ARRESTO PREVENTIVO
Sumário

– Nos recursos ordinários, vigora o princípio da identidade de objecto entre a decisão recorrida e a decisão que conheça do recurso.

– Objecto do recurso é a concreta decisão recorrida, pelo que não há que trazer a terreiro quaisquer questões que não foram apreciadas e decididas pelo despacho que se pretende sindicar, como seja a questão das notificações que foram efectuadas e a quem foram efectuadas.

– Não existe no ordenamento interno português norma que imponha ou preveja que se utilizem fundos, arrestados preventivamente a uma pessoa colectiva, para fazer face a pagamentos de serviços de contabilidade e fiscalidade prestados a essa mesma pessoa colectiva ou a pagamentos de honorários ao seu ROC, ou seja, não se vislumbra base legal para que se dê prevalência a meros direitos de credito resultantes de prestações de serviços relativamente a um arresto preventivo decretado num processo criminal, para garantia do confisco do valor das vantagens do crime, de penas pecuniárias e outros créditos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.Por despacho judicial, de 06.11.2020, foi indeferido requerimento de SF, SA,  que visava obter autorização de movimentação de uma conta bancária arrestada preventivamente para efectuar o pagamento de:
- serviços de contabilidade e fiscalidade a que se reportam facturas no valor de 1.024,59 € e  4.100,82€, emitidas pela EFE, SA;
-honorários de Revisor Oficial de Contas (ROC) a que se reportam as facturas no valor de 615,00€ e 3.075,00€, emitidas pela sociedade AFA, SROC, Lda.

2.–Inconformada, SF, SA, interpôs recurso desse despacho, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A)-O presente recurso tem como objeto os identificados despachos judiciais que não autorizaram o pagamento de serviços de contabilidade e fiscalidade, bem como honorários de Revisor Oficial de Contas. Os pedidos para autorização de tais pagamentos constam dos requerimentos apresentados nos dias 16 de Agosto de 2020 e 14 de Setembro de 2020.
B)-Os pagamentos relativos a serviços de contabilidade e fiscalidade prestados à Recorrente, bem como de honorários devidos a Revisor Oficial de Contas são absolutamente necessários, sendo que, inclusive, o seu não pagamento tem como consequência necessária a violação de legislação em vigor. Ou seja, chegamos à situação em que se incumpre legislação imperativa em decorrência de despacho judicial.
C)-Sem prejuízo da manifesta desnecessidade e falta de legitimidade de convidar a Autoridade rogante a pronunciar-se sobre os mesmos, a Recorrente não tem qualquer conhecimento de qual possa ser a sua posição quanto aos pagamentos em causa. Ao invés, a Recorrente tem conhecimento sobre qual é a posição publicamente assumida pela Procuradoria-Geral da República de Angola quanto a sociedades angolanas relacionadas com JS, posição contrária à comunicada nos presentes autos, pelo que se suscita a violação do disposto no artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa quanto aplicada e/ou interpretada e/ou executado um pedido de cooperação ao abrigo da Convenção de Auxílio judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
D)-Adicionalmente, em caso de indeferimento dos pagamentos requeridos violar-se-á o disposto no artigo 393.°, n.° 3, do Código de Processo Civil Português, aqui aplicável.
E)-Em concreto quanto ao pagamento dos honorários devidos ao Revisor Oficial de Contas, resulta que tal serviço é legalmente obrigatório, pelo que a não autorização deste pagamento consubstancia igualmente violação do disposto no artigo 393,°. n.° 3, do Código de Processo Civil Português, aqui aplicável, sendo que tal obrigação está prevista em varias normas (artigos 271 a  464.° - artigos 25.°, 28.°, 66.°-A; 89.°; 262.°; 278.°; 288.°; 362.°; 379.°; 386.º; 413.°: 414.°; 415.º; 416.ª, 419.º; 420.º; 421.º; 422.º; 446.º; 451.º a 453.º; e e muitas outras, do CSC ou o n.° 3 do artigo 123.° da Lei n.° 2/2014). O requerimento para autorização deste pagamento foi objeto de despacho judicial cuja fundamentação remete para promoção do Ministério Público que conclui que “não se pode deferir o requerido sob pena de se estar a frustrar o rogado”. Sucede que a Recorrente i) nunca foi notificada do pedido e fundamentos apresentados pela Autoridade Rogante: ii) nunca foi notificada da promoção do Ministério Público Português quanto ao pedido rogado: iii) nunca foi notificada do despacho judicial e respetiva fundamentação que decretou o arresto preventivo de contas bancárias.
F)-Também adicionalmente, da parca informação disponibilizada à Recorrente é possível concluir que, ao contrário do que consta da fundamentação (por remissão) do despacho judicial, não resulta que apenas sejam autorizados os pagamentos identificados por tal despacho (por remissão para a posição do Ministério Público). De todo o modo, e sem conceder, mesmo que se pudesse afirmar que a autorização de pagamentos dada pela autoridade rogante tem apenas como objeto salários, impostos e encargos para Segurança Social e nada mais, tal seria sempre insustentável e inaplicável por Autoridade Judicial Portuguesa por manifesta violação do Direito Interno Português a que os nossos Tribunais estão sujeitos.
G)-Na verdade, mal se compreende, considerando-se inclusive ilegal que o Tribunal Português possa ter de ficar sujeito a determinações da Autoridade Rogante quanto a temas que dizem respeito não apenas a uma sociedade de direito Português mas principalmente quanto a obrigações legais imperativas. A Recorrente, ainda que desconhecendo a sua qualidade processual, está certa que o pedido da Autoridade Rogante não terá sido no sentido de ser obrigada a ser fechada compulsoriamente. o que seria absolutamente ilegal.
H)-Ao não deferir o pagamento de serviços mandatórios, é esse, precisamente, o efeito e consequência ilegal. 
Termos em que, face a tudo o acima exposto, deverá tal decisão ser revogada e substituída, com os fundamentos aqui (e anteriormente) explanados, por outra que defira os referidos pagamentos, só assim podendo a recorrente cumprir a Lei e não ser determinado o seu fecho compulsivo.

