USUCAPIÃO
DOAÇÃO
FORMA DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
POSSE
CORPUS
ANIMUS POSSIDEND
MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OBJETO DO PROCESSO
DUPLA CONFORME PARCIAL
Sumário


I. A dupla conforme parcelar apenas pode ter lugar relativamente a objectos processuais decorrentes de pretensões autónomas, cindíveis, formuladas na causa.
Tendo os AA. deduzido uma única pretensão, a do reconhecimento do direito de propriedade do prédio que identificam no art. 1º da petição inicial, e tendo, na reconvenção, os RR. formulado o seu pedido relativamente ao mesmo prédio, considerado na globalidade, no sentido de que se declare que ele faz parte das heranças dos pais da A. e da Ré, a parcial procedência dessas pretensões, dentro dos limites provados, não conduz à cindibilidade do objecto do processo, de modo a que se possa dizer, à semelhança do que sucede com uma cumulação de pedidos, que se verifica dupla conforme em relação a um objecto processual autónomo e que subsista outro, também com autonomia, por dirimir.
II. Está vedada ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação dos meios de prova, competindo tal tarefa à Relação. Apenas poderão, por via da revista, ser introduzidas modificações na matéria de facto nas situações excepcionais previstas no art. 674º, nº 3, segunda parte, do CPC.
III. Estando em causa a prova de actos reveladores de posse tendente à aquisição por usucapião – para cuja verificação a prova testemunhal assume um papel fundamental –, há que distinguir uma tal realidade da observância ou não de formalismos legais próprios de certos actos, pois o que sobreleva, em tal contexto, é a prática dos mesmos.
IV. Uma doação verbal, mesmo formalmente inválida, potencia o sentido de transferir para o beneficiário uma posse exclusiva, em nome próprio, não sendo, por isso, impossível adquirir por usucapião quando a posse assim se tenha iniciado, desligando-se do anterior possuidor, preenchidos que sejam o corpus e o animus e os demais elementos susceptíveis de facultar esse modo de aquisição do direito de propriedade.
V. Uma participação à Autoridade Tributária, no exercício do cargo de cabeça-de-casal, para efeitos de liquidação de IMI ou de imposto de selo, antes da definição da questão da propriedade de um imóvel, através, como no presente caso, de uma acção declarativa em que se invoca a usucapião, não se assume necessariamente como uma antecipada confissão da inexistência de animus de proprietário exclusivo, por parte de quem faz essa participação. E, de qualquer modo, não se estaria perante uma confissão dirigida à parte contrária e, assim, a respectiva força probatória sempre seria apreciada livremente pelo tribunal.
VI. Na enunciação dos factos provados ou não provados, cabe uma pronúncia positiva, negativa, restritiva ou explicativa, que abarque os factos essenciais que foram alegados e outros de natureza complementar, concretizadores de factualidade difusa, devendo ainda ser tomados em consideração os factos instrumentais, embora o relevo primacial destes se coloque ao nível da motivação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA e marido, BB, vieram propor contra CC e marido, DD, acção declarativa, com processo comum, alegando que.

São (os AA.) donos e legítimos possuidores de um prédio urbano composto de casa de habitação, com 72 m2 e logradouro de 693,50 m2, sito no lugar …, freguesia e concelho … (com os demais elementos identificativos indicados no art. 1º da petição inicial).

Os AA. adquiriram o respectivo terreno por doação verbal feita à A. mulher pelos seus pais, em 1979, com a finalidade de os AA. aí edificarem uma construção para nela habitarem.

Vêm possuindo o referido prédio, consecutivamente, desde 1979 até ao presente, de boa fé, pública e pacificamente, tendo nele, de facto, edificado uma casa de habitação, com r/chão e dois andares, em 1981, na qual passaram a viver até 1989, arrendando-a, a partir dessa altura, recebendo as rendas, pagando os respectivos impostos, melhorando o conjunto predial da casa e terreno, implantando uma capoeira, plantando árvores de fruto, fazendo pavimentações de cimento e paralelepípedo, limpando o terreno e conservando o edifício e praticando todos os demais actos normais de proprietários.

À falta de outro título, adquiriram o prédio por usucapião.

Os doadores do terreno, com vista a suprir formalmente a doação que haviam feito apenas de forma verbal, decidiram deixar à A. o terreno no testamento que fizeram em 13 de Maio de 2009.

Os RR. resolveram pôr em causa o direito dos AA., pretendendo ser compensados com mais área de terreno para anuírem aos formalismos necessários para que os AA. procedam ao registo do prédio.

Concluíram, pedindo que os RR. fossem condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado no art. 1º da petição.

Os RR. vieram contestar e deduziram reconvenção, alegando, em resumo, que:

Sempre foram os pais da Autora e Ré os únicos que possuíram o prédio, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de que só a eles pertencia e, como tal, tendo sido sempre considerados, praticando, outrossim, os factos de que os AA. se dizem agentes, sem a menor interrupção, até ao decesso do primeiro.

Pelo menos o R/Chão do prédio reivindicado foi construído pelos próprios pais, em 1977, sem a menor ajuda de ninguém, bem como o 1º e 2º pisos e os trabalhos efectuados no rústico de que aquele faz parte, embora já com a ajuda e colaboração das filhas e genros, sendo certo, porém, que tudo era administrado pelos pais, sendo a eles que os inquilinos pagavam as rendas.

Fazendo tal prédio parte integrante do acervo patrimonial comum, em vida de ambos, veio depois o mesmo a transitar para a herança deixada por óbito do progenitor da Autora e da Ré, ocorrido em ….. de 2012, tendo a mãe de ambas falecido em …. de 2016 e correndo inventário no Cartório Notarial … .

Remataram, dizendo que a acção deveria improceder e proceder a reconvenção, declarando-se que o prédio reivindicado faz parte integrante das heranças ainda ilíquidas e indivisas deixadas por óbito do pai da A. e R. e, depois, por óbito da viúva e mãe de ambas.

Replicaram os AA., pugnando pela improcedência da reconvenção e pedindo a condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Teve lugar audiência prévia, com prolação de saneador tabelar, admissão da reconvenção, definição do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e a reconvenção improcedente.

Os RR. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação …, onde foi proferido acórdão no qual se concluiu pela seguinte forma:

«1 - Julga-se o recurso parcialmente procedente e altera-se a decisão recorrida, que fica agora com esta redação:

a) Julga-se parcialmente procedente a ação instaurada pelos autores AA e BB contra os réus CC e DD e, em consequência, declara-se que os autores são proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação com 72 m2 de implantação, sito no lugar …, freguesia e concelho …, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ……92º e omisso na Conservatória do Registo Predial, condenando-se os réus a reconhecerem tal direito.

b) Julga-se a reconvenção deduzida pelos réus/reconvintes CC e DD parcialmente provada e declara-se que o terreno que integra a verba n.º 6 do testamento referido nos autos, excluída a área da alínea a) que antecede, faz parte da herança aberta por óbito dos pais da autora e ré, condenando-se os autores a reconhecerem tal direito.

3 - Julga-se a reconvenção improcedente na parte restante e absolvem-se os autores/reconvindos do pedido nessa parte.»

Ainda inconformados, os RR. recorreram para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«1. O presente recurso vem interposto como de revista normal, como lho permitem os arts 629º-1 e 2.d), 674º-1.a), b), e 3, in fine, do CPC, com fundamento na violação do preceituado no art. 662º-1 do CPC em que o douto acórdão revidendo se mostra incurso, ao reapreciar a sentença proferida na 1ª instância, tendo alterado parcialmente a matéria de facto, sem ter dali colhido as inerentes ilações e consequências do ponto de vista fático jurídico, vindo a confirmar o ali decidido apenas no tocante aos 2 pisos sobrepostos sobre o armazém, mas não este, sem fazer constar na decisão final, que esse armazém, com garagem, lagares e arrumos apenas integra o acervo hereditário das litigantes.

2. A fundamentação que suporta a douta decisão revidenda só aparentemente se identifica com a da sentença apelada, diferindo, porém, da sentença de que se apelou, quer do ponto de vista jurídico e da aplicação do direito, quer ao nível dos factos que, antes, estribado aquela sentença, e que, uma vez alterados no TR…., logo justificariam a adoção de soluções de natureza e amplitude muito diversas da ora recorrida. O que sucedeu por despercebido incumprimento do 662º-1 do CPC, na aceção da ratio legis que o prescreve, razão porque essa tão só aparente dupla conforme não pode reconduzir-se, de jure e de facto, à restrição condicional do 671º-3 do CPC, (V.d.,p.f., mui douto Acórdão tirado em 11.2016 na Formação , Proc.3081/13.3TBBRG.G1.S1)

3. Mas ainda que assim não fosse, nada obsta a que o recurso seja de igual modo admitido nessa modalidade, à luz do art. 629º-2. d) do CPC, independentemente, portanto, da sucumbência e do valor da causa, por se arredar - no tocante à natureza e aquisição da posse e do direito de propriedade - da jurisprudência firmada no STJ de que se releva, i.o., o mui douto Acórdão, por unanimidade, no STJ em 12.05.2016, in Proc.9950/11.8TBVNG.P1.S1, pelo certeiro e inegável contributo para a segurança, certeza e confiança na Justiça sobre idêntica questão fundamental do direito aplicável e no domínio da mesma legislação.

4. Subsidiariamente e sem prescindir, vai o recurso ainda interposto como de revista excecional, nos termos do art. 674º e com fundamento prescrito nas als a), b), c) dos nºs 1 e 2 do art. 672º, todos do CPC, o que fazem, e com fundamento nas als a), b) e c) dos itens 1 e 2 do art.672º, ambos do CPC

5. Foi com base na referida alteração que ali se decidiu, de entre o mais, que aos AA apenas teria sido doado verbalmente “o terreno”, termo que deverá substituir-se por “espaço aéreo”, com 72 m2 de área, ocupada por 2 pisos sobrepostos sobre o armazém - composto por garagem, lagar, garrafeira e lojas de arrumos - ao nível do R/Chão e comprovadamente edificado por EE, pai da Recte e da Rda.

6. Casa aquela cujo direito de propriedade foi reconhecido aos AA pela mui Digna Relação … - tácita e implicitamente, com a área e composição atrás referidas, com base no elenco dos factos provindos das alterações ali introduzidas mediante fundamentação jurídica que, na realidade, é de natureza substancialmente diversa, não sendo, por isso, subsumível, de jure e de facto, à restrição condicional do art. 671º-3

7. E decidiu-se dessa forma, mau grado a douta motivação que suporta tais alterações não se mostrar suportada pelos testamentos a que os AA se ativeram para legalizarem a alegada doação verbal, nem existirem quaisquer outros documentos no processo que permitam aos AA concretizar tal intenção, e muito menos a alegação e prova de factos concretos, objetivos e permitidos por lei para lograrem almejar a procedência do pedido, mesmo na vertente que o douto acordão revidendo lhes reconheceu, mas contra legem, por força das disposições conjugadas nos arts 351º, 364º, 392º e 393º do CC, com as do 662º-1 e 674º-3, in fine, o que viabiliza a intervenção deste Supremo Tribunal.

8. Para tanto, os AA apenas alegaram os minguados factos do 4º e 5º itens da p.i., sem esclarecerem se a posse de que se arrogam foi exercida por si ou em nome doutrem, referindo que arrendaram os 2 andares da casa que dizem ter construído, que receberam as rendas e pagaram os “respetivos” impostos, sem nunca terem referido quando, como e por quanto, debitando por alto a fórmula tabular da chamada prova absoluta do direito de propriedade, sem contudo, a terem feito cabal e legalmente.

9. Os AA também não juntaram ao processo os documentos exigidos por lei para o exercido tais atividades, condição indispensável, do ponto de vista probatório, para se terem como assentes, sobretudo no tocante à construção da casa, sobretudo cópia do requerimento e do projeto/plantas de pormenor, memória descritiva do existente e do planeado, deliberação camarária e subsequente emissão do respetivo alvará.

10. De igual modo, no tocante às faturas e/ou recibos dos materiais – ferro, cimento, areia, madeiras, telhas, tintas, anexando – e ao pagamento dos serviços ao construtor e operários que teriam intervindo nas obras, bem como de eventuais extratos de contas bancárias dos AA ou outras formas de provar tais factos.

11. Nem uma simples declaração - embora na altura das obras, ex vi do 1143º do CC, fosse obrigatória a outorga de escritura pública - para prova do pretenso mútuo de “cem contos” que a testemunha FF declarou em juízo ter-lhes feito, o mesmo sucedendo com os alegados arrendamentos, recibos das rendas, e bem assim das comunicações desses contractos e recebimento das rendas à Repartição de Finanças, como já era obrigatório, bem como das notificações da AT, para liquidação dos IMI e demais impostos que dizem ter feito sem o provarem, limitando-se a juntar testemunhas que não esclareceram tais factos como soía.

12. De igual modo, também não existem quaisquer elementos comprovativos de os pais e sogros dos AA - verbalmente ou por escrito - lhes terem doado o tal terreno onde os dois andares teriam sido construídos, dizendo assim, e não “foram”, porque, sendo o resto do imóvel muito extenso e existindo ainda uma terra de mato imediatamente contígua àquele terreno, fica-se na dúvida, se a deixa testamentária reportada nos autos não incidirá antes num “outro terreno” que não aquele onde EE já construíra um armazém coberto por placa em betão armado, ao nível do solo e que sempre possuiu até falecer.

