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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE INJÚRIAS
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Sumário
I - O crime de violência doméstica supõe uma certa estabilidade de uma relação de proximidade existencial efectiva. II - Uma relação de coabitação efémera e ocasional, de duvidoso valor afetivo, cuja duração real oscilou pelos quinze dias, não pode integrar um crime de tutela penal reforçada e de natureza pública como o de violência doméstica. III - A absolvição pelo crime de violência doméstica não permite a convolação e condenação pelo crime de injúrias, que tem como pressuposto a dedução de acusação particular.
Texto Integral
Processo nº 1300/19.1PIPRT.P1
2ª Secção Criminal- Tribunal da Relação do Porto. Relatório:
No processo acima identificado, por sentença com data de 28/01/2021, decidiu-se julgar procedente e provada a acusação pública e, consequentemente:
Condenar o arguido, B…, divorciado, filho de C… e de D…, nascido em 24/04/1971, natural de …, Porto, residente na Rua …, nº .., …, …. - …, …, Pombal, titular do B.I nº………, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152, nºs 1, alª b) e 2, do Cód. Penal, na pena de 26 meses de prisão.
Ao abrigo do disposto nos artº 50 do CP, suspendeu-se a execução da referida pena de prisão, pelo período de 26 meses, a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
Nos termos dos artºs 52 a 54, do CP, como forma de proteger a sua reintegração, o arguido fiou sujeito a regime de prova, de acordo com o plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, impondo ainda, ao arguido, as seguintes regras de conduta: Colaborar com os técnicos da DGRSP e comparecer nos dias e horários determinados pelos mesmos.
(…)
Mais se condena o arguido a pagar à ofendida E…, a quantia de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais, ao abrigo do disposto no artº 21, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e artº 82A do Código de Processo Penal.
Inconformado veio o arguido recorrer nos termos de fls. 316/323 com dedução das seguintes conclusões:
A) – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, no que respeita à condenação do arguido, B…, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152 nºs 1, alª b) e 2 do CP, na pena 26 meses de prisão, suspendida na sua execução pelo período de 26 meses, sujeita a regime prova e ainda a liquidar à Ofendida a quantia de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais ao abrigo do disposto no artº 21, nº 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e art, 82-A do CPP;
B) - Ora, no modesto entendimento do recorrente existe erro na determinação da norma jurídica aplicada, nos termos do artº 412, nº 2, alª c) do CPP;
C) - Na sentença de primeira instância são dados como provados, entre outros, os seguintes factos – reproduzidos em sede de fundamentação.
D) - O Tribunal de primeira instância deu como não provados, entre outros, os seguintes factos:
“a) na data referida em 6), o arguido disse “eu tenho outra mulher; tu não prestas; tu não vales nada, arranjei uma mulher melhor que tu”;
b) na data referida em 10), o arguido disse “tu não prestas, tu não vales nada”.
c) nas circunstâncias referidas em 11), o arguido tivesse atingido a ofendida com uma garrafa na perna;
d) na data referida em 13), o arguido disse “eu acabo contigo, tu vais ver o que eu te vou fazer”, não vales nada, não prestas”;
e) o arguido controlava os movimentos da vítima quanto a entradas e saídas da residência e aos telefonemas (...)”
E) - Entendendo o recorrente, atento os factos dados como provados e não provados que não se encontram preenchidos os elementos do tipo legal de crime, pelo qual foi condenado;
F) - Razão pela qual entende que a douta decisão recorrida violou, entre outros o disposto nos artºs 152, 40, 70 e 71 do C.P;
G) Pois, o crime de violência doméstica, é um crime específico impróprio e de perigo abstracto – pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas à integridade física simples (artigo 143, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181), a difamação (artigo 180, nº 1), a coacção (artigo 154), o sequestro simples (artigo 158, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192, nº 1 alª b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199, nº 2, alª b)], todos do Código Penal;
H) - O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela;
I) - Já a expressão “maus tratos”, fazendo apelo à “imagem global do facto”, pressupõe, no pólo objectivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual;
J) - Além disso, o tipo legal de crime exige ainda entre a vítima e o agressor uma relação sentimental, afectiva, íntima e tendencialmente estável ou duradoura, que ultrapasse a mera amizade ou relações fortuitas, não se exigindo, todavia, um projecto futuro de vida em comum, a medida em que as relações de namoro não têm, em princípio, a pretensão de preencher todas as características associadas à conjugalidade, como seja o futuro de vida em comum;
