MÚTUO BANCÁRIO
PRAZO PRESCRICIONAL
EXIGIBILIDADE DAS OBRIGAÇÕES DO CONTRATO DE MÚTUO
VENCIMENTO ANTECIPADO
Sumário

I - É aplicável ao mútuo bancário, reembolsável em prestações pagáveis com juros, o prazo prescricional previsto no artigo 310, al. e) do CC, mesmo que haja vencimento integral e antecipado de todas as prestações.
II - O artigo 781 do CC consagra uma exigibilidade antecipada, mas não um vencimento automático da obrigação.
III – O mesmo sentido tem uma cláusula contratual que permita ao credor exercer o direito de exigir a totalidade da dívida, pois tal direito não é uma imposição e não corresponde a um vencimento antecipado automático.
IV – Juridicamente, a benfeitoria implica que o autor da mesma não seja o proprietário pleno da coisa benfeitorizada.

Texto Integral

Processo n.º 48/19.1T8MAI-B.P1

Recorrente – B…
Recorrida - C…, SA

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:[1]
I - Relatório
1 - B… deduziu embargos, por apenso à execução que lhe move C…, SA (depois de ter sido habilitada como cessionária[2] a prosseguir a execução instaurada pela Caixa Geral de Depósitos[3]) e pediu que a) seja declarada parte ilegítima na ação executiva; b) caso assim não se entenda, se declare prescrita a dívida exequenda; c) caso assim não se entenda, ser declarada a aquisição do imóvel através da usucapião; d) seja reconhecido o direito ao ressarcimento do valor despendido a título de benfeitorias; e) ser-lhe reconhecido à o direito de retenção pelas benfeitorias realizadas enquanto delas não for paga; f) seja ordenada a suspensão da execução.

2 – Fundamentando as suas pretensões, a embargante veio dizer que não figura na escritura que constitui o título executivo, nem contraiu qualquer empréstimo perante a Caixa. Diz também que as prestações do empréstimo deixaram de a ser pagas em junho de 2008 e, por isso, estão prescritas as quantias exequendas. Impugnando, diz que adquiriu a propriedade do imóvel penhorado através da usucapião e que, há mais de 18 anos, efetuou e efetua as obras que constituem os melhoramentos que descreve e, por isso, mesmo que lhe não seja reconhecida a propriedade, deve ser indemnizada pelas benfeitorias realizadas e, enquanto delas não fora paga, tem direito de retenção.

3 – Ainda antes da admissão dos embargos, o tribunal proferiu o despacho que se sintetiza: “(...) Em sede de embargos (...) Em síntese, a embargante, que é demandada na exclusiva qualidade de proprietária do imóvel hipotecado, diz-se, por um lado, parte ilegítima, por nunca ter contratado com a exequente, mas, por outro lado, parece sugerir que a executada D… apenas figura como compradora porque a embargante teve problemas na obtenção do crédito, ou seja, que terá sido a verdadeira beneficiária do empréstimo. Ora, dado que a propriedade sobre o imóvel não está em causa, sendo até fundamento da demanda da embargante como executada, importa esclarecer se, conforme parece a embargante querer sugerir, o contrato de crédito foi efetuado em nome da executada D…, mas em benefício da embargante. Assim, notifique para vir esclarecer o significado do alegado no art. 18.º da petição, designadamente se, como se indicia, ali é admitido que a executada D… interveio nos contratos de mútuo a pedido e em benefício da embargante, o que contraria, ainda que de forma indireta, o alegado em 5.º e parece confissão de um negócio simulado”.

4 – A embargante veio esclarecer: “(...) Quando se diz que a executada D… interveio nos contratos de mútuo a pedido e em benefício da embargante, quer-se dizer que esta veio substituir a embargante no negócio. Ou seja, a co-executada não tendo conseguido obter crédito bancário, e porque era um negócio apetecível, não o queria perder. Assim, propôs à D… que comprasse ela o imóvel e quando esta endireitasse a sua vida, logo lho compraria. Sucede que a vida não o proporcionou e não mais conseguiu adquirir o imóvel. Ora para que se possa falar de negócio simulado, impõe-se a verificação de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros [e] nada disso aqui marcou presença, tratou-se simplesmente de um mútuo com hipoteca, sem qualquer intervenção da B…, que foi forçada a desistir da compra do imóvel.