13. Se os pais da A. quisessem doar-lhe todo o imóvel como vai descrito no art.1º da p.i., tê-lo-iam feito em vida, sem necessidade de lhe legarem apenas o dito “terreno” por testamento, também não se mostra feita a prova de os AA alguma vez terem possuído os dois pisos, por si e como seus donos, na ótica do disposto no art. 1287º do CC.

14. Os RR poderiam ter-se arrogado o mesmo direito, porque também eles, comprovadamente nos autos, lá habitaram, sem nunca terem pagado quaisquer rendas

ou valores a seus pais, que nunca lhas pediram ou exigiram, e ficando sempre lá quando aos fins de semana e feriados, ia vê-los e estar com eles, no mesmo pé de igualdade com os AA, quando estes vinham de férias a Portugal.

15. Para o caso de o interposto recurso não vir a ser admitido como de revista normal, vai também o mesmo submetido como de revista excecional nos termos e com os fundamentos das als a), b), c) d os nºs 1 e 2 do art. 672º d o CPC, dada a coexistência, no caso dos autos, dos três fatores de máxima relevância, na ótica das referidas alíneas, que vão elencar-se pela mesma ordem e nos termos do nº 2 daquele normativo.

16. É notória a relevância jurídica da questão a que o presente recurso se reporta, sendo a sua apreciação por esta Suprema Instância manifestamente necessária para uma melhor, mais célere e mais justa aplicação do direito, quanto mais não fosse porque urge clarificar a exata diferença entre as diversas naturezas de que pode revestir-se a posse e de como deverá concatenar-se, de entre outros, com a ratio legis dos arts 1287º, nº 2 do 1252º e do 1257º, 1253º, 1254º, 1259º-2 e 1260º-2 e 3, todos do CC.

17. Estão em causa interesses de particular relevância social, porquanto, a manter-se a decisão incólume, espalhar-se-ia a tese de que basta arrolar meia dúzia de testemunhas dispostas a debitar em juízo factos genéricos e abstratos, cuja prova, validade e eficácia fez a lei depender, essencialmente, da observância de forma.

18. Acresce que a decisão revidenda entra em contradição com o mui douto Acórdão proferido por unanimidade nesta última e suprema instância de Amparo, datado de 12.05.2016 e proferido no Processo Nº 9950/11.8TBVNG.P1.S1, de há muito transitado e sobre questão fundamental muita idêntica, do ponto de vista do direito aplicável e no domínio da mesma legislação, particularmente no tocante ao direito de propriedade que ali foi reconhecido aos AA, douto Aresto que, aliás, se compagina com os dois AUJs ali citados e e se mostra sufragado por outros, neste STJ, cf. certidão sob Doc.1

19. Na esteira do citado acórdão-fundamento, também os RR defendem que aos AA está vedado fazer apelo a uma pretensa doação verbal alegadamente feita à A. por seus pais, de um terreno de que estes eram donos, para ali ser construída a casa descrita no 1º item, o que dizem ter feito, acabando por ter usucapido esse imóvel, embora não o refiram expressamente, à luz do art. 1287º do CC.

20. Tanto na sentença de que se apelou, como no douto acórdão recorrido não se mostra observado o dever de conhecimento e de valoração das questões reportadas aos factos alegados pelas partes, e constantes dos temas de prova, antes indo além - sobretudo na 1ª instância - dos alegados pelos AA e suprindo falhas notórias da alegação atrás referida, do ponto de vista possessório, dando-se como assentes factos não alegados, uns, e não provados, outros, mostrando-se, pois, incorretamente valorados, não se compaginando sequer com a prova testemunhal e documental apurada nos autos, contra o que se insurgiram os Rectes nas alegações apelativas, com observância das formalidades prescritas no art. 640º do CPC.

21. A possibilidade de os factos tidos por assentes na 1ª instância virem a ser alterados no âmbito dos pressupostos legais da sua reapreciação pela recursória ad quem, cf. art. 662º-1 do CPC, não obsta, in casu, a que a restrição do nº 4 desse normativo possa voltar a ser oportunamente sindicada e alterada por este Supremo Tribunal, onde o legislador devolve aos litigantes a esperança de voltarem a ver sindicada e superiormente apreciada a matéria de facto assente na 2ª instância, a fortiori quando contende , como in casu ,com o princípio da aquisição processual de outros factos e com o da admissibilidade dos atinentes meios probatórios.

22. Embora só em parte venha a confirmar-se a decisão apelada, continuam os Rects a socorrer-se das razões de facto e de direito que serviram de base à prolação de ambas as decisões, mas também nos termos e para os eventuais efeitos do disposto nos arts 607º5, 608º, in fine, 674º-3 e 682º-2, todos do CPC, no tocante à matéria de facto e à fundamentação que a suporta em ambas as instâncias recorridas, ainda que no TR…. tanto na 1ª instância, apenas, na vertente de que ora se recorre, relativamente aos factos que se mantiveram incólumes, e não aos alterados que serviram de base à revogação parcial do ali decidido.

23. As decisões em mérito - sobretudo a prolatada no TR…. - apesar do engenho posto nos doutos considerandos estritamente teóricos que as suportam, vêm a desembocar numa interpretação quase literal do 1287º do CC, no tocante à posse e ao direito de propriedade adquirido por essa via, incorrendo em lapso comum nestas lides, muito próximo, aliás, da paralaxe filosófica que se surpreende no raciocínio à volta dessa temática, designadamente nos itens 1 e 2 do ponto III-a), em sede da respetiva apreciação.

24. Se os Tribunais, ex vi do art. 5º-3, não está coartado no que respeita à interpretação e aplicação das regras de direito, também não está liberto dos deveres consignados no nº 2- c),d) desse normativo, inclusive do de levar em conta o valor formal e materialmente probatório de que se revestem os documentos a que os Rects ali se arrimam, a fortiori quando, nos termos dos arts 393º e 394º do C.Civil, estava vedado à 1ª instância, com o beneplácito da 2ª, privilegiar a prova testemunhal em detrimento da documentada, cf. ponto III-A,B, e respetivos itens no corpo das alegações apelativas, com resumo nas suas concl. 1ª e 3ª, que ora se reproduzem.

25. Discordamos Rctes do ora decidido na TR…., quanto à interpretação inculcada ao citado art.1287º do CC, nada obstando, porém, a que a tenhamos como teoricamente notável, e, até, epistemologicamente possível noutra situação parecida, mas nunca na dos autos, por esbarrar contra o incontornável parâmetro condicional de a aquisição do direito de propriedade em causa dever ser estritamente originária, e não mediatizada por ato material ou iter translativo da posse de que os AA se arrogam com base na usucapião.

26. Na verdade, ao contrário do tácito fundamento em que o douto Aresto fundeia a argumentação plasmada na parte final da transcrita cl. 3ª, a única posse subsumível ao instituto da usucapião é a ali reportada no citado Ac. Fundamento deste STJ, que assenta e provém diretamente da posse ab ovo, enquanto aquisição originária prevista no cit. 1287º, e nunca como forma de transmissão da mera posse ou do próprio direito de propriedade, porque desfasada dos requisitos essenciais que lhe dão vida, maxime dos prescritos nos arts 1262º e 1263º do CC.

27. Deram-se na 1ª inst. como provados determinados factos que, inverídicos, uns, e demasiado genéricos, outros, aparentam terem sido redigidos em ordem a poderem subsumir-se à fórmula tabular de aquisição do direito de propriedade, formal e artificialmente assente na pretensa usucapião do direito de que os Rdos se arrogam sobre o terreno ocupado pelo imóvel descrito no art. 1º da p.i., com base numa pretensa doação verbal que o pai da A. lhes teria feito.

28. Para tanto, encantonaram-se no argumento de que a nulidade de que tal ato se mostra inquinado à nascença ter-se-ia suprido mediante o testamento de 13/05/2009 outorgado por J. Marques, através do qual, com base na letra do 1287º, teriam logrado ver-lhes lhes reconhecido o direito de propriedade sobre o referido imóvel, o que o Ac TR…. vem de confirmar em parte, mas.sdr, por ínvia tergiversação que não pode proceder.

29. Com vista à demonstração de que teriam sido os AA a construir o imóvel em causa e a suportar o pagamento dos respetivos custos, deram-se como provados os factos alegados no art. 5º da p.i., pretensamente integradores do direito de que se arrogaram sobre o imóvel em causa, com pretenso apoio no teor do documento de fls. 117, que, além de não fazer prova de ter sido o A. marido a preenchê-lo e a assiná-lo, também não esclarece em que qualidade jurídica o teria feito, e menos ainda, quando o seu casamento com a filha do pretenso doador era o da Com. Adquiridos.

30. Tal argumentação soçobra perante a força probatória emergente da imprescindível conjugação daquele documento com os demais juntos aos autos e, até mesmo, com a lógica, a lei e o direito, a apontarem para a verdadeira identidade da pessoa que mandou construir a suas expensas todo o prédio, o EE, e, consequentemente, tê-lo como seu legítimo titular.

31. É o que exsurge das declarações prestadas em 30/04/2016 da própria A. na AT, enquanto C.Casal, em sede de participação do I.S. por óbito da mãe, incluindo na íntegra e em propriedade plena o questionado imóvel na Relação de Bens como parte integrante da herança de que a decessa fora co-titular, o mesmo já tendo feito aquela, enquanto C.Casal por óbito do marido EE, inexistindo, por isso, o animus por parte dos AA, sobretudo porque ambas reconhecem expressamente e por escrito público que tal imóvel só aos pais pertencia, subsumindo-se a prática desses atos à confissão prev. nos arts 352º, 358º-2 e 359º-1 do CC

32. Os AA ativeram-se aos referidos testamentos, mas simulando-o nos itens 7º e 10º da p.i., mas denotando que estavam a par, pessoalmente, da sua existência, porque foram eles próprios que o prepararam, estando a par da sua outorga pelo menos desde 2012 e/ou 2016 - falecimento do pai e da mãe, respetivamente – com vista a poderem socorrer-se para “legalizarem” uma situação que eles sabiam ser ilegal e ilegítima.

33. Vieram, pois, a ter-se por provados na 1ª instância factos inexistentes, inventados, mesmo, com base na prova testemunhal, sendo de realçar que, entre a matéria tida como assente e a que resulta da documentação que se lhe reporta, haverá de prevalecer a força desta sobre a daquela, uma vez que o instituto da usucapião, malgrado se distanciar das incidências processuais do seu percurso probatório, não sai fora do alcance teleológico do disposto nos arts 359º-1, 393º e 1287º do CC

34. Foi inculcada ao doc.3 de fls 117 junto aos autos em 19/09/2018 sob ref. 3128410, uma força que o mesmo não contém, pois o facto de ali figurar como Rqte o nome do A. não faz presumir que fosse esse o nome do proprietário do prédio em causa, por se tratar de um mero pedido de aditamento a obra já anteriormente aprovada e licenciada pelo município em nome de EE, o que não espanta pois ninguém pede nas Câmaras, nem estas emitem, licença para construir um segundo e/ou um terceiro piso de um prédio urbano senão em sede de aditamento ao projeto de um outro já anteriormente aprovado.

35. Acresce que há sempre um pedido original, como no caso sucedeu, em nome do EE, como documentado nos autos, sendo do conhecimento geral que o nome indicado naquele licença não tinha de ser o do dono da obra - nesse caso, referi-lo-ia expressamente, o que não sucede com o doc de fls 117 - podendo ser mesmo outra qualquer pessoa que a vá levantar, presumidamente incumbida pelo dono, por aquele, como foi o caso, de contrário, o A. teria logo ali indicado a qualidade em que intervinha, e nunca o fez.

36. Nem o facto de o tal doc. de fls 117 ter sido requerido pelo A. em 1978 permitiria concluir que fosse ele o dono dessa casa, de contrário, estaríamos a inculcar relevância probatória a documento que não faz prova nenhuma da titularidade desse prédio, até porque o respetivo requerimento podia ter sido preenchido por qualquer pessoa a pedido do dono ou do construtor, bastando para tanto juntar ao P.A. “os elementos estritamente necessários ao esclarecimento da localização e das condições da realização da obra” e pagar a taxa devida cf. então prescrito no art. 5º- 1 e 3 do DL 166/70.

37. Em tal reqto deveria fazer-se constar o nome e domicílio do reqte, bem como a indicação da qualidade em que ali interviera, o que nem sequer fora cumprido, cf o pedido que antecedera a emissão daquele documento, datado de 08/05/1978, cf. doc. 3 do reqto dos AA de 19/09/2018, sob ref. 3128410, ignorando-se, pois, em que qualidade o A. o formulou, facto que lhe cumpria ter esclarecido, e nunca o fez.

38. Nenhuma das instâncias se pronunciou, cf 2º§ daquele pedido de construção, na parte em que se refere a intenção de edificar o “1º andar de uma casa” que poderia reportar-se à que os AA andavam para si perto do local para onde se mudaram de vez em 1989, sendo ainda mais estranho o facto de a referida habitação não possuir apenas um andar, mas, sim, dois, como os AA alegam e se vê das cadernetas prediais urbanas de fls 12, doc.1, da p.i., e fls 85 e ss, doc. 2 do reqto dos RR de 12/02/2018, sob ref. 2769071.