K) - Ora, dos factos dados como provados temos que o recorrente e a ofendida se conheceram em Junho de 2019, pelo facebook, e que no S. João, ou seja, por volta do dia 24/06/2019, já residiam juntos, e que em Julho de 2019, o recorrente já não pretendia manter qualquer relacionamento, razão pela qual pediu à ofendida para sair da sua casa;
L) - E que foi pelo facto de a ofendida não ter acedido ao pedido do arguido - de sair de casa - que aquele alegadamente a injuriou e a agrediu fisicamente;
M) - Note-se que somente se dá como provado, que o recorrente tenha agredido a ofendida, duas vezes, e que dessas agressões não resultaram lesões físicas de maior;
N) - Para a caracterização do crime de violência doméstica é relevante que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, possuam uma gravidade e importância tais que coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal;
O) - Ora, considera o arguido, que não obstante alguns factos estarem mal julgados, a verdade é que mesmo consideram os factos tale qual como estão na sentença, mesmo assim, não podia afinal ser condenado pela prática de tal crime;
P) - Desde logo, porque, atendendo às circunstâncias em que o arguido e a ofendida se conheceram, bem como o tempo em que aqueles viveram pacificamente, cerca de três semanas, não é suficiente para considerar que existe o tipo de relação exigida pelo tipo legal de crime previsto no artº 152 do CP;
Q) - Acresce ainda que, as agressões físicas que a ofendida possa ter sido vítima, não podem ser classificadas de graves, assim como as eventuais lesões psíquicas, sendo certo que, não consta da decisão, quais foram as lesões psíquicas sofridas, em concreto, pela ofendida;
R) - Pois as mesmas surgiram depois de o recorrente ter pedido à ofendida para sair de casa, pelo facto de a relação ter terminado, e esta não ter acatado, não obstante ter alguma liquidez, e não resultar que aquela só não saiu da casa do recorrente porque temia um mal maior;
S) - Também não resulta provado em que circunstância o recorrente limitava a liberdade da ofendida, já que se deu como não provado que o arguido a controlava;
T) - De igual modo, também não podemos olvidar que as condutas ocorreram durante um mês, a terem ocorrido, e que das mesmas não resultaram lesões graves;
U) - Motivos pelos quais, considera o recorrente que o caso em análise não pode ser subsumido ao crime de violência doméstica, p.p. no artº 152 do CP, mas antes ao crime de ofensas à integridade física simples, p.p. no artº 143 do CP;
V) – Já que, quanto às injúrias, crê o recorrente que pelo facto de a ofendida não se ter constituído assistente, e por conseguinte não ter deduzido nem aderido à acusação do Ministério Público, deixa de existir legitimidade para acusar o arguido, e por via disso não poderá ser condenado por tais factos;
W) - Perante o exposto, entende o recorrente que o tribunal a quo violou a norma do artº 152 do C.P., ao ter considerado preenchidos os requisitos exigidos para o tipo legal em causa, devendo ser imputado ao arguido um crime de ofensas à integridade física, nos termos do artº 143 do CP;
X) - A dosimetria da pena concreta a aplicar é fixado de acordo com os critérios fixados no artº 71, nº 1 e 2, C.P. e exigências de prevenção nos termos do artº 40, C.P., atendendo sempre a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime rodearam o mesmo antes, durante e depois do seu cometimento.
Perante o exposto, deverá a decisão proferida ser revogada, por violação da norma do artº 152 do C.P., e em consequência ser o arguido absolvido da prática do crime de violência doméstica, e por consequência ser eximido do cumprimento da pena aplicada, bem como do regime de prova e ainda do pagamento à ofendida da quantia de € 2.000,00, nos termos do artº 21, nº 2 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro e art. 82º-A do CPP.
O recurso foi admitido liminarmente nos termos de fls. 325.
O MP respondeu de fls. 329/337.
III. Vejamos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente: Erro previsto no artigo 412, nº 2, c) do CPP.
Do crime de violência doméstica:
O crime de violência doméstica de que vem acusado o arguido prevê: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Refere o nº 2 do mesmo dispositivo: “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto (…), na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Este tipo legal visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.
Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade.
Daí que, directamente abrangida pelo âmbito de protecção dispensada se encontre, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem-estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à “mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Questões Fundamentais e Doutrina Geral do Crime, 1996, pág. 63).
Com efeito, nos termos do artº 26 da Constituição da República Portuguesa a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respectiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interacção social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, pág. 177).