5 - Os embargos foram recebidos e a exequente notificada para os contestar (fls. 27).

6 – Contestando, a exequente defendeu a legitimidade da embargante e a inexistência de prescrição, uma vez que os valores peticionados se encontram sujeitos ao prazo prescricional de 20 anos. Acrescenta que, sendo a executada proprietária do imóvel, as obras efetuadas foram-no nessa qualidade e não há direito de retenção e, finalmente, defende que a execução não deve ser suspensa.

7 - A 8.01.2021 foi proferido despacho (fls. 31/38) que fixou o valor da causa (109.996,28), declarou a embargante parte legítima, apreciou a exceção da prescrição, que declarou improcedente [Resulta alegado no artigo 4.º do requerimento executivo, não impugnado pela embargante, que “a executada (mutuária), pese embora as interpelações efetuadas pela exequente para a regularização do atraso em dívida, não pagou, na data dos seus vencimentos, as prestações mensais para o reembolso dos capitais e juros, estando em dívida as prestações vencidas desde 29.06.2008 e 29.02.2008, respetivamente, e o imóvel que as garante foi penhorado em execução fiscal, o que confere à exequente o direito de considerar antecipadamente vencidos os empréstimos e exigir o imediato pagamento das dívidas respetivas (cfr. doc. 1 e 2)”. Dado que em nenhum momento a embargante impugna qualquer documento, importa extrair dos contratos de mútuo celebrados (cláusula décima terceira do primeiro contrato e décima segunda do segundo) que ficou reconhecido ao banco credor o direito de considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado foi alienado sem o seu consentimento ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes do contrato. Do acordo homologado por sentença e documentado em anexo ao requerimento executivo, resulta claro que a mutuária reconheceu a transmissão do imóvel hipotecado, bem como resulta documentado na certidão predial que o imóvel foi objeto de penhora em processo de execução fiscal, o que confere à exequente o direito de considerar vencido o empréstimo tornando-se imediatamente exigível toda a dívida. A exequente não reclama a soma do valor devido por efeito da omissão de cumprimento do dever de pagamento mensal das prestações, mas o valor integral do crédito, alegando prévia interpelação para pagamento, que não é posta em causa. O artigo 310, al. e) do Código Civil estipula que prescrevem no prazo de 5 anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros. A esta luz, seria de considerar a verificação da prescrição se a exequente se encontrasse a reclamar na execução a soma das prestações mensais individuais vencidas desde 29.06.2008 e 29.02.2008 até à data de entrada da execução em juízo. Porém, o que a exequente reclama com base no incumprimento dos contratos de mútuo é a totalidade da dívida (prestações vencidas e vincendas), precisamente por efeito do vencimento antecipado da dívida. O vencimento antecipado associado ao incumprimento das obrigações contratuais que justificam o fracionamento do pagamento em prestações, por aplicação das cláusulas do contrato e das disposições gerais previstas nos artigos 780 a 782 do Código Civil (perda de benefício do prazo) corresponde à destruição dos efeitos do plano de pagamento prestacional, que perde a sua razão de ser, sendo substituído por uma única dívida global, de origem contratual, que escapa ao âmbito de aplicação do citado artigo 310 do Código Civil, para passar a incluir-se no contexto geral da previsão do artigo 309 do Código Civil (...) o que se reclamava na acção não correspondia à soma de cada uma das prestações vencidas e não pagas, passíveis de serem autonomamente objeto de um prazo de prescrição de curto prazo, mas a dívida global, correspondente à totalidade do capital em dívida à data do incumprimento e aos juros vencidos sobre esse valor global desde a data em que foi declarado o incumprimento. A esta luz, impõe-se concluir que nenhuma razão existe para se fazer uso da previsão do art. 310, al. e) do Código Civil quando a expectativa do devedor de pagar pequenas quantias de cada vez e de ser surpreendido pela exigência de um conjunto acumulado de prestações não é merecedora da tutela do direito, quando o devedor sabe que o valor em dívida é já correspondente a uma soma global – a totalidade da dívida vencida (...) Ou seja, não pode o citado artigo 310, al. e) ser usado como suporte da extinção da totalidade da obrigação exequenda quando, sem impugnação da embargante, o que se reclama é o valor emergente do vencimento antecipado dos empréstimos, por efeito de omissão de pagamento atempado das prestações e de penhora incidente sobre o imóvel que garante tais empréstimos, efetuada no contexto de execução fiscal]. Por último, em relação às benfeitorias e direito de retenção, as partes foram notificadas para se pronunciarem, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC).