39. Daí que ou o prédio a que se reporta o pedido de licenciamento de fls 117, não era o dos autos, como é o mais lógico, ou a construção do 2º piso teria sido licenciada, isso sim, com recurso a um qualquer outro pedido, mistério que os AA não deslindaram na p.i. nem ao longo da tramitação do processo, sendo de presumir, de jure, por tal partir de factos conhecidos que os AA silenciaram até à data, que fora o próprio EE o seu autor, .

40. Os AA podiam e deviam tê-los esclarecido, pois só eles ficaram e têm consigo todas as chaves dos prédios da herança, nunca tendo permitido aos RR o acesso ao seu interior, em especial da casa onde os pais sempre viveram, guardando ali, “religiosa e avaramente”, toda a papelada respeitante a móveis e imóveis, atento o espírito meticuloso do pai, que não deitava nem deixava nunca deitar nada fora.

41. Errou, pois, a 1ª intância ao decidir que os AA são proprietários do referido prédio, e não se tendo a TR…. apercebido de que tal decisão foi tomada apenas com suporte nas testemunhas, à revelia, portanto, dos já citados arts 351º, 364º, 392º e 393º do CC, e 662º-1 do CPC relegando-se tão árdua quanto “melindrosa” apreciação para momento ulterior, mas já à luz do 674º- 3 in fine , quando a questão fulcral decidenda

poderia, a nosso ver e smo, ter-se sanado logo ali, na 2ª instância.

42. Nem das cadernetas prediais nem do processo de Imposto de Selo, cf. fls 12, 85 e ss, doc. 1 da p.i. e docs 2 e 3 do reqto dos RR de 12/02/2018, sob ref. 2769071, nem do tal pedido de licenciamento de fls 117 poderá “aproveitar-se” seja o que for que permitisse sufragar tal decisão, com a agravante de não se terem retirado as devidas ilações, no tocante, por um lado, ao valor jurídico e probatório de que se reveste o alvará de fls 123, onde figura o nome de EE como seu legítimo titular - cf. docs 1 a 3 do reqto dos RR de 04/10/2018, sob ref. 3159569.

43. Na ótica do animus por parte dos testadores e dos Rdos, bem como da sua repercussão relativamente ao início do prazo de contagem da pretensa usucapião, veja-se, i.o., o douto Ac TRE de 21.04.2005, in Proc. 488/05-3, onde se decidiu, que “ a falta do animus possidendi acarreta que os AA sejam simples detentores ou possuidores precários, nos termos das alíneas a) e b) do art. 1253º do CC e, como estabelece o seu art. 1290º... os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito “possuído”, salvo se ocorrer a inversio possessionis”, mas, neste caso, acrescenta-se neste último normativo, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.

44. Tendo sido o imóvel erigido na Quinta dos pais, e não tendo o depoimento das testemunhas sido cabal, concreto, isento e esclarecedor, deverá o Tribunal socorrer-se da presunção judicial de que só os pais da A. e Ré, mandaram construir os ditos andares e custearam as obras, presunção que os AA não ilidiram nem tentaram ilidir, como deveriam ter feito, se pudessem, juntando aos autos, cópias dos elementos supra-referidos em III-A.3, esses, sim, dotados de alguma força probatória quanto aos factos alegados nos itens 4º e 5º da p.i.

45. O testamento junto aos autos sob doc.3 da p.i com que os AA pretendem ver suprida a nulidade da doação verbal, além de apontar dialeticamente para a sua inexistência, fica muito longe de corroborar tal pretensão, antes fortalecendo as razões, de facto e de jure, que deveriam ter levado o Tribunal a julgar esta ação improcedente no saneador, a fortiori arrogando-se proprietários do imóvel com base na usucapião.

45. Se o testador quisesse convolar um ato nulo num outro que, segundo os AA, teria passado a ser válido e eficaz, tal entendimento, sendo a autora co-herdeira do pretenso doador e já após o seu decesso, jamais produziria o almejado efeito, por a tanto obstar o disposto no art. 968º do CC, que não se confunde com o 288º-1, pois só aí é que os efeitos da pretensa confirmação, ex vi do seu nº4, retroagiriam à data em que a alegada doação verbal teria ocorrido, o que, no caso sub judicium, além de não provada, seria inviável, por estamos em presença de uma nulidade ad substantiam, e não de uma mera anulabilidade.

46. Sendo o instituto da usucapião, por um lado, uma forma de aquisição originária da posse do direito de propriedade, e não a mera transmissão derivada desse direito, e invocando os AA a seu favor, por outro, a pretensa doação verbal de um imóvel, era-lhes de todo impossível usucapi-lo nas condições e termos alegados na p.i, ex vi do disposto no art. 947º-1 do CC e da força presuntiva que emana do nº 2 dos arts 1252º e 1257º do CC (V.d. v.g, o douto Ac STJ Proc.9950/11.87BNVG.P1.S1 , 2ª SEC., de 12.05.2016).

47. Seria, aliás, inconstitucional o art. 1287º do CC, por violar os princípios consignados nos arts 18º, 62º-1, 202º-2, 204º e 205º-1, todos da C.R.P, quando interpretado, no sentido de reconhecer aos AA o direito de propriedade de que se arrogam por usucapião do prédio urbano descrito no art. 1º da p.i., baseando-se, para tanto, no facto de o terem adquirido por doação verbal, considerando que os pretensos doadores, através do testamento onde lhes deixam, para valer após a sua morte, o terreno onde o prédio foi construído, teriam suprido e “legalizado” a nulidade de que tal ato enferma.

48. O que legitima a dupla presunção judicial de que se os pais nunca deixaram de julgar-se os únicos donos do imóvel em causa, foi porque nunca quiseram deixar de sê-lo e de continuarem a ser reconhecidos como tal até à morte do último, de contrário, teriam tido muitos anos antes para se demitirem desse direito, também os próprios AA nunca se sentiram donos desse imóvel, de contrário, não teriam tido necessidade de se arrimarem ao testamento.

49. A Relação de Bens e a do requerimento que a acompanha no processo de imposto de selo, onde a própria A, enquanto C.Casal da herança jacente da mãe reconhece, com valor da confissão prevista nos arts 358º-2 e 371º-1 do CC, que o referido imóvel, além de ter sido pertença exclusiva de seus pais, passara a fazer parte integrante da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito deles.

50. Ao contrário do que se fez constar no 8º item dos factos provados e se considerou no 4º§, pag.18 da sentença, o pedido reconvencional não assenta apenas no argumento de “as rendas terem sido pagas ao EE”(facto alegado em II.2 da contestação, que deverá ter-se por confessado pelos AA no art. 3º da réplica, pelo menos até 1989, mas também, implicitamente, na presunção estabelecida a favor dos RR no art. 1257º-2 do CC, no sentido de que a posse continua em nome de quem a começou.

51. Além de os AA não terem feito prova atendível em direito, no tocante à qualidade de proprietários de que se arrogam mediante os referidos factos alegados na p.i. e tidos por assentes nos itens 4º, 6º, 7º, 8º e 10º da sentença recorrida – e indevidamente complementados, por outros que nem alegados foram - também não provaram terem atuado, ab ovo, por si próprios, é dizer, sem o referido ato translativo alegadamente materializado na doação verbal feita por seus pais. Entendimento este, sufragado por P.de Lima e A.Varela, (c. col. De H. Mesquita) in CC An. 2ª ed. Coimb. Ed.,Lda, 1984, in obs. 2 ao art.1252º, ao acentuarem que “ o n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao n.º 2 do art. 1257º).”

52. A abrangência do cit. art. 352º não se confunde com o poder de o Tribunal analisar e valorar livremente o depoimento pessoal das partes, mesmo oficiosamente, ex vi dos arts 5º-2.a) e 704º-4 e 5 do CPC, pois a confissão não tem que recair apenas sobre factos alegados pelos AA - sobre quem recaía o ónus de os ter alegado e provado, porque constitutivos, articulados com os demais, do direito de que se arrogam sobre esse imóvel. (V..d. i.o., Ac STJ, Proc.Nº819/11.7TBPRD.P1.S1,2ª sec, de 10 de setembro/2015, concl.s III,V,VIII) e Exmo Cons.Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II vl, 4.ªed., Coimbra, Almedina, e, ainda, ) - mas também sobre outros, ainda que não alegados, não podendo, assim, a credibilidade das declarações dos RR deixar de ser apreciada, numa perspetiva crítica com vista à descoberta da verdade material, por se tratar de ato jurídico apenas sujeito às restrições do 295º do CC.

Nestes termos e melhores de direito que Vossas Excelências não deixarão de suprir, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue a ação improcedente e a reconvenção procedente, far-se-á inteira JUSTIÇA»

Contra-alegaram os AA., concluindo o seguinte:

«1ª - O presente recurso não deve ser admitido, nem como recurso de revista normal, nem como recurso de revista excecional.

2ª - Verifica-se nos autos a dupla conforme que veda a sua admissibilidade (art. 671º/3 do CPC), porquanto na parte de que recorrem os recorrentes, a Relação manteve a decisão de facto e confirmou a decisão jurídica e a fundamentação que vinham da primeira instância e sem voto de vencido.

3ª - O fundamento jurídico de uma decisão não se confunde com os argumentos nela utilizados para convencer os seus destinatários, mas é antes a razão, legal, pela qual o Tribunal toma uma decisão.

4 ª- No caso dos autos essa razão foi a mesma: tanto a primeira instância como a Relação decidiram que os AA recorridos tinham adquirido um prédio pela usucapião.

5ª - Não há contradição de julgados em decisões se discute a mesma questão de direito, mas a matéria de facto apurada é totalmente oposta.

6ª - Não havendo essa contradição não se justifica a revista normal ao abrigo o disposto no art. 629º/2-d) do CPC.

7ª - A possibilidade de recurso que abre a alínea a) do nº 1 do art. 672º do CPC tem que ver com situações em que existe controvérsia jurisprudencial ou doutrinal e é essa controvérsia que faz com que seja útil à aplicação da justiça que sobre ela recaiam decisões judiciais reiteradas, de modo a que se forme uma jurisprudência constante, ou ela venha a uniformizar-se.

8ª - A mera afirmação de que, para a parte vencida, a questão é relevante não preenche aquela possibilidade e tal insuficiência deve levar à improcedência do recurso;

9ª - Tanto mais que não existe controvérsia nos nossos Tribunais, ou doutrina, ligada à aferição da posse e à afirmação da usucapião, mas antes decisões diferentes em processos em que se provaram factos diferentes.

10ª - Considerando que nos autos se discutia uma questão de propriedade, a sua relevância social só pode ter a ver com o interesse da comunidade em que seja reconhecido esse direito a quem é o verdadeiro dono.

11ª - Quando nessa disputa uma das partes invoca a usucapião não pode exigir-se-lhe que prove essa alegação unicamente com base em documentos, vedando-lhe a possibilidade de recorrer à prova testemunhal.

12ª - Pelo contrário, estando em causa nos autos apurar se alguém exerceu atos de posse, com que características e durante quanto tempo, e sendo a posse um poder de facto que se manifesta por uma atuação, exigir-se prova documental dessa atuação seria negar a sua própria natureza.

13ª - Sendo ela um poder de facto, a prova testemunhal é aquela que melhor permite ao julgador apreciar a atuação das partes, não havendo qualquer razão para a considerar inadmissível;

14ª - Mais ainda na situação dos autos em que houve também a ponderação de documentos, ainda que num sentido com o qual os RR/recorrentes discordam.

15ª - Não existe, como atrás já se disse, contradição entre a decisão recorrida e o Acórdão deste STJ a que aludem os RR, pelo que também aqui não merece provimento o seu recurso.»

Terminam, dizendo que deve ser mantida, na íntegra, a decisão recorrida.


*

Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, importará, in casu, apreciada que seja previamente a problemática da admissibilidade da revista, verificar se há razões para, dentro dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, introduzir alguma modificação na matéria de facto, com as eventuais consequências quanto ao preenchimento dos requisitos da aquisição por usucapião, por parte dos Autores, ao arrepio do que foi decidido no acórdão recorrido.


II

No acórdão recorrido, consideraram-se provados os seguintes factos:

«1 – O pai da autora e da ré, EE, faleceu no dia 2 de dezembro de 2012, no estado de casado com GG (artigo 3º da contestação/reconvenção);

2 – GG, mãe da autora e da ré, faleceu no dia 8 de janeiro de 2016, no estado de viúva de EE (artigo 3º da contestação/reconvenção);

3 – Existe um prédio urbano composto de casa habitação com 72 m2, sito no lugar  …, freguesia e concelho ……, a confrontar do norte com o caminho particular de acesso à quinta, do sul com HH, Nascente com CC e AA e do poente com AA e Outros, inscrito na matriz sob o artigo …82 e omisso na Conservatória do Registo Predial (artigo 1º da petição inicial);

4 – Os autores entraram na fruição física do terreno onde se encontra edificado tal prédio por doação verbal feita à autora pelos seus pais, em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, com a finalidade de a autora e o marido aí edificarem uma construção com dois andares para nela habitarem (artigo 3º da petição inicial)».