3.–O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento, formulando as seguintes conclusões (transcrição das conclusões):
I.–Perante a Justiça angolana correm dois processos crime pela prática de factos susceptíveis de integrarem:
1)-os crimes de peculato e de falsificação de documentos, p.. e p.,     respectivamcnte, pelos arts. 313.° e 216.° do Código Penal angolano; os crimes de prevaricação e abuso de poder. p. e p„ respectivamente, pelos arts. 33.° e 39.° da Lei angolana n.° 03/10 de 29/03: os crimes de participação económica e de tráfico de influência, p. e p., respectivamente, pelos arts. 40.º e 41.º da Lei angolana n.° 03/14 de 10/02; e, o crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 60.º da Lei nL 34/11 de 12/12, cm que. além do mais, são arguidos JS e MS - Processo-Crime n.° 48/19.
2)-os crimes de burla por defraudação, abuso de confiança e branqueamento de capitais, respectivamente previstos e puníveis pelos artigos 451.º e 453.º do Código Penal angolano e do artigo 60.º da Lei n.º 34/11 de 12/12, em que. além do mais, são arguidos JS e MS — Processo-Crime n.° 09/20,
II.–Em 24/01/2020, o Tribunal Supremo de Angola decretou o arresto de bens e direitos dos arguidos JS e MS (e de outros arguidos). Além do mais, decretou o arresto de todas as contas bancárias domiciliadas em Portugal em que os arguidos JS e MS surjam como titulares, co-titulares, procuradores ou autorizados, para garantia dos valores de USD 131.148.782.54 e de USD 1.136.996.825.56, o primeiro apurado no âmbito do Processo-Crime n.º 48/19 e o segundo no âmbito do Processo-Crime n.º 09/20.
III.–Em finais de Janeiro/2020, a justiça de Angola rogou às Autoridades Judiciárias da República Portuguesa, além do mais, o arresto de todas as contas bancárias domiciliadas em Portugal em que os arguidos JS e MS surjam como titulares, co-titulares, procuradores ou autorizados, ao abrigo de diplomas legais angolanos e ainda da CONVENÇÃO CPLP. Tal pedido deu origem aos presentes autos de Carta Rogatória.
IV.–Depois de algumas vicissitudes processuais, em 11/03/2020, o Tribunal Central de Instrução Criminal ordenou o arresto preventivo nos termos rogados, e, em 26/03/2020, especificou alguns dos bens e direitos arrestados, designadamente, as contas bancárias
PT5000..................6, PT5000..................5,PT5000..................6 e PT5000..................0, todas movimentadas pelo arguido MS,
V.–As referidas contas são tituladas pela ora recorrente.
VI.–A recorrente é uma sociedade detida pela arguida JS, e o arguido MS foi primeiro administrador único e depois presidente do conselho de administração da recorrente desde a constituição desta, em 22/12/2008, até 29/04/2020, data em que renunciou.
VII.–A arguida JS foi notificada, das doutas decisões judiciais de 11/03/2020 e de 26/03/2020, relativas ao arresto preventivo, além do mais, das contas tituladas pela ora recorrente, e, em 26/05/2020, interpôs recurso,
VIII.–Também o arguido MS foi notificado das doutas decisões judiciais de 11/03/2020 e de 26/03/2020, relativas ao arresto preventivo, além do mais, da conta titulada pela ora recorrente, e, em 27/05/2020. interpôs recurso.
IX.–A recorrente não é requerida no arresto preventivo, e, este foi notificado à sua beneficiária efectiva e ao seu então presidente do conselho de administração.
X.–Contudo, ainda assim, por douto despacho de 24/04/2020, foi ordenado que
fosse dado conhecimento à ora recorrente dos fundamentos do arresto preventivo das suas contas bancárias. E, a ora, recorrente recorreu desse despacho.
XI.Na sequência de requerimentos apresentados pela ora recorrente, e, em face da não oposição da entidade requerente do arresto preventivo - o Ministério Público angolano, Autoridade Rogante -, foram proferidos vários despachos a autorizar o pagamento de salários de trabalhadores da recorrente, relativos aos meses de Janeiro/2020, Fevereiro/2020, Março/2020 e Abri1/2020, e, a autorizar o pagamento de todos os impostos devidos pela recorrente e de todas as contribuições devidas à Segurança Social, a partir de uma das contas arrestadas.
XII.–Tais autorizações traduziram-se numa redução da garantia patrimonial da Autoridade Rogante (proporcionada pelo arresto preventivo) superior a mais de 100.000,00 euros.
DA CONVENÇÃO CPLP
XIII.–A CONVENÇÃO CPLP “não determinou uma transferência de soberania jurisdicional dos Estados requerentes para os Estados requeridos relativamente aos processos objecto dos pedidos que esteja para além da apreciação e realização de concretos actos de auxílio judiciário requeridos ao abrigo do referido tratado”,
XIV.–O Estado requerido “carece de suporte normativo para empreender valorações sobre a lei processual do Estado requerente ou a actuação das respectivas autoridades na aplicação interna daquelas leis no âmbito do processo em que foi solicitada cooperação judiciária”,