8 - A exequente pronunciou-se, dizendo, em síntese, que “temos um proprietário de um imóvel, que aceitou a constituição de hipoteca sobre o mesmo, a pedir indemnização por benfeitorias realizadas, ao credor hipotecário. Tal pedido mostra-se descabido e sem previsão legal, pelo que não poderá ser em caso algum atendido. Mas ainda que assim não fosse, ainda assim não se encontravam reunidas as condições necessárias para que pudesse ser reconhecido um direito de crédito sobre as benfeitorias”.

9 – Igualmente se pronunciou a embargante, sustentando que estamos perante benfeitorias necessárias e que é aplicável o direito de retenção.

10 – Foi então proferido o despacho de 11.02.2021, que julgou improcedentes os embargos (o que “prejudica a requerida atribuição de efeito suspensivo”), nestes termos: “em complemento do já decidido no despacho saneador por os factos alegados não suportarem a visada solução de direito, julgo manifestamente improcedentes os embargos deduzidos e, em consequência, absolvo a embargada/exequente dos pedidos deduzidos nas alíneas d) a e) do requerimento inicial de embargos, devendo a execução prosseguir os seus regulares termos”.

11 – Fundamentando a decisão, no que se mantinha em apreciação, nos termos que se sintetizam: “(...) Admitir o prosseguimento do apenso declarativo para os fins visados pela embargante permitiria, sob a capa de uma oposição à execução, enxertar uma autónoma acção declarativa destinada à prova da existência de obras e à avaliação do seu valor, num contexto material que nenhuma conexão tem com a existência e limites da obrigação exequenda. Pelo exposto, a reconvenção em que se traduz o pedido de reconhecimento do direito ao ressarcimento do valor despendido a título de benfeitorias e reconhecimento do direito de retenção do imóvel pelas benfeitorias realizadas pela executada enquanto não esta for paga pelas mesmas, constitui uma pretensão formalmente inadmissível, que sempre implicaria a absolvição da embargada da instância reconvencional.
Porém, dispõe o art. 278, n.º3 do Código de Processo Civil que não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte. Essa é a situação do caso concreto e corresponde à segunda questão colocada. Não obstante a inadmissibilidade formal de reconvenção em processos como o presente, a questão da ausência de suporte substantivo para a pretensão que a embargante pretende ver reconhecida e declarada impõe o conhecimento de mérito. Como bem realça a embargada, a pretensão da embargante encerra uma contradição evidente (...) A própria embargante refere que o pedido de indemnização constitui um pedido a apreciar no caso não lhe ser reconhecido o direito de propriedade. Não obstante saber que é proprietária e partir desse pressuposto, alega em seu benefício da previsão do art. 754 do Código Civil (...) A construção jurídica é difícil de compreender, já que pretende ser reconhecida como proprietária, sem pretender suportar as consequências da propriedade (designadamente as decorrentes dos ónus constituídos sobre o imóvel) e, em simultâneo, pretende beneficiar das vantagens concedidas ao possuidor, enquanto alguém que investe e beneficia coisa alheia (...) Ainda que à embargante pudesse ser reconhecido um qualquer direito de crédito (que não pode, já que as benfeitorias visavam valorizar imóvel próprio e não de terceiro, não podendo ser perspetivada como possuidora de coisa alheia), esse direito não se encontraria contemplado em qualquer das previsões específicas do art. 755 do Código Civil (...) Em suma: - a embargante, enquanto proprietária, não é titular de qualquer direito de crédito emergente de benfeitorias destinadas a beneficiar o imóvel próprio, sobre o qual não poderia ver constituído um direito real de garantia; - a ser credora, seria no pressuposto de não lhe ser reconhecido o direito de propriedade e, nesse caso, o seu direito de crédito teria que ser exercido perante a proprietária; - a exequente não deduz um pedido de entrega da coisa, antes constituindo tal entrega uma eventual consequência da não satisfação do direito de crédito, que constitui a finalidade essencial da execução instaurada; - qualquer reconhecimento de um direito de retenção titulado pela embargante traduziria um aval dado pelo tribunal a uma atuação contrária à boa-fé, prejudicando a exequente por um conjunto de condutas que apenas à embargante são imputáveis, com inversão das mais básicas regras de justiça material”.