5 – No momento de tal doação, já havia sido edificado pelos doadores o R/C do prédio aí existente (artigo 2º da contestação);

6 – Em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, naquele prédio, os autores edificaram uma casa de habitação e nela passaram a viver (artigo 4º da petição inicial);

7 – Desde finais da década de 1970 que os autores utilizam aquele prédio, onde edificaram a respetiva casa de habitação, ali tendo habitado até 1989 durante todos os períodos que passavam em Portugal, e a partir de então cedendo a sua utilização e recebendo diretamente as rendas respetivas, conservando o edifício, limpando o terreno, o que fazem relativamente a toda a área coberta e descoberta do prédio, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e sem qualquer oposição, agindo na convicção de serem os proprietários quer do terreno, quer da totalidade do edifício ali implantado (artigo 5º da petição inicial);

8 – (Eliminado).

9 – No dia 13 de maio de 2009, no Cartório Notarial da II, foi outorgado testamento por EE, com o teor constante de fls. 16 e ss., no qual, além do mais aí exarado, o testador declarou:

Que do seu casal comum faz parte um prédio designado por …, nos arredores de …., com a área total de sessenta e dois mil, seiscentos e sessenta e sete metros quadrados (…)

(…) que, com o acordo da sua indicada mulher, vai discriminar e lega este prédio como se segue:

(…) verba número seis – parcela de terreno para construção com quatrocentos e quarenta e um metros quadrados que fica a confrontar de norte com o caminho, nascente com a verba número dois, sul com o caminho de fora e poente com a verba número dois (…)

E por conta da sua quota disponível faz os seguintes legados, sendo que, se alguma das legatárias os repudiar, a parte objeto do repúdio integrará o legado da outra legatária, também por conta da sua quota disponível;

(…) a sua filha AA, a raiz da totalidade das verbas números (…) seis (…)” (artigo 7º da petição inicial);

10 – A verba nº 6 mencionada em tal testamento incorpora a área de terreno onde está implantada a casa de habitação, tendo sido intenção do doador incluir tal área no testamento para suprir o facto de ter sido atribuído à autora apenas por forma verbal (artigo 7º da petição inicial);

11 – Foi instaurado e encontra-se pendente no Cartório Notarial da II o processo de inventário nº 6056/.…., para partilha das heranças dos aí inventariados GG e EE (artigo 6º da contestação/reconvenção).»

Deram-se por não provados estes factos:

«Os alegados nos artigos:

- 4º, (parcialmente, quanto ao facto de casa de habitação ter sido edificada com R/C já que este, foi edificado por EE), 5º, (parcialmente, quanto ao pagamento de impostos), da petição inicial;

- 3º - o primeiro com essa numeração - (parcialmente, quanto à inexistência de doação verbal), 1º, 2º (parcialmente, quanto à execução de obras pelo pai nos 1º e 2º piso e trabalhos no terreno rústico), 3º (parcialmente quanto à conclusão de que o prédio fazia parte do acervo de bens dos autores da herança), 4º, da contestação.

- Até por volta de 1989, por vezes, o pai da autora e sogro do réu recebeu rendas daquele prédio, o que fez em representação e a pedido dos autores por eles, até então, estarem emigrados na Suíça (artigos 3º, 4º e 5º da réplica)»


III

III.1.

Defendem os AA. que o recurso não deve ser admitido, nem como recurso de revista “normal”, nem como recurso de revista excepcional.

No que concerne à revista “normal”, consideram que se verifica, no caso, a dupla conforme que veda a sua admissibilidade, nos termos do art. 671º/3 do CPC, já que:

- O recurso interposto da decisão da 1ª Instância era um recurso em matéria de facto e de direito;

- A Relação, pronunciando-se quanto aos factos, entendeu que havia que introduzir neles uma alteração e retirou dela a consequência jurídica. No restante, manteve a decisão de facto que vinha da 1ª instância e, nessa parte, confirmou também a sua decisão jurídica e a sua fundamentação;

- Tanto a 1ª Instância como a Relação decidiram que os AA. recorridos tinham adquirido um prédio por usucapião;

- A 1ª Instância tinha decidido que os AA. tinham adquirido tal prédio e o seu terreno circundante e a Relação considerou que aquela aquisição não abrangeu o dito terreno, mas se limitou à construção, sendo apenas nisso que divergiram;

- No que respeita ao prédio urbano, a decisão foi a mesma e o seu fundamento também, ou seja, que os AA. tinham adquirido o prédio urbano pela usucapião;

- Nesta parte, e é sobre ela que recai a discordância dos Recorrentes, não há qualquer afastamento entre o juízo da 1ª Instância e o juízo da Relação ou quanto aos seus fundamentos.

Vejamos:

Como acima se relatou, os AA. alegaram, no art. 1º da petição inicial, que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano composto de casa de habitação, com 72 m2 e logradouro de 693,50 m2, invocando uma doação verbal por parte dos pais da A., mencionando a feitura de um testamento, através do qual, entre o mais, houve a intenção de suprir a falta de forma relativamente à doação e reclamando, de qualquer modo, a aquisição por usucapião.

Concluíram, pedindo que se lhes reconheça o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição.

Os RR. deduziram reconvenção, pedindo que se declare que o prédio reivindicado faz parte integrante das heranças ainda ilíquidas e indivisas deixadas por óbito do pai da Autora e da Ré e, depois, por óbito da viúva e mãe de ambas.

Na 1ª Instância, foi proferida sentença que julgou procedente a acção e declarou os autores proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação com 72 m2 e logradouro de 693,50 m2, sito no lugar …., freguesia e concelho …, a confrontar do norte com caminho particular de acesso à quinta, do sul com HH, do nascente com CC e AA e do poente com AA e outros, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ….92 e omisso na Conservatória do Registo Predial, condenando os réus a reconhecerem tal direito.

Ao mesmo tempo, julgou improcedente a reconvenção.

O Tribunal da Relação, na procedência parcial do recurso, alterou a decisão recorrida, nos termos atrás descritos, declarando que os Autores são proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação com 72 m2 de implantação.

Foi julgada a reconvenção parcialmente provada, declarando-se que o terreno que integra a verba n.º 6 do testamento referido nos autos, excluída a área referida, faz parte da herança aberta por óbito dos pais da Autora e Ré.

Com o recurso, os RR.-reconvintes pretendem que a reconvenção seja inteiramente procedente, ou seja, que se declare que o prédio identificado no art. 1º da petição inicial faz, no seu todo, parte das heranças dos pais da Autora e da Ré.

Tem-se, de um modo geral, entendido que a dupla conforme parcelar apenas pode ter lugar relativamente a objectos processuais decorrentes de pretensões autónomas, cindíveis, formuladas na causa.

Isso mesmo resulta do que vem escrito em A Dupla Conforme, Cadernos do STJ: Secções Cíveis, Carlos Lopes do Rego (Coord.), Supremo Tribunal de Justiça, 2021, p. 24:

«Quando estivermos confrontados com uma causa que comporte pluralidade de objetos processuais autónomos ou cindíveis, a existência de dupla conforme deverá ser aferida relativamente ao decidido pelas instâncias acerca de cada um desses objetos processuais autónomos - podendo verificar-se apenas em relação a um deles, ficando consequentemente aberta a via da revista normal, mas apenas quanto à matéria da pretensão dirimida de forma diversa pela 1a e 2a instâncias.

Assim, se é objeto da ação um pedido de condenação na restituição do capital mutuado e um pedido acessório de condenação nos juros respetivos, calculados segundo certa taxa, se ambas as instâncias dirimem em termos perfeitamente coincidentes a matéria do pedido principal, divergindo apenas quanto à taxa de juro aplicável ao negócio, fica naturalmente vedada a revista normal quanto ao pedido de restituição do capital mutuado, sendo possível a revista normal quanto a matéria dos juros por parte do litigante que viu a sua situação agravada, face à taxa tida por aplicável no acórdão recorrido - matéria esta, controvertida no recurso, totalmente autónoma e cindível relativamente ao tema estabilizado da restituição do capital mutuado.

Deste modo, havendo cumulação de pedidos ou reconvenção, a existência do requisito da dupla conformidade deverá, em princípio, ser analisada separadamente em relação aos segmentos decisórios que se pronunciaram sobre cada um desses pedidos e sobre a reconvenção, salvo se ocorrer uma situação de incindibilidade entre a matéria das várias pretensões, por estar a decisão de todas elas irremediavelmente ligada (Acs. STJ de 10/10/12, P. 29/09, de 29/10/15. P. 258/09 e de 3/3/16, R 151/10).»

No caso que nos ocupa, os AA. deduziram uma única pretensão: a do reconhecimento do direito de propriedade do prédio que identificam no art. 1º da petição inicial.

Na reconvenção, os RR. formularam o seu pedido relativamente ao mesmo prédio, considerado na globalidade, sucedendo que o pedido reconvencional apenas em parte foi concedido. Os RR. foram, por isso, vencidos, embora parcialmente, mas, salvo o devido respeito, está em causa um único objecto, não podendo cindir-se a pretensão dos RR. em parcelas (como nalguns arestos, se tem admitido, por exemplo, relativamente a quantitativos reportados a danos de natureza diversa, mormente em casos de acidentes de viação).

O facto de o Tribunal a quo ter julgado a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, dentro dos limites tidos por provados, não conduz à cindibilidade do objecto do processo, de modo que se possa dizer, à semelhança da cumulação de pedidos, que se verifica dupla conforme em relação a um objecto processual autónomo e que subsista outro, também com autonomia, por dirimir.

Entende-se, assim, que não se verifica, in casu, dupla conforme parcelar, sendo, por isso, admissível a revista “normal” e ficando prejudicada a apreciação do mais que sobre a admissibilidade da revista foi alegado.

III.2.

Extrai-se das conclusões dos Recorrentes que estes entendem que o Tribunal recorrido incumpriu o disposto no art. 662º, nº1, do CPC, sendo essa, aliás, uma das razões por que defenderam não haver dupla conforme. E citaram, a propósito, o Ac. do STJ de 03-11-2016, Rel. Paulo Sá, Proc. nº 3081/13.3TBBRG.G1.S1, publicado em www.dgsi, no qual se concluiu que:

«Não existe dupla conforme entre a decisão da 1.ª instância e o acórdão da Relação que, por via da impugnação da decisão da matéria de facto em apelação, dela conhece e não a altera, confirmando o decidido, se a questão colocada no recurso de revista radica no uso pela 2.ª instância dos poderes conferidos no art. 662.º, n.º 2, do CPC, próprios e privativos do tribunal da Relação, sem correspondência na decisão da 1.ª instância.»

Dispõe o art. 662º, nº 4, do CPC que não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação previstas nos nºs 1 e 2 do mesmo artigo. Tem-se, no entanto, entendido que «é admis­sível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjetivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662.°.» (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 358).

E acrescenta Abrantes Geraldes, relativamente aos poderes do STJ quanto à decisão da matéria de facto:

«Ao Supremo Tribunal de Justiça é ainda legítimo sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674.°, n.° 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682.°, n.° 3.

Deste modo:

a) Se forem desconsiderados factos que se mostrem necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito, o Supremo pode determinar a baixa do processo para o efeito, nos termos do art. 682.°, n.° 3.

b) O Supremo pode intervir quando, na circunscrição dos factos provados ou não provados, as instâncias tenham desatendido disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova (maxime, documento legalmente neces­sário para a prova de certo facto) ou tenham desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova (art. 674.°, n.° 3), como ocorre com documentos autênticos, com a confissão ou com o acordo das partes estabelecido no processo e que seja relevante.

c) O Supremo reiteradamente vem assumindo o entendimento de que, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art. 662.°, n.°s 1 e 2, já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer. Por isso, quando, no âmbito da revista em que tal questão seja suscitada, se constate o incum­primento dos deveres legais nessa área, o processo deve ser remetido à Relação, a fim de lhes ser dado cumprimento.»

(pp. 358-359)

Noutro ponto, relativamente às excepções previstas no art. 674º, nº 3, do CPC, e sobre o modo da efectivação, por parte do STJ, dos seus poderes nesse domínio, explica que:

«(…) o Supremo pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial. Por seu lado, deverá também introduzir as modificações na decisão da matéria de facto que se revelarem ajustadas quando, por exemplo, tenha sido descurado o valor probatório pleno de determinado documento ou tenham sido desatendidos os efeitos legais de uma declaração confessória ou do acordo das partes».

(p. 463)

Igualmente observam Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, no Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 163-164:

«O STJ está vinculado aos factos fixados pelo tribunal recorrido (…), que não pode, em regra, alterar. A alteração pode, porém, ocorrer se o STJ utilizar as faculdades de controlo da observância do direito probatório material, considerando que houve ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Será o caso, por exemplo, de o STJ julgar que certo contrato de arrendamento é nulo por falta de forma escrita, contrariamente à Relação, que considerara que a prova desse contrato se podia fazer através de depoimento testemunhal, ou, então, que o valor probatório dos factos constantes de uma escritura pública não pode ser afastado por prova testemunhal, quando a Relação julgara que a escritura não fazia prova plena de tais factos, violando, desse modo, o art. 371 CC».

Referem os Recorrentes que os AA apenas «alegaram os minguados factos do 4º e 5º itens da p.i., sem esclarecerem se a posse de que se arrogam foi exercida por si ou em nome doutrem, referindo que arrendaram os 2 andares da casa que dizem ter construído, que receberam as rendas e pagaram os “respetivos” impostos, sem nunca terem referido quando, como e por quanto, debitando por alto a fórmula tabular da chamada prova absoluta do direito de propriedade, sem contudo, a terem feito cabal e legalmente».

