.
III - O referido ponto 80 passou a ter a seguinte redação: “80. A arguida atribui a fatores externos de causalidade os acontecimentos, revela imaturidade emocional, ausência de empatia para com o ofendido, ausência de remorsos e sentimentos de culpa. Ausência de sentido de responsabilidade relativamente às suas ações, em particular em relação às suas responsabilidades parentais, nomeadamente de cuidar e proteger.”
IV - O thema decidendum no presente recurso é a qualificação jurídica dos factos e a medida da pena. A Recorrente pugnou pela qualificação daqueles como crime de Infanticídio, na sua forma tentada, a que alude o disposto nos art. 22.º e 23.º e art. 136.º, todos do CP. Subsidiariamente, advogou a possibilidade de se subsumirem os factos provados no tipo de crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo art. 133.º do CP. Ainda colocou a possibilidade de subsunção da facticidade no quadro de um crime de homicídio, na sua forma tentada, nos termos do disposto no art. 131.º do CP. E finalmente, na hipótese de manutenção da qualificação que foi feita pelo Tribunal a quo, pretendeu “uma pena mais harmoniosa e justa face à ilicitude dos factos praticados, tendo como limite a sua culpa, em cumprimento do disposto no Art. 40º, 42º e 71º do C.P.”.
V - Sucessivamente se foi concluindo no sentido de serem de descartar (sempre na forma tentada) os crimes de homicídio qualificado (art. 132.º CP), de homicídio tout court (art. 131.º CP), e de infanticídio (art. 136.º CP). Pelo contrário, a situação de a agente ter atuado sob compreensível emoção violenta e desespero, sensivelmente diminuidor da culpa, conduzem à requalificação do crime como de homicídio privilegiado (art. 133.º), na forma tentada.
VI - Segundo o art. 23.º do CP, n.º 2, há uma especial atenuação da pena, no caso de tentativa. A qual, como se sabe, é punível, conforme o art. 23.º, n.º 1 do CP conjugado com o art. 133.º do CP. Sendo a moldura da pena do homicídio privilegiado (consumado) de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão (art. 133.º CP), uma vez que se trata de crime tentado, e a tentativa é punível no caso (art. 23.º, n.º 1 CP), o crime será punido com a pena atribuível ao crime consumado, mas especialmente atenuada (art. 23, n.º 2 CP). Assim, na moldura correspondente, a pena máxima é reduzida de 1/3 de 5 anos de prisão (5 - 1,(6) anos de prisão, ou seja, “3,4” anos – o que significa 3 anos e 3 meses), pelo art. 73.º, n.º 1, al. a) do CP, e a pena mínima corresponderá ao mínimo legal, de acordo com o art. 73.º, n.º 1, al. b) in fine, do CP, ou seja, um mês de prisão (art. 41.º, n.º 1 CP). Crê-se ser mais justo, equilibrado e conforme as exigências legais aplicar à Recorrente a pena de 1 ano e dez meses de prisão, uma pena na zona intermédia das possíveis, com ligeira tendência para o nível superior das penas médias.
VII - Não é caso de suspensão da execução da pena de prisão, (nos termos do art. 50.º, n.º 1, a contrario, do CP), por as circunstâncias ponderadas não se revelarem suficientemente indiciadoras de que a simples reprovação e ameaça de uma pena suspensa sejam suficientes para integrar as finalidades da devida punição.
2. Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação …….
O Tribunal da Relação ….., por Acórdão de 16/02/2021, reconheceu a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, vício que supriu, ao abrigo do disposto no art. 431, do CPP, procedendo à alteração do facto provado no ponto 80), do elenco dos factos provados. Porém, confirmou, em tudo o resto, o Acórdão proferido pela 1.ª Instância.
3. Ainda irresignada, interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Foram as seguintes as suas Conclusões, no Recurso interposto:
“1. A Recorrente foi condenada no Tribunal Judicial da Comarca ….., Juízo Central Criminal ….. – Juiz …., na pena de 9 anos de prisão pela prática de 1 crime de Homicídio Qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos Art.s 22º, 23º, 73º, 131 º e 132º nº 1 e 2 alíneas a) c) e j) todos do C.P., por não se conformar com tal veredicto interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação ….., vindo este a dar provimento parcial ao mesmo, no que se refere á insuficiência da matéria de facto, mantendo, contudo, a qualificação jurídica dos factos praticados e o quantum da pena aplicada à Arguida.
2. Não pode a Recorrente concordar com tal decisão no que se refere à qualificação jurídica dos factos pelos quais foi condenada e quanto à medida da pena aplicada, considerando que quanto á qualificação jurídica foram violados os normativos constantes dos Art.s131º, 132º nº 1 e nº 2, 133º, 136º e quanto á determinação da medida da pena, foram violados os normativos constantes dos Art.s 40º nº 1 e 2, 71º, todos C.P.
3. O Tribunal Recorrido procedeu à errada interpretação e qualificação jurídica dos factos ao direito, entendendo que em face dos factos fixados, estamos perante a qualificação de um crime de infanticídio, e não o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo Art. 131º e 132º nº 1 e 2 alíneas a), c) e j) do CP.
4. Ao contrário dos fundamentos vertidos no Acórdão recorrido para fundamentar o afastamento do crime de infanticídio, ficou provado que a Recorrente entrou em trabalho de parto, ainda estava na tenda que partilhava com o seu companheiro, circunstancia reveladora que a mesma já se encontrava sob a influencia perturbadora do parto, considerando que toda a conduta, após a saída da …, já é considerada a prática de actos preparatórios do crime e, portanto, entende que, a mesma já se encontrava sob a influencia perturbadora do parto.
5. Ficou demonstrado pelo Relatório Pericial constante de fls. 811 dos autos que efectivamente a Arguida, tem limitações ao nível da capacidade de insight (limitação da capacidade de compreensão das suas motivações internas, comportamentos e consequências dos mesmos para si e para os outros) e apresenta distorções cognitivas, ao contrário do alegado pelo Tribunal Recorrido.
6. O Estado psicológico e comportamental da Arguida explanado no relatório pericial é inequívoco e demonstrativo de uma diminuição considerável da culpa, revelado não só pela ocultação da gravidez, pelo processo de negação desta e pela manutenção da sua condição de sem abrigo, culminando num parto na rua, á chuva e ao frio, e que em suma acabou por condicionar verdadeiramente a conduta da Recorrente, no momento do parto e posteriormente. Pelo que, não colhem os fundamentos de afastamento do crime de infanticídio, elencados pelo Tribunal Recorrido.
7. Assim, estão preenchidos os elementos objectivos e subjetivos do crime de Infanticídio, na sua forma tentada, a que alude o disposto nos Art. 22º e 23º e Art. 136º todos do Código Penal e ao não decidir desta forma, o Tribunal Recorrido fez uma errada interpretação e aplicação da Lei e por conseguinte violou o disposto nos Art. 131º, 132º nº1 e 2 als. a) c) e j) e 136º todos do CP, impondo-se decisão diversa que absolva a Recorrente do crime de homicídio qualificado na forma tentada e condenado a arguida por um crime de infanticídio, na sua forma tentada, nos termos do disposto no Art. 136º do CP.
Caso assim não se entenda,
8. Existe sempre uma forma diminuta da culpa, e que, por conseguinte, se pode, eventualmente, subsumir os factos provados a outra figura jurídica que com ela se coaduna, que é o crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo Art. 133º do C.P, tendo sido também esta qualificação afastada pelo Tribunal Recorrido, cuja fundamentação se discorda.
9. É patente a situação de exigibilidade diminuída, de diminuição sensível da culpa, atendendo, ao que resulta do relatório pericial que evidencia a falta de insight moderado, falta moderada da capacidade da Arguida de avaliar as suas decisões e as suas consequências, a presença de locus de controlo externo e de distorções cognitivas que a mesma apresenta e a imaturidade emocional revelada pela Recorrente, colocou a mesma num processo de negação da gravidez, que no momento do parto, a colocou num estado de perturbação e desespero que a impediu de no momento do parto de tomar uma decisão adequada ao direito.
10. Não se pode olvidar o resultado do relatório pericial que refere expressamente a falta de preparação (imaturidade emocional) de Arguida para lidar com a gravidez, e falta moderada de capacidade para tomada de decisões que claramente toldaram a sua capacidade decisória de acordo com o direito.
11. Afigura-se-nos evidente a existência que o estado de perturbação emocional que a arguida vivenciou antes, durante e após o parto, na condição de sem abrigo, sem esperança de mudança de vida e nas circunstâncias em que teve o seu filho, foram momentos de grande desespero e medo que se coaduna com o tipo legal de homicídio privilegiado, n sua forma tentada, a que alude o Art. 133º do C.P.
12. Ao afastar a qualificação dos factos como homicídio privilegiado, entende a recorrente que o Tribunal Recorrido, fez uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos Art. 131º, Art. 132º nº 1 e 2 als. a) c) e j) e Art. 133º todos do CP e por conseguinte violou os referidos normativos legais, impondo decisão diversa que absolva a recorrente de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e condenando a mesma por um crime de homicídio privilegiado, na sua forma tentada, nos termos do disposto no Art. 133º do CP.
Caso assim não se entenda,
13. Sempre se dirá que, não se vislumbram o preenchimento do tipo de crime de homicídio qualificado, uma vez que, não basta a existência de exemplos padrão constantes do Art. 132º do CP, mas que também se verifique uma especial censurabilidade e perversidade da Arguida no cometimento do crime.
O que, no caso dos autos, não se verifica!
14. A especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do seu facto, o que no caso sub judice se revelam diminutos, até o próprio Tribunal Recorrido reconhece que a Recorrente revela imaturidade emocional, a viver na rua como sem abrigo, circunstâncias que são reveladoras e que necessariamente afastam a especial censurabilidade e perversidade da sua conduta.
15. Se tal não fosse suficiente para afastar a especial censurabilidade e perversidade, sempre existem factos resultantes do relatório pericial que revelam as limitações comportamentais e psicológicas da arguida, a imaturidade emocional, falta de insight moderado, distorções cognitivas e negação da gravidez, juntamente com o facto da arguida ser em abrigo, que certamente a colocou debaixo de perturbação que necessariamente se apoderou dela e pesou, inevitavelmente, no grau culpa com que a Arguida agiu.
Verificando-se claramente aqui também uma forma diminuta de culpa que afasta a especial censurabilidade e perversidade. Assim, o Tribunal Recorrido fez uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos Art. 131º, 132º nº 1 e 2 als. a) c) e j) todos do C. Penal e em consequência violou tais dispositivos legais, impondo-se decisão diversa que absolva a recorrente de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e condenado a mesma por um crime de homicídio, na sua forma tentada, nos termos do disposto no Art. 131º do CP.
Caso assim não se entenda, sempre se dirá que,
16. É grande o inconformismo da ora aqui recorrente, pois foi condenada, como autora material, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada p. e p. pelo Art.131º e 132º nº 1 e 2 als. A) c) j) do C.P., na PENA DE 9 ANOS DE PRISÃO. O Tribunal Recorrido não teve em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto nos Art. 40º 42º e 71º do C.P.
17. Existem inúmeras circunstâncias atenuantes a favor da arguida que permitem aplicação a esta de uma pena bastante mais justa, adequada e harmoniosa ao caso sub judice, e que se encontram vertidas no Art. 71 do C.P., assim verificamos que pese embora o dolo seja direto, o certo é que a ilicitude dos factos praticados é mediana e o seu modo de execução dos factos foi bastante limitado.
18. O Tribunal A Quo não teve em consideração, todas as condições pessoais e sociais vertidas do relatório social para determinação da sanção, e devidamente descritas nas motivações de recurso, mormente o facto da arguida viver na condição de sem abrigo, apenas sendo auxiliada por outros companheiros, também eles sem abrigo, e lhe facultaram um abrigo precário em tenda, socorrendo-se apenas do auxilio de instituições para se poder alimentar, nem considerou o facto da Arguida, ter ocultado a gravidez por vergonha e medo da reação do namorado e da família, se estes tivessem conhecimento da sua gravidez que estava a vivenciar..(Vide Relatório Social junto aos autos).
19. O Tribunal A Quo também olvidou todo o teor do relatório pericial de avaliação de risco de violência e reincidência criminal junto aos autos a fls. 811 que caracterizou o comportamento psicológico da Arguida, com as seguintes características: com falta de insight moderado, caracterizado pela falta de capacidade para avaliar as ações e as suas consequências, embora a Arguida tenha efectivamente noção do certo e do errado. .(Vide Relatório pericial de risco de violência e reincidência criminal junto aos autos a fls. 811.)
20. A arguida desde que descobriu que estava grávida, entrou em processo de negação da gravidez, dissociando essa realidade da sua vida, caracterizado por um deixar arrastar da gravidez, sem ser capaz de tomar uma decisão ou uma resolução para o assunto, que na sua cabeça configurava como um problema. (Vide Relatório pericial de risco de violência e reincidência criminal junto aos autos a fls. 811.)
21. A arguida apresenta um locus de controlo externo que a torna mais vulnerável, porque não sente que possa fazer alguma coisa para mudar o seu destino ou a sua vida, espelhando assim o seu comportamento de inércia face á sua gravidez e á capacidade de lançar mão de uma quantidade de soluções, ao seu dispor, para que resultado final não fosse o que ocorreu. E apresenta distorções cognitivas e uma imaturidade emocional que a condiciona na sua tomada de decisões.
22. O Tribunal a quo não teve em consideração que a Arguida, á data da prática dos factos tinha 22 anos de idade e não tinha quaisquer antecedentes criminais. E que confessou sem reservas os factos desde o início da investigação, colaborou na descoberta da verdade material, participando em todas as diligencias de prova requeridas, facultando e autorizando que fossem realizados testes médicos e biológicos à sua pessoa. Manteve sempre uma postura colaborante durante todo o inquérito e durante a fase de julgamento, confessando inclusivamente factos dos quais não teve conhecimento direto.
23. A escolha da pena privativa da liberdade, num quantum de 9 anos, é, manifestamente desajustada, desadequada, desproporcional e excessiva às exigências de prevenção especial e geral que o caso concreto apresenta, esquecendo que ainda que a tipologia do crime seja qualificada, se tratou de uma tentativa, não tendo ocorrido a perda de vida humana! A Aplicação da pena de 9 anos de prisão ultrapassa claramente as medida da culpa da Arguida e apenas visou essencialmente as exigências de prevenção geral positiva e negativa e as exigências de prevenção especial, desconsiderando completamente a medida da culpa da Recorrente e por conseguinte ultrapassou claramente os limites da culpa!!!