II – Do Recurso
12 – Inconformada, a embargante veio apelar. Num primeiro requerimento pretende a reapreciação da questão da “exceção da prescrição da dívida exequenda” e conclui:
I - Alicerça a exequente o seu Direito de Crédito com base num Mútuo Bancário Liquidável em Prestações, garantido por Hipoteca.
II - Alega para tanto que a embargante, pese embora as interpelações efetuadas pela exequente para a regularização do atraso em divida, não pagou, na data dos seus vencimentos, as prestações mensais para o reembolso dos capitais e juros, estando em dívida as prestações vencidas desde 29.06.2008 e 29.02.2008.
III - Desde essa data até à instauração da presente ação por parte da exequente Caixa Geral de Depósitos em 2019, decorreram mais de 11 anos.
IV - A dívida, sendo objeto de um plano de amortizações, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e uma parcela de juros remuneratórios, terá como prazo prescricional a prescrição quinquenal, e não o prazo ordinário prescricional, previsto no artigo 309 do C.C.
V – Prescrevem, portanto, no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros - artigo 310, alínea e), do C. Civil.
VI - É aplicável ao mútuo bancário, reembolsável em prestações pagáveis com juros o prazo prescricional previsto no artigo 310, al. e) do Código Civil e, mesmo que haja vencimento integral e antecipado de todas as prestações, o contrato continua a ter a mesma natureza e a dívida aquele prazo prescricional.
VII - A circunstância de tal direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos da prescrição.
VIII - Em contrato de mútuo outorgado pelos executados e por estes incumprido, é aplicável o prazo de prescrição constante do artigo 310 e) do C.C., por dele constar o pagamento de quotas de amortização do capital pagáveis com juros.
IX - A este entendimento, não obsta o vencimento de todas as prestações fracionadas decorrente do incumprimento do contrato, pois que, neste caso, verifica-se que a partir dessa data passou o exequente a poder exercer o seu direito, demandando os seus devedores (art. 306 n.º 1 do C.C.).
X - O tribunal violou o disposto nos artigos 310 al e) do Código Civil.

13 – Na mesma data, a embargante apresentou outro requerimento recursório, onde coloca em reapreciação a compensação pelo valor das benfeitorias e o direito de retenção como garantia do pagamento das mesmas e aí conclui:
I - Alicerça a exequente o seu Direito de Crédito com base num Mútuo Bancário Liquidável em Prestações, garantido por Hipoteca.
II - Importa notar que a embargante efetuou obras de melhoramento e valorização do imóvel;
III - Essas obras e melhoramentos resultaram numa valorização em cerca do dobro, do imóvel hipotecado;
IV - Porque se encontram preenchidos os seus pressupostos é de aplicar o art. 720/2 al. b) do CC.
V - E consequentemente, e após concreta avaliação do imóvel, - o que se requereu em sede de embargos - ser vista a redução da hipoteca.
Por outro lado, e mesmo que assim não se entenda,
VI - Essas obras de melhoramento resultam num crédito a favor da embargante que deve ser compensado no crédito da exequente;
VII - A compensação é permitida no âmbito do processo executivo, devendo ser enxertada na oposição à execução.
VIII - Por via desse crédito a embargante tem direito de retenção sobre o imóvel até integral pagamento da sua compensação pelas benfeitorias.
IX - Os embargos não podiam ter sido, como foram, liminarmente indeferidos, sem mais, sendo que foi requerida a avaliação do imóvel com vista à compensação pelas benfeitorias e consequente redução da hipoteca.
X - O Tribunal violou o disposto nos artigos art. 720/2 al. b), 754, 755, 847, 1273, 1274, 1275, todos do CC.