Dizem, ainda, que:

«9. Os AA também não juntaram ao processo os documentos exigidos por lei para o exercido tais atividades, condição indispensável, do ponto de vista probatório, para se terem como assentes, sobretudo no tocante à construção da casa, sobretudo cópia do requerimento e do projeto/plantas de pormenor, memória descritiva do existente e do planeado, deliberação camarária e subsequente emissão do respetivo alvará.

10. De igual modo, no tocante às faturas e/ou recibos dos materiais – ferro, cimento, areia, madeiras, telhas, tintas, anexando – e ao pagamento dos serviços ao construtor e operários que teriam intervindo nas obras, bem como de eventuais extratos de contas bancárias dos AA ou outras formas de provar tais factos.

11. Nem uma simples declaração - embora na altura das obras, ex vi do 1143º do CC, fosse obrigatória a outorga de escritura pública - para prova do pretenso mútuo de “cem contos” que a testemunha FF declarou em juízo ter-lhes feito, o mesmo sucedendo com os alegados arrendamentos, recibos das rendas, e bem assim das comunicações desses contractos e recebimento das rendas à Repartição de Finanças, como já era obrigatório, bem como das notificações da AT, para liquidação dos IMI e demais impostos que dizem ter feito sem o provarem, limitando-se a juntar testemunhas que não esclareceram tais factos como soía.»

Está em causa a matéria alegada nos arts. 4º e 5º da petição inicial, a que se referem os pontos 6 e 7 dos factos provados, cujo teor é (recorde-se) o seguinte:

«6 – Em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, naquele prédio, os autores edificaram uma casa de habitação e nela passaram a viver (artigo 4º da petição inicial);

7 – Desde finais da década de 1970 que os autores utilizam aquele prédio, onde edificaram a respetiva casa de habitação, ali tendo habitado até 1989 durante todos os períodos que passavam em Portugal, e a partir de então cedendo a sua utilização e recebendo diretamente as rendas respetivas, conservando o edifício, limpando o terreno, o que fazem relativamente a toda a área coberta e descoberta do prédio, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e sem qualquer oposição, agindo na convicção de serem os proprietários quer do terreno, quer da totalidade do edifício ali implantado (artigo 5º da petição inicial)».

O Tribunal da Relação apreciou, como se retira da leitura do acórdão, a impugnação da matéria de facto na al. b) do capítulo III (Fundamentação).

Tal alínea foi dividida em dois pontos, um dedicado às ideias gerais norteadoras da decisão, outro à análise especificada da matéria impugnada, subdivido em quatro segmentos: «(I) no que respeita à construção do edifício; (II) quanto à doação verbal do terreno onde está implantado o edifício e respetiva área envolvente; (III) quanto à hipótese do pai da autora e ré mulheres ter inserido este terreno no testamento, na sua verba 6 (441 m2); (IV) posse do prédio».

No que concerne à construção do edifício, o Tribunal a quo analisou documentos e prova testemunhal, considerando, entre o mais, que:

«Face aos documentos que ficaram indicados e depoimentos, verifica-se que há harmonia entre os documentos onde figura o autor BB como requerente e os diversos testemunhos de antigos inquilinos que se referem a ele como senhorio.

Se se referem a ele como senhorio, e não ao seu sogro EE, que também conheciam, é porque o autor se apresentava como dono do prédio.

Verifica-se também que as testemunhas que depuseram de modo mais favorável aos réus, nenhuma diz que verificou pessoalmente factos indicativos de que o prédio aqui em causa tivesse sido construído pelo Sr. EE.»

[…]

Verifica-se, por conseguinte, que a prova testemunhal que favorece a tese dos Réus não incidiu sobre factos relativos à construção do prédio e respetiva utilização, incluindo aqui também o seu arrendamento a terceiros.

Como se disse acima, a série de documentos juntos pelos autores mostra que quem assim agiu, como os documentos mostram, agiu como agiu por ser o dono, por ser proprietário da casa que estava em processo de construção.

E verifica-se que as testemunhas JJ, FF, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ corroboraram a hipótese alegada pelos autores principalmente as que referiram terem sido inquilinas do autor.

Efetivamente não se encontra explicação para o autor ter aparecido como senhorio e ter recebido as rendas de diversos arrendatário e não ser por ser o dono.

Ao invés, se o Sr. EE fosse o dono, então existiram inquilinos que o teriam tido como senhorio, mas não há notícia disso.

Os depoimentos de parte reproduzem o que já foi dito na contestação e não trazem à luz qualquer elemento factual que corrobore a sua tese.

Não podendo ambas as hipóteses ser verdadeiras ao mesmo tempo, a prova documental e testemunhal corrobora a tese dos autores na parte relativa à construção feita acima do rés-do-chão.»

No que concerne à posse do prédio, escreveu-se o seguinte:

«Sendo o corpus da posse constituído pelas ações externas que o agente executa sobre a coisa, ou relativamente à coisa, acompanhadas de uma atitude interior intencional perante a coisa, o denominado animus, que se pode traduzir na postura, perante a coisa, «isto é meu, sou dono disto», então a posse só se mostra comprovada quanto ao edifício e área onde assenta, não quanto ao terreno que o envolve, com a já referida área de 441 m2 mencionada no testamento em relação à verba n.º 6.

Com efeito, quanto ao edifício vale o que já foi dito relativamente à sua construção e seu arrendamento.

São atividades que revelam, no contexto dos autos, a respetiva posse, porquanto quem constrói e depois arrenda, revela que construiu em nome próprio e não de outrem e arrenda em nome próprio e não em nome de terceiro. Aqui o «terceiro» seriam que ser os pais da autora e ré mulheres, mas não há factos probatórios que indiquem que o Autor construiu e arrendou por conta dos sogros, nem se vislumbram motivos para que o tivesse feito, pois os sogros viviam ali e podiam tê-lo feito, sem necessidade de ocuparem os autores.

Verifica-se que não foi produzida prova relativamente a atos de posse quanto ao terreno circundante ao edifício, pois apenas a testemunha LL referiu (minutos 5.17- 6.00) que o BB tinha uma vinha encostada à casa e um galinheiro.

Que vinha, que galinheiro, com que extensão e configuração?

Não sabemos, pois a prova testemunhal não incluiu esta matéria.

Aliás, esta ausência de prova pode ficar a dever-se à realidade histórica, no sentido de não existir prova destes atos possessórios porque não existiram.

Com efeito, os atos relativos à construção por parte dos Autores referem-se ao 1.º piso, o que pressupõe que já existia um piso em baixo, como resulta do facto provado n.º 5, não impugnado neste aspeto.

Tal resulta de fls. 117, um documento emitido pela Câmara Municipal do Concelho ………, com o título «Licenciamento de obras», declarando-se aí que o «Requerente» é «BB»; que a «Obra a executar» é «Construção do 1.º andar da sua casa de habitação com 67 m2, durante 15 dias»; e que o «Local» é «…, freguesia …», terminando a licença em «6/7/1978».

E é significativo que o pai da Autora e Ré Mulher tenha pedido, em data anterior «6/7/1978», uma licença para construir também uma garagem com 64 m2, como se vê de fls. 124, fotocópia da licença de obras de onde consta entre outros dizeres «Ano económico de 1997» «Alvará de Licença n.º …..», emitida pelo Município, referindo-se que «Na reunião de 17 de outubro de 1977 foi concedida licença a EE...», «para construir uma garagem com 64 m2 durante 15 dias».

Em qualquer caso, é certo que não foi produzida prova da posse relativamente ao terreno exterior e circundante ao prédio urbano do artigo matricial ….. .»

Ponderou-se, ainda, no que diz respeito aos pontos 6 e 7 dos factos provados, cuja matéria é visada pelos Recorrentes, o seguinte:

«Facto provado n.º 6: «Em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, naquele prédio, os autores edificaram uma casa de habitação e nela passaram a viver (artigo 4º da petição inicial);

Os Recorrentes pretendem a sua eliminação por não existir prova documental e/ou testemunhal e terem resultado do depoimento do JJ, que não merecerá credibilidade como se vê do trecho em que disse que «...durante a construção da casa os AA estiveram emigrados...» e, depois, emendando a mão, «...naquela altura, eles estavam cá…».

Não se concorda com os recorrentes.

Quanto ao depoimento de JJ, não se afigurou que não refletisse a realidade percecionada pela testemunha. O ter dito que durante a construção os autores estiveram emigrados ao mesmo tempo que também referiu e tivesse que na altura «estavam cá», não é contraditório.

Nem sempre as testemunhas conseguem exprimir-se com clareza.

Resultou do depoimento de várias testemunhas, como se vê pela transcrição feita acima, que os autores estiveram emigrados na Suíça; que passavam aí uns meses e regressavam a Portugal onde passavam uma temporada e depois voltavam para a Suíça.

O que a testemunha quis dizer é que a construção da casa decorreu numa altura em que os autores tinham este modo de vida.

Como acima se referiu, há elementos probatórios que mostram que os autores com animus de proprietários construíram o edifício que está sobre o rés-do-chão.

Com efeito, há um processo cronológico relativo às fases de construção do edifício, desde 1978 até à sua inscrição na matriz predial em 1981 e o agente deste processo é o autor BB e como se disse, face a este processo histórico, um observador ficaria convencido que quem assim agiu o fez por ser o dono, o proprietário, da casa que estava em processo de construção e também do terreno onde estava a ser implantada.

Ora, se os Autores construíram foi para aí residirem ou arrendarem e de facto residiram aí durante algum tempo, como foi referido pela própria Ré mulher quando disse (minuto 3.09) que a sua irmã (a Autora) viveu na referida casa entre 1981 e 1988 e depois arrendaram.

Mantém-se, pelo exposto, o facto.

Facto provado n.º 7: «Desde finais da década de 1970 que os autores utilizam aquele prédio, onde edificaram a respetiva casa de habitação, ali tendo habitado até 1989 durante todos os períodos que passavam em Portugal, e a partir de então cedendo a sua utilização e recebendo diretamente as rendas respetivas, conservando o edifício, limpando o terreno, o que fazem relativamente a toda a área coberta e descoberta do prédio, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e sem qualquer oposição, agindo na convicção de serem os proprietários quer do terreno, quer da totalidade do edifício ali implantado (artigo 5º da petição inicial)».

Os Réus argumentam que este facto deve ser eliminado porque nem sempre o alugar ou arrendar uma casa e/ou receber o valor do aluguer ou da renda equivale a ter-se o locador como seu proprietário, por se tratar de um ato de mera administração ordinária.

E que os próprios autores mostraram que não têm animus porquanto registaram o prédio nas finanças como sendo da herança.

Vejamos.

O que os recorrentes dizem está de acordo com a realidade jurídica, mas no caso dos autos resultou provado que os autores construíram o que existe acima do rés-do-chão, que aí viveram, que arrendaram e receberam as rendas e é isso que consta do facto.

E como resulta do já exposto, também se formou a convicção de que agiam assim porque se consideravam e agiam perante os outros como donos.

O facto dos próprios autores terem inscrito o prédio nas finanças como sendo da herança não desfaz a convicção a que se chegou, porquanto se desconhecem as circunstâncias, fins e intenções por que o fizeram desse modo.

Mantém-se, por isso, o facto.»

Dos extractos citados resulta que o Tribunal da Relação procedeu, de acordo com os seus poderes-deveres, à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não se vendo em que aspecto possa não ter observado o que vem previsto no art. 662º, nºs 1 e 2 do CPC. Por outro lado, não se verifica que tenha sido descurado algum documento legalmente neces­sário para a prova da factualidade em jogo, vista a natureza desta, ou desconsiderada disposição expressa que defina a força de determinado meio de prova. Na verdade, não se pode olvidar que, estando em causa a prova de actos reveladores da invocada posse tendente à aquisição por usucapião – para cuja verificação a prova testemunhal assume, um papel fundamental, por ser ela que, em primeira linha, regista os gestos do quotidiano, há que distinguir uma tal realidade da observância ou não de formalismos legais, como, aliás, se fez notar na decisão, ao referir-se, a dado passo, que embora a afirmação dos RR. relativamente ao arrendamento esteja de acordo com a “realidade jurídica”, certo é que «no caso dos autos resultou provado que os autores construíram o que existe acima do rés-do-chão, que aí viveram, que arrendaram e receberam as rendas e é isso que consta do facto».

Está vedada ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação dos meios de prova, competindo tal tarefa à Relação, que a levou a cabo, como decorre dos trechos citados, entendendo-se não estar configurada alguma das excepções que permitem a intervenção do STJ.

Alegam os Recorrentes que «não existem quaisquer elementos comprovativos de os pais e sogros dos AA - verbalmente ou por escrito - lhes terem doado o tal terreno onde os dois andares teriam sido construídos, dizendo assim, e não “foram”, porque, sendo o resto do imóvel muito extenso e existindo ainda uma terra de mato imediatamente contígua àquele terreno, fica-se na dúvida, se a deixa testamentária reportada nos autos não incidirá antes num “outro terreno” que não aquele onde EE já construíra um armazém coberto por placa em betão armado, ao nível do solo e que sempre possuiu até falecer».