24.O Tribunal A quo ao fixar a pena a aplicar à Arguida, fê-lo sem ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial que se verificam no caso sub judice, ultrapassando em larga medida a culpa deste no que concerne aos factos praticados. O Tribunal Recorrido ao aplicar à arguida A PENA DE PRISÃO DE 9 ANOS certamente violou o disposto no Art. 40 nº 1 e 2 do C.P.
25. Encontram-se reunidos fatores importantes para que o Tribunal aplique ma pena muito mais harmoniosa, adequada e proporcional, a fixar pelos seus limites mínimos tendo em atenção todas as circunstâncias supra evidenciadas e as suas possibilidades de reinserção e reintegração social. Nessa medida e no que se refere ao quantum da pena única aplicada ao Recorrente (9 ANOS DE PRISÃO EFECTIVA), houve, salvo o devido respeito, violação do disposto nos Art.s 40º nº 1 e 2, 42º e 71º todos do C.P.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência:
A) Deverá Acórdão recorrido ser revogado, dado a errada qualificação jurídica dos factos, devendo a Arguida ser absolvida do crime de homicídio qualificado e condenada pelo crime de infanticídio p. e p. pelo Art. 136º do CP;
Caso assim não se entenda,
B) Deverá o Acórdão recorrido ser revogado dado a errada qualificação jurídica dos factos devendo a Arguida ser absolvida do crime de homicídio qualificado e condenada pelo crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo Art. 133º do CP;
Caso assim não se entenda,
C) Deverá o Acórdão recorrido ser revogado, dado a errada qualificação jurídica dos factos e a Arguida absolvida do crime de homicídio qualificado e condenada pelo crime de homicídio simples nos termos do Art. 131º do C.P.
Caso assim não se entenda,
D) Ser revogado o Acórdão que condenou a Recorrente na pena única de 9 anos de prisão, por esta ser desproporcional às finalidades da punição e ser aplicado à Recorrente uma pena mais harmoniosa e justa face à ilicitude dos factos praticados, tendo como limite a sua culpa, em cumprimento do disposto no Art. 40º, 42º e 71º do C.P.
Assim farão V. Ex.ª s, como sempre,
JUSTIÇA!”
4. A Digna Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo pronunciou-se, tendo apresentado as seguintes Conclusões:
“a) O tribunal ad quem, como resulta de fls. 1235 a 1259, de forma exaustiva, pronunciou-se sobre a argumentação desenvolvida pela recorrente, aqui repetida, ainda que também remetendo para a decisão da l.ª instância;
b) A análise crítica da prova não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório, tal como parece pretender a recorrente;
c) O aresto impugnado refuta os argumentos explanados pela recorrente, apontando a demais matéria em que a decisão da Ia Instância se fundamentou para dar determinados factos como demonstrados (e não outros), como aliás ressalta da respectiva e exaustiva fundamentação;
d) Igualmente explicita o acórdão os motivos porque a apreciação da prova produzida e analisada em audiência, não merecia reparo, senão no facto 80) que alterou, posto que, perante a globalidade da mesma, as conclusões a que chegou o Tribunal da Ia Instância, eram conformes a uma adequada aplicação do princípio da livre apreciação da prova;
e) Houve, pois necessariamente uma análise de cada meio de prova - inclusive do relatório, das circunstâncias em que os factos ocorreram e das circunstâncias pessoais (externas e internas) da arguida -, quanto ao seu interesse e ao seu valor, que determinaram por isso a subsunção dos factos (provados) numa determinada qualificação jurídica/ ilícito criminal - Homicídio qualificado tentado - factos e subsunção jurídica esta que não foi, contudo, no sentido pretendido pela recorrente.
f) A mera valoração distinta da prova pela recorrente, no caso em sentido diverso ao dado pelo tribunal ad quem (e a quo), não permite por si só concluir pela erraria interpretação e qualificação jurídica dos factos ao direito.
g) Agora com base na alteração do facto provado em 80) pretende novamente a recorrente e com os mesmos argumentos substituir a convicção de quem tem de julgar (e julgou) pela sua convicção, invertendo as posições das personagens do processo.
h) Porém o teor do facto provado 80) não permite chegar à conclusão pretendida pela recorrente.
i) O tribunal ad quem, tal como o a quo, concluiu sem margem para dúvidas do preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do crime de homicídio qualificado, excluindo o preenchimento dos crimes de infanticídio, homicídio privilegiado e homicídio simples conforme amplamente e exaustivamente resulta do aresto impugnado;
j) Quanto ao crime de infanticídio - "ao contrário do que alega a arguida a sua imaturidade emocional não implica falta de capacidade para avaliar as situações de vida e as suas decisões, nem ela apresenta distorções cognitivas, nada apontando para que a tenha agido sob a influência perturbadora do parto nem tal deriva do Relatório pericial de fls. 811".
k) Quanto ao crime de homicídio privilegiado - "não vemos que a recorrente tenha sofrido de qualquer perturbação emocional durante (e tão puco antes ou após) o parto - o Relatório pericial de fls. 811 não coloca sequer a hipótese - e muito menos uma perturbação violenta e compreensível. A circunstância de viver sem abrigo (por escolha sua, já que saiu de casa da mãe porque não queria trabalhar) não justifica ar sua actuação nem diminui a sua culpa dada a quantidade de respostas que a sociedade oferece a uma gravidez não desejada."
l) Quanto ao crime de homicídio "simples" - "Afigura-se claro que um crime de homicídio (na forma tentada) só pode ser simples se não houver circunstâncias que o privilegiem ou que o qualifiquem. Já vimos que inexistem circunstâncias privilegiantes. E relativamente a circunstâncias qualificativas, damos aqui por reproduzida a bem elaborada integração jurídica feita pelo Tribunal recorrido".
m) Quanto ao crime de homicídio qualificado - No caso concreto, as circunstâncias do crime revestem "especial censurabilidade": estamos perante uma mãe, que durante cerca de 2 meses planeia matar o filho, recém-nascido, que coloca num saco de plástico e num …, longe da vista de todos visando a morte que só não ocorreu por motivos alheios à sua vontade; e ainda que esta mãe seja jovem, imatura e a viver como sem abrigo, conhece instituições que a apoiam - onde vai buscar comida, roupa e satisfaz necessidades de higiene - sabe que pode pedir ajuda médica e opta por matar o filho. Todas estas circunstâncias, que envolveram o acto de matar, revelam sem dúvida "especial censurabilidade". E revelam, também, uma personalidade e um carácter incapaz de se controlar e de se reger pelas motivações éticas mais básicas que os laços maternais encerram, pelo que a sua conduta revela ainda "especial perversidade".
n) Os factos dados como provados impunham a qualificação jurídica a que chegou o arresto impugnado - Homicídio qualificado tentado.
o) No caso, não vislumbramos fundamento para divergir da convicção do Tribunal de ad quem, que de forma completa descreveu as razões pelas quais formou a sua convicção /convencimento num determinado sentido, e integrou os factos provados, ainda que com a alteração do facto 80), em determinada qualificação jurídica, nada apontando, a nosso ver, em sentido contrário ao decidido ou para a violação do disposto nos Art. 131°, 132° n° l e 2 als, a) c) e i), 133.° 136° todos do CP.
p) Pena: Ao longo de fls. 1257 a 1259, explanou detalhadamente o tribunal ad quem as razões pelas quais, ponderadas as finalidades das penas, a conduta da arguida, as suas condições pessoais, o mencionado relatório, os seus antecedentes criminais, a sua idade, confissão, etc, optou por uma pena privativa da liberdade;
q) Ponderados tais elementos, concluiu o tribunal ad quem justificar-se plenamente a pena aplicada (9 anos de prisão), ligeiramente abaixo do meio da moldura penal, por se mostrar ajustada "à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada".
r) Não se encontra pois o acórdão recorrido acometido de qualquer nulidade por violação do disposto nos artigos 40°, n.° 1 e 2, 42° e 71° do CP.
s) O acórdão censurado conheceu das questões suscitadas pelo recorrente relativamente à decisão proferida em 1ª Instância pelo que não se encontra acometido de qualquer nulidade por omissão de pronúncia, ao contrário do que pretende fazer crer a recorrente;
t) De igual forma, não se detectam na decisão impugnada quaisquer outras nulidades ou vícios de conhecimento oficioso, pelo que se impõem a manutenção do decidido.
u) Face ao exposto, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto pela arguida AA, mantendo-se na íntegra o decidido no douto acórdão recorrido, com o que farão, V. Excelências, aliás como sempre,
JUSTIÇA!”
5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta igualmente se pronunciou pela improcedência do recurso.
Relativamente ao mérito do mesmo, nomeadamente considerou:
“4 - Acompanhamos, genericamente, as considerações expressas pela Magistrada do Mº Pº no Tribunal da Relação ….. na resposta ao recurso que apresentou e entendemos, igualmente, que não assiste razão à recorrente nas críticas que dirige à decisão recorrida.
Desde logo no que respeita ao enquadramento jurídico dos factos no tipo penal de homicídio qualificado e à verificação das circunstâncias qualificativas consideradas na decisão – as previstas nas als a), c) e j), do nº 2, do art. 132, do Código Penal.
A recorrente argumenta que, ao contrário do que foi considerado na decisão recorrida, é notório que já se encontrava sob a influência perturbadora do parto quando saiu da … e se dirigiu para a rua onde veio a nascer o ofendido e que as distorções cognitivas e as limitações que tem ao nível da capacidade de compreensão das suas motivações internas, demonstradas pelo relatório pericial, aliadas às circunstâncias da sua vida, deveriam ter levado o Tribunal recorrido a enquadrar os factos provados no crime de infanticídio.
Afirma que é inequívoca a diminuição considerável da sua culpa, pelo que pugna, subsidiariamente, no sentido de que a sua conduta, não sendo subsumida ao crime de infanticídio, deverá sê-lo ao crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133º do C.P., ou, pelo menos, ao crime de homicídio previsto no art. 131, do Código Penal.
5 - A decisão recorrida analisou exaustivamente a factualidade dada como provada e ponderou os argumentos invocados pela arguida e demonstrou, de forma clara e fundamentada, por que razões a subsunção jurídica da conduta da arguida não pode deixar de ser feita ao tipo qualificado do homicídio, previsto no art. 132 do Código Penal, nos termos efectuados na decisão de 1ª instância. Concordamos inteiramente com aquela ilacção, bem como com a fundamentação que lhe subjaz. Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de 18/09/2018[1], e constitui entendimento jurisprudencial generalizado: “O artigo 132.º do Código Penal contém um tipo qualificado do crime de homicídio previsto no artigo 131.º, através de uma cláusula geral fixando um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada por virtude da particular censurabilidade ou perversidade relativas ao agente e ao facto, reveladas pelas circunstâncias do caso.” E, como se refere, no acórdão de 26/06/2019, também deste Supremo Tribunal[2]: “I - Seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado; II - A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas»”.
E como bem concluiu o Tribunal recorrido, todas as circunstâncias, “que envolveram o acto de matar, revelam sem dúvida “especial censurabilidade”. E revelam, também, uma personalidade e um carácter incapaz de se controlar e de se reger pelas motivações éticas mais básicas que os laços maternais encerram, pelo que a sua conduta revela ainda “especial perversidade”. O Tribunal recorrido analisou, também, os tipos privilegiados de homicídio previstos nos arts 133 e 136 do Código Penal e demonstra de forma clara por que afasta a subsunção jurídica da factualidade provada àqueles tipos penais, como pretende a recorrente.
6 - A arguida continua a discordar da medida da pena em que foi condenada, pretendendo a sua redução, ainda que se mantenha o enquadramento jurídico.
Também neste segmento acompanhamos as considerações expendidas no acórdão recorrido, carecendo de qualquer fundamento a pretensão da recorrente.
Com efeito, o Tribunal ponderou e valorou todas as circunstâncias que depõem a favor da arguida e a medida da pena imposta no acórdão recorrido não é excessiva, antes adequada e proporcional, e observa os critérios estabelecidos nos arts 40 e 71, do Código Penal, não havendo qualquer fundamento para a sua redução.
6. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, tendo a recorrente respondido, sublinhando os pontos de vista anteriormente apresentados.
Sem vistos, dada a presente situação pandémica, cumpre apreciar e decidir em conferência.
Do Acórdão recorrido
“Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. A arguida AA, natural …, vive em Portugal desde junho de 2016 e desde julho de 2019 encontrava-se a viver na rua, pernoitando numa …, montada na Avenida …, …, ….., em …….
2. Na noite de … de novembro de 2019, a arguida, que se encontrava grávida de cerca de 36 (trinta e seis) semanas, começou a sentir dores no seu corpo, contrações e sinais de estar em trabalho de parto.
3. A arguida encontrava-se acompanhada pelo seu companheiro, BB, com quem mantinha um relacionamento amoroso há cerca de 4 (quatro) meses, que se apercebeu que a mesma se encontrava em sofrimento e por diversas vezes a questionou se se encontrava bem e se pretendia ir ao médico, respondendo sempre a arguida que se tratava de uma indisposição e que logo ficaria bem.
4. Com o agravar das dores, a arguida percebeu que se encontrava em trabalho de parto, pelo que decidiu sair da …, dizendo ao companheiro que “ia dar uma volta”, não aceitando que este a acompanhasse, respondendo-lhe que “não era preciso”.
5. No exterior da …, rebentaram as águas à arguida, que decidiu ir à … de apoio, onde guardavam roupas e alimentos, de onde trouxe apenas um saco de plástico, com o objetivo de nele colocar o seu filho, quando nascesse, conforme o plano que previamente traçara e que consistia em nunca revelar a sua gravidez e o nascimento de um bebé com vida, que pretendia e decidiu matar.
6. A arguida, por forma a não ser detetada, decidiu afastar-se daquele local, onde se encontravam as …, e caminhou em direção à discoteca “L.…”, em …., que se encontra nas imediações.
7. A hora não concretamente apurada, mas entre as 02 horas e as 04 horas, do dia … de novembro de 2019, a arguida sentiu que o bebé se encontrava prestes a nascer, pelo que baixou as calças, colocou-se de cócoras, fazendo força por forma a expelir o seu filho, o que aconteceu, caindo o mesmo ao chão, após o que o ouviu chorar.
8. De seguida, a arguida subiu as suas calças, de forma não concretamente apurada cortou o cordão umbilical, agarrou no recém-nascido e no aglomerado de sangue e tecidos que foram expelidos no momento do parto e, cerca das 04 horas, colocou-os no interior do saco que tinha levado para esse efeito.
9. A arguida não fechou o saco e, após, deslocou-se até ao local onde se encontram vários contentores de lixo e depositou o recém-nascido, seu filho, no interior do ecoponto amarelo, após o que regressou à … .
10. No interior da …, a arguida despiu-se, lavou-se e vestiu roupa limpa, colocando a roupa que havia despido e que se encontrava com sangue dentro de dois sacos de plástico que, depois, colocou num contentor do lixo, tendo ainda lavado os chinelos que calçava, de forma a limpar o sangue.