E é a evidência do que ficou dito, por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas, que converte em objecto de consensual reprovação quaisquer actos, omissões ou condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças, coacção ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, tendo por objectivo e como efeito intimidá-la, puni-la, humilhá-la ou simplesmente mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental ou moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais [Conceito de violência contra as mulheres, segundo a definição proporcionada por um grupo de peritos do Conselho da Europa, transcrita no preâmbulo do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, aprovado pela resolução do Conselho de Ministros nº557)), e publicado no DR, I-Série-B, de 15 de Junho de 1999.]. (sublinhado nosso). A conduta do agente concretiza-se através do emprego de maus-tratos físicos (ofensas corporais simples) ou psíquicos (humilhações, provocações, molestações, etc.) - vide Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, p. 333.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, UCE, pág. 405, “Os “maus-tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus-tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples o qualificadas (…), incluindo toda e qualquer perturbação psíquica, tenha ou não reflexos físicos).
Como se refere no Acórdão TRC. nº 204/10.8GASRE.C1, de 17-01-2018, in www.dgsi.pt:
“I - O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus-tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais.
II - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
III - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
IV - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
V – Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.
VI – No crime de violência doméstica, o conceito de maus-tratos, de que fala a norma, exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.” Verifiquemos então a factualidade dada como provada, com relevância para a questão:
(…)
Ora, da factualidade apurada, não se poderá considerar estar em causa um mero episódio de ofensa à integridade física simples, porquanto todo o contexto de violência – duas condutas reconduzíveis a violência física, as discussões acompanhadas de insultos quando lhe era negado dinheiro, as expressões ofensivas e menorização da pessoa da vitima, a humilhação a que sujeitou a vitima e os seus filhos, obrigando-a a dormir no chão do quarto de arrumos, o facto de desligar a agua, luz e gás, privando a vitima e os filhos de satisfazer as necessidades mais básicas, como as de higiene e alimentação. Tudo isto na frente dos dois filhos menores em casa e na via pública, o que aumenta consideravelmente o sentimento de humilhação na pessoa da ofendida, e denota desprezo e desconsideração grave pela vítima e família, e pretensão de domínio por parte do arguido.
Neste jaez, tendo em conta a factualidade dada como provada, sem mais explanações, é nosso entendimento que foi feita prova de que com a sua conduta o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de que vem acusado, pelo que bem andou o Tribunal a quo a condenar o arguido pelo crime de violência doméstica.
Nestes termos, e quanto a esta questão torna-se clara a manifesta improcedência do presente recurso, pelo que deve o mesmo ser julgado improcedente e mantida a sentença ora colocada em crise.
B No entanto, caso o tribunal “ad quem” assim não entenda e decida apreciar o presente recurso, convém tecer algumas considerações acerca de um dos princípios basilares da prova em processo penal.
Após uma leitura atenta dos factos dados como provados, não se constata que a sentença padeça de qualquer erro ou vício, bem como que a matéria de facto dada como provada esteja incorrectamente julgada, designadamente nos pontos evidenciados pelo arguido.
O que afinal o recorrente faz é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no referido artigo 127.
De acordo com o disposto no artigo 127 do CPP a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
“O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, processo nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).
Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, pgs. 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.
Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "...uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis(v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros."- Cfr., in "Direito Processual Penal", 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.”
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355º do CPP. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.
É sabido que, nem mesmo com a transcrição dos depoimentos feitos em audiência, se logra captar todo o seu valor probatório, que só a imediação permite registar e apreender completamente: é um olhar que confirma ou reforça o que se disse, é um gesto que acentua ou retira qualquer credibilidade ao que dito foi.
Só o julgador, atento a todos esses sinais, consegue captar e interiorizar toda a carga informativa que qualquer depoimento ou declaração comportam.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva "...a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". - Cfr. "Do Processo Penal Preliminar",Lisboa, 1990, pág. 68”.
O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234.
Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 (C.J., ano XXV|II, 20, página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".
Ora, se atentarmos aos factos apurados e compulsada a fundamentação temos de concluir que os juízos lógico-dedutivos aí efectuados são acertados, designadamente no que se refere aos factos apurados e postos em questão pela recorrente.
A Mmº Juiz na decisão recorrida, nomeadamente, em sede de convicção probatória, explica de forma clara e coerente os seus juízos lógico-dedutivos, analisando as provas tidas em consideração.
O recorrente com a sua argumentação apenas pretende e como já se referiu extrair dos elementos analisados uma diferente convicção, faz o seu próprio julgamento pretendendo, agora impor o seu próprio raciocínio.
A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada, não apontando a recorrente qualquer fundamento válido que a possa abalar.
E, lendo-se a motivação claramente expressa na sentença, só uma conclusão se impõe: é ela completa e clara, não demonstra qualquer avaliação caprichosa ou arbitrária feita pelo julgador, não tratou de forma imprecisa os depoimentos prestados, não é selectiva nem cirúrgica e não enferma de qualquer erro ou contradição. Da indemnização fixada;
No que respeita à indemnização fixada, nada se nos apraz dizer uma vez que a mesma é equilibrada e consentânea com os pressupostos que foram levados em conta pelo tribunal e determinada de acordo com os preceitos legais.