E acrescentam:

«13. Se os pais da A. quisessem doar-lhe todo o imóvel como vai descrito no art. 1º da p.i., tê-lo-iam feito em vida, sem necessidade de lhe legarem apenas o dito “terreno” por testamento, também não se mostra feita a prova de os AA alguma vez terem possuído os dois pisos, por si e como seus donos, na ótica do disposto no art. 1287º do CC.

14. Os RR poderiam ter-se arrogado o mesmo direito, porque também eles, comprovadamente nos autos, lá habitaram, sem nunca terem pagado quaisquer rendas ou valores a seus pais, que nunca lhas pediram ou exigiram, e ficando sempre lá quando aos fins de semana e feriados, ia vê-los e estar com eles, no mesmo pé de igualdade com os AA, quando estes vinham de férias a Portugal».

Estamos também nestes pontos perante matéria que respeita à reapreciação dos elementos probatórios, pois o que os Recorrentes fazem aqui é questionar a decisão da matéria de facto, defendendo que os elementos probatórios não permitem concluir nos termos definidos pelas instâncias. Trata-se, por isso, de matéria da competência da Relação, que introduziu as alterações que teve por justificadas, não estando reunidos os pressupostos de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.

Os Recorrentes invocam o Ac. do STJ de 12-05-2016, Rel. Tomé Gomes, Proc. 9950/11.8TBVNG.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, com o qual entendem estar o acórdão recorrido em contradição e nele se estribando para defenderem que «aos AA está vedado fazer apelo a uma pretensa doação verbal alegadamente feita à A. por seus pais, de um terreno de que estes eram donos, para ali ser construída a casa descrita no 1º item, o que dizem ter feito, acabando por ter usucapido esse imóvel, embora não o refiram expressamente, à luz do art. 1287º do CC».

Em tal acórdão, concluiu-se que:

«I - A presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252.º do CC[1] é estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do doutrinado no AUJ do STJ, de 14/05/1996.

II - Todavia, para que aquela presunção opere com a ressalva da presunção da mesma natureza estabelecida no n.º 2 do art. 1257.º do CC[2], importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente.

III - Assim, não se configurando no caso dos autos tal condicionante, não lhe pode ser aplicável a presunção do n.º 2 do art. 1252.º do CC.

Referem, ainda, por reporte a esse acórdão, que a única posse subsumível ao instituto da usucapião é a «que assenta e provém diretamente da posse ab ovo, enquanto aquisição originária prevista no cit. 1287º, e nunca como forma de transmissão da mera posse ou do próprio direito de propriedade, porque desfasada dos requisitos essenciais que lhe dão vida, maxime dos prescritos nos arts 1262º e 1263º do CC» e que «sendo o instituto da usucapião, por um lado, uma forma de aquisição originária da posse do direito de propriedade, e não a mera transmissão derivada desse direito, e invocando os AA a seu favor, por outro, a pretensa doação verbal de um imóvel, era-lhes de todo impossível usucapi-lo nas condições e termos alegados na p.i, ex vi do disposto no art.947º-1 do CC e da força presuntiva que emana do nº 2 dos arts 1252º e 1257º do CC».

Vejamos:

No mencionado Ac. do STJ de 12-05-2016, citou-se a seguinte passagem da anotação de Pires de Lima e A. Varela ao art. 1252º (no Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 8):

«O n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse.»

Há que referir que, no cotejo entre o acórdão recorrido e o mencionado Ac. do STJ de 12-05-2016, se verifica que, no caso dos presentes autos, se provou a doação verbal, como decorre do ponto 4 dos factos provados, ao passo que, no acórdão citado, se deu como não provada a alegada doação verbal, o que, desde logo, faz com que sejam diferentes os quadros fácticos dos dois arestos.

Na verdade, no presente caso, provou-se que:

«4. Os autores entraram na fruição física do terreno onde se encontra edificado tal prédio por doação verbal feita à autora pelos seus pais, em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, com a finalidade de a autora e o marido aí edificarem uma construção com dois andares para nela habitarem (artigo 3º da petição inicial)».

Estando em jogo, no caso relatado no citado acórdão, a impugnação de uma escritura de justificação notarial, considerou-se, a dado passo, que:

«(…) Desse modo, a justificante alicerçou o direito arrogado na aquisição derivada da posse, ainda que por doação inválida do anterior possuidor, na sequência do que teria ocorrido uma prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição do referido prédio, dele retirando todas as utilidades, durante vinte anos, nomeadamente demarcando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respetivos impostos, sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem.

Daí se colhe uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é a dita doação verbal, a qual, mesmo inválida, a qual potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse exclusiva, em nome próprio.

Sucede que os R.R. não lograram provar a invocada doação (…)».

Como se vê, não se deixou de, relativamente ao animus, assinalar que a doação verbal, mesmo inválida, potenciaria, caso se tivesse provado, o sentido de transferir para o adquirente uma posse exclusiva, em nome próprio. Não há, pois – diversamente do que defendem os Recorrentes –, impossibilidade de adquirir por usucapião quando a posse se tenha iniciado com uma doação verbal, ainda que esta seja inválida.

Acresce que ainda se entendeu, naquele processo, face aos factos provados, que se verificava uma clara insuficiência do corpus possessório em termos de caracterizar o justificante como iniciador de uma posse desligada do anterior possuidor.

Referem os Recorrentes:

«20. Tanto na sentença de que se apelou, como no douto acórdão recorrido não se mostra observado o dever de conhecimento e de valoração das questões reportadas aos factos alegados pelas partes, e constantes dos temas de prova, antes indo além - sobretudo na 1ª instância - dos alegados pelos AA e suprindo falhas notórias da alegação atrás referida, do ponto de vista possessório, dando-se como assentes factos não alegados, uns, e não provados, outros, mostrando-se, pois, incorretamente valorados, não se compaginando sequer com a prova testemunhal e documental apurada nos autos, contra o que se insurgiram os Rectes nas alegações apelativas, com observância das formalidades prescritas no art. 640º do CPC.

21. A possibilidade de os factos tidos por assentes na 1ª instância virem a ser alterados no âmbito dos pressupostos legais da sua reapreciação pela recursória ad quem, cf. art. 662º-1 do CPC, não obsta, in casu, a que a restrição do nº 4 desse normativo possa voltar a ser oportunamente sindicada e alterada por este Supremo Tribunal, onde o legislador devolve aos litigantes a esperança de voltarem a ver sindicada e superiormente apreciada a matéria de facto assente na 2ª instância, a fortiori quando contende , como in casu ,com o princípio da aquisição processual de outros factos e com o da admissibilidade dos atinentes meios probatórios.»

Estamos, neste aspecto, perante considerandos genéricos, o mesmo sucedendo com as conclusões 22ª e 23ª, sendo exigível que se especifiquem os eventuais vícios que possam provocar a intervenção, dentro dos limites legalmente definidos, do STJ.

Na conclusão 24ª, os Recorrentes alegam que:

«24. Se os Tribunais, ex vi do art. 5º-3, não está coartado no que respeita à interpretação e aplicação das regras de direito, também não está liberto dos deveres consignados no nº 2- c),d) desse normativo, inclusive do de levar em conta o valor formal e materialmente probatório de que se revestem os documentos a que os Rects ali se arrimam, a fortiori quando, nos termos dos arts 393º e 394º do C.Civil, estava vedado à 1ª instância, com o beneplácito da 2ª, privilegiar a prova testemunhal em detrimento da documentada, cf. ponto III-A,B, e respetivos itens no corpo das alegações apelativas, com resumo nas suas concl. 1ª e 3ª, que ora se reproduzem.»

Pretendem os Recorrentes retomar o que alegaram na apelação.

Retira-se da leitura do acórdão recorrido que o Tribunal a quo conheceu das nulidades invocadas nas conclusões 1ª e 3ª do recurso de apelação, que considerou improcedentes, sucedendo que, no que concerne à problemática da eventual desconsideração de documentos, se entendeu que a questão seria de colocar em sede de impugnação da matéria de facto e não ao nível das nulidades da sentença.  E o Tribunal da Relação, no exercício da sua competência, passou, em seguida, precisamente, ao conhecimento da impugnação deduzida pelos RR., sopesando as provas produzidas, quer as emanadas de documentos quer as testemunhais.

Não resultam, também aqui, evidenciados os pressupostos de intervenção do STJ ao abrigo do disposto nos arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do CPC.

Alegam os Recorrentes:

«27. Deram-se na 1ª inst. como provados determinados factos que, inverídicos, uns, e demasiado genéricos, outros, aparentam terem sido redigidos em ordem a poderem subsumir-se à fórmula tabular de aquisição do direito de propriedade, formal e artificialmente assente na pretensa usucapião do direito de que os Rdos se arrogam sobre o terreno ocupado pelo imóvel descrito no art. 1º da p.i., com base numa pretensa doação verbal que o pai da A. lhes teria feito.

28. Para tanto, encantonaram-se no argumento de que a nulidade de que tal ato se mostra inquinado à nascença ter-se-ia suprido mediante o testamento de 13/05/2009 outorgado por J. Marques, através do qual, com base na letra do 1287º, teriam logrado ver-lhes lhes reconhecido o direito de propriedade sobre o referido imóvel, o que o Ac RTC vem de confirmar em parte, mas.sdr, por ínvia tergiversação que não pode proceder.

29. Com vista à demonstração de que teriam sido os AA a construir o imóvel em causa e a suportar o pagamento dos respetivos custos, deram-se como provados os factos alegados no art. 5º da p.i., pretensamente integradores do direito de que se arrogaram sobre o imóvel em causa, com pretenso apoio no teor do documento de fls 117, que, além de não fazer prova de ter sido o A. marido a preenchê-lo e a assiná-lo, também não esclarece em que qualidade jurídica o teria feito, e menos ainda, quando o seu casamento com a filha do pretenso doador era o da Com. Adquiridos.

30. Tal argumentação soçobra perante a força probatória emergente da imprescindível conjugação daquele documento com os demais juntos aos autos e, até mesmo, com a lógica, a lei e o direito, a apontarem para a verdadeira identidade da pessoa que mandou construir a suas expensas todo o prédio, o EE, e, consequentemente, tê-lo como seu legítimo titular.

31. É o que exsurge das declarações prestadas em 30/04/2016 da própria A. na AT, enquanto C.Casal, em sede de participação do I.S. por óbito da mãe, incluindo na íntegra e em propriedade plena o questionado imóvel na Relação de Bens como parte integrante da herança de que a decessa fora co-titular, o mesmo já tendo feito aquela, enquanto C.Casal por óbito do marido EE, inexistindo, por isso, o animus por parte dos AA, sobretudo porque ambas reconhecem expressamente e por escrito público que tal imóvel só aos pais pertencia, subsumindo-se a prática desses atos à confissão prev. nos arts 352º, 358º-2 e 359º-1 do CC».

O que ressalta destas alegações é, antes de mais, o inconformismo dos Recorrentes com a matéria de facto provada, designadamente com a alegada nos arts. 4º e 5º da petição inicial.

Os Recorrentes discordam do juízo feito pelo Tribunal recorrido, considerando que os meios de prova a que aludem não são suficientes para sustentar a factualidade em crise.

Ora, importará, mais uma vez, vincar os limites impostos ao Supremo Tribunal de Justiça quanto ao conhecimento da matéria de facto, estabelecendo a lei que, salvas as excepções mencionadas, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos não pode ser objecto do recurso de revista (art. 674º, nº3, do CPC).

Conforme já foi dito, terá de resultar demonstrado, para que se verifique a intervenção do STJ, que as instâncias desatenderam disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou tenham desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova.

Não figura nesta previsão o documento mencionado na conclusão 29ª, sucedendo que, no acórdão recorrido, se elencaram os documentos pertinentes relativamente à questão da construção do edifício, entre os quais o de fls. 117, referindo tratar-se de um documento emitido pela Câmara Municipal do Concelho  ……., com o título «Licenciamento de obras», declarando-se aí que o «Requerente» é «BB»; que a «Obra a executar» é «Construção do 1.º andar da sua casa de habitação com 67 m2, durante 15 dias»;  e que o «Local» é «………, freguesia …», terminando a licença em «6/7/1978».

O Tribunal a quo, dentro dos poderes que lhe são legalmente conferidos, não se limitou ao documento de fls. 117, tendo em conta toda uma “sequência documental” e concluindo que:

«Esta sequência documental mostra um processo cronológico relativo às fases de construção de um edifício, desde 1978 até à sua inscrição na matriz predial em 1981, que se situa, e quanto a isto não há controvérsia, na … .

O protagonista, o agente deste processo, é o autor BB.

Todas as ações, toda a intencionalidade que se encontra por detrás deste processo surgiu numa altura em que não existia qualquer litígio entre as partes e, por isso, tais ações não estão influenciadas pelo atual litígio.

Face a este processo histórico, qualquer observador ficaria convencido que quem assim agiu o fez por ser o dono, o proprietário da casa que estava em processo de construção e também do terreno onde estava a ser implantada.

Só assim não concluiria quem tivesse informações em sentido contrário suficientes para o fazerem duvidar.

Por conseguinte, a convicção começa por se formar no sentido de que o autor e esposa eram donos da construção e do terreno onde está implantada.»

Salvo o devido respeito, não estão reunidos os pressupostos da intervenção do STJ quanto a este aspecto.