11. Após, regressou à …, tendo o seu companheiro acordado e perguntado onde tinha andado, tendo a arguida respondido que “tinha ido dar uma volta”.
12. Durante todo o dia … de novembro de 2019, o recém-nascido permaneceu no interior do …, apenas tendo sido encontrado cerca de 37 horas depois de ali ter sido colocado pela arguida, pelas 17 horas e 30 minutos, do dia … de novembro de 2019.
13. Na noite seguinte, de … de novembro de 2019, a arguida sentiu dores, decorrentes do parto, audíveis por outras pessoas que também ali pernoitam, bem como pelo companheiro, mas, quando questionada, negou sempre que se relacionassem com o nascimento do seu filho e recusou ser conduzida ao hospital por forma a que não fosse descoberta a ocorrência de um parto e o nascimento de uma criança.
14. No dia … de novembro de 2019, a arguida acordou cerca das 12 horas e, já fora da …, quando questionada pelo companheiro relativamente a uma bacia com água e vestígios de sangue, respondeu que era “do período”.
15. Depois de se arranjarem, a arguida e o companheiro decidiram ir em direção a ….., dar um passeio e visitar uns amigos, seguindo em direção à discoteca “L......”.
16. A meio do caminho, junto aos …, encontraram o CC, que também ali costumava pernoitar, que referiu que o DD, um outro sem-abrigo, tinha visto um bebé nos contentores junto à discoteca.
17. O seu companheiro ficou surpreendido e quis ir verificar tal situação, pelo que se deslocaram na direção dos referidos contentores, junto aos quais pararam, cerca das 13 horas, chegando a vasculhar alguns deles por forma a verificar a existência de um bebé, não tendo ouvido qualquer choro.
18. A determinada altura, a arguida, que escolheu o … onde na madrugada do dia … de novembro de 2019 tinha deixado o seu filho recém-nascido, visualizou-o dentro do …, mas nada disse, referindo apenas que ali não estava nada e, com medo que o companheiro se apercebesse, insistiu com este para que se fossem embora, o que acabou por acontecer.
19. A arguida e o companheiro regressaram à … já ao final da tarde, tendo visualizado vários agentes da PSP junto aos … onde tinha colocado o seu filho, tomando conhecimento que o mesmo tinha sido descoberto, recolhido do … e conduzido ao hospital com vida.
20. O seu companheiro, nessa altura, falou com os agentes da P.S.P. e contou o que o CC e o DD tinham dito horas antes, mas a arguida optou por não falar com os agentes, com receio e por forma a não ser descoberta.
21. Nessa mesma noite, o seu companheiro questionou-a sobre o facto de ter as calças sujas de sangue, mas a arguida, uma vez mais, ocultou o que tinha sucedido, respondendo que era por estar com o período.
22. Quando o seu companheiro comentou que a sua barriga se encontrava mais pequena, respondeu, como já vinha fazendo sempre que era confrontada com a aparência de se encontrar grávida, que “estava mais pequena porque eram gases”.
23. A arguida era acompanhada pela equipa técnica de rua “M…..”, desde … de setembro de 2019 e, no dia … de outubro, foi diretamente questionada sobre a possibilidade de se encontrar grávida, o que negou, declarando encontrar-se obstipada e negando uma avaliação mais completa.
24. A arguida nunca adquiriu qualquer peça de roupa ou qualquer outro produto necessário para o seu filho, ou preparou o seu nascimento, apesar de em determinada altura ter sido consultada por uma médica e ter efetuado um teste de gravidez no GAT- Grupo Ativistas em Tratamento - “I….”, que apresentou um resultado positivo, tendo conversado com a médica sobre a situação e sobre a possibilidade de abortar ou levar a gravidez até ao fim, dizendo que queria ficar com o bebé, resposta que deu apenas por ter medo de fazer um aborto e das consequências para a sua vida e saúde.
25. De todas as vezes que foi confrontada pelo seu companheiro e pelas outras pessoas também sem-abrigo que pernoitavam naquele local, relativamente ao seu estado físico, o que ocorreu por diversas vezes, a arguida sempre respondeu que sofria de gases, pelo que a sua barriga estava inchada e, após o nascimento, que se encontrava com uma infeção urinária.
26. O filho da arguida viria a ser encontrado, no dia … de novembro de 2019, cerca das 17 horas e 30 minutos, por EE, CC e DD, que ali costumam pernoitar, no … destinado …, de …, por baixo de … .
27. Estes indivíduos, face ao facto de um deles ter ouvido o choro de uma criança, através da sua força física, e tratando-se de um contentor completamente fechado apenas com uma abertura, lograram retirar a moldura existente em redor da abertura do contentor, e, já sem a moldura, um deles conseguiu introduzir o tronco no interior do contentor, agarrar a perna direita do recém-nascido e, desta forma puxá-lo, retirando-o daquele local.
28. De seguida, com o auxílio de outras pessoas que se encontravam nas imediações e que acorreram ao local, foram chamadas as autoridades e o INEM, e o filho da arguida foi conduzido ao Hospital.
29. O recém-nascido apresentava-se gelado, totalmente despido, coberto de sangue e com o cordão umbilical cortado de forma irregular e aberto, respirava de forma instável, apresentava uma cor arroxeada e uma temperatura muito baixa.
30. Um dos técnicos do INEM procedeu à clampagem do cordão umbilical, com o auxílio de uma luva cirúrgica, foi necessário desobstruir as vias áreas do recém-nascido, uma vez que tinha na boca alguns resíduos, por forma a evitar uma asfixia, foi-lhe administrado oxigénio, foram aquecidos soros que foram aplicados em embalagens de silicone debaixo do seu corpo, entretanto acondicionado numa manta térmica.
31. Após a primeira administração de glicose, foi efetuada uma nova medição que apresentou o valor de 63 mg/dl, e, por não ser este valor ainda o ideal, os técnicos continuaram a administrar glicose, desta vez por via oral.
32. A estabilização do recém-nascido no local durou cerca de 30 m (trinta minutos), após o que foi transportado para o Hospital.
33. À entrada nos Serviços da Maternidade ….. o recém-nascido, filho da arguida e ofendido, apresentava sinais de ser um recém-nascido de termo, com baixo peso de nascimento, peso leve para a idade gestacional (restrição de crescimento fetal assimétrico-desnutrição), sepsis precoce a estafilococos sciuri, lesão renal aguda (pré-renal), acidose mista, hipotermia, hipoglicémia e hipocalcénia D1, anemia (por perda), HVP à direita, piodermite/lesão cutânea no couro cabeludo e pé direito, candidíase do períneo e conjuntivite aguda sem agente identificado.
34. O recém-nascido apresentava ainda temperatura de 34,7º C (trinta e quatro vírgula sete graus centígrados), encontrava-se ativo e reativo, com alguns tremores periféricos, sujo com terra e lixo, impregnado de mecónio no dorso e períneo.
35. O recém-nascido foi, entretanto, transferido para o Hospital …..
36. Caso o recém-nascido, ofendido nestes autos, filho da arguida, não tivesse sido descoberto, acabaria por morrer, por inanição devido à falta de alimentação, e embora tivesse sido encontrado em fase de “irritabilidade”, uma vez que ainda chorava, em breve entraria em letargia e não sendo possível encontrá-lo pelo choro, acabaria por falecer.
37. O ofendido, filho da arguida, esteve dentro do contentor … cerca de 37 h (trinta e sete horas), e o facto de ainda se encontrar vivo, aquando da sua descoberta, prende-se com as circunstâncias de se encontrar dentro de um saco de plástico, que ajudou a manter a humidade e temperatura, e no interior de um … que permitiu reduzir o ritmo de perda da temperatura, tudo circunstâncias externas à vontade da arguida que escolheu tal local por ser fechado e sem possibilidade do seu interior ser visualizado por quem ali circulasse ou se deslocasse, pois pretendia apenas ocultar o seu filho, recém-nascido e provocar-lhe a morte.
38. A arguida agiu sempre, desde que soube estar grávida, com o propósito de, após o nascimento do seu filho lhe tirar a vida, executando um plano que delineou, ocultando a gravidez, as dores que sentiu e nascimento com vida daquele.
39. Ao agir da forma descrita, ocultando sempre a gravidez, e decidindo ter o seu filho nas circunstâncias descritas, sem qualquer assistência hospitalar e sem dar conhecimento quer ao seu companheiro quer a qualquer outra pessoa, e sempre de acordo com o plano que previamente traçara e que visava a morte do seu filho, tendo para o efeito, e imediatamente após o seu nascimento, colocado o ofendido dentro de um saco de plástico e no interior de um contentor, fechado, longe dos olhares de qualquer pessoa que ali surgisse, escondendo de todos o que tinha feito, a arguida pretendia causar-lhe a morte, e fazer desaparecer o seu corpo, assim que viessem recolher o lixo que tais contentores, por norma, contêm no seu interior, o que apenas não veio a concretizar-se por mera casualidade e intervenção de terceiros que o encontraram e lhe prestaram os cuidados de saúde de que carecia para viver.
40. Agiu a arguida de forma livre consciente e voluntária, bem sabendo que estas condutas são proibidas e punidas por Lei Penal
41. Do certificado do registo criminal da arguida AA nada consta.
43. Tem dois irmãos mais novos, FF com 18 (dezoito) e GG com 21 (vinte e um) anos de idade, sendo que esta é fruto de uma distinta relação da progenitora.
44. Os progenitores da arguida separaram-se durante a infância da mesma, ficando a residir com a progenitora.
45. Na sequência de denúncia por abandono dos filhos durante o período de trabalho, a arguida, com cerca de seis anos, e o irmão mais novo, foram judicialmente confiados a uma associação de proteção de menores, em …… – “A…...”.
46. A progenitora manteve apenas ao seu cuidado a sua filha GG, por a mesma não padecer de alergias … e de pele, ao contrário dos seus irmãos, incomportáveis em termos económicos para a progenitora da arguida.
47. A arguida, durante o período de institucionalização, sentiu-se preterida pela progenitora, que, entretanto, veio para Portugal, em 2008, contudo sentiu-se acarinhada e protegida pela instituição.
48. Atribui aos problemas de alcoolismo do seu progenitor o distanciamento afetivo e conflituosidade relacional com o mesmo, com quem passava férias.
49. Em junho de 2016, a arguida veio para Portugal, por indicação da progenitora e desejo de estudar fora de …...
50. Conjuntamente com o seu irmão, passou a integrar o agregado materno, na zona …./……., em ….., onde já se encontrava a irmã uterina da arguida, desde 2011.
51. A integração da arguida no agregado familiar da progenitora ocorreu quando a mesma tinha 19 (dezanove) anos, revelando dificuldades na comunicação e na expressão de afetos.
52. Em janeiro de 2019, com 22 (vinte e dois) anos, após rutura relacional com a progenitora, a arguida abandonou o agregado da progenitora e, com ajuda de uma pessoa amiga, passou a residir na …….
53. A rutura relacional com a progenitora ocorreu por ser desejo desta que a filha procurasse trabalho, mantendo, em simultâneo, a sua vida escolar, facto que não era desejado pela arguida.
54. O percurso escolar é caracterizado por baixo rendimento escolar, matriculando-se no 8º ano de escolaridade na Escola Secundária ……...
55. Ainda integrada no agregado familiar da sua progenitora, a arguida passava os dias em casa, realizando tarefas domésticas e estudando à noite.
56. Nas suas saídas noturnas, para frequentar ocasionalmente discotecas, ao fim-de-semana, a arguida respeitava os horários impostos pela progenitora, revelando capacidade de adequação às regras familiares.
57. Desde que abandonou o agregado familiar da progenitora, a arguida abandonou igualmente a frequência escolar.
58. Laboralmente, a arguida apenas esteve ativa durante menos de 1 (um) mês, num lar de terceira idade, na ….., como ….., em fevereiro de 2019.
59. Despediu-se por não suportar a exigência das tarefas e a rotatividade dos turnos de trabalho.
60. Depois de residir com uma amiga, a arguida encetou relacionamento amoroso, passando a viver com o namorado, ….. de profissão, com 29 (vinte e nove) anos de idade, residindo num quarto arrendado na ….. e de quem dependia nos planos afetivo e socioeconómico, dada a sua situação de desemprego.
61. Atribui a este cidadão a paternidade do ofendido.
62. A relação afetiva terminou passados 4 (quatro) ou 5 (cinco) meses, quando o namorado – de nome HH – decidiu expulsá-la de casa, ficando sozinho, quando iniciou o …, considerando as suas origens … .
63. Por vergonha e medo da reação da progenitora, a arguida decidiu não regressar a casa, após ter sido expulsa pelo namorado.
64. Assim, desde finais do mês de maio de 2019, a arguida passou a viver como sem-abrigo, em … emprestadas por indivíduos em idêntica situação, na zona …., em ….., acabando por encetar um relacionamento amoroso com BB, de 42 (quarenta e dois) anos, ….. de profissão.
65. Este indivíduo apoiou-a economicamente e partilhando a … .
66. De modo a garantir a sua subsistência, a arguida pediu apoio à Associação de Apoio e Serviços ……. - “….” -, em ….., em …., onde tomava banho, tratava da roupa e jantava.
67. Na condição de sem-abrigo, a arguida recolhia vestuário, calçado e mantas noutras associações.
68. Dedicou-se à mendicidade e à atividade de arrumadora de carros, auferindo, por vezes, entre € 20 (vinte euros) e € 30 (trinta euros) diários.
69. Apesar de grávida desde os primeiros meses do ano de 2019, apenas em … de 2019, tomou conhecimento da sua gravidez, sendo que os sinais físicos eram discretos, o que lhe permitiu ocultar a gravidez de todos – círculo dos sem-abrigo, familiares e namorado.
70. Porém, nos últimos meses de gravidez, a arguida alegava queixas digestivas, para camuflar sintomas associados à gravidez, tendo sido levada pelo namorado até ao “I…” – centro de respostas integradas para toxicodependentes, apesar da arguida não consumir estupefacientes nem abusar de bebidas alcoólicas.
71. A arguida é uma jovem reservada quanto à sua história e circunstâncias da vida. Apresenta-se emocionalmente imatura e carente, com frágeis recursos internos, nomeadamente ao nível da capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas.
72. À data dos factos, a arguida encontrava-se na supra referida situação de marcada fragilidade pessoal e social, vivendo numa … na rua, na zona …., em ….., sem apoios familiares.
73. Quando em liberdade, a arguida tenciona reintegrar o agregado familiar da sua progenitora e frequentar um curso ......, havendo disponibilidade familiar para a apoiar.