Assim, ponderadas as razões alegadas pelo recorrente e a sentença recorrida, sufragamos a opinião de que, também neste ponto, não deverá ser dado provimento ao presente recurso.
D Medida da Pena;
O critério para a escolha da pena, bem como os limites a observar no que respeita ao seu quantum encontram-se fixados nos artigos 70 e 71 do CP. O artigo 70 dá primazia às penas não detentivas; o segundo aponta para a determinação da medida da pena a culpa do agente e as exigências de prevenção bem como, a todas as circunstâncias que não fazendo parte do crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
De todo o exposto na sentença, verifica-se que a pena fixada mostra-se justa, equilibrada e proporcional.
Deste modo, também por esta via o presente recurso se revela manifestamente improcedente.
Não foram violadas quaisquer normas jurídicas.
Não se verifica qualquer nulidade da sentença.
Não foi violado qualquer princípio constitucional
Termos em que e sem apresentar conclusões (por não serem obrigatórias face ao estatuído no artigo 413, nº 4, do Código de Processo Penal, a contrário) somos do entendimento que a sentença recorrida, não é passível de censura, pelo que, ressalvando sempre o devido respeito que nos merece a opinião contrária, devem os presentes recursos ser julgados improcedentes e, desta forma, mantida a douta sentença nos seus precisos termos.
Neste Tribunal Superior o Senhor Procurador Geral-Adjunto elaborou parecer com abundante jurisprudência, acabando por reiterar a resposta a quo no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o artº 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta o conhecimento do mérito.
Mantém-se a regularidade da instância.
Fundamentação. Da decisão recorrida. Factos provados:
1. A vítima E…, de nacionalidade angolana, nascida em 07/07/1974 e o arguido conheceram-se através da rede social Facebook em Junho de 2019 e, no final desse mês, passaram a residir juntos e mantiveram relacionamento de comunhão de vida como se fossem casados, até Agosto de 2019.
2. O arguido arrendou habitação na Avenida …, …, …, Porto onde a vítima passou a residir com o arguido conjuntamente com os filhos da vítima, F…, nascida em 28/2/2005 e G…, nascido em 25/02/2010.
3. Decorrido cerca de um mês de convivência, o arguido passou a manifestar atitudes e comportamentos agressivos no tratamento que reservou para a vítima, sua companheira, associados à recusa desta em lhe disponibilizar quantias pecuniárias alegadamente para aquisição de tabaco e bebidas alcoólicas.
4. O arguido e vítima auferiam, respectivamente, cerca de €500,00 e €600,00 mensais.
5. Em Julho de 2019, o arguido chegava à residência comum e, sempre aborrecido, encetava discussões e dirigia à vítima expressões como: “filha da puta”, “já te disse que arranjei outra mulher” e “vai-te embora, não te quero aqui”, expressões estas que também dizia na presença dos filhos da vítima.
6. Numa ocasião, em meados de Julho de 2019, à hora do almoço, o arguido, no interior da residência, encetou discussão onde exigiu que a vítima abandonasse a habitação com os filhos. Como a vítima não acatou tal exigência por não ter local para se instalar com os filhos naquele momento, o arguido, agressivamente, disse-lhe: “vai-te embora”, “não te quero aqui”, “sua filha da puta”; “se já fiz a outras também te faço a ti”.
7. Nessa altura, aproximou-se da vítima, agarrou-a pelos braços e projectou a vítima contra a parede do corredor.
8. O arguido actuou na presença dos filhos da vítima que se colocaram junto desta e gritaram ao arguido para interromper tal conduta, o que este acatou.
9. Em virtude da referida agressão a vítima sofreu dores e pisaduras, que não careceram de tratamento hospitalar.
10. No final de Julho de 2019, após regressar à residência no final do dia, o arguido interpelou a vítima pela circunstância de ainda permanecer na residência e iniciou discussão onde lhe dirigiu expressões como: “não foste embora?”, “sua puta”.
11. De seguida, começou a arremessar objectos na direcção da vítima E…, tendo-a atingido com um frasco de perfume, no pé.
12. Em virtude da referida agressão a vítima sofreu dores e lesões (pisaduras), que não careceram de tratamento hospitalar.
13. No mês de Julho e até 12 de Agosto de 2019, o arguido actuou como acima de referiu e, recorrentemente dizendo à vítima expressões como que “tinha que ir embora”, “sua puta”, que “não era ninguém”, que “se na outra bateu nela também podia bater”.