Os Recorrentes aludem, por outro lado,  à participação, pela A., à Autoridade Tributária, enquanto cabeça-de-casal, para efeitos de imposto de selo, por óbito da mãe, incluindo na íntegra e em propriedade plena o questionado imóvel na relação de bens como parte integrante da herança daquela, bem como por óbito do marido EE, inexistindo, por isso, a seu ver, o animus por parte dos AA., sobretudo porque ambas reconhecem expressamente e por escrito público que tal imóvel só aos pais da A. e Ré pertencia, subsumindo-se a prática desses actos à confissão prevista nos arts 352º, 358º-2 e 359º-1 do C. Civil.

Conforme supra se deixou citado, o Tribunal a quo concluiu ter resultado provado que os autores construíram o que existe acima do rés-do-chão, que aí viveram, que arrendaram e receberam as rendas e é isso que consta do facto. E acrescentou:

«E como resulta do já exposto, também se formou a convicção de que agiam assim porque se consideravam e agiam perante os outros como donos.

O facto dos próprios autores terem inscrito o prédio nas finanças como sendo da herança não desfaz a convicção a que se chegou, porquanto se desconhecem as circunstâncias, fins e intenções por que o fizeram desse modo.»

Diga-se que não se vê que uma participação à Autoridade Tributária, na qualidade de cabeça-de-casal, para efeitos de liquidação de IMI ou de imposto de selo, antes da definição da questão da propriedade de um imóvel – e recorde-se que para essa definição os AA. tiveram que lançar mão da presente açcão declarativa –, se assuma como uma confissão susceptível de afastar o animus inerente a uma actuação equivalente à de proprietário. Ademais, não se olvidará que a confissão extrajudicial, seja em documento autêntico seja em documento particular, apenas tem força probatória plena se for feita à parte contrária ou a quem a representa (art. 358º, nº 2, do C. Civil). Assim não sendo – como não é, in casu –, o valor probatório é apreciado livremente pelo tribunal (nº 4 do mesmo artigo). Veja-se, a propósito, a anotação de Lebre de Freitas no Código Civil Anotado (sob coordenação de Ana Prata), 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 479, aí se referindo, entre o mais, que:

«A confissão que não seja escrita ou, sendo judicial, não seja reduzida a escrito (art. 463.° CPC), bem como a confissão extrajudicial a que falte o requi­sito da direção à parte contrária, está sujeita à livre apreciação do julgador. O n.° 4 inclui no seu âmbito de previsão todas as modalidades de confissão extra­judicial não abrangidas pelo n.° 2 nem pelo n.° 3, isto é, não só a confissão feita a terceiro em documento autêntico ou particular, mas também a confissão feita em documento autêntico ou particular e não dirigida a pessoa alguma, a dirigida à parte contrária em documento escrito, incluindo o documento eletrónico, a que falte algum requisito legal (art. 366.°) e a confissão verbal registada em reprodu­ção mecânica (art. 368.°: o documento não impugnado faz prova plena da confis­são, mas a força probatória desta é livremente apreciada pelo tribunal).»

Ou seja, ainda que se considerasse haver uma confissão nas declarações à Autoridade Tributária, em tais circunstâncias e com as ditas finalidades, não se estaria perante uma confissão dirigida à parte contrária, sendo a força probatória apreciada livremente pelo tribunal. Ora, o Tribunal recorrido considerou que a inscrição do prédio nas Finanças não era suficiente para afastar a sua convicção quanto ao animus e, no que concerne a este Supremo Tribunal, também aqui não se pode dizer que estejamos perante um meio de prova que, ao abrigo do disposto no art. 674º, nº 3, do CPC, imponha a alteração da matéria de facto.

Os Recorrentes alegam que se tiveram por provados na 1ª instância factos inexistentes, inventados, mesmo, com base na prova testemunhal, e que foi inculcada ao doc. 3 de fls 117 junto aos autos em 19/09/2018 sob ref. 3128410, uma força que o mesmo não contém, pois o facto de ali figurar como Requerente o nome do A. não faz presumir que fosse esse o nome do proprietário do prédio em causa, por se tratar de um mero pedido de aditamento a obra já anteriormente aprovada e licenciada pelo município em nome de EE, o que não espanta pois ninguém pede nas Câmaras, nem estas emitem, licença para construir um segundo e/ou um terceiro piso de um prédio urbano senão em sede de aditamento ao projecto de um outro já anteriormente aprovado.

Continuam, nas conclusões 35º e segs., a referir-se a esta problemática, acabando por desembocar  na alternativa de que ou o prédio a que se reporta o pedido de licenciamento de fls 117, não era o dos autos, como é o mais lógico, ou a construção do 2º piso teria sido licenciada, isso sim, com recurso a um qualquer outro pedido, mistério que os AA não deslindaram na p.i. nem ao longo da tramitação do processo, sendo de presumir, de jure, por tal partir de factos conhecidos que os AA silenciaram até à data, que fora o próprio EE o seu autor.

Há que ter em conta a matéria que se deu por provada, tendo o Tribunal da Relação, dentro dos seus poderes, apreciado, desenvolvidamente, a impugnação da matéria de facto e introduzido as alterações que teve por justificadas.

Assim, provou-se, como já se viu, o que consta dos pontos 6 e 7, matéria que resulta do alegado nos art.s 4º e 5º da petição inicial.

Deu-se ainda por provado, após menção ao testamento outorgado por EE, que:

«10 – A verba nº 6 mencionada em tal testamento incorpora a área de terreno onde está implantada a casa de habitação, tendo sido intenção do doador incluir tal área no testamento para suprir o facto de ter sido atribuído à autora apenas por forma verbal (artigo 7º da petição inicial)».

Como se extrai da menção feita entre parêntesis, esta matéria foi alegada no art. 7º da petição inicial.

Sempre se entendeu que os factos vertidos na sentença não têm de constituir um decalque do que foi alegado. Mesmo no tempo do questionário ou da base instrutória, se admitiam, para além das respostas positivas ou negativas, as restritivas ou explicativas.

À luz do CPC actual, na enunciação dos factos provados ou não provados, cabe também a pronúncia positiva, negativa, restritiva ou explicativa, que abarque os factos essenciais que foram alegados e outros de natureza complementar, concretizadores de factualidade difusa, bem como devem ser tomados em consideração os factos instrumentais, embora o relevo primacial destes se coloque ao nível da motivação (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, pp. 718-7199) .

Salvo o devido respeito, não se demonstra que, in casu, as instâncias não se tenham movido dentro dos limites traçados pelo art. 5º do CPC.

Referem os Recorrentes:

«41. Errou, pois, a 1ª intância ao decidir que os AA são proprietários do referido prédio, e não se tendo a TR…. apercebido de que tal decisão foi tomada apenas com suporte nas testemunhas, à revelia, portanto, dos já citados arts 351º, 364º, 392º e 393º do CC, e 662º-1 do CPC relegando-se tão árdua quanto “melindrosa” apreciação para momento ulterior, mas já à luz do 674º- 3 in fine, quando a questão fulcral decidenda poderia, a nosso ver e smo, ter-se sanado logo ali, na 2ª instância.»

42. Nem das cadernetas prediais nem do processo de Imposto de Selo, cf. fls 12, 85 e ss, doc. 1 da p.i. e docs 2 e 3 do reqto dos RR de 12/02/2018, sob ref. 2769071, nem do tal pedido de licenciamento de fls 117 poderá “aproveitar-se” seja o que for que permitisse sufragar tal decisão, com a agravante de não se terem retirado as devidas ilações, no tocante, por um lado, ao valor jurídico e probatório de que se reveste o alvará de fls 123, onde figura o nome de EE como seu legítimo titular - cf. docs 1 a 3 do reqto dos RR de 04/10/2018, sob ref. …69.»

Importa ter em atenção a natureza dos factos dados por provados. E, se atentarmos nos pontos 6 e 7, essenciais para o preenchimento da usucapião, não se vê em que é que poderia estar vedada a prova testemunhal, que, aliás, como se deixou expresso, é essencial quanto se trata da prova de factos ilustrativos da posse, que não se confundem com a rigorosa observância de formalidades quanto a alguns actos como, por exemplo, os que respeitam ao arrendamento. Isto para além de ressaltar da motivação que não foi tida em conta pelas instâncias, na decisão da matéria de facto, apenas a prova testemunhal.

Alegam os Recorrentes que:

«44. Tendo sido o imóvel erigido na Quinta dos pais, e não tendo o depoimento das testemunhas sido cabal, concreto, isento e esclarecedor, deverá o Tribunal socorrer-se da presunção judicial de que só os pais da A. e Ré, mandaram construir os ditos andares e custearam as obras, presunção que os AA não ilidiram nem tentaram ilidir, como deveriam ter feito, se pudessem, juntando aos autos, cópias dos elementos supra-referidos em III-A.3, esses, sim, dotados de alguma força probatória quanto aos factos alegados nos itens 4º e 5º da p.i.»

Há que tomar em consideração o que que foi dado por provado pelo Tribunal recorrido, dentro dos seus poderes, quanto à construção da casa habitação em apreço, tendo ficado assente que «naquele prédio, os autores edificaram uma casa de habitação e nela passaram a viver».

Referem os Recorrentes:

«45. O testamento junto aos autos sob doc.3 da p.i com que os AA pretendem ver suprida a nulidade da doação verbal, além de apontar dialeticamente para a sua inexistência, fica muito longe de corroborar tal pretensão, antes fortalecendo as razões, de facto e de jure, que deveriam ter levado o Tribunal a julgar esta ação improcedente no saneador, a fortiori arrogando-se proprietários do imóvel com base na usucapião.

45. Se o testador quisesse convolar um ato nulo num outro que, segundo os AA, teria passado a ser válido e eficaz, tal entendimento, sendo a autora co-herdeira do pretenso doador e já após o seu decesso, jamais produziria o almejado efeito, por a tanto obstar o disposto no art. 968º do CC, que não se confunde com o 288º-1, pois só aí é que os efeitos da pretensa confirmação, ex vi do seu nº4, retroagiriam à data em que a alegada doação verbal teria ocorrido, o que, no caso sub judicium, além de não provada, seria inviável, por estamos em presença de uma nulidade ad substantiam, e não de uma mera anulabilidade.»

Deu-se por provado, como também já se viu, que a verba nº 6 mencionada no testamento incorpora a área de terreno onde está implantada a casa de habitação, tendo sido intenção do doador incluir tal área no testamento para suprir o facto de ter sido atribuído à autora apenas por forma verbal.

Considera-se que, ao invés de apontar para a inexistência da doação verbal, tal disposição é imbuída da (comprovada) intenção de a confirmar. E a doação verbal foi dada efectivamente por provada, no ponto 4 (com destaque nosso):

«4 – Os autores entraram na fruição física do terreno onde se encontra edificado tal prédio por doação verbal feita à autora pelos seus pais, em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada no final da década de 1970, com a finalidade de a autora e o marido aí edificarem uma construção com dois andares para nela habitarem (artigo 3º da petição inicial)».

O Tribunal a quo não deu por verificada uma convolação ou confirmação do acto. Antes, considerou não se estar perante um meio legítimo de adquirir o direito e teve a dita doação verbal em consideração tão-só no que concerne ao começo do prazo da posse para a usucapião, face à finalidade que a ela presidiu e os actos que se lhe seguiram, sendo a partir dessa altura que os AA. entraram na fruição física do terreno onde se encontra edificado o prédio.  

Os Recorrentes defendem, de novo, louvando-se no mencionado Ac. do STJ de 12.05.2016, que, sendo o instituto da usucapião, por um lado, uma forma de aquisição originária da posse do direito de propriedade, e não a mera transmissão derivada desse direito, e invocando os AA a seu favor, por outro, a pretensa doação verbal de um imóvel, era-lhes de todo impossível usucapi-lo nas condições e termos alegados na p.i, ex vi do disposto no art. 947º-1 do CC e da força presuntiva que emana do nº 2 dos arts 1252º e 1257º do C. Civil.

Sucede que, in casu, a doação verbal ficou provada, diversamente do que se verificou no Ac. do STJ de 12-05-2016 (como atrás se assinalou). Além disso, nesse aresto, conforme também se referiu e se volta a sublinhar, não se deixou de registar que a doação verbal, mesmo inválida, potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse exclusiva, em nome próprio.

III.3.

Continuam os Recorrentes, dizendo que:

«Seria, aliás, inconstitucional o art. 1287º do CC, por violar os princípios consignados nos arts 18º, 62º-1, 202º-2, 204º e 205º-1, todos da C.R.P, quando interpretado, no sentido de reconhecer aos AA o direito de propriedade de que se arrogam por usucapião do prédio urbano descrito no art. 1º da p.i., baseando-se, para tanto, no facto de o terem adquirido por doação verbal, considerando que os pretensos doadores, através do testamento onde lhes deixam, para valer após a sua morte, o terreno onde o prédio foi construído, teriam suprido e “legalizado” a nulidade de que tal ato enferma.»

Importará ter em atenção os termos em que, no acórdão recorrido, foi reconhecido aos AA. o direito de propriedade.

Na verdade, no acórdão proferido pela Relação …, depois do conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, em parte procedente, fez-se constar que se manteve «a existência da doação verbal, mas limitada ao terreno de implantação da edificação aí existente, consoante de depreende dos factos provados dos n.º 4, 5 e 6, agora com nova redação».