74. Admite ainda o seu regresso a … .
75. Aquando do início da sua reclusão, em … de novembro de 2019, a arguida apresentava um estado debilitado em termos físicos e psicológicos, tendo sido de imediato acompanhada ao nível da saúde geral, da psiquiatria e da psicologia, pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional.
76. A arguida tem mantido o acompanhamento médico e psicológico regular, fazendo medicação psiquiátrica e para as … .
77. Adotou um comportamento adequado ao meio prisional, encontrando-se laboralmente ocupada numa oficina do pavilhão onde está afeta.
78. A arguida tem beneficiado de visitas familiares enquanto privada da liberdade.
79. A privação da liberdade não afetou negativamente a sua organização familiar e laboral, atenta a condição de sem-abrigo em que se encontrava.
E considerou-se serem factos não provados:
Da acusação:
1. O filho da arguida foi conduzido ao Hospital em estado crítico.
2. O parto e a colocação do ofendido no ecoponto amarelo ocorreram durante a madrugada do dia … de novembro de 2019.
(…)
(…)
Da qualificação jurídica…
Alega a recorrente que a subsunção dos factos ao direito preenche os requisitos, objectivos e subjectivos, do crime de infanticídio p. e p. pelo art. 136º do Cód. Penal; ou, ao menos, do crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo art. 133º do Cód. Penal; ou, ao menos, do crime de homicídio p. e p. pelo art. 132º do Cód. Penal – sempre na forma tentada.
O Tribunal recorrido integrou juridicamente os factos provados como segue:
Ao arguido é imputada a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22, 23, 26, 73, 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c) e j), todos do Código Penal. Atenda-se, então, ao preceituado nestes preceitos legais.
Dispõe o artigo 131 do Código Penal:
“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”
e, por sua vez, dispõe o artigo 132, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), c) e j), do Código Penal, sob a epígrafe “Homicídio qualificado” que:
“1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
(…)
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;”
(…)
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;”
Havendo ocultado até então a gravidez, manteve o desígnio de ter o filho sem que ninguém soubesse. Por isso, ao aperceber-se que as águas haviam rebentado, foi a uma … diversa daquela onde pernoitava, trazendo de lá um saco de plástico, onde pretendia colocar o filho e abandonou o local onde pernoitava, por forma a não ser detetada.
Sem assistência e longe dos olhares de terceiros, teve o seu filho que, tendo nascido com vida, logo foi colocado no interior do aludido saco de plástico, conjuntamente com outros elementos orgânicos resultantes do parto e, nas imediações da discoteca “....”, em … .
Perto das 04 horas, do dia … de novembro de 2019, a arguida colocou o aludido saco de plástico contendo o seu filho recém-nascido no interior do … junto à aludida discoteca e abandonou o local.
Mais resultou provado que a arguida ocultou tais acontecimentos de todos, apesar de indagada acerca das alterações fisiológicas resultantes do parto e vestígios hemáticos encontrados junto à tenda onde pernoitava, e que, cerca das 13 horas, do dia 05 de novembro de 2019, a arguida, procurando convencer estar interessada na procura de um bebé, escolheu o ecoponto onde na madrugada do dia 04 de novembro de 2019 tinha deixado o seu filho recém-nascido, visualizou-o dentro do contentor amarelo, mas nada disse, referindo apenas que ali não estava nada, e insistiu com o seu companheiro para que se fossem embora, o que acabou por acontecer.
A arguida atuou deste modo apesar de ter-lhe sido sugerido acompanhamento médico, quer pelo seu companheiro, que se predispôs a levá-la até local onde pudesse ser assistida, quer pelos colaboradores de entidades que a acompanharam durante o período de tempo em que foi sem-abrigo.
Note-se que o claro desígnio da arguida, quando se apercebeu estar em trabalho de parto, foi munir-se de um saco de plástico, onde pudesse colocar o filho que em breve nasceria, livrar-se do mesmo e retomar a sua vida como se nada tivesse ocorrido. Contrariamente ao que seria de esperar, não se muniu de um tecido, uma manta, um cobertor, algo que pudesse envolver o filho após o seu nascimento, que o pudesse limpar, aquecer e confortar.
E não o fez porque o seu desígnio era ocultar o resultado de uma gravidez que sempre quis esconder. Nenhum sentido faria ocultar uma gravidez e após o nascimento do filho aparecer com o mesmo à vista de tudo e todos, como um pequeno milagre.
Evidentemente que a arguida nunca teve vontade de reconhecer o fruto que gerou, restando-lhe as seguintes opções: diligenciar para que nunca fosse conhecida a sua existência; abandoná-lo em local onde pudesse ser encontrado com vida, a fim de terceiros lhe prestarem os cuidados que não quis prestar; ou ainda confiá-lo, de forma legal, a quem de Direito, de acordo com os procedimentos estabelecidos num Estado de Direito.
E, perante as opções, a arguida decidiu desfazer-se do seu filho, como de um qualquer desperdício ou resíduo, “condenando-o” a uma morte quase certa. E fê-lo não uma, mas duas vezes. Quando, no primeiro momento, o colocou no interior do ecoponto e, num segundo momento, persistiu em deixá-lo no interior do …, mais de 24 (vinte e quatro) horas depois de lá o ter colocado.
Como é evidente e resultou provado, pelas razões já acima enunciadas, a arguida teve, desde o momento em que soube encontrar-se grávida, a intenção de ocultar o nascimento do seu filho e delineou um plano neste sentido, que executou ao longo de diversas semanas, quer omitindo os cuidados expectáveis que antecedem um parto, quer ocultando deliberadamente a sua gravidez e o parto e consequente o resultado deles (por via de regra um nascimento), quer munindo-se do saco de plástico que facilitaria o transporte e ocultação do filho até desfazer-se do mesmo, quer ainda dificultando que o mesmo pudesse ser descoberto.
A negação da gravidez e da assistência médica aquando do parto faziam parte do plano de evitar, a todo o custo, que alguém descobrisse natural e consequentemente o nascimento de um bebé, para, deste modo, poder dar-lhe o destino que deu e que visava a sua morte, porquanto este seria o inevitável resultado de qualquer ser humano deixado à sua sorte, logo após o parto, sem que lhe fossem prestados os mais elementares cuidados, quer em termos de conforto térmico, quer alimentar.
Como atrás se disse e resultou provado, a arguida agiu de um modo absolutamente claro que visava que o seu filho não fosse encontrado, porquanto, de outro modo, tê-lo-ia “abandonado” num qualquer sítio onde, por ser de passagem, pudesse ser encontrado e cuidado.
Como resultou provado, a sobrevivência do ofendido resulta de um acaso, provocado pela inconsciente colocação do bebé no interior de um saco de plástico que lhe permitiu manter a temperatura e humidade e, por sua vez, no interior de um ecoponto amarelo, onde beneficiou de condições favoráveis de proteção e da nobre persistência de cidadãos com idêntica “sorte” de momentaneamente acorrentados à condição de sem-abrigo.
Perante a matéria de facto que resultou provada, dúvidas não restam que ocorreria a morte do ofendido (que aliás estaria próxima), a qual só não sobreveio por causas externas à conduta e vontade da arguida, que muito fez para que o ofendido viesse a perder a sua vida.
Estão, por conseguinte, preenchidos os elementos objetivos do tipo base – homicídio –, na forma tentada – cfr. artigos 22 e 23, ambos do Código Penal.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo base, não subsistem quaisquer dúvidas que a arguida quis efectivamente pôr termo à vida do ofendido, vontade em que persistiu durante um período superior a 24 (vinte e quatro) horas, bem sabendo que o ofendido era seu filho, tinha pouco minutos de vida à data da prática dos factos e, por isso, era um ser humano absolutamente indefeso, verificando-se, por conseguinte, o dolo directo, previsto no n.º 1, do artigo 14, do Código Penal.
Porém, à arguida vem imputada a prática de crime de homicídio qualificado, na forma tentada, porquanto verificaram-se, in casu, três circunstâncias que permitem a imputação da forma agravada do homicídio, dada a especial censurabilidade ou perversidade da conduta.
O Código Penal utiliza, a respeito do crime de homicídio, a técnica dos exemplos-padrão, abandonando assim a outra técnica de qualificação que consiste numa modificação casuística dos tipos, como existia no Código Penal anterior.
Com esta técnica dos exemplos-padrão, no artigo 132, do Código Penal combina-se um tipo de culpa constituído por uma cláusula geral com um catálogo meramente exemplificativo de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático, sendo que a presença ou ausência de quaisquer das circunstâncias elencadas no n.º 2, do artigo 132, relativas ao facto ou ao agente, exprimindo um aumento da ilicitude e ou da culpa, “(…) apenas constitui um indício da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta ou não a aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado” – Teresa Serra, Homicídio Qualificado tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, p. 60.
Tais circunstâncias qualificativas do normativo mencionado não são elemento do tipo, mas sim da culpa e, por isso não são de funcionamento automático – cfr. Acórdãos do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Novembro de 2000, proferido no processo n.º 2188/2000, pela 5ª Secção, de 10 de Janeiro de 2001, proferido no processo n.º 3221/2000, pela 3ª Secção, de 15 de Dezembro de 2005, proferido no processo n.º 05P2978, in www.dgsi.pt
O crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelo artigo 132, do Código Penal é um crime que repercute uma imagem global do facto agravada, um plus de culpa do agente, quando comparado com o homicídio simples, pelo concurso de circunstâncias apelidadas de exemplos-padrão, respeitantes à culpa, de verificação não automática, conotando o facto com um condicionalismo de tal modo grave, refletindo uma atitude profundamente divorciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores comunitariamente reinantes – cfr. Teresa Serra, opus cit., p. 63 –, que a pena estabelecida para o homicídio simples não responderia aos sentimentos coletivos dominantes, ao seu sentido de Justiça, e aos fins das penas.
E aparecem como susceptíveis de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade, “(…) entre outras (…)”, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132 do Código Penal.
Impõe-se, então, a questão: será que, no caso concreto, a tentativa de provocar a morte do ofendido foi produzida em circunstância que revelam especial censurabilidade ou perversidade?
De acordo com a materialidade provada, a arguida atentou contra a vida do seu próprio filho, um recém-nascido com poucos minutos de vida, com evidente intenção de o matar, conduta essa em que persistiu quando, podendo salvá-lo, o voltou a “condenar à morte” ocultando a sua presença e dificultando a sua deteção. Apenas não logrou conseguir o decesso do seu filho, por factos alheios à sua vontade e já acima enunciados, demonstrando manifesto desprezo e desrespeito pela vida humana, aliás pela vida humana que havia gerado, existindo uma série de condutas lícitas alternativas.
Evidentemente, o facto de a arguida não ter condições económico-sociais favoráveis a cuidar de um filho e não ser detentora de responsabilidade emocional não justificam a sua conduta, nem excluem a ilicitude dos seus atos.
Há, por conseguinte, uma especial censurabilidade ou perversidade, uma vez que a morte do filho, tal qual preconizada pela arguida, consubstancia uma atitude cobarde de disposição de uma vida humana que não mais lhe pertence, porquanto juridicamente autónoma.
Tais circunstâncias, acima enunciadas, encontram-se preenchidas, sendo previstas nas alíneas a), c) e j), do n.º 2, do artigo 132, do Código Penal.
A atuação evidenciada da arguida permite-nos concluir estarmos perante uma personalidade desconforme ao Direito, que procura resolver as adversidades da vida a seu contendo, não tendo pejo em procurar destruir uma vida que gerou, no momento mais indefeso da sua curta existência, condenando-a sucessivamente a uma morte quase certa.
Evidenciando este traço de personalidade está o facto de ter abandonado o agregado familiar da progenitora por discordar com o desejo desta que a filha procurasse trabalho, mantendo, em simultâneo, a sua vida escolar, facto que não era desejado pela arguida – cfr. factos provados em 52. e 53. – e ter abandonado a atividade profissional que desenvolvia há menos de um mês por considerar demasiado exigente para si – cfr. factos provados em 58. e 59..
A conduta da arguida, diga-se é – sem exagero – fortemente censurável e deverá ser qualificada como integrante do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22, 23, 73, 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c) e j), todos do Código Penal.
A insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência fundada de motivo forte mitigador da culpa, mostra que a arguida revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples.
Estão, assim, reunidos todos os elementos, quer objectivos quer subjectivos, que tipificam este ilícito criminal imputado à arguida, inexistindo causa de exclusão da ilicitude ou da sua culpa, pelo que se impõe a sua condenação, como é de Justiça.
Quanto ao crime de infanticídio, este encerra o capítulo dos crimes de homicídio privilegiado, traduz-se numa incriminação autónoma, autónoma em relação ao crime de aborto, porquanto a vítima é uma vida humana formada, nascida com vida. Para que se verifique não basta que a mãe mate o filho (ou tente matá-lo, quando na sua forma tentada), é necessário ainda que o faça sob a influência perturbadora do parto.
Ora da matéria de facto provada não resulta que os factos tenham sido praticados por força de um estado de perturbação da arguida. Aliás, a organização mental prévia aos factos (ao nascimento e colocação no filho no ecoponto) e a posterior a eles (regresso à …, limpeza, ocultação de evidências) revelam que a arguida em momento algum age sob um qualquer estado de perturbação causado pelo parto, mas antes na linha de execução de um plano premeditado tendente a sacrificar a vida do seu filho recém-nascido.
O parto enquanto momento, por natureza, doloroso e violento, não atingiu uma dimensão tal que tenha retirado o discernimento à arguida, impedindo-a de ter uma correta perceção dos factos, aliás, resultou provado precisamente que a arguida nunca se deixou perturbar pelo momento em si mesmo.
Os factos provados foram praticados pela arguida na execução de um plano, não resultando provadas a mínimas debilidades ou fragilidades causadas pelo parto que a tenham impulsionado a matar o filho recém-nascido. Não houve comoção violenta puerperal. A vontade de matar surgiu anteriormente ao parto, como último ato de ocultação do resultado de uma gravidez escondida durante toda a sua duração.
Acrescente-se que as alterações introduzidas em 1995, com a retirada do fator “ocultação da desonra”, permite exatamente circunscrever à perturbação causada pelo parto o motivo da prática de atos que atentam contra a vida do recém-nascido.
Alega a recorrente que os factos provados integram a previsão do crime de infanticídio p. e p. pelo art. 136ºdo Cód. Penal, na forma tentada, na medida em que é notório que os sentimentos de vergonha e medo que a assolaram acabaram por gerar nela um estado emocional alterado, que é causa que diminui consideravelmente a sua culpa. A que acresce a sua falta de capacidade para avaliar as situações de vida e as suas decisões, a imaturidade emocional e o facto de apresentar distorções cognitivas. Segundo a recorrente, a conjugação de todas as circunstâncias que a rodearam, mormente o facto de ser sem abrigo, de, no seu entender, não possuir condições para criar ou manter o seu filho, a indecisão sobre o que fazer, a perturbação emocional decorrente de um parto na rua, sozinha, à chuva e ao frio, são subsumíveis ao crime de Infanticídio.