14. Frequentemente o arguido dizia à vítima que já tinha outra mulher melhor do que ela, que já tinha uma namorada.
15. No período compreendido entre meados de Julho e 9 de Agosto de 2019, o arguido cortava o fornecimento de água, electricidade e gás quando saía para trabalhar, para impedir a vida quotidiana à vítima E… e filhos, designadamente para os privar de cozinhar e tomar banhos, com o propósito de a vítima sair da habitação com os menores.
16. O arguido actuava do modo descrito, não obstante a vítima comparticipar nas despesas com fornecimento de tais serviços e aquisição de bens alimentares.
17. Em virtude da convivência se ter tornado insustentável, a vítima E… e filhos não pernoitaram na residência entre 9 e 13 de Agosto.
18. No dia 13 de Agosto o arguido colocou os bens dos mesmos no exterior da habitação (no hall do prédio).
19. O relacionamento como companheiros já tinha terminado e a coabitação terminou nesse dia 13 de Agosto em que vítima e filhos deixaram de residir na habitação que partilhavam.
20. As duas condutas reconduzíveis a violência física atingiram a vítima na sua integridade física.
21. As demais condutas observadas, reiterada e persistentemente pelo arguido no período assinalado determinaram perturbação psíquica, alteração de rotinas, inquietação, sobressalto na vítima e receio pela sua integridade física.
22. As expressões ofensivas e de menosprezo e menorização da pessoa da vítima utilizadas durante a convivência ofenderam a integridade pessoal, honra e bom nome da vítima.
23. Mediante as condutas acima descritas quis e conseguiu o arguido afectar a integridade física, humilhar a vítima, atingi-la na sua dignidade e causar inquietação, perturbação psíquica, desassossego e intranquilidade à vítima, sua companheira, mais pretendendo coactá-la na sua liberdade de determinação e de movimentos o que conseguiu, bem sabendo que isso a afectava na sua saúde psíquica, querendo atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano digno de respeito e consideração, o que conseguiu.
24. O mesmo agiu no interior da residência comum e na presença dos dois filhos menores da vítima.
25. O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e penalmente punida por lei.
26. Em virtude dos factos referidos em 15), por vezes a ofendida chegava a casa e os filhos estavam às escuras e/ou não puderam confeccionar as refeições e alimentar-se;
27. Na sequência dos cortes referidos em 15), por vezes era o vizinho da ofendida quem restabelecia as ligações.
28. Na data referida em 13), a ofendida dormia num quarto de arrumos, no chão, em virtude do arguido a ter expulsado do quarto de casal.
29. A ofendida E…:
a) em Angola trabalhava como enfermeira;
b) veio viver para Portugal em virtude dos problemas cardíacos do filho, que necessitou de uma intervenção cirúrgica cardíaca e necessita de acompanhamento médico que não existe naquele país;
c) desde que se encontra a viver em Portugal, tem desempenhando diversas actividades profissionais;
d) na data dos factos dos autos tomava conta de idosos e auferia cerca de €600 mensais;
e) actualmente trabalha no Hospital Privado H… e aufere €665,00 mensais;
f) vive com os dois filhos menores na instituição I…;
30. O arguido (…):
a) é divorciado e tem 49 anos de idade;
b) trabalhou cerca de um ano na empresa “J…, Unipessoal, Lda”, sita em …, onde auferia cerca de €500,00 mensais; encontra-se desempregado há cerca de 6 meses e recebe de subsídio de desemprego €438,00 mensais;
c) vive em união de facto, encontrando-se a companheira desempregada e sem receber qualquer subsídio;
d) residem em casa de um amigo;
e) quando vivia com a ofendida, trabalhava como estafeta na empresa de acessórios de automóveis “K…”, sita na Rua …, no Porto e auferia cerca de €530,00 mensais;
f) tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;
g) confessou parcialmente os factos de que vinha acusado (…)» (sublinhado nosso).
(…)
Da apreciação de mérito.
O objecto do recurso extrai-se das conclusões – artº 412 nº 1 do CPP.
O recorrente apresenta as seguintes causas como fundamento do recurso:
a) Erro na determinação da norma aplicável – artº 412 nº 2 alª c) do CPP.
b) Valor da indemnização.
c) Medida concreta da pena.
O recorrente (arguido) pretende demonstrar que o seu comportamento não está preenchido pelo tipo legal de crime: violência doméstica.