XV.–O Estado requerido pode rejeitar um pedido de auxílio judiciário em matéria penal por se verificar um dos motivos de recusa de cooperação elencados no art. 3.° da CONVENÇÃO CPLP, e, “pode exigir que um pedido formalmente irregular ou incompleto seja modificado ou completado'” caso falte algum dos requisitos descritos no art. 9.º n.° 1 da CONVENÇÃO CPLP, mas - não se verificando nenhuma dessas situações expressamente previstas pelos Estados Contratantes da CONVENÇÃO CPLP - está vedado ao Estado requerido;
(i)- sindicar a decisão e/ou actuação do Estado requerente; ou,
(ii)- alterar os termos de um arresto preventivo aceite e executado no âmbito da CONVENÇÃO CPLP. contra a posição expressa do Estado requerente;
sob pena de violação da própria CONVENÇÃO CPLP, dos princípios da soberania e da confiança e ainda do art. 8.° n.ºs 1 e 2 da CRP.
XVI.–Vertendo para o caso dos autos, aceite e cumprido um pedido de auxílio de arresto preventivo que, além do mais, abrange contas bancárias movimentadas pelo arguido MS e que são tituladas por uma sociedade detida pela arguida JS, está vedado ao Estado requerido (PORTUGAL);
i)- conhecer e decidir matérias/questões susceptíveis de colocarem em crise a decisão de arresto preventivo proferida pelo Estado requerente (ANGOLA), designadamente da invocada desigualdade de tratamento entre sociedades portuguesas e sociedades angolanas não identificadas, “relacionadas” com a arguida JS e atingidas por esse arresto preventivo; e,
ii)-reduzir a garantia patrimonial da Autoridade Rogante, proporcionada pelo arresto preventivo das contas bancárias da ora recorrente, por via de autorizações de pagamentos de serviços de contabilidade, de fiscalidade e de ROC prestados à recorrente, contra aquela que é a vontade e a posição expressa da Autoridade Rogante.
XVII.–Contudo, relativamente à invocada violação do art. 13.° da CRP, sempre se dirá que a recorrente assenta tal alegação numa posição “assumida publicamente pela Procuradoria-Geral da República de Angola”, não esclarecendo (ou não querendo esclarecer) se tal posição foi assumida na sequência de uma providência cautelar cível de arresto decretada em 23/12/2019 pela Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, ou, na sequência do arresto preventivo decretado em 24/01/2020 pelo Tribunal Supremo de Angola no âmbito dos dois processos crimes angolanos que estão na origem da presente Carta Rogatória.
XVIII.–Certo é que o arresto preventivo decretado a 24/01/2.020 pelo Tribunal Supremo de Angola não abrange qualquer bem ou direito situado em território angolano.
XIX.–Trata-se, pois, de uma mera alegação, destituída de substância e fundamento.
Do Direito interno português ordinário 
XX.–No ordenamento interno português inexiste norma que imponha ou preveja que se utilizem fundos arrestados preventivamente a uma pessoa colectiva para fazer face a pagamentos de serviços de contabilidade, fiscalidade ou de ROC prestados a essa mesma pessoa colectiva.
XXI.–Com. efeito, não se divisa que norma ou conjugação de normas dê prevalência a um mero direito de credito resultante de uma prestação de serviço relativamente a um arresto preventivo decretado num processo criminal para garantia do confisco do valor das vantagens do crime, de penas pecuniárias e outros créditos,
XXII.–O art. 393.º n.° 3 do CPC, invocado pela recorrente, apenas é aplicável a pessoas singulares e depende da apresentação em juízo, pelo arrestado, de uma petição de alimentos provisórios.
XXIII.–Seja o requerente do arresto preventivo o Ministério Público português, um lesado português ou uma Autoridade Rogante de um Estado Contratante da CONVENÇÃO CPLP, não há norma legal - infraconstitucional ou constitucional que preveja ou imponha que se afecte a garantia patrimonial proporcionada por um arresto preventivo para satisfazer créditos de prestadores de serviços do arrestado.
XXIV.–Não existindo norma legal só deverá ser autorizada judicialmente a utilização de fundos arrestados mediante a concordância da entidade requerente do arresto preventivo.
XXV.–Por decisão de 30/04/2020 e registada em 08/05/2020. foi deliberada a dissolução da ora recorrente, e, a arguida JS foi nomeada liquidatária da mesma. 
XXVI.–Entre finais de Abril/2020 e 01/05/2020, os então trabalhadores da ora recorrente cessaram com esta as respectivas relações laborais
XXVII.–E, a sede da recorrente foi abandonada em finais de Maio/2020.
XXVIII.–No mínimo, surge pois deslocada a afirmação de que o douto despacho recorrido de 06//11/2020 será o responsável pelo “fecho compulsivo” da ora recorrente. O “fecho” resultou de uma deliberação voluntária da única accionista da recorrente tomada em 30/04/2020.
XXIX.–Bem andou o Mmo. JIC a quo ao não autorizar o pagamento dos serviços de contabilidade, fiscalidade e ROC a partir de conta bancária arrestada preventivamente. não tendo violado qualquer norma ou princípio jurídicos.