Nos termos do art. 136º do Cód. Penal “a mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Ensina Jorge Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 101) que o “fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é, pois, no nosso direito positivo actual, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto. E estes são simultaneamente os elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito. O estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g. por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher) como exogenamente (pelo particular peso que no psiquismo da mulher assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente – v.g., a supra aludida “desonra” – ou economicamente fundada)”.
No caso em análise é certo que a tentativa de homicídio da criança ocorre logo após o parto, mas nada nos autos revela que a recorrente tenha agido sob a influência perturbadora do parto.
Sendo verdade que a recorrente deu à luz o filho sozinha, na rua, ao frio e à chuva, também é verdade que ela deliberadamente quis ter o filho sozinha, recusando assistência médica quando instada sobre uma possível gravidez ou sobre perturbações gástrico-intestinais. Mais, estando numa …, com companheiro, também não lhe pediu ajuda, antes se ausentou e, com intenção óbvia de se desfazer da criança, muniu-se previamente de um saco de plástico para depositar o recém-nascido (e não de uma peça de roupa) demonstrando claramente que a intenção de matar o filho tinha ocorrido muito antes do parto e não sob a influência perturbadora deste. Por outro lado, as razões adiantadas pela recorrente para a sua motivação (medo e vergonha) não apontam para o momento específico do parto – e, acrescente-se, desde a revisão de 1995 que o normativo em questão deixou de incluir a causa de “ocultação da desonra” que antes constava da sua redacção, pelo que a “vergonha” adiantada, a existir – o que não se concede – nunca poderia ser pressuposto atendível.
E mesmo que se possa dizer que a premeditação do homicídio não exclui a possibilidade de uma influência perturbadora do parto que possa também ter induzido ao homicídio, no caso concreto esta possibilidade está afastada, sem qualquer dúvida, pelos factos ocorridos após o parto. Lembramos que a arguida colocou o saco que continha o bebé num … de madrugada e durante o dia passou pelo local, tendo presenciado outros sem abrigo que diziam ter ouvido o choro de uma criança e nem assim teve qualquer remorso ou vontade de procurar o filho, antes se afastou.
Resta dizer que, ao contrário do que alega, a sua imaturidade emocional não implica falta de capacidade para avaliar as situações de vida e as suas decisões, nem ela apresenta distorções cognitivas. Nada aponta para que a recorrente tenha agido sob a influência perturbadora do parto nem tal deriva do Relatório pericial de fls. 811.
Pelo exposto, entendemos que a conduta da recorrente não configura a prática de um crime de infanticídio, na forma tentada.
Mas afirma ainda a recorrente que a sua conduta deve ser subsumível ao crime de homicídio privilegiado previsto pelo art. 133º do Cód. Penal – na forma tentada – por estarmos perante uma forma diminuta da culpa dado o estado de perturbação emocional vivenciado antes, durante e após o parto, na condição de sem abrigo, sem esperança de mudança de vida e porque as circunstâncias em que teve o seu filho, foram momentos de grande desespero e medo.
Nos termos do art. 133º do Cód. Penal, “quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Para o homicídio ser privilegiado é necessário que o agente: aja sob compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral; e que tais sentimentos motivadores diminuam sensivelmente a sua culpa.
Ao contrário do estatuído para o crime de homicídio qualificado, os referidos pressupostos de aplicação do citado art. 133º são taxativos.
Invoca a recorrente ter agido sob compreensível emoção violenta e desespero.
A “emoção violenta é uma emoção asténica (perturbação, medo ou susto) ou esténica (ira, cólera ou irritação) ou mesmo um estado de afecto que suscita no agente uma perturbação psíquica transitória e uma reacção agressiva imediata a um facto da vítima ou de terceiro (…) que deve ser compreensível, isto é, deve corresponder a uma reacção que o homem médio colocado na situação concreta do agente poderia ter (…) é necessário que o homem médio possa rever-se no modo como o agente lidou com a situação. Dito de modo simples, o carácter compreensível da emoção violenta deve ser iluminado pelo juízo de culpa sensivelmente diminuída” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª edição actualizada, fls. 409).
Como já dissemos, não vemos que a recorrente tenha sofrido de qualquer perturbação emocional durante (e tão puco antes ou após) o parto – o Relatório pericial de fls. 811 não coloca sequer a hipótese – e muito menos uma perturbação violenta e compreensível. A circunstância de viver sem abrigo (por escolha sua, já que saiu de casa da mãe porque não queria trabalhar) não justifica a sua actuação nem diminui a sua culpa dada a quantidade de respostas que a sociedade oferece a uma gravidez não desejada.
Quanto a ter agido sob desespero… “desespero é o estado de afecto que suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima” (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. Citada, p. 410) que o faz agir com culpa sensivelmente diminuída, ou seja, torna menos exigível a conduta do agente. “O desespero, como elemento que privilegia o crime, significa ausência total de esperança, sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para a manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo, de tal forma que se permite considerar, nas circunstâncias do caso, uma acentuada diminuição da culpa por menor exigibilidade de outro comportamento” (cfr. o Acórdão do STJ de 14.07.2010, Processo 408/08.3PRLSB.L2.S1).
No caso concreto não vemos qual possa ter sido o estado de desespero da recorrente. De facto, ela poderia ter tido ajuda para a sua situação mas optou por não a pedir. Por outro lado, ainda que verbalize vergonha e medo não concretiza em que se cifraria essa vergonha (nos dias que correm não é vergonha engravidar fora do casamento) nem o medo. Não vemos que a recorrente estivesse em qualquer situação que possa diminuir a sua culpa.
Pelo exposto, entendemos que a conduta da recorrente não configura a prática de um crime de homicídio privilegiado, na forma tentada.
Finalmente, a recorrente alega que a sua conduta não pode ser mais do que subsumível ao crime de homicídio previsto pelo art. 131º do Cód. Penal – na forma tentada – pois as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no art. 132º do Cód. Penal não são taxativas ou de funcionamento automático, exigindo-se sempre que exprimam, no caso concreto, uma especial censurabilidade e perversidade, que não se verificam dadas as limitações comportamentais e psicológicas, a imaturidade emocional, falta de insight moderado, distorções cognitivas e negação da gravidez, juntamento com o facto de ser sem abrigo, ter sido acometida de fortes dores, e ter tido o seu filho sozinha, na rua á chuva e ao frio, de cócoras, sem qualquer apoio, tudo a perturbando e diminuindo a sua culpa.
Afigura-se claro que um crime de homicídio (na forma tentada) só pode ser simples se não houver circunstâncias que o privilegiem ou que o qualifiquem.
Já vimos que inexistem circunstâncias privilegiantes.
E relativamente a circunstâncias qualificativas, damos aqui por reproduzida a bem elaborada integração jurídica feita pelo Tribunal recorrido.
Não nos parece que possa haver dúvidas de que as qualificativas previstas nas alíneas a), c) e j) do nº 2 do art. 132º do Cód. Penal se mostram preenchidas.
Com efeito, não há dúvida de que a vítima é filho da arguida e que, dada a sua tenra idade (recém-nascido), era especialmente vulnerável, pois que incapaz de qualquer tipo de defesa. E também não há dúvida de que – ainda que, eventualmente, se descartem a frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregues – a arguida persistiu na intenção de matar por mais de 24 horas, em face do que consta do facto dado como provado em 38 (A arguida agiu sempre, desde que soube estar grávida, com o propósito de, após o nascimento do seu filho lhe tirar a vida, executando um plano que delineou, ocultando a gravidez, as dores que sentiu e nascimento com vida daquele).
É certo, porém, que o homicídio não pode ser qualificado se a conduta da arguida/ recorrente não revelar especial censurabilidade ou perversidade (aquele especial tipo de culpa necessário para qualificar o homicídio).
Caberá desde já aqui esclarecer que os conceitos “censurabilidade” e “perversidade” não são equivalentes. Por “especial censurabilidade” deve entender-se a forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso é cometido, enquanto por “especial perversidade” deve entender-se as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.
No caso concreto, as circunstâncias do crime revestem “especial censurabilidade”: estamos perante uma mãe, que durante cerca de 2 meses planeia matar o filho, recém-nascido, que coloca num saco de plástico e num …, longe da vista de todos visando a morte que só não ocorreu por motivos alheios à sua vontade; e ainda que esta mãe seja jovem, imatura e a viver como sem abrigo, conhece instituições que a apoiam – onde vai buscar comida, roupa e satisfaz necessidades de higiene – sabe que pode pedir ajuda médica e opta por matar o filho.
Todas estas circunstâncias, que envolveram o acto de matar, revelam sem dúvida “especial censurabilidade”. E revelam, também, uma personalidade e um carácter incapaz de se controlar e de se reger pelas motivações éticas mais básicas que os laços maternais encerram, pelo que a sua conduta revela ainda “especial perversidade”.
Pelo que forçoso é concluir que a recorrente cometeu um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, e não um crime de homicídio simples (na forma tentada).
Da pena…
Alega a recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração todas as suas condições pessoais e sociais, mormente o facto de ser sem abrigo, nem considerou o facto de ter ocultado a gravidez por vergonha e medo da reacção do namorado e da família. Nem teve em consideração o seu perfil psicológico: com falta de insight moderado (falta de capacidade para avaliar as acções e as suas consequências), um locus de controlo externo que a torna mais vulnerável (porque não sente que possa fazer alguma coisa para mudar o seu destino) e apresenta distorções cognitivas e uma imaturidade emocional que a condiciona na sua tomada de decisões. Nem teve em consideração que à data da prática dos factos tinha 22 anos de idade e não tinha quaisquer antecedentes criminais; que confessou sem reservas os factos desde o início da investigação e manteve sempre uma postura colaborante durante todo o inquérito e durante a fase de julgamento.
Conclui dizendo que uma pena privativa da liberdade de 9 anos é manifestamente desajustada, desadequada, desproporcional e excessiva às exigências de prevenção especial e geral que o caso concreto apresenta e à medida da culpa.
Ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 132º, 22º, 23º e 73º do Cód. Penal, cabe, em abstracto, pena de prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses.
Sobre a determinação da medida da pena disse o Tribunal recorrido:
O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto pelos artigos 22, 23, 73, 131 e 132, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), c) e j), todos do Código Penal, é punível com pena de 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Os critérios constantes dos artigos 40, 70 e 71, todos do Código Penal consagram o entendimento de que toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta e que o julgador se encontra limitado pelo respeito da dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção geral e especial.
In casu, ter-se-á em atenção:
A. a ilicitude mediana a elevada dos factos que lhe são imputáveis, considerando:
A1. a unicidade da conduta adotada, traduzida na ocultação do parto e colocação do filho recém-nascido no interior de um saco plástico e, por sua vez, no interior de um …;
A2. as consequências das suas ações, que pôs em risco a vida de outro ser humano;
Todos estes pesam necessariamente em desfavor da arguida.
B. a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo direto – cfr. n.º 1, do artigo 14, do Código Penal;
Este fator surge na sua forma mais grave e, por isso, igualmente assinalado em desfavor da arguida.
C. o comportamento anterior e posterior da arguida, sem registo de antecedentes criminais;
Fator a ponderar positivamente.
D. as condições socioeconómicas e familiares da arguida que não atingem níveis de satisfação médios, com desorganização e desestruturação pessoais, potenciando conflitos.
A ser ponderado desfavoravelmente.
E. a colaboração na descoberta da verdade, quer em sede de inquérito, quer em sede de audiência de julgamento.
Note-se que a gravidade do conjunto dos factos ora em julgamento é elevada, impondo-se colocar um sério travão ao comportamento da arguida, e transmitir, de forma absolutamente clara, que este tipo de comportamento não pode ser perpetuado, copiado, multiplicado.
"Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, pp. 72 e 73.
A concretização dos dias de prisão far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção: "como limite que é, a medida da culpa serve para determinar um máximo de pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, (...) não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 238).
Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida AA na pena de 9 (nove) anos de prisão.
De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art. 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
Américo Taipa de Carvalho (Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 322), interpreta o actual art. 40º do Cód. Penal concluindo que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, está subjacente ao art. 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art. 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”
No caso em análise, a ilicitude (consubstanciada no desvalor da acção e do resultado) mostra-se acima da média, realçando que há 3 qualificativas do facto, pelo que ignorando a 1ª (a vítima é filho da arguida) que desde logo qualifica o crime, há que considerar como agravantes as outras duas: a vítima é um recém nascido, cuja morte a recorrente planeou por 2 meses e depois colocou-o despido, dentro de um saco de plástico e de um … onde a vítima permaneceu cerca de 37 horas até ser encontrado, num estado muito debilitado.
O dolo é directo – a forma mais intensa de dolo – pois que a recorrente previu e quis as consequências da conduta.
Há ainda que considerar que são elevadas as necessidades de prevenção geral, atendendo a que este tipo de crimes provoca grande alarme social, causando apreensão e repulsa na nossa comunidade.
A recorrente confessou os factos, mas não integralmente.
A recorrente não regista antecedentes criminais.
À data da prática dos factos a recorrente tinha 22 anos de idade.
A recorrente passou parte da infância e a juventude confiada a uma associação de protecção de menores, em ……; em Junho de 2016, com 19 anos de idade, veio para Portugal e passou a integrar o agregado materno; em Janeiro de 2019, com 22 anos e após ruptura relacional com a progenitora, que queria que a filha procurasse trabalho enquanto estudava (estava matriculada no 8º ano de escolaridade), a recorrente saiu de casa da mãe e viveu primeiro com uma amiga e, depois, com um namorado até que este a expulsou de casa – nessa altura e desde finais de Maio de 2019, a arguida passou a viver como sem-abrigo, em … emprestadas por indivíduos em idêntica situação, na zona …… e acabou por se relacionar amorosamente com um indivíduo de 42 anos de idade com que passou a partilhar a … . Nesta altura dependia de Associações onde tomava banho, tratava da roupa e jantava, dedicando-se à mendicidade e à actividade de arrumadora de carros, auferindo, por vezes, entre € 20 (vinte euros) e € 30 (trinta euros) diários.
Não tem hábitos de trabalho – trabalhou apenas durante menos de 1 (um) mês, num lar …, na ….., como ….., em Fevereiro de 2019, de onde se despediu por não suportar a exigência das tarefas e a rotatividade dos turnos de trabalho.