O legislador de 2007 teve por objectivo uniformizar o círculo de vítimas passíveis de violência doméstica: o cônjuge, ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; o progenitor de descendente comum em 1º grau e pessoas particularmente indefesas, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez. Estas vítimas estão em condições de gozar de uma tutela penal alargada, fundada num vínculo familiar presente ou passado que as ligue ao agente, onde obviamente se compreende o namoro. O legislador confere com esta tutela alargada uma maior protecção às vítimas, o que não aconteceria caso os ilícitos fossem considerados de modo isolado, por isso falamos de um tipo legal complexo (integridade física e psíquica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual e a honra) destinado à protecção da saúde, vida e dignidade da pessoa humana (integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade). A referência a relações familiares e família deve ser entendida em sentido amplo, com abrangência das vítimas indicadas nos artºs 152 nº 1 e 132 alª b), ambos, do CP. A existência de vínculo familiar ou similar entre vítima e agente deve ser vista no âmbito do tipo, de onde resulta que o vocábulo: violência doméstica, pode não ser o mais adequado… Para lá do namoro, união de facto ou outro vínculo familiar, o conceito de comunhão de vida (relações equiparadas), suposta a ideia de afectividade, parece-nos cada vez mais apropriado.
O caso concreto fala por si.
Arguido e ofendida conheceram-se pelo São João – Junho de 2019 – e no final do mês passaram a residir juntos. Decorrido cerca de um mês de convivência, o arguido, entre outras condutas, pediu à ofendida para abandonar a casa: vai-te embora, não te quero aqui … Em meados de Julho já discutiam abertamente, momento em que o arguido pediu, de modo declarado: vai-te embora, não te quero aqui. No dia 13 de Agosto a relação terminou por insustentável – ver factos com os nºs 17/19. Do depoimento da ofendida, devidamente relatado pelo tribunal a quo, podemos constatar que os contendores só estiveram (bem) juntos cerca de 2 semanas; a partir de 7 de Julho...as coisas começaram a correr mal. Suposto que a relação entre agente e vítima seja de intimidade ou especial, é caso para nos interrogarmos se este encontro fugaz, de 15 dias de paz e estabilidade, cabe no conceito de relação equiparada. Citando André Lamas na Revista Julgar (edição especial) – 2010, páginas 25/66, é essencial uma certa estabilidade na relação interpessoal, que se não presume apenas e tão só do vínculo formal do casamento … mas, da existência de uma proximidade existencial efectiva. Casamento, união de facto, namoro, para lá da coabitação, implicam carácter mais ou menos estável de relacionamento afectivo ou semelhante – ver vários acórdãos neste sentido: TRP de 15/01/2014 – Relator José Carreto; TRC de 24/04/2012 – Relator Orlando Gomes e ainda um acórdão da nossa autoria – TRP de 30/09/2015 – onde se refere que o namoro, tal como a relação análoga à dos cônjuges, deve ser caracterizada por sólidos e indesmentíveis elementos fácticos que a comprovem …
Esta posição não briga com as relações findas, com o alargamento do âmbito de aplicação do crime de violência doméstica aos maus- tratos sobre ex-cônjuges ou ex-companheiros, como meio de evitar comportamentos retaliatórios e fortemente perturbadores da paz do ex-parceiro… daquele que não se conforma com o fim da relação ou não suporta ver assumir um novo projecto de vida autónomo. A tutela especial reforçada da violência doméstica – Nuno Brandão – Revista Julgar nº 12 (especial) fls. 12. Em suma, todas estas formas de relacionamento podem ser actuais ou não, exclusivas ou não, com coabitação ou não, e independentemente do género e orientação sexual das pessoas envolvidas. Importa em todos os casos, que haja proximidade existencial afectiva, que se materializa em vínculos afectivos e numa certa duração e estabilidade, pelo menos de alguns meses de duração. No caso de relações pretéritas, mais do que estabelecer um prazo máximo de validade, é necessário que entre os anteriores parceiros íntimos se mantenham laços afectivos ou que, pelo menos da parte do agressor, se evidencie a vontade de manter a ligação à vítima - Da Violência Doméstica (CEJ): Implicações Sociológicas, Psicológicas e Jurídicas do Fenómeno. O crime de Violência Doméstica - Catarina Fernandes - fls. 84 e seguintes.
Temos de concluir que numa relação tão efémera e ocasional, de duvidoso valor afectivo, cuja duração real oscilou pelos 15 dias, não pode integrar um crime de tutela penal reforçada, de natureza pública (violência doméstica). Este crime, como crime de perigo abstracto, compreende uma protecção alargada (tutela complexa) que pode passar por ilícitos contra a honra, integridade física simples, coacção, sequestro simples, devassa da vida privada e outros. Neste sentido há um conjunto de práticas ilícitas que estão numa relação de especialidade e podem eventualmente ser criminalizadas, desde que verificados determinados pressupostos. Não há dúvida que o arguido injuriou e ofendeu corporalmente a ofendida, muito embora sem o benefício de tutela penal especial – violência doméstica enquanto crime público.