4.Subidos os autos a esta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer a fls. 140-141, louvando-se no teor da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância.

5.Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., a recorrente respondeu ao parecer como consta de fls. 143-148.
Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado.
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II–Fundamentação

1.O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se a saber se a decisão do tribunal a quo, no sentido de não autorizar o pagamento, a expensa da conta bancária arrestada, de serviços de contabilidade e fiscalidade, bem como de honorários de Revisor Oficial de Contas, parte de uma interpretação normativa violadora do artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa, e bem assim viola o disposto no artigo 393.°, n.° 3, do Código de Processo Civil Português.
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2.– Apreciando

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«Fls., 8440-8446 (20.° volume) datado, pela requerente, de 16/08/2020 [cópia a fls. 8527-8532 (20.° volume)], e, fls. 8842-8843 (21.° volume) datado, pela requerente, de 14/09/2020 (original a fls. 8861-8863):
Promove o M.° P.° o seguinte:
Vem a SF, S.A. requerer autorização de movimentação de conta arrestada preventivamente para efectuar o pagamento de serviços de contabilidade e fiscalidade e o pagamento de honorários de Revisor Oficial de Contas, com os valores de l.024,59 €, 4.100,82 € e 615,00 €, e, ainda de 3.075 €.
Como já referido em anterior promoção, o arresto preventivo foi determinado na sequência de um pedido de cooperação internacional efectuado pela Justiça Angolana e aceite quase integralmenle pela Justiça Portuguesa, e, sob pena de violação de uma Convenção a que o Estado português se vinculou, qualquer alteração aos termos do arresto depende da Autoridade Rogante, sendo que esta já tomou posição no sentido de apenas serem autorizados levantamentos/movimentos de contas arrestadas em situações muitos específicas, elencadas a fls. 3047-3048, cuja cópia já foi remetida à ora requerente.
Em face do entendimento supra assumido, o Ministério Público português promove e promoverá o indeferimento de todos os pedidos de autorização de despesas que não se incluam no elenco indicado pela Autoridade Rogante, pois que Portugal aceitou prestar o auxílio judiciário rogado, nos termos da Convenção de Auxilio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e, um dos princípios fundamentais da cooperação internacional é o da confiança no sistema de justiça do Estado rogante.
Uma vez as despesas em questão não se inserem no mencionado elenco, promovo que não se autorize a movimentação de conta arrestada para efectuar o pagamento de serviços contratados pelo requerente.»
Nos termos doutamente promovidos e a menos que o rogante conceda em pagar serviços de contabilidade e fiscalidade e honorários de ROC da SF Prestação de Serviços SA, cuja conta está arrestada, não se pode deferir o requerido sob pena de se estar a frustrar o rogado.
Consequentemente indefere-se o requerido, neste tocante.
Notifique.»

Está em causa, pois, o indeferimento de requerimento da ora recorrente que visava obter autorização de movimentação de uma conta bancária arrestada preventivamente para efectuar o pagamento de:
- serviços de contabilidade e fiscalidade a que se reportam facturas no valor de 1.024,59 € e  4.100,82€, emitidas pela EFE - Estudos Financeiros e Económicos, SA;
- honorários de Revisor Oficial de Contas (ROC) a que se reportam as facturas no valor de 615,00€ e 3.075,00€, emitidas pela sociedade AFA, SROC, Lda.