Em meio prisional adoptou um comportamento adequado e está laboralmente ocupada; tem beneficiado de visitas familiares
A recorrente é uma pessoa desajustada: desajustada ao nível familiar, escolar e de integração na comunidade. E com limitações ao nível da capacidade de insight (limitação da capacidade de compreensão das suas motivações internas, comportamentos e consequências dos mesmos para si e outros). Atribui a factores externos de causalidade os acontecimentos. Revela imaturidade emocional. Apresenta minimização e negação do acto e demonstra total ausência de empatia/compaixão para com o ofendido, ausência de remorsos e sentimentos de culpa. É vulnerável a factores de stress, revelados na pouca capacidade autoafirmativa, fraca tolerância à frustração e dificuldade no confronto e resolução de problemas. Apresenta ausência de sentido de responsabilidade relativamente às suas acções, em particular em relação às suas responsabilidades parentais, nomeadamente de cuidar e proteger.
Analisando as circunstâncias apuradas na sua globalidade, justifica-se plenamente a pena aplicada (9 anos de prisão) – ligeiramente abaixo do meio da moldura penal
– a qual se mostra ajustada à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada.
Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, reconhecendo a existência do vício de insuficiência da matéria de facto, que suprem procedendo à alteração do facto provado em 80), do elenco dos factos provados, nos termos supra expostos.
No mais confirmam o acórdão recorrido.
(…)”
Fundamentação
A
Questões Processuais Prévias
2. É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).
3. O thema decidendum no presente recurso é a qualificação jurídica dos factos e a medida da pena.
A Recorrente pugna, como vimos, pela qualificação daqueles como crime de Infanticídio, na sua forma tentada, a que alude o disposto nos art. 22 e 23 e art. 136, todos do Código Penal.
Subsidiariamente, advoga a possibilidade de se subsumirem os factos provados no tipo de crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo art. 133 do CP.
Ainda coloca a possibilidade de subsunção da facticidade no quadro de um crime de homicídio, na sua forma tentada, nos termos do disposto no art. 131 do CP.
E finalmente, na hipótese de manutenção da qualificação que foi feita pelo Tribunal a quo, pretende “uma pena mais harmoniosa e justa face à ilicitude dos factos praticados, tendo como limite a sua culpa, em cumprimento do disposto no Art. 40º, 42º e 71º do C.P.”.
Contexto Geral
Não há, evidentemente, um único crime tipificado que acolha em si os diferentes matizes de que se pode revestir uma conduta que redunde ou possa redundar, com maior ou menor intencionalidade, ou “êxito” do empreendimento, na morte de alguém.
Há uma diferença, por exemplo, entre o “murder” (que pode ser, também, em primeiro e segundo grau) e o “manslaughter”, ou entre “Mord” e “Totshlag” (ou ainda casos menos severos de homicídio voluntário e homicídio a pedido), ou meurtre e assassinat. Apenas para referir algumas das mais conhecidas situações. (Cf., v.g., Jeremy Horder (ed.), Homicide Law in Comparative Perspective, Oxford et al., Hart, 2007; Jean Larguier / Anne-Marie Larguier, Droit pénal spécial, 12.ª ed., Paris, Dalloz, 2002; Jorge de Figueiredo Dias, art. 131 (Homicídio), in Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 3 ss).
2. Também em Portugal, a diferenciação entre os vários de crime contra vida se evidencia. Como é bem sabido, a parte especial do Código Penal, dando prevalência valorativa ao bem “Vida”, começa precisamente com as suas várias modalidades criminais.
Assim, começa, naturalmente, com o homicídio (art. 131), uma espécie de situação média ou de base, crime -“mãe” (ou “tipo legal fundamental”) dos demais crimes de homicídio, que apresentam modulações agravantes e atenuantes (cf., v.g., Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, p. 49; Fernanda Palma, Direito Penal Especial. Crimes contra as Pessoas, 1983, p. 40 ss.. Conceição Ferreira da Cunha, Os Crimes Contra as Pessoas, Porto, UCE, 2017, p. 84), prosseguindo assim com o homicídio qualificado, cometido já com especial censurabilidade e perversidade (art. 132), passa a uma situação especial, de menor gravidade, fundada em especial diminuição da culpa por motivos endógenos ao agente na comissão do crime: o homicídio privilegiado (art. 133). Estes são os três tipos como que centrais dos crimes contra a vida. Os demais referem-se a particulares circunstâncias, ou especificações, tais como o homicídio a pedido da vítima, o incitamento ou ajuda ao suicídio, o infanticídio, o homicídio por negligência, e a exposição ou abandono, sendo um caso especial o da propaganda do suicídio (arts. 134 a 139 CP).
4. No que toca à qualificação jurídica dos factos, a Recorrente muito sistematicamente expôs, como vimos supra, as várias possibilidades legais pertinentes, escalonando-as da que julga mais apropriada para as que considera menos adequadas.
Assim, estão em causa diversos tipos legais de crime contra a vida.
É a partir dos elementos dos autos que temos que verificar se a subsunção qualificatória feita foi adequada, ou, não o tendo sido, qual a alternativa a acolher.
Dos Factos ao Direito
1. A Recorrente vem condenada por homicídio qualificado na forma tentada, na pena de 9 anos de prisão.
Não merecem especiais reparos as observações que, no entendimento da Requerente, militam contra a qualificação de homicídio qualificado.
“A especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do seu facto, o que no caso sub judice se revelam diminutos, até o próprio Tribunal Recorrido reconhece que a Recorrente revela imaturidade emocional, a viver na rua como sem abrigo, circunstâncias que são reveladoras e que necessariamente afastam a especial censurabilidade e perversidade da sua conduta.
15. Se tal não fosse suficiente para afastar a especial censurabilidade e perversidade, sempre existem factos resultantes do relatório pericial que revelam as limitações comportamentais e psicológicas da arguida, a imaturidade emocional, falta de insight moderado, distorções cognitivas e negação da gravidez, juntamente com o facto da arguida ser em abrigo, que certamente a colocou debaixo de perturbação que necessariamente se apoderou dela e pesou, inevitavelmente, no grau culpa com que a Arguida agiu.
Verificando-se claramente aqui também uma forma diminuta de culpa que afasta a especial censurabilidade e perversidade. Assim, o Tribunal Recorrido fez uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos Art. 131º, 132º nº1 e 2 als. a) c) e j) todos do C. Penal e em consequência violou tais dispositivos legais, impondo-se decisão diversa que absolva a recorrente de um crime de homicídio qualificado na forma tentada”.
2. Estamos perante um homicídio, evidentemente, mas não um homicídio simpliciter, tout court (art. 131 CP) (cf., porém, embora em diferentes situações, Acs. STJ de 26/02/2004, CJ 2004, p. 206; 27/05/2010, proc.º n.º 6/09), porque precisamente não num ponto como que intermédio (art. 131 CP) e nos antípodas de um plano de especial censurabilidade ou perversidade (art. 132 CP), o que significa que a qualificação de homicídio qualificado não pode proceder.
Antes de prosseguir, recorde-se uma síntese dos crimes de homicídio que se pode colher jurisprudencialmente (Ac. deste STJ de 12-03-2015, proferido no Proc.º n.º 40/11.4JAAVR.C2 (Relator: Conselheiro Pires da Graça):
“XII - O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição de exigibilidade.
XIII - A qualificação resultante da verificação das circunstâncias do n.º 2 do art. 132.º do CP está dependente do preenchimento da cláusula da especial censurabilidade ou perversidade prevista pelo n.º 1 deste artigo: se, por um lado, o crime de homicídio só é qualificado se essas circunstâncias revelarem especial censurabilidade ou perversidade, por outro, esta enumeração é exemplificativa, ou seja, é possível ocorrerem outras circunstâncias, desde que valorativamente equivalentes, que revelem especial censurabilidade ou perversidade. (…)
XV - Se o crime cometido reveste a especial censurabilidade e perversidade do n.º 1 do art. 132.º do CP, também a gravidade do facto praticado pelo arguido equivale à gravidade dos casos mencionados nos exemplos típicos das als. a), b), e) e j) do n.º 2: a imagem global dos factos é, em tudo, semelhante aos casos concretizados nestas alíneas como justificadoras de agravação.
XVI - O art. 133.º do CP, que prevê o homicídio privilegiado, assenta em dois pressupostos: a causa da modificação da matriz do tipo, que se desdobra em emoção violenta e que seja compreensível e a consequência jurídica advinda: que diminua sensivelmente a culpa.
XVII - A emoção violenta só é compreensível, isto é, natural ou aceitável, desde que exista uma relação de proporcionalidade entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado.
XVIII - Não basta um estado de emoção violenta, mas sim que esse estado emotivo desencadeador da acção seja compreensível e só será compreensível, apesar da violência da emoção, quando, directa e necessariamente por ela, seja levado a matar.”
Voltando, concretamente, à apreciação da possibilidade de se estar perante um homicídio qualificado, refira-se desde logo que, se é certo que alguma ou algumas das alíneas de exemplos-padrão do art. 132, n.º 2 do CP facilmente se encontram no caso, todavia elas não operam de per si para se configurar o homicídio qualificado, no caso, na forma tentada.
Afirma, com efeito, Jorge de Figueiredo Dias, Op. Cit., p. 26: “Elementos estes, assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação (…)”.
E Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição actualizada, Lx., Universidade Católica Editora, 2015, p. 509 afirma: “Trata-se de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo (no sentido da tese do tipo de culpa).” Aludindo depois a outras teses, como a diferenciadora e a do tipo de ilícito. Porém, uma aplicação de “tabela” ou mecânica (como diria Oliver Wendell Holmes) nunca parece ser de considerar.
Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018, p. 575, esclarecem ainda: “O exemplo-padrão, uma vez comprovado, apenas indicia a qualificação – podendo acontecer que, mesmo depois de considerar todos os aspetos de cuja importância estamos cientes, ainda assim não haja lugar para estabelecer, de modo inequívoco, uma especial censurabilidade ou perversidade”. E, mais adiante (pp. 575): “Os fundamentos da necessária valoração global assentam nas circunstâncias do facto e nas condições pessoais do agente, incluindo traços da sua própria personalidade.”
Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, vol. I, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 72: “Quando se afirma que tais circunstâncias não funcionam automaticamente, pretende-se com isto contestar que, uma vez verificada qualquer delas, logo se possa concluir pela censurabilidade ou perversidade do agente (…) – não pode.”
Na sua monografia dedicada o tema, Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, 3.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2000, afirma-se, nomeadamente, a p. 60: “Com efeito, no artigo 132.º, combina-se um tipo de culpa constituído por uma cláusula geral com um catálogo meramente exemplificativo de circunstâncias cuja verificação nem sempre se revela qualificadora”.
Vária outra doutrina se poderia acrescentar, no mesmo sentido.
Cf. ainda as Atas das Sessões da Comissão Revisora, Parte Especial, ed. 1979, p. 21 ss.
Jurisprudencialmente, por todos, Ac. deste STJ, de 20-03-1991, in “BMJ”, 405, p. 220.
3. Não se verificam no caso, no plano subjetivo, ademais, os elementos de censurabilidade ou perversidade exemplificados pelas alíneas a), c) e j) do n.º 2 do art. 132 do CP. Mas, pelo contrário, verificam-se elementos de sensível diminuição da culpa. Aparentemente, quiçá, não tanto, é certo, lato sensu nos primeiros 40 pontos dos factos provados, os quais, porém, ganham a ser interpretados contextualmente, nomeadamente à luz das informações em que frequentemente se basearam, constantes do rigoroso Relatório pericial. E há que atentar nos factos provados a partir do 41. Só assim se terá uma noção global do facto e da personalidade do agente. E avultando ainda o facto 80, que foi de novo redigido pela Relação.
Lidos de forma literal, e sem contextualização, levados por uma narrativa que enfatize a terrível ocorrência, o crime objetivamente odioso, podem ficar na penumbra precisamente os factos (e uma outra narrativa, alternativa) que atenuam e explicam uma atitude criminosa deplorável e que merece, obviamente e objetivamente a mais alta censura. Contudo, como alguém disse, “guerra ao crime, paz às pessoas”, mesmo aos criminosos, que, por mais tenebrosos que sejam os seus atos, merecem justiça, e a justiça não pode ser preconceito e estigma, e talvez melhor se regenerem com alguma compreensão, desde que a mereçam. Tanto mais que nem sempre são completamente senhores dos seus atos, como é manifestamente o caso.
Não é por a vítima ser filho da autora do crime, não é por a vítima se encontrar numa condição particularmente vulnerável, por ter acabado de nascer, nem foi com frieza de ânimo ou formas afins de conduta que a agente atuou. E não se verifica uma especial perversidade ou censurabilidade dos factos, como sinteticamente veremos agora, mas com elementos que se podem colher em boa parte da factualidade provada, e também outros momentos da presente fundamentação.
É certo que a vítima é filho da Recorrente (art. 132, n.º 2, al. a). Porém, a Recorrente não revela, por esse facto (do parentesco e deste particularmente significativo parentesco – em termos abstratos e gerais), especial perversidade ou o facto se reveste, só por tal, de especial censurabilidade capaz de preencher o tipo. Os factos apontam para que a Recorrente não terá sequer interiorizado na sua plenitude a maternidade (assim como a gravidez). A criança não foi apercebida (pelo menos suficientemente, normalmente) como um filho, mas como uma situação aterrorizadora. Por exemplo, a negação da possibilidade da gravidez não é uma simples mentira, é uma negação da realidade, com todas as conhecidas implicações e razões psicológicas que tal tem, em vários domínios.
Um recém-nascido é obviamente uma pessoa particularmente indefesa ((art. 132, n.º 2, al. c), mas pelos mesmos motivos de confusão, medo, ansiedade, não foi tirando partido dessa situação ou sequer tendo-a em conta que agiu a Recorrente.
A frieza de ânimo não se encontra demonstrada (art. 132, n.º 2, al. j). Pelo contrário, o que resulta é uma situação asténica (perturbação, medo ou susto). No máximo, terá havido na perpretação dos atos, um certo “automatismo” de alguém que, em pânico, se quer rapidamente livrar-se de um problema com que não sabe lidar, próprio da “psicologia” (estado psíquico), devidamente provada, da Recorrente. O arcaboiço mental / emocional da Recorrente, a sua vulnerabilidade e dificuldade em gerir a sua vida são incompatíveis com a racionalidade da premeditação, da escolha criteriosa de meios (serviu-se de um simples saco de plástico, que nem fechou, o que faria se a intenção de matar fosse de uma tal “competência”).