Quer quanto ao crime de ofensas corporais, quer quanto ao crime de injúrias interessa ver a marcha do processo e o comportamento da denunciante/ofendida.
Quanto ao crime de injúrias a ofendida não se constituiu assistente e por isso não deduziu acusação particular. No crime de injúrias o procedimento criminal depende de acusação particular. Direito de queixa (artºs 113 nº 1 e 117 do CPP), constituição de assistente (artº 68 nº1 alª b) do CP) e acusação particular (artº 50 nº 1 e 285 nº 1 do CPP) são conceitos intimamente ligados com legitimidade e interesses que a lei quis especialmente proteger. A resposta a estes institutos não pode ser dada ao sabor de conveniências ou porque acreditamos que, em determinado contexto, subverter a lei facilita a prática da justiça material. Apreciar o crime de injúrias é hipótese a não considerar por via da natureza particular deste crime que tem como pressupostos a apresentação de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular, nos termos dos artºs 181,188 nº 1 e 113, todos, do CP, bem como o previsto no artº 50 do CPP. Por outro lado veja-se jurisprudência recente em sentido contrário: Acórdãos do TRP de 09/03/2020 (processo nº 765/17.0PHMTS.P1) Relator Paulo Costa; TRP de 13/01/2021 (processo nº 799/18.8GBPNF.P1) Relator Pedro Vaz Pato e TRP de 10/02/2021 (processo nº 383/18.6GAVNG.P1) também, do Relator Paulo Costa, bem como de jurisprudência semelhante do TRC – 11/05/2006, in processo nº 771/13.4 GCVIS – Relator Alberto Mira e de 03/02/2021, in processo nº 231/16.1GABBC.C1- Relator João Novais. O mesmo se diga de um Acórdão do TC, nº 523/99, DR nº 55/200, Série II de 2000/03/06, quanto a uma situação similar. Determinou que um crime público, por alteração legislativa, passou a ter natureza semi-pública. A questão para nós é simples: o MP nunca teve legitimidade para o crime em apreço, pela circunstância de a questão de facto colocada não integrar um crime de violência doméstica. As restrições dos artºs 49 e 50 do CPP limitam a legitimidade do MP para promover a acção penal. A escolha do crime público confere uma tutela mais alargada mas, pode não ser a mais adequada… Sem prejuízo da prova, a situação de facto estava claramente definida antes da audiência de discussão e julgamento e não sofreu alteração, pelo que o tribunal a quo devia ter integrado correctamente a matéria dada como provada, procurando analisar de forma residual os crimes de injúrias e ofensa à integridade física (artº 412 nº 2 do CPP) com exclusão da violência doméstica.
No auto de notícia da GNR (09/Agosto/2019) declarou-se expressamente que a vítima não deseja procedimento criminal (fls. 7) – participação por autoridade de factos constitutivos de crime particular e semipúblico (artº 49 nº 2 do CPP). Já no auto de declarações de fls. 23/28 a vítima E… disse: no que depende da sua vontade manifesta interesse e desejo de procedimento criminal contra B…, pelos crimes contra si cometidos … não demonstra intenção em deduzir pedido de indemnização cível.
A ofendida requereu apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, para constituição de assistente e dedução de pedido cível, cfr. fls. 127. O que veio a ser concedido nos termos de fls. 150 v. O Centro Distrital do Porto – ISS-APJ Porto – esclareceu (fls.161) que o requerimento de protecção jurídica apresentado pela ofendida compreende dispensa de taxa de justiça, nomeação e pagamento da compensação de patrono. Para o efeito foi nomeada a advogada L….
O tribunal entretanto ordenou que a ofendida fosse notificada nos termos do artº 21 nºs 1 e 2 da Lei 112/09 de 16/09 para declarar se prescinde ou não de uma eventual indemnização a arbitrar oficiosamente (fls.165 v). A resposta afirmativa figura a fls. 225 pela mão da defensora oficiosa. A fls. 185 a ofendida veio requerer, depois de grande indecisão sobre a constituição de patrono (ISS), que pretende deduzir indemnização cível, bem como constituir-se assistente, no quadro do patrocínio oficioso, sugerindo que se contacte o ISS para esclarecer a modalidade de apoio judiciário.
A defensora oficiosa a fls. 198 esclareceu que a ofendida teria de rectificar o requerimento junto da Segurança Social solicitando expressamente a nomeação de patrono com a latitude pretendida.
Depois de vicissitudes várias a defensora juntou requerimento a fls. 205 onde declara que desconhecia o ofício de rectificação da Segurança Social de 17/02/2020 (fls. 114/116).