O mencionado arresto preventivo foi decretado em cumprimento do pedido de cooperação judiciária formulado pelas autoridades judiciárias competentes da República de Angola, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 17.°, 191.°, 192.° e 228.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e dos artigos 8.°, n.° 2 e 18.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, e também nos termos dos artigos 1.°, n.º 1, 2.°, n.°s 1 e 2, 4.°, n.° 1 e 9.° da Convenção de Auxílio Judiciário entre os Estados Membros dos Países de Língua Portuguesa (Convenção CPLP) - assinada na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005, aprovada pela Resolução da AR n.° 46/2008, de 18 de Julho de 2008, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.° 64/2008, de 12/09 (em vigor em Portugal desde 01/03/2010 e na República de Angola desde 01/08/2009).
A validade e a vigência do mencionado instrumento de cooperação judiciária e a sua utilização no âmbito dos autos que estão na origem do presente recurso têm sido amplamente apreciadas em diversos acórdãos desta Relação de Lisboa, sem esquecer o teor do acórdão de 5.03.2020, proferido em recurso intentado pelo Ministério Público, que determinou, no âmbito do seu objecto, fosse dado estrito cumprimento ao rogado pelas autoridades judiciárias angolanas e decretado o arresto preventivo dos bens e valores que estavam em causa.
Na sequência e em cumprimento desse acórdão, foi decretado o arresto preventivo, por via do pedido de cooperação judiciária formulado pelas autoridades judiciárias competentes da República de Angola, de participações sociais e de contas bancárias dos arguidos JS e MS, onde figuram como titulares, co-titulares, procuradores ou autorizados, para garantia do pagamento dos valores indicados no pedido.
Nos recursos ordinários, vigora o princípio da identidade de objecto entre a decisão recorrida e a decisão que conheça do recurso.
Objecto do recurso é a concreta decisão recorrida, pelo que não há que trazer a terreiro quaisquer questões que não foram apreciadas e decididas pelo despacho que se pretende sindicar, como seja a questão das notificações que foram efectuadas e a quem foram efectuadas.
Refere-se, aliás, nos autos que, na sequência de requerimentos apresentados pela ora recorrente, em face da não oposição da entidade requerente do arresto preventivo, foram proferidos vários despachos a autorizar o pagamento de salários de trabalhadores da recorrente, relativos aos meses de Janeiro/2020, Fevereiro/2020, Março/2020 e Abri1/2020, e, a autorizar o pagamento de todos os impostos devidos pela recorrente e de todas as contribuições devidas à Segurança Social, a partir de uma das contas arrestadas.
Não se vislumbra, pois, como poderia a recorrente desconhecer o arresto preventivo, quando é certo que dirigiu ao processo requerimentos diversos, entre os quais os que estão na origem do despacho recorrido, o que pressupõe o conhecimento do arresto.
Por conseguinte, devemos dirigir a nossa atenção para o despacho recorrido
Na sua origem estão, como já se disse, requerimentos da ora recorrente para que que fosse autorizado o pagamento de facturas relativas a serviços de contabilidade e fiscalidade prestados à mesma, bem como de honorários devidos a Revisor Oficial de Contas, sob a alegação de que tais pagamentos são absolutamente necessários e, a não se verificarem, levam à violação de legislação em vigor, no plano da contabilidade e do cumprimento de obrigações fiscais, do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 393.º do Código de Processo Civil (C.P.C.).
Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, da Convenção CPLP, o auxílio judiciário em matéria penal «compreende a comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo, bem como os actos necessários à perda, apreensão ou congelamento ou à recuperação de instrumentos, bens, objectos ou produtos do crime.».
Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, o auxílio «é concedido mesmo quando a infracção não seja punível ao abrigo da lei do Estado requerido» prevendo, não obstante, o n.° 2 que «os factos que derem origem a pedidos de realização de buscas, apreensões, exames e perícias devem ser puníveis com uma pena privativa de liberdade igual ou superior a seis meses, também no Estado requerido, excepto se se destinarem à prova de uma causa de exclusão de culpa da pessoa contra a qual o procedimento foi instaurado.»
Por seu turno, o artigo 3.° especifica os casos em que o Estado requerido pode recusar o cumprimento do auxílio, dispondo o artigo 4.°, n.° 1, que «O pedido de auxílio é cumprido em conformidade com o direito do Estado requerido.»
Quanto aos requisitos do pedido de auxílio, rege o disposto no artigo 9.° da Convenção.
Não existindo motivos de recusa, a cooperação deve ser efectuada pelo Estado requerido nos precisos termos em que lhe foi pedido, se quiser cumprir a Convenção a que, como Estado soberano, voluntariamente se obrigou.
No caso vertente, o tribunal a quo indeferiu o pagamento das supra referidas despesas a partir de conta arrestada preventivamente.
Como já houve a oportunidade de consignar em diversas decisões anteriores desta Relação, não existe norma positivada que expressamente preveja a utilização de fundos arrestados preventivamente a uma pessoa colectiva para fazer face ao pagamento de salários de trabalhadores, remuneração de um vogal do conselho de administração ou a satisfação de despesas com serviços de contabilidade ou fiscalidade, sendo certo que a entidade requerente do arresto preventivo — a Autoridade Rogante Ministério Publico angolano (República de Angola) —, que é quem tem o domínio do facto nesta matéria materializado em acto de soberania de direito convencional – a já referida Convenção CPLP, que apresenta a natureza de tratado-normativo e multilateral, tendo em Portugal valor infraconstitucional, mas primado sobre o direito interno ordinário, atento o disposto no n.° 2, do art. 8.º, da C.R.P. — apenas concordou em abdicar de parte dos fundos arrestados preventivamente, quando se estivesse perante pedidos de pagamento de impostos ao Estado português, de pagamentos à Segurança Social portuguesa, de pagamentos de salários de trabalhadores, de pagamentos de alimentos a menores, e bem assim de levantamentos/movimentos no valor mensal correspondente a dois salários mínimos destinados a garantir a subsistência a alguns dos arguidos.
O que quer dizer que o tipo de despesas invocadas pela recorrente ali não se contempla, ao que acresce a circunstância de não haver norma que imponha, nestas condições, o pagamento dos serviços em questão à custa dos bens arrestados.