14 – A exequente respondeu ao recurso, numa única resposta e, defendendo a decisão recorrida, veio concluir:
A - O recurso tem efeito devolutivo e não suspensivo como é alegado pela recorrente, uma vez que não está em causa a posse ou o direito de propriedade do imóvel, o que impossibilita a aplicação do artigo 647 n.º 3 b) do CPC.
B - A recorrente baseia todo o seu pedido em benfeitorias que não se sabe se existem, pois não fez prova das mesmas tal como era obrigada.
C - Por outro lado, sendo a recorrente a proprietária do imóvel, o pedido da mesma quanto a Benfeitorias, não faz qualquer sentido.
D - No caso em apreço, temos um proprietário de um imóvel, que aceitou a constituição de hipoteca sobre o mesmo, a pedir indemnização por benfeitorias realizadas, ao credor hipotecário.
E - Tal pedido mostra-se descabido e sem previsão legal, pelo que não poderá ser em caso algum atendido.
F - Mas ainda que assim não fosse, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, ainda assim não se encontravam reunidas as condições necessárias para que pudesse ser reconhecido um direito de crédito sobre as benfeitorias.
G - Usando as palavras da sentença recorrida, “Dado que a embargante é reconhecida proprietária do imóvel e que a sua demanda assenta no reconhecimento desse direito, jamais poderia ter um direito real de garantia sobre o imóvel – o direito real de garantia é, por definição, um direito do credor sobre bens do devedor, que é terceiro”.
H - Consequência da inexistência do direito de crédito, será a inexistência do direito de retenção.
I - E como bem se conclui na sentença recorrida: “qualquer reconhecimento de um direito de retenção titulado pela embargante traduziria um aval dado pelo tribunal a uma atuação contrária à boa-fé, prejudicando a exequente por um conjunto de condutas que apenas à embargante são imputáveis, com inversão das mais básicas regras de justiça material.”
J - A recorrente invoca a prescrição alegando que decorreu o prazo de cinco anos desde o alegado início do incumprimento, e que, portanto, deverá ser considerada extinta a obrigação exequenda, por se encontrarem prescritas as prestações que se venceram em 29.06.2008. Ora,
K - A recorrente não se opõe ao vencimento total das dívidas, apesar de, ainda assim, invocar e considerar a aplicação do disposto nas alíneas e) e g) do artigo 310 do Código Civil.
L - Considerando o incumprimento contratual e o vencimento total das dívidas em 2008, não poderá considerar-se a previsão legal invocada pela embargante uma vez que esta respeita a prestações periódicas, o que, in casu, deixaram de existir.
M - A este propósito, e a título de exemplo, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16.03.2017, Processo n.º 589/15.0T8VNF-A.G1 – onde se conclui “em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos”.
N - Assim, os valores peticionados encontram-se sujeitos ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.

15 – Considerados os requerimentos como um único recurso, foi o mesmo recebido nos termos legais [Não obstante, na mesma data, a embargante dar entrada a dois requerimentos de interposição de recurso, no pressuposto de que a circunstância de as questões terem sido tratadas em dois despachos distintos implicavam autonomização dos recursos, profere-se um despacho unitário e admitem-se os recursos interpostos, retificando-se que, por incidirem sobre despacho saneador que apreciou o mérito das exceções e sobre decisão que pôs termo à causa, o recurso é de apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (art. 644, n.º 1, 645, n.º1, al. a) e 647, n.º 1, todos do Código de Processo Civil), porquanto não se verifica a previsão do art. 647, n.º 3, al. b) do Código de Processo Civil – não está em causa a propriedade do imóvel] e, nesta Relação, nada se alterou ao sentido desse mesmo despacho de recebimento.