Apesar destas peripécias, certo é que a defensora não requereu a constituição de assistente, nem deduziu pedido de indemnização cível, limitando-se a declarar que não se opõe à fixação de indemnização (fls. 225). A ofendida conformou-se com a acusação pública. A instância ficou regularizada com o despacho que designou dia para julgamento.
A posição da ofendida manifestou-se processualmente de forma errática. Temos uma denúncia onde se declarou que não deseja procedimento criminal (09/08/2019) para, pouco tempo depois, (16/09/2019) em auto de declarações, manifestar que afinal pretende procedimento criminal contra o arguido mas não demonstra intenção de deduzir pedido de indemnização cível. Não obstante atravessou requerimento, em 15 de Outubro de 2020, onde pede expressamente para se constituir assistente e deduzir pedido de indemnização via patrocínio oficioso.
Como dissemos o julgamento teve início sem qualquer intervenção da defensora quanto às aludidas observações.
Temos por definitivo que a agressão perpetrada pelo arguido não teve como propósito molestar a integridade física e psíquica na vertente de afectar a dignidade ou liberdade da ofendida enquanto mulher, no âmbito de uma relação afectiva, pelo que não demonstra uma manifestação de domínio ou força que de alguma forma revele crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar a vítima - Acórdão do TRP de 22/04/2020(processo nº 11/19.2GBAND.P1) - Relator Moreira Ramos. Antes sim, derivaram do facto de o relacionamento estar findo e o arguido não pretender mais conviver com a ofendida. O crime de violência doméstica é um crime de relação especial entre agente e vítima, onde se protege um bem jurídico plural e complexo e a consequência base reconduz-se a maus-tratos. Em conclusão não estão preenchidos os elementos tipo do crime de violência doméstica.
No caso concreto está assinalada uma ofensa à integridade física (facto nº 7 e 11) que não releva especial perversidade ou censurabilidade pelo facto de a relação não ser análoga à dos cônjuges. A ofensa corporal é simples, restando avaliar a declaração de participação criminal. Quando o procedimento depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la … o ofendido considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (artº 113 nº 1 do CP). A delimitação de legitimidade para apresentar queixa remonta ao artº 4 do D/L 35007 de 13 de Outubro de 1945 – titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. O direito de queixa tem natureza processual; funciona como pressuposto processual. Apesar de o crime público ter sucumbido, o MP não deixa de ter legitimidade para prosseguir no processo, acresce que a ofendida disse no auto de declarações que desejava participar criminalmente contra o arguido, reforço de posição reiterado posteriormente pela vontade de se constituir assistente e deduzir pedido de indemnização cível, o que não ocorreu pelas razões supracitadas. Não consideramos que a denúncia efectuada pelo agente da GNR configure uma renúncia de queixa da ofendida, tanto assim que pouco tempo depois estava a manifestar vontade de proceder criminalmente contra o arguido. Por outro lado o recorrente exclui as injúrias pelos motivos supra referidos mas, concede na subsistência do crime de ofensas corporais simples.
As restantes causas de recurso estão prejudicadas.
Ficamos com um crime de ofensas corporais simples.
O crime de violência doméstica não subsiste por não estarem integrados todos os elementos do tipo.
O crime de injúrias cede perante a exigência de determinados pressupostos processuais.
Assim, valoramos como provado, para efeitos de incriminação (ofensa corporal simples), que o arguido aproximou-se da vítima, agarrou-a pelos braços e projectou-a contra a parede do corredor e arremessou objectos na direcção da vítima, tendo-a atingido com um frasco de perfume.
O arguido quis apenas molestar fisicamente a arguida e sabia que a sua conduta era proibida. Quanto à restante matéria o arguido vai absolvido pelas sobreditas razões de direito.
O crime é punido com pena de prisão ou multa.
O arguido está desempregado e aufere um subsídio de desemprego no valor de 438,00€.
O arguido não tem antecedentes criminais.
As finalidades, assim como o critério de escolha e determinação da pena, impõem uma pena não privativa de liberdade (multa).
Nestes termos, decidimos convolar a decisão e condenar o arguido B…, pela prática de um crime de ofensas corporais simples, previsto e punido, nos termos do artº 143 nº1 do CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, na multa global de 500,00€. O recurso procede parcialmente.
Acordam os juízes que integram, a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B…, nos termos suprareferidos.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Nos termos dos D/L nº 10-A/2020 e D/L nº 20/2020 de 1 de Maio – artºs 3 (aditamento ao artº 15-A daquele D/L) e 6 – a assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal colectivo, nos termos previstos no nº 1 do artº 153 do CPP, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na sua redacção actual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram. Nestes termos atesto o voto do Juiz Desembargador Adjunto em conformidade com a decisão.
Porto, 07 de Julho de 2021
Horácio Correia Pinto.
Moreira Ramos.