A especial perversidade e censurabilidade têm de colher-se num estado de ânimo consciente, que se apercebe das condições factuais enunciadas (parentesco, vulnerabilidade especial da vítima) e, delas sabendo, não se contém, ou mesmo delas se aproveita, ou mesmo por elas se motiva a praticar o crime. A frieza de ânimo e afins elementos do art. 132, n.º 2, alínea j) do referido normativo é o culminar dessa ação consciente e voluntariamente determinada. Ao invés, o que se verifica é uma consciência pelo menos por vezes paralisada na encruzilhada, no labirinto de factos, e uma vontade que acaba por irromper não visando um desígnio maduro e tranquilamente determinado por uma racionalidade consciente (ainda que perversa), mas como a única solução que, na situação de terror e confusão, a Recorrente encontrou. Péssima solução (falsa “luz” ao fundo do túnel), mas não incomum em casos como o seu.
Portanto, sendo embora, em termos gerais, possíveis tópicos, índices, de eventuais situações de perversidade e censurabilidade (que tem de ser concreta, nas condições ocorridas daquela concreta agente), os referidos não tiveram influência significativa (ou mesmo nenhuma) ao nível da culpa da Recorrente.
Insista-se, por exemplo citando Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018, p. 575: “Os fundamentos da necessária valoração global assentam nas circunstâncias do facto e nas condições pessoais do agente, incluindo traços da sua própria personalidade.” (grifámos).
Ora, sendo certo que, como está provado, inter alia, pelo facto 71:
“71. A arguida é uma jovem reservada quanto à sua história e circunstâncias da vida. Apresenta-se emocionalmente imatura e carente, com frágeis recursos internos, nomeadamente ao nível da capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas.”
Neste sintético ponto, confluem vários elementos que permitem afastar uma densa forma de culpa, em que avultem o parentesco (relação de maternidade), o caráter indefeso e a idade da vítima, e finalmente a maturação e complexidade da preparação do crime, bem como a frieza de ânimo. A Recorrente, apesar de reservada, foi suficientemente eloquente para o Tribunal ter dado como provado que “é emocionalmente imatura e carente, com frágeis recursos internos, nomeadamente ao nível da capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas.”.
De algum modo se pode ainda explicitar que ao agir como agiu, a Recorrente “fez das fraquezas forças”, não é uma criminosa cerebral ou perversa. Aliás, não se pode pressupor a culpa, mas, pelo contrário, provar a culpa (e o ónus é de quem incrimina, não de quem é incriminado), e “especial culpa”. Como diz Elisabete Amarelo Monteiro, Op. Cit., p. 39-40, de forma muito impressiva, e com grande relevo para o presente caso, “O crime de homicídio qualificado, tal como está previsto no CP português, exige um juízo de culpa especialmente gravoso e exige a comprovação de uma especial culpa do agente ao cometer o crime; não basta que a sua conduta seja censurável ou perversa, pois todo o crime é manifestação de censurabilidade ou perversidade. É necessário que esse juízo de culpa convoque circunstâncias e características especialmente desvaliosas: sensivelmente desconformes com os valores ético-jurídicos e com as exigências da comunidade.”
E ainda com interesse para o caso, afirma, designadamente, Maria Fernanda Palma:
“a especial perversidade depende do facto de as razões serem racionalizadas pelo agente, de serem motivos conscientes do agir, de o autor explicar o seu facto como sendo determinado por um desses motivos altamente rejeitáveis pela sociedade” (v. O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, “Revista do Ministério Público”, ano 4, vol. 15, p. 59 ss.).
Ora nem parece haverem sido suficientemente provados os elementos que promovam a culpa a uma censurabilidade e perversidade além das normais, comuns a todos os crimes, e conforme a própria natureza de cada um, nem a autora de modo algum racionalizou conscientemente as alíneas em causa (o seu conteúdo) nem explica ou explicou o facto por qualquer desses motivos. A matéria provada no número 71, já citada, bastaria para infirmar a sua capacidade para tal.
4. Não se está perante homicídio qualificado. Mas terá ocorrido, então, infanticídio? Havendo, embora, vários elementos que fariam, na verdade, propender para a qualificação como de infanticídio, e obviamente descartando toda a questão das possíveis ambiguidades e críticas ao instituto (por exemplo, extremo, no Brasil, Heleno Fragoso considera-o injusta para com a “indefesa criança” e “benéfica para com a infanticida”, além das consequências na modulação do crime decorrentes do facto de, entre nós, ter desaparecido, por intempestiva, a referência à “ocultação da desonra” na revisão de 1995), de que não podemos curar, nem teriam pertinência para o caso, ressalta contudo um elemento que não é ultrapassável, e que redunda no afastar liminar desta possibilidade: é que a lei estabelece um tipo legal que não é compatível com os factos, nomeadamente no que se refere à ocorrência dos factos e ao momento e causa direta da perturbação (art. 136 CP). No caso, a questão é mais abrangente. Nomeadamente, a Recorrente pratica os factos num estado de perturbação não apenas decorrente do parto, mas já vindo de antes.
Vejamos, porém, antes disso, algum enquadramento.
Tem-se discutido (e o direito comparado, sobretudo com o direito alemão, parece ter um papel importante nessa discussão) sobretudo sobre a conotação temporal ou psicológica do elemento “logo após o parto”, mas não tanto sobre como tratar a dita perturbação prévia, pânico perante a possibilidade de dar à luz, medo do parto em si, e bloqueio perante a possibilidade de se ver mãe, e certamente um vislumbre ou antecipação da enorme responsabilidade que tal acarreta, para mais numa situação socioeconómica depauperada.
A verdade é que a construção dogmática do tipo remete para uma ulterioridade ao momento do parto, ou, pelo menos, contemporaneidade em relação a ele (v. a letra do art. 136 do CP – “durante ou logo após”). Nos factos provados, todavia, consta o seguinte:
“5. No exterior da tenda, rebentaram as águas à arguida, que decidiu ir à tenda de apoio, onde guardavam roupas e alimentos, de onde trouxe apenas um saco de plástico, com o objetivo de nele colocar o seu filho, quando nascesse, conforme o plano que previamente traçara e que consistia em nunca revelar a sua gravidez e o nascimento de um bebé com vida, que pretendia e decidiu matar.”
Embora a formulação possa decerto inculcar a ideia de uma decisão calculista e fria, do contexto ressalta mais uma confusão e contraditoriedade. Desde que soube da gravidez, a Recorrente está possuída pelo medo, pânico, terror. Com momentos de negação (denial), que leva à ocultação, recusa de cuidados médicos, etc. Também se diz, por exemplo, no ponto 24, que, questionada por médica sobre a situação e sobre a possibilidade de abortar ou levar a gravidez até ao fim, disse que queria ficar com o bebé. Não sendo capazes de sondar as mais profundas motivações da Requerente, que para mais se revela, assim, contraditória, sempre se crê ser da experiência mais comum e da razoabilidade e bom senso que (sem excluir a possibilidade – logicamente admissível, tem se reconhecer-se – de ela ter faltado à verdade ou de ter mudado de intenções) na escolha entre aborto e morte de recém-nascido (sem qualificar agora penalmente) certamente uma pessoa mais razoável optaria pelo primeiro. Não terá sido por dissimulação que deu a resposta que deu. Estava aterrorizada e sem condições de se autodeterminar. Dir-se-ia que abortar era ainda uma decisão para que não teria sequer forças (anímicas) e de opção; o parto, esse, haveria de ocorrer… como uma inevitável sentença já decretada, esperando apenas a execução.
De qualquer forma, apesar de todas subtilezas e matizes de uma mente sem dúvida complexa, e perante uma situação perturbadora, está dado como provado que houve uma determinação criminosa prévia ao parto. É verdade ainda que os elementos omissivos referidos parecem confluir nesse sentido. Assim sendo, tem de afastar-se a possibilidade de infanticídio, por faltar esse requisito essencial de contemporaneidade ou subsequência, que é como o crime se encontra construído, independentemente de quaisquer especulações de iure constituendo, que aqui não cabem.
5. Descartada, também, a hipótese de infanticídio, por colidir com matéria de facto contrária ao tipo legal, a opção qualificadora, no caso, não pode ser entre homicídio qualificado e homicídio tout court. Como vimos, este último é o tipo-padrão, obviamente menos gravoso e penalizador que o homicídio qualificado, que se afastou, mas não conseguindo integrar os elementos de facto atenuantes que se verificam.
E assim, no nosso caso, tudo nos remete para o crime de homicídio privilegiado, construção que modernamente foi pela primeira vez acolhida no direito penal francês, mas recua à Escolástica medieval e depois, e a Prosper(o) Farinacius (cf. Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, 4.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2004, p. 14 ss.).
6. Recordar-se-á o texto do art. 133 do CP:
“Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”
Estamos, no caso, perante emoção violenta e desespero.
Como explanado pelo Ac. deste STJ de 3-10-1984 (BMJ, n.º 340, p. 214), o “estado emocional” pode ser de variada proveniência, tanto por provocação, por exemplo, como “por qualquer outro facto” (ecoando na alusão à provocação a alteração unânime na epígrafe do então art. 139 pela Comissão Revisora).
Como sintetiza Jorge de Figueiredo Dias, no seu parecer Homicídio Qualificado. – Premeditação. Imputabilidade. Emoção Violenta, Separata da Colectânea de Jurisprudência, tomo IV, 1987, p. 54, “O privilegiamento por emoção violenta analisa-se, assim, em três requisitos: a) Que o agente se encontre dominado por emoção violenta; b) Que seja tal emoção a causadora do acto criminoso (…); c) Que tal emoção seja compreensível.”
Tem de reconhecer-se que não basta a presença do elemento de emoção violenta. Essa emoção deverá, nas palavras do Ac. deste STJ de 14-07-2010, proferido no Proc.º n.º 408/08.3, tendo como Relator o Conselheiro Raul Borges, “As cláusulas previstas no art. 133.º do CP não funcionam automaticamente, por si e em si mesmas, não bastando para privilegiar o crime a verificação do elemento privilegiador, exigindo-se uma conexão com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada, por isso a lei é expressa ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos.”
A emoção violenta parece dominar a Recorrente. Não se olvide que ela possui diversas modalidades, podendo ser emoção asténica (perturbação, medo ou susto) ou esténica (ira, cólera ou irritação) ou mesmo um estado de afeto causador de perturbação psíquica transitória. Ora estamos perante um certamente prolongado período de emoção asténica, com perturbação, medo ou susto causado pela gravidez (nem só o parto produz eventualmente traumatismos) e pela antecipação do parto e das suas consequências. Pode ser aterrador. A narrativa (hipotética) de que uma pessoa, ainda que com défices cognoscitivos e traumas vivenciais, em situação de visível perturbação, ao mesmo tempo delineia um frio e desapiedado plano para se ver livro do estorvo que é o filho, padece de alguma contradictio in terminis. Uma pessoa com dificuldades em orientar a sua vida, em ter ideias claras, não parece poder identificar-se com o racionalismo gélido de um delinquente tão claramente mental. Julga-se que é a emoção violenta da gravidez num estado de desvalimento que realmente domina os atos da Recorrente. E o que parece ser premeditação (como, por exemplo, a omissão do enxoval) será certamente apenas fruto de confusão e… domínio da emoção.
Atente-se no Ac. deste STJ de 19-04-2018, proferido no Proc.º n.º 533/16.7PBSTR.E1.S1 (Relatora: Conselheira Helena Moniz), que responde a vários problemas que aqui se podem também colocar:
“VI - A simples prova de que a mãe escondeu a gravidez não permite por si só, e sem mais, concluir que não tenha atuado sob a influência perturbadora do parto. (…)
VII - A inexistência de prova que permita concluir pela possibilidade de subsunção dos factos ao crime de infanticídio não poderá ter como consequência a imputação ao agente de um crime mais grave (homicídio qualificado), em clara violação do princípio in dubio pro reo; na verdade, se, por exemplo, não for possível obter prova de que a atuação da arguida, logo após o parto, esteve sob a influência perturbadora daquele, em atenção àquele princípio não poderemos considerar que aquela influência não existiu, pelo que na dúvida (quanto a ter atuado sob aquela influência ou não) teremos que concluir que atuou.
(…)
IX - O simples facto de ocultar a gravidez ao longo de todo o tempo, de não ter procurado acompanhamento médico, o facto de negar a gravidez a quem sobre ela a questionava, o facto de ter realizado o parto sozinha, sem qualquer acompanhamento, não são suficientes para que se possa concluir que no momento logo após o parto tenha provocado a morte do recém-nascido livre de qualquer perturbação decorrente do parto, tanto mais que se encontrava só e sem qualquer apoio físico ou psicológico.“
Voltemos ao caso sub judice. Anote-se ainda que a emoção violenta existente no presente caso é compreensível, não é fantástica, fantasiosa, risível ou inverosímil. As pessoas realmente experimentam-na em casos como o da Recorrente. E obviamente diminui sensivelmente a culpa. Maria Margarida Silva Pereira (com a participação de Amadeu José Ferreira), Direito Penal II. Os Homicídios, Lx., AAFDL, 1998, p. 85, considera: “O saber se alguém estava emocionado é matéria que deve ser apurada pelas ciências médicas, psicológicas ou psiquiátricas, e não através de juízos de valor. Como matéria de facto, a emoção deve ser avaliada face ao agente em concreto e não face a qualquer homem médio, pois a consideração deste implica valorações que são adversas ao estabelecimento de uma correcta factualidade.”. Recordando também que a causa da emoção não releva, e que a jurisprudência já equiparou motivo imaginário, irreal, putativo, a causas efetivas. Pode ter-se medo de “fantasmas”, e o medo ser muito real.
Ora, basta reler o Relatório pericial (de origem especializada no foro psíquico) para se poder aquilatar do estado anímico da Recorrente. Para aí se remete, assim como, evidentemente, para o que a matéria de facto provada dele espelha.
Num texto notável, o clássico jurista brasileiro Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1953, vol. V, p. 132), nomeadamente assinalava: “perturbação da efetividade, a que estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares das funções da vida orgânica (pulsar precipite do coração, alterações térmicas, aumento da irrigação cerebral, aceleração do ritmo respiratório, alterações vasimotoras, intensa palidez ou intenso rubor, tremores, fenômeno vasculares, alteração das secreções, suor, lágrimas etc.).”
Com a afetação da vontade e da inteligência e “diminuídas as suas resistências e capacidade de se determinar conforme o direito” (na fórmula muito justa de Cláudia Neves Casa, Homicídio Privilegiado por Compaixão, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 115) ocorre certa desestruturação da personalidade que ocorre aqui, como decorre do já referido. E que Hungria sintetizava como “desintegração da personalidade psíquica” (op. Cit., p. 135).
7. Mas mesmo que não se vá por este caminho, parece avultar ainda a consequência desta emoção deletéria: o desespero.
Filosoficamente considerado “doença mortal”, ou “única doença para que não há cura”, para retomar o pensamento de Kierkegaard no seu clássico Sygdommen til Døden, o desespero é realmente o permanente estar à beira de um abismo, numa situação de permanente insustentabilidade.