16 – Os autos correram Vistos e nada observamos que obste ao conhecimento do mérito da apelação.

17 – O objeto do recurso, tendo em conta as conclusões apresentadas pela apelante, traduz-se em saber se a decisão deve ser revogada, porquanto a) o crédito da exequente se encontra prescrito e b) a embargante tem direito a ser compensada pelas benfeitorias feitas no imóvel, gozando de direito de retenção até integral pagamento das mesmas.
III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
18 – Os factos resultantes do relatório mostram-se bastantes à apreciação do recurso e, por isso, sem embargo de virmos a repetir alguns deles, pertinentes à aplicação do Direito, remetemos para esse mesmo relatório.
III.II – Fundamentação de Direito
Da prescrição
19 – Em abono do seu entendimento, segundo o qual po qual se aplica ao mútuo bancário o prazo prescricional previsto no artigo 310, alínea e) do Código Civil (CC), a recorrente veio citar nas suas alegações, além de outros, o recente acórdão desta Relação do Porto, proferido a 9.12.2020.

20 – A recorrente transcreve o sumário do aludido acórdão, que aqui se renova: “I - É aplicável ao mútuo bancário, reembolsável em prestações pagáveis com juros o prazo prescricional previsto no artigo 310, al. e) do Código Civil e, mesmo que haja vencimento integral e antecipado de todas as prestações, o contrato continua a ter a mesma natureza e a dívida aquele prazo prescricional. II - O artigo 781 do Código Civil consagra uma exigibilidade antecipada, mas não um vencimento automático da obrigação. III - E o mesmo sentido tem uma cláusula contratual que permita ao credor exercer o direito de exigir a totalidade da dívida, mas não imponha o seu vencimento antecipado automático. IV - O disposto no artigo 323, n.º 2 do CC tem aplicação às execuções em que a penhora precede a citação do executado”.

21 – A embargante, na aludida transcrição, sublinha o ponto I do sumário, na parte em que se escreveu “mesmo que haja vencimento integral e antecipado de todas as prestações, o contrato continua a ter a mesma natureza e a dívida aquele prazo prescricional”, não deixando, assim, de realçar o entendimento segundo o qual aquele prazo, de cinco anos, é aplicável ao mútuo bancário, mesmo quando haja vencimento antecipado da totalidade das prestações.

22 – A embargante, no entanto, pouco atendeu ao que se mostra sumariado nos pontos II e III, que claramente distingue entre o direito do credor de exigir antecipadamente a totalidade da dívida e o vencimento automático da obrigação.

23 - Ora, como se verá, trata-se de uma distinção relevante e com reflexos no caso que foi objeto do acórdão proferido a 9.12.2020, mas também no presente caso, e se o vincamos é, desde logo, porque logo, esse acórdão foi proferido por este mesmo coletivo, ao qual cabe apreciar o presente recurso.

24 – No fundo, e sintetizando, nem o artigo 781 do CC consagra um vencimento automático da obrigação, nem qualquer cláusula contratual que permita ao credor – em razão do incumprimento repetido ou de qualquer outra causa que, nomeadamente, diminua a garantia do crédito – o consagra, quando apenas estipula o direito de exigir a totalidade da dívida.

25 – Note-se que a primeira exequente, como resulta dos autos e, aliás, a embargante transcreve no seu recurso, veio alegar no seu requerimento executivo, que «A executada, pese embora as interpelações efetuadas pela exequente para a regularização do atraso em divida, não pagou, na data dos seus vencimentos, as prestações mensais para o reembolso dos capitais e juros, estando em dívida as prestações vencidas desde 29.06.2008 e 29.02.2008, respetivamente, e imóvel que os garante foi penhorado em execução fiscal, o que confere à exequente o direito de considerar antecipadamente vencidos os empréstimos e exigir o imediato pagamento das dívidas respetivas» (sublinhados nossos).