Invoca a recorrente o preceituado no artigo 393.º, n.°3, do C.P.C., disposição que estabelece:
«O arrestado não pode ser privado dos rendimentos estritamente indispensáveis aos seus alimentos e da sua família, que lhe são fixados nos termos previstos para os alimentos provisórios.»
Porém, trata-se de norma que visa as pessoas físicas e não as pessoas colectivas, como é o caso da recorrente.
Entendemos, assim, que não existe no ordenamento interno português norma que imponha ou preveja que se utilizem fundos arrestados preventivamente a uma pessoa colectiva para fazer face a pagamentos de serviços de contabilidade e fiscalidade prestados a essa mesma pessoa colectiva ou a pagamentos de honorários ao seu ROC, ou seja, não vislumbramos base legal para que se dê prevalência a meros direitos de credito resultantes de prestações de serviços relativamente a um arresto preventivo decretado num processo criminal, para garantia do confisco do valor das vantagens do crime, de penas pecuniárias e outros créditos. As normas do C.S.C. e fiscais invocadas pela recorrente não determinam, a nosso ver, diversamente do que se pretende no recurso, tal prevalência.
As sociedades prestadoras à recorrente dos serviços de contabilidade e fiscalidade e de ROC, na qualidade de suas credoras, poderão, querendo, lançar mão dos mecanismos legais disponíveis para se fazerem pagar.
Invoca a recorrente o princípio da igualdade e diz, mesmo, na resposta ao parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, que o Ministério Público confessou na resposta ao recurso a violação desse princípio, consagrado no artigo 13.º da C.R.P.
Ora, o Ministério Público, na resposta ao recurso, reportando-se à invocada violação do disposto no referido artigo 13.º, diz que «a recorrente assenta tal alegação numa posição “assumida publicamente pela Procuradoria-Geral da República de Angola”, não esclarecendo (ou não querendo esclarecer) se tal posição foi assumida na sequência de uma providência cautelar cível decretada em 23/12/2019 pela Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda (vd. copia da decisão a fls. 5391 e 5399-5412 - 14,° volume), ou, na sequência do arresto preventivo decretado em 24/01/2020 pelo Tribunal Supremo de Angola no âmbito dos dois processos crimes angolanos que estão na origem da presente Carta Rogatória.
Certo é que o arresto preventivo decretado a 24/01/2020 pelo Tribunal Supremo de Angola, e, que consta de fls. 8-30 (1.º volume), não abrange qualquer bem ou direito situado em território angolano.
Trata-se, pois, de uma mera alegação, destituída de substância e fundamento.»
Não identificamos na resposta ao recurso qualquer confissão de que tenha sido violado, de alguma forma, o invocado princípio da igualdade.
E também não vislumbramos que o despacho recorrido tenha por base, como ratio decidendi, qualquer interpretação normativa contrária ao artigo 13.º da C.R.P.
O que quer que o Estado Angolano tenha decidido sobre eventuais arrestos decretados sobre empresas de direito angolano traduz matéria que aqui se ignora.
Finalmente, tendo em vista as datas relativas à dissolução da ora recorrente indicadas nos autos, não se vislumbra como possa ter o concreto despacho recorrido, proferido meses depois – em 6/11/2020 - , ter determinado tal desfecho.
Conclui-se que o recurso não merece provimento.
***

III–Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso apresentado por SF, SA.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.



Lisboa, 13 de Julho de 2021


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



(Jorge Gonçalves)                             
(Maria José Machado)