Antes de mais, importa recordar que as situações de emoção violenta e desespero têm muitos traços comuns (v. Cláudia Neves Casal. Op. Cit., p. 138).
Estar dominado pelo desespero é estar dominado pelo último grau da emoção violenta. Mas enquanto normalmente esta pode ser mais ou menos pontual (posto que no caso tudo indique se prolongou por meses), o desespero pode ser uma afeção muito prolongada. Tanto mais que no desespero predomina a imagem do beco sem saída, do emparedamento, da gaiola sem porta…
E se uma outra pessoa, ou o que se pense ser a normalidade, poderia não experimentar a mesma emoção desesperada, há relevante concordância em que estes casos não se submetem à cláusula da compreensibilidade (por todos, Figueiredo Dias, Teresa Serra, Cláudia Neves Casal). Ao contrário do que ocorre com a emoção (Figueiredo Dias, in Comentário, I, cit., p. 52).
Voltemos a elementos controversos. O que pode ser interpretado como premeditação, plano, frieza, vista a questão por outro prisma, crê-se que com mais apoio factual, não é senão fruto do desespero, numa das suas modalidades e fases. Maria Margarida Silva Pereira (com a participação de Amadeu José Ferreira), Direito Penal II. Os Homicídios, Lx., AAFDL, 1998, pp. 88-89 bem desenvolve a questão. A emoção asténica do desespero tanto pode ser de violência exterior, expansiva, como de auto violência. Pode redundar em suicídio como compelir a matar, numa encruzilhada na qual o matar se revela como a única solução para cortar o nó górdio. De natureza intimista, é longamente maturado (a reação, na situação de desespero, não precisa de ser imediata – cf. Ac. deste STJ de 08-05-1997, BMJ 467, p. 287). Daí poder confundir-se desespero (silencioso, sofrido) com plano frio, racional. E a mesma obra assinala, com acerto, em situação vizinha da nossa: “Cabem aqui casos que anteriormente poderiam ser reconduzidos ao artº 136º, relativo ao infanticídio privilegiado: não relativamente à honra, mas relativamente a situações de enorme pressão e desorientação provocada pelo meio social (…)”. E conclui, o que tem pleno cabimento neste caso: “Também aqui se há-de verificar a situação de domínio do agente, isto é, a total afectação da sua vontade ou do seu discernimento. Tal manifesta-se através do efeito de túnel: agente encontra-se num beco sem saída e é quase fatalmente empurrado para um determinado fecho pelo qual se sente atraído.” (p. 89).
Ou, como cita o Ac. deste STJ de 27-05-2020, proferido no Proc. n.º 259/18.7PFSXL.L1.S1 (Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos):
“XXIV - Configurando-se o estado de desespero, uma ‘situação que se arrasta no tempo, com origem em pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, arrancando da limitação psicológica do agente desesperado, nele se englobando os casos de suicídios alargados ou de humilhações reiteradas’ (…)”
Em síntese, no desespero há uma luta em que o agente se sente encurralado, e por vezes (e aí existe a relevância jurídica e penal da situação) a sua tentativa de ultrapassar o impasse é cometer um crime. Não por verdadeiramente o querer, na plenitude da sua consciência e vontade, mas, no fundo, para pôr fim ao seu sofrimento intolerável. Tal não justifica o ato, mas permite-nos entender alguns que, como o presente, parecem tão repugnantes que nem humanos seriam. E daí, pode supor-se, a tendência de alguns para o agravamento e não para a diminuição da culpa, numa estranha (mas também ela compreensível) coincidentia oppositorum. Porém, a compreensão da situação de desespero implicará a qualificação decorrente da sensível diminuição da culpa, que é o grande limite dos delitos e das penas. O desespero determina a qualificação de homicídio privilegiado (como ocorreu no Ac. deste STJ de 04-02-2004, CJ, 2004, vol. I, p. 189).
Diferente do presente caso é o do Ac. deste STJ de 11-10-2012, proferido no Proc.º n.º 288/09.1GBMTJ.L2.S1 (Relator: Conselheiro Manuel Braz), em que a Recorrente atuou num circunstancialismo bem mais favorável. Contudo, terá havido um “final feliz” de ressocialização, mesmo se o crime fora consumado e não apenas tentado. Houve uma declaração de voto, em que há interessantes elementos a considerar, nomeadamente: “(…) o que os peritos médicos concluíram é que ‘adotou um mecanismo intelectual segundo o qual negava a si própria que estava grávida, agindo em estado mental condicionado pelo mecanismo de denegação’.
(…) Por isso, “durante a gravidez a arguida, por medo e por vergonha do impacto da sua situação junto da família e amigos”, desenvolveu um mecanismo psicológico de denegação da gravidez, que não é um processo voluntário e racional, mas inconsciente, que culminou, com a lógica própria desse quadro psíquico, com o homicídio, como forma de fazer desaparecer a principal prova de que poderia ter existido essa gravidez.
Isto é, a arguida agiu, de algum modo, dominada pelo desespero que a situação da sua gravidez acarretava (…)”.
Da Canção Desesperada, de Pablo Neruda, certamente muito se poderia recordar. Bastemo-nos com os versos finais: “En la infancia de niebla mi alma alada y herida / Descubridor perdido, todo en ti fue naufrágio / Te ceñiste al dolor, te agarraste al deseo / Te tumbo la tristeza, todo…”
8. Embora de uma forma mais enfatizada nos aspetos do cometimento do crime que no estado em que a agente o cometeu, denota-se na matéria provada o eco da mais incisiva e documentada análise pericial nesses aspeto (como seria da natura rerum). Depois de se poder ver uma situação geral de vida nada favorável e tranquilizadora logo nos primeiros quatro pontos (que será retomada eventualmente passim), os factos 41 a 59 fornecem-nos um quadro geral da vida e personalidade da agente, e a partir do facto 60 começa a falar-se do relacionamento de que terá procedido a conceção da vítima. São tudo situações complicadas, em que não falta gravidez indesejada, expulsão, vida na rua, mendicidade, e as privações e angústias inerentes são de senso e experiência comum.
A síntese dos factos 71 e 72, apesar de não superabundante, é eloquente:
“71. A arguida é uma jovem reservada quanto à sua história e circunstâncias da vida. Apresenta-se emocionalmente imatura e carente, com frágeis recursos internos, nomeadamente ao nível da capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas.
72. À data dos factos, a arguida encontrava-se na supra referida situação de marcada fragilidade pessoal e social, vivendo numa … na rua, na zona de ….., em ….., sem apoios familiares.”
É uma forma plácida de descrever uma situação que, vista à luz do contexto e da plausibilidade lógica da situação, e iluminada pela fonte credível que é o Relatório Pericial, se revela de emoção violenta e até de desespero.
Verificou-se uma situação subsumível na emoção violenta, desesperada até, o que está previsto pelo art. 133 do CP., pelo que, se requalifica a ação da Recorrente como homicídio privilegiado, na forma tentada. Esta última modalidade é, no caso, óbvia, dado o recém-nascido “objeto” da atuação criminosa ter sobrevivido, apesar dela. Pensamos que a diminuição da culpa no homicídio privilegiado tem de ser mais acentuada do que no âmbito da atenuação especial do art. 72, do CP. E, no caso, é-o.
9. Mesmo que tivesse havido dúvida, como refere o Ac. deste STJ de 26-02-2009, proferido no Proc.º n.º 3547/08 (Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor):
VIII - Se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, aquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo nos termos indicados por Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 103: «verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136.° e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131.° ou 132.°»).”. O que se diz para o caso de infanticídio também valerá, mutatis mutandis, para o de homicídio qualificado.
9. Estamos, pois, perante um homicídio privilegiado. O art. 71 do CP traça os padrões da determinação da medida da pena. Cumpre, desde já, ponderar a situação com vista a tal medida, embora ela vá ter ainda atenuação pelo facto de se tratar de crime não consumado, mas simplesmente tentado.
Antes de mais, a culpa do agente é aqui diminuída pela sua situação e especificamente o estado emocional de desespero em que agiu. A personalidade do agente é de alguém “emocionalmente imatura e carente, com frágeis recursos internos, nomeadamente ao nível da capacidade de pensamento consequencial e de resolução de problemas.
72. À data dos factos, a arguida encontrava-se na suprarreferida situação de marcada fragilidade pessoal e social, vivendo numa … na rua, na zona …., em ….., sem apoios familiares.”. Não tem adições nem antecedentes criminais. As exigências de prevenção não se revelam particularmente graves. Tratou-se de um episódio pontual, numa situação particular, não sendo plausível que venha a repetir-se, ou que venham a ocorrer outros crimes.
Mutatis mutandis, não se poderá deixar de recordar o final da epígrafe da tese (na Univ. Paris II) de Frédérick Petipermon, Le discernement en droit penal, Paris, 2014: o sujeito de direito capaz de suportar a responsabilidade penal é uma pessoa humana dotada de inteligência e de vontade (“le sujet de droit capable de supporter la responsabilité pénale est une personne humaine douée d’intelligence et de volonté » - J.-H. Robert, La personne juridique dans la philosophie du droit pénal, éd. Panthéons-Assas, LGDJ, 2001, préface).
É forte o grau de ilicitude do facto, grave o modo de execução deste e as suas consequências esperáveis ou “normais” poderiam ter redundado na privação da vida do próprio filho, o que revela um alto grau de violação dos deveres (parentais de cuidado e proteção, desde logo) impostos ao agente. Sendo em tese o dolo intenso, ele revela-se mitigado pelas circunstâncias referidas.
O crime não é desencadeado por motivo fútil ou torpe. É fruto de uma perturbação em que desagua uma personalidade com debilidades, sob o impacto da gravidez e depois do parto.
As condições pessoais do agente e a sua situação económica são de indigência.
A conduta anterior ao facto não merece especial reparo (reiterando-se que é delinquente primária, sem adições), no contexto, e a imediatamente ulterior foi fruto ainda do estado de comoção. O qual se prolongou. Como se diz neste ponto dos factos provados:
“75. Aquando do início da sua reclusão, em … de … de 2019, a arguida apresentava um estado debilitado em termos físicos e psicológicos, tendo sido de imediato acompanhada ao nível da saúde geral, da psiquiatria e da psicologia, pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional.”
Releva positivamente a conduta normativa no cárcere e as suas intenções para quando seja devolvida à liberdade. Assim como a sua ocupação durante a reclusão, e manutenção de laços (eventualmente até reforço) com a família:
“73. Quando em liberdade, a arguida tenciona reintegrar o agregado familiar da sua progenitora e frequentar um curso ......, havendo disponibilidade familiar para a apoiar.
74. Admite ainda o seu regresso a …...
(…)
76. A arguida tem mantido o acompanhamento médico e psicológico regular, fazendo medicação psiquiátrica e para as alergias.
77. Adotou um comportamento adequado ao meio prisional, encontrando-se laboralmente ocupada numa oficina do pavilhão onde está afeta.
78. A arguida tem beneficiado de visitas familiares enquanto privada da liberdade.
79. A privação da liberdade não afetou negativamente a sua organização familiar e laboral, atenta a condição de sem-abrigo em que se encontrava.”
Dado o caráter pontual e excecional do facto, e, pelo contrário, vários fatores de geral acatamento, tant bien que mal, do direito, não relevará qualquer falta de preparação para manter uma conduta lícita de futuro.
Nos termos do art. 40 do CP, sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Entende-se que, todos os devidos fatores ponderados, se poderá ainda, com propósito de reintegração, e sem ameaça razoável aos bens jurídicos que se devem proteger, confiar num futuro comportamento normativo da Recorrente, atentos os seus antecedentes, a sua juventude, caráter primário, a estabilidade na sua vida já propiciada pelo tempo passado em reclusão, desde que cumpra um programa rigoroso e aprofundado de acompanhamento.
A sociedade sem dúvida se sente chocada e ferida pela ação da Recorrente, e não se exime a exibir com veemência o seu juízo de reprovação. Mas não pode ser insensível, para fazer Justiça, às agruras da sua situação, e em prol da sua dignidade, não pode senão tratá-la com o respeito que merece todo o ser humano. “O art. 133º – conclui a sua monografia, cit., Amadeu Ferreira (p. 146) – representa um elemento importante do caráter humanista e eticista do Código Penal”. Não se trata de complacência do sistema, mas, pelo contrário, de assunção ativa das suas responsabilidades. Sendo, nomeadamente, e cum grano salis, de superar o atavismo das “Mães encarceradas e filhos abandonados” (Valéria Lins / Karina Vasconcelos (org.), Porto, Juruá, 2018).
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a sublinhar que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). Porém, ocorre aqui uma nova qualificação dos factos, o que tem necessariamente que repercutir-se na apreciação da pena.
10. Como é sabido, a tentativa é punível, nos termos do art. 23 do CP. E não tendo o recém-nascido perecido, só de tentativa se poderá falar. Ora, conforme Jorge de Figueiredo Dias, Op. Cit., p. 104, a tentativa, neste caso, “pressupõe que os actos de execução tiveram lugar, ou persistiram, durante ou logo após o parto e sob a sua influência perturbadora”.
11. Segundo o art. 23 do CP, n.º 2, há uma especial atenuação da pena, no caso de tentativa. A qual, como se sabe, é punível, conforme o art. 23, n.º 1 do CP conjugado com o art. 133 do CP.
Sendo a moldura da pena do homicídio privilegiado (consumado) de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão (art. 133 CP), uma vez que se trata de crime tentado, e a tentativa é punível no caso (art. 23, n.º 1 CP), o crime será punido com a pena atribuível ao crime consumado, mas especialmente atenuada (art. 23, n.º 2 CP).
Assim, na moldura correspondente, a pena máxima é reduzida de 1/3 de 5 anos de prisão (5 - 1,(6) anos de prisão, ou seja, “3,4” anos – o que significa 3 anos e 3 meses), pelo art. 73, n.º 1, al. a) do CP, e a pena mínima corresponderá ao mínimo legal, de acordo com o art. 73, n.º 1, al. b) in fine, do CP, ou seja, um mês de prisão (art. 41, n.º 1 CP).
Crê-se ser mais justo, equilibrado e conforme as exigências legais aplicar à Recorrente a pena de 1 ano e dez meses de prisão, uma pena na zona intermédia das possíveis, com ligeira tendência para o nível superior das penas médias.
Não se suspende a pena (nos termos do art. 50, n.º 1, a contrario, do CP), por as circunstâncias ponderadas não se revelarem suficientemente indiciadoras de que a simples reprovação e ameaça de uma pena suspensa sejam suficientes para integrar as finalidades da devida punição.
Dispositivo
Sem custas
Supremo Tribunal de Justiça,14 de julho de 2021
Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.
Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)
Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)
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[1] Proc. nº 359/16.8JAFAR.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Proc. nº 763/17.4JALRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.