26 – Houve – no reconhecimento feito pela exequente – a interpelação para regularização da dívida e, atento o incumprimento e a penhora do imóvel em execução fiscal, a exequente considera-se com o direito de considerar antecipadamente vencido o empréstimo.

27 – Não há qualquer vencimento automático, mas o direito de considerar antecipadamente vencida a dívida. Naturalmente, o direito de considerar vencida a dívida que ainda não o estava.

28 – Note-se, por outro lado, que a embargante não demonstra – pois nem sequer alega – qualquer data em que haja sido interpelada para o pagamento da dívida. Para o pagamento da dívida antecipadamente vencida, o que se não confunde com a interpelação para a regularização da dívida, ou seja, para pagamento das prestações efetivamente vencidas.

29 – Assim – e repetindo o que ficou dito no acórdão de 9.12.2020 – embora seja nosso entendimento, em conformidade com larga jurisprudência, toda ela recente, que ao mútuo pagável fracionadamente é aplicável o prazo prescricional de cinco anos, previsto na alínea e) do artigo 310 do CC, esta conclusão não resolve, pelo menos integralmente, a questão da prescrição, pois importa saber qual o termo inicial do prazo prescricional relativamente, agora, não a cada uma das prestações, mas à prestação integral vencida e, nesse enquadramento, mostra-se insuficiente o apelo ao disposto no artigo 781 do CC, o qual, por não ser de funcionamento automático, impõe a interpelação ao devedor.

30 – Efetivamente, o artigo 781 do CC consagra uma situação de exigibilidade antecipada e não o vencimento automático da obrigação e, por outro lado, as cláusulas contratuais que apenas permitem o vencimento antecipado – e outra consequência não consta do requerimento executivo nem foi invocada pela embargante – mais não significam que o credor tanto pode exercer o direito potestativo de exigir a totalidade da dívida como (o direito) de manter o pagamento em prestação, inicialmente acordado. Por elas, permite-se o vencimento imediato do empréstimo, mas delas não resulta esse vencimento antecipado automático, afastando irremediavelmente o programa prestacional acordado.

31 – Porque assim é, e não perdendo de vista que a prescrição tem de ser invocada por quem dela aproveita (artigo 303 do CC), no caso presente só com a propositura da ação executiva é que o credor exerce o direito de considerar vencida a totalidade das prestações e, por isso, sendo até aí a dívida pagável em quotas de amortização, apenas se podem considerar prescritas as prestações que, naquela ocasião – ou melhor, nos cinco dias subsequentes – estavam vencidas há mais de cinco anos.

32 – Como resulta dos autos a execução foi instaurada em 28.12.2018 e, segundo a regra interruptiva resultante do disposto no artigo 323, n.º 2 do CC, “Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”, sendo certo que tal norma é aplicável à execução, ainda que esta se inicie pela penhora.

33 – Em suma, só relativamente a algumas prestações em dívida se pode considerar que a prescrição ocorreu.

34 – Em conformidade, nesta parte, o recurso – tal como os embargos – é parcialmente procedente, havendo que prosseguir a execução, mas não quanto às prestações vencidas há mais de cinco anos nos cinco dias posteriores à propositura da execução.

Da compensação das benfeitorias e do direito de retenção
35 – Em sede de recurso, a embargante insiste na compensação das benfeitorias que diz ter realizado no imóvel que é sua propriedade, e no correspondente direito de retenção.

36 – Com todo o respeito por melhor saber, a pretensão da embargante parte de um equívoco ao entender que o proprietário realiza benfeitorias – em sentido jurídico, naturalmente – na sua propriedade.