Reproduziram-se, depois, os factos constantes do ponto 7 da matéria provada e concluiu-se, perante essa factualidade, pela aquisição por usucapião, com a seguinte fundamentação (com destaques nossos, a negrito):

«Verifica-se, com efeito, face a estes factos, no que respeita à posse, que vem definida no artigo 1251.º do Código Civil, como sendo «…o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real», que os autores são possuidores, porquanto praticaram atos materiais de posse (corpus) sobre o imóvel, próprios do proprietário, como é o caso de construir um andar, habitá-lo sem pagar renda e depois arrendá-lo, sem que isso tenha ocorrido por favor ou tolerância de terceiros ou em sua representação, tudo unido à convicção de se ser dono (animus).

Como é sabido, «A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião» - art. 1287.º do Código Civil.

Tendo a posse dos autores decorrido desde o final da década de 1970, no ano de 2000 completaram-se os 20 anos exigidos no artigo 1296.º do Código Civil para a aquisição do direito, neste caso a propriedade, norma onde se dispõe que «Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se nos termos de quinze anos, se a posse for de boa fé e de vinte anos se for de má fé».

A posse é de boa fé «…quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la que lesava o direito de outrem» - n.º 1, do artigo 1260.º do Código Civil.

No n.º 2 deste artigo determina-se que «A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé».

Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico – n.º 1 do artigo 1259.º do Código Civil.

Como a doação verbal não é um meio legítimo de adquirir o direito, a posse por parte dos autores foi exercida presumidamente de má fé, presunção que não foi ilidida e daí o aludido prazo de 20 anos necessário para a aquisição do respetivo direito.

Procede, pois, em parte o recurso, isto é, na parte em que se reduziu o objeto da posse ao terreno de implantação e respetivo edifício mencionados nos factos provado n.º 4 e 5.

Quanto ao mais, como matéria de facto não sofreu outras alterações relevantes, a reconvenção tem de proceder na exata medida em que improcedeu a ação, ou seja, procede quanto ao resto do terreno que integra a verba n.º 6 do testamento, «resto» este que faz parte da herança.»

Como se vê, não ocorreu a legalização de uma nulidade. O que se entendeu estar demonstrado foi a existência de uma posse com as características necessárias para a aquisição por usucapião, tendo os AA. entrado na fruição física do terreno com a doação verbal, que teve lugar no final da década de 70, com a finalidade de a A. e o marido aí edificarem uma construção com dois andares para nela habitarem e provando-se, além disso, o que vem descrito no ponto 7, neste estando plasmados actos caracterizadores da posse exclusiva e em nome próprio.

Salvo o devido respeito por tese diversa, a aquisição por usucapião, reconhecida pelo acórdão recorrido, não assenta numa interpretação do art. 1287º do C. Civil diferente das que têm permitido, em múltiplos casos, nos nossos Tribunais, que ao possuidor seja reconhecido o direito de propriedade, pela prática de actos a tal direito correspondentes, sem oposição e com a convicção de que se é proprietário, ou seja, com o corpus e o animus exigíveis, pelo tempo previsto na lei para a consolidação desse direito.

Não se configura, pois, neste caso, uma qualquer via nova de aquisição do direito de propriedade que ofenda princípios constitucionais como o previsto no art. 62º, nº 1, da CRP.

Na conclusão 48ª, referem os Recorrentes estar legitimada «a dupla presunção judicial de que se os pais nunca deixaram de julgar-se os únicos donos do imóvel em causa, foi porque nunca quiseram deixar de sê-lo e de continuarem a ser reconhecidos como tal até à morte do último, de contrário, teriam tido muitos anos antes para se demitirem desse direito, também os próprios AA nunca se sentiram donos desse imóvel, de contrário, não teriam tido necessidade de se arrimarem ao testamento.».

Ora, impõe-se que se tenha em conta o que ficou provado, ou seja, por um lado, a doação verbal feita pelos pais da A., e o mais que se provou, designadamente no ponto 7, relativamente a uma posse, por parte dos AA., boa para usucapião, verificando-se a consubstanciação, não só do corpus, mas também do animus, tal como se concluiu no acórdão.

Na conclusão 49ª, os Recorrentes voltam a invocar a confissão no que tange ao processo de imposto de selo, matéria que já foi abordada, remetendo-se para o que já se deixou exposto.

Alegam os Recorrentes que:

«50. Ao contrário do que se fez constar no 8º item dos factos provados e se considerou no 4º§, pag.18 da sentença, o pedido reconvencional não assenta apenas no argumento de “as rendas terem sido pagas ao EE”(facto alegado em II.2 da contestação, que deverá ter-se por confessado pelos AA no art. 3º da réplica, pelo menos até 1989, mas também, implicitamente, na presunção estabelecida a favor dos RR no art. 1257º-2 do CC, no sentido de que a posse continua em nome de quem a começou.»

Estamos perante uma alegação que já constava, nos mesmos termos, do recurso de apelação.

Ora, sucede que o Tribunal da Relação eliminou o ponto 8 dos factos provados, que passou a figurar nos factos não provados, considerando-se o seguinte:

«Facto provado n.º 8: «Até por volta de 1989, por vezes, o pai da autora e sogro do réu recebeu rendas daquele prédio, o que fez em representação e a pedido dos autores por eles, até então, estarem emigrados na Suíça (artigos 3º, 4º e 5º da réplica).

Os recorrentes pretendem que conste apenas do facto que o EE “recebia as rendas e administrava o prédio, pelo menos até 1989» e nada mais, por ser o que se encontra confessado no art. 3º da réplica (relativa ao facto alegado em II-2º da reconvenção), pois embora os AA tenham referido nos arts 4º e 5º dessa peça que tal sucedera “por estarem emigrados na Suíça e lho terem pedido, e que, regressados a ……. em 1989, logo teriam passado a recebê-las,” nenhuma prova, testemunhal ou documental, fizeram nesse sentido.

Não assiste razão aos recorrentes quanto à redação proposta, a qual pressupõe que o Sr. EE agia como proprietário, coisa que os autores reconvindos não confessaram no artigo 3.º da sua réplica.

Mas assiste razão aos recorrentes quando referem que as testemunhas não referiram que pagavam a renda ao Sr. EE a pedido dos autores.

Por conseguinte, elimina-se o facto que passa para os não provados.»

Estando aqui em causa um recurso do acórdão da Relação, teriam os Recorrentes que reportar-se a esse acórdão, tendo em conta o que nele foi decidido, o que, salvo o devido respeito, não fizeram, neste aspecto.

Não há, assim, nada a acrescentar ao que já foi tratado no acórdão.

Referem os Recorrentes na conclusão 52ª:

«A abrangência do cit. art. 352º não se confunde com o poder de o Tribunal analisar e valorar livremente o depoimento pessoal das partes, mesmo oficiosamente, ex vi dos arts 5º-2.a) e 704º-4 e 5 do CPC, pois a confissão não tem que recair apenas sobre factos alegados pelos AA - sobre quem recaía o ónus de os ter alegado e provado, porque constitutivos, articulados com os demais, do direito de que se arrogam sobre esse imóvel. (V..d. i.o., Ac STJ, Proc.Nº819/11.7TBPRD.P1.S1,2ª sec, de 10 de setembro/2015, concl.s III,V,VIII) e Exmo Cons. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II vl, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, e, ainda, ) - mas também sobre outros, ainda que não alegados, não podendo, assim, a credibilidade das declarações dos RR deixar de ser apreciada, numa perspetiva crítica com vista à descoberta da verdade material, por se tratar de ato jurídico apenas sujeito às restrições do 295º do CC.»

Também esta crítica tinha sido apontada à sentença. Ora, não se vê que, no acórdão que aqui está submetido a recurso, se tenham desconsiderado as declarações dos RR. por qualquer motivo que não fosse o da sua intrínseca pertinência (ou ausência dela), tendo sido mesmo dito, a dado passo, no exercício dos poderes da Relação relativamente à apreciação da matéria de facto:

«Os depoimentos de parte reproduzem o que que já foi dito na contestação e não trazem à luz qualquer elemento factual que corrobore a sua tese».

Numa espécie de síntese do alegado, os Recorrentes concluíram que:

«51. Além de os AA não terem feito prova atendível em direito, no tocante à qualidade de proprietários de que se arrogam mediante os referidos factos alegados na p.i. e tidos por assentes nos itens 4º, 6º, 7º, 8º e 10º da sentença recorrida – e indevidamente complementados, por outros que nem alegados foram - também não provaram terem atuado, ab ovo, por si próprios, é dizer, sem o referido ato translativo alegadamente materializado na doação verbal feita por seus pais. Entendimento este, sufragado por P.de Lima e A.Varela, (c. col. De H. Mesquita) in CC An. 2ª ed. Coimb. Ed.,Lda, 1984, in obs. 2 ao art.1252º, ao acentuarem que “ o n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao n.º 2 do art. 1257º).»

Esta conclusão pressupõe uma matéria de facto que não foi aquela que se provou e que, pelas razões sobreditas, é de manter.

Dos factos provados o que resulta é aquilo que foi exarado no acórdão recorrido, ou seja, «que os autores são possuidores, porquanto praticaram atos materiais de posse (corpus) sobre o imóvel, próprios do proprietário, como é o caso de construir um andar, habitá-lo sem pagar renda e depois arrendá-lo, sem que isso tenha ocorrido por favor ou tolerância de terceiros ou em sua representação, tudo unido à convicção de se ser dono (animus)», tendo essa posse tido em início na sequência de uma doação verbal que, mesmo inválida, não deixou de potenciar o sentido de transferir para o beneficiário uma posse exclusiva, em nome próprio, como, na realidade, emana da matéria apurada (não havendo que falar de mera detenção ou posse precária, como referem os Recorrentes na conclusão 43ª) , mediante um exercício que, iniciado no final da década de 70, permite perfazer o prazo de 20 anos previsto para a posse de má fé, o que tudo redunda na aquisição do direito de propriedade por usucapião, com os limites definidos no acórdão recorrido (arts. 1251º, 1287º e 1296º do C. Civil).

Improcede a revista.


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Sumário (da responsabilidade do relator)

1. A dupla conforme parcelar apenas pode ter lugar relativamente a objectos processuais decorrentes de pretensões autónomas, cindíveis, formuladas na causa.

Tendo os AA. deduzido uma única pretensão, a do reconhecimento do direito de propriedade do prédio que identificam no art. 1º da petição inicial, e tendo, na reconvenção, os RR. formulado o seu pedido relativamente ao mesmo prédio, considerado na globalidade, no sentido de que se declare que ele faz parte das heranças dos pais da A. e da Ré, a parcial procedência dessas pretensões, dentro dos limites provados, não conduz à cindibilidade do objecto do processo, de modo a que se possa dizer, à semelhança do que sucede com uma cumulação de pedidos, que se verifica dupla conforme em relação a um objecto processual autónomo e que subsista outro, também com autonomia, por dirimir.

2. Está vedada ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação dos meios de prova, competindo tal tarefa à Relação. Apenas poderão, por via da revista, ser introduzidas modificações na matéria de facto nas situações excepcionais previstas no art. 674º, nº 3, segunda parte, do CPC.

3. Estando em causa a prova de actos reveladores de posse tendente à aquisição por usucapião – para cuja verificação a prova testemunhal assume um papel fundamental –, há que distinguir uma tal realidade da observância ou não de formalismos legais próprios de certos actos, pois o que sobreleva, em tal contexto, é a prática dos mesmos.

4. Uma doação verbal, mesmo formalmente inválida, potencia o sentido de transferir para o beneficiário uma posse exclusiva, em nome próprio, não sendo, por isso, impossível adquirir por usucapião quando a posse assim se tenha iniciado, desligando-se do anterior possuidor, preenchidos que sejam o corpus e o animus e os demais elementos susceptíveis de facultar esse modo de aquisição do direito de propriedade.

5. Uma participação à Autoridade Tributária, no exercício do cargo de cabeça-de-casal, para efeitos de liquidação de IMI ou de imposto de selo, antes da definição da questão da propriedade de um imóvel, através, como no presente caso, de uma acção declarativa em que se invoca a usucapião, não se assume necessariamente como uma antecipada confissão da inexistência de animus de proprietário exclusivo, por parte de quem faz essa participação. E, de qualquer modo, não se estaria perante uma confissão dirigida à parte contrária e, assim, a respectiva força probatória sempre seria apreciada livremente pelo tribunal.

6. Na enunciação dos factos provados ou não provados, cabe uma pronúncia positiva, negativa, restritiva ou explicativa, que abarque os factos essenciais que foram alegados e outros de natureza complementar, concretizadores de factualidade difusa, devendo ainda ser tomados em consideração os factos instrumentais, embora o relevo primacial destes se coloque ao nível da motivação.


IV

Pelo que se deixou exposto, na improcedência da revista, mantém-se a decisão recorrida.


*

Custas pelos Recorrentes.


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Lisboa, 17 de Junho de 2021

Tibério Nunes da Silva

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo dos Santos Geraldes


*

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10º-A de 13.03, aditado pelo DL nº 20/20 de 01.05, o relator declara que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Juízes Conselheiros que compõem este colectivo.

Tibério Nunes da Silva (relator)

_______

[1] No nº 2 do art. 1252º do C. Civil dispõe-se:
«Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º»
[2] No nº 2 do art. 1257º do C. Civil, vem previsto:
«Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.»