37 – Ora, o juridicamente correto é que é “a dissociação entre o proprietário da coisa beneficiada e o autor da intervenção ou conservação [que] justifica a autonomia de tratamento jurídico das benfeitorias”.[4]

38 – Dito de outro modo, “a noção jurídica de benfeitoria implica que o autor da mesma não seja o proprietário pleno da coisa benfeitorizada. Só os atos de melhoramento de coisa alheia levantam problemas jurídicos”.[5]

39 – Não há benfeitoria quando o proprietário conserva ou melhora o seu imóvel. Aliás, se as alterações feitas, em lugar de melhorarem ou conservarem o imóvel o deteriorassem, também, estamos certos, não haveria responsabilidade civil.

40 – Em suma, a embargante invoca um direito que, enquanto proprietária do imóvel, não tem.

41 – Como também não tem qualquer crédito sobre a exequente que pudesse justificar – a ser processualmente admissível – uma compensação.

42 – Não podendo ter, por isso, qualquer direito de retenção.

43 – Tanto basta para que, nesta parte, se considere claramente improcedente a sua apelação.

44 - As custas do recurso, como dos embargos, são devidas pela recorrente e pela recorrida, atendendo-se ao respetivo decaimento, mas sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido à primeira.
IV - Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a presente apelação e, em conformidade, revoga-se a decisão recorrida na parte em que considerou não estar prescrito o crédito da exequente e consideram-se prescritas (e, nessa parte extinta a execução) apenas as prestações (quotas de amortização) vencidas há mais de cinco anos nos cinco dias subsequentes à propositura da execução (28.12.2018), no mais mantendo o decidido.

Custas, no recurso e nos embargos, pela recorrente e pela recorrida, atendendo-se ao respetivo decaimento.

Porto, 12.07.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
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[1] Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.
[2] Por decisão de 12.10.2020: “C…, SA, vem propor incidente de habilitação (...) Pelo exposto declaro-a habilitada como cessionária a prosseguir, na qualidade de exequente, os termos da ação”.
[3] Instaurada em 28.12.2018 e nos termos aqui resumidos: “(...) 2 - Em 29.11.2002, emprestou à executada D… as quantias de 74.820,00€ e 5.000,00€, que destinou na aquisição de imóvel para a habitação própria e em investimentos em imóveis, e se obrigou a restituir nos prazos de 30 anos, em 360 prestações mensais e sucessivas de capitais e juros vencendo-se as primeiras a 29.12.2002 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes (docs. 1 e 2). 3 - Em garantia do pagamento, constituiu hipotecas a favor da exequente sobre o imóvel indicado à penhora (doc. n.º 3) 4 - A executada, pese embora as interpelações efetuadas para regularização do atraso em dívida, não pagou, na data dos seus vencimentos, as prestações para reembolso dos capitais e juros, estando em dívida as prestações vencidas desde 29.06.2008 e 29.02.2008, respetivamente, o imóvel que os garante foi penhorado em execução fiscal, o que confere à exequente o direito de considerar antecipadamente vencidos os empréstimos e exigir o imediato pagamento das dívidas. 5 - A exequente tem, por isso, a haver da executada os capitais em dívida, despesas e comissões emergentes do incumprimento e as relacionadas com a segurança e cobrança do crédito, os juros vencidos e não pagos e os vincendos (...). 6 - Em embargos de terceiro deduzidos no processo executivo n.º 1373/04, foi reconhecido, por sentença homologatória de transação, já transitada, que a propriedade do imóvel, garantia hipotecária dos empréstimos, é da executada B… (...). 7 - Em face disso, uma vez que exequente pretende fazer valer a garantia decorrente das hipotecas, a execução é movida também contra a E… (...) 1. Foram computados os juros no montante de 33.115,65€ (29.864,24€ e 3.251,41€), as comissões pelo incumprimento, no montante de 4.274,18€ e o imposto de selo sobre os juros do empréstimo de 5.000€ e sobre as comissões, no montante de 301.03€, até 27.12.2018. 2. A partir de 27.12.2018, são devidos juros às taxas de 4,736% e 4,986%, respetivamente, despesas e comissões, tudo a liquidar a final”.
[4] Marta Sá Rebelo, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 484.
[5] Rui Pinto Duarte, Código Civil Anotado, Volume I, Ana Prata (Coord.), Almedina, 2017, pág. 266.