RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
HOMICÍDIO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário


I- Ainda que as questões suscitadas pelo arguido (relativas ao erro de avaliação da prova, à violação do favor rei, à violação do princípio da investigação e à presença de vícios de procedimento) reportem ao julgamento levado, nas instâncias, sobre a matéria de facto, cujo conhecimento não cabe na competência do STJ (art. 434.°, do CPP), não pode deixar de concluir-se, mesmo ex abundanti, pela improcedência do alegado.

Texto Integral





Processo n.º 90/18.0NJLSB.L1.S1

Recurso penal

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. O arguido, AA, foi condenado, no Juízo Central Criminal ....., Comarca ........., (i) na pena de 11 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples, na forma consumada, previsto e punível nos termos do disposto no artigo 131.º, do Código Penal; e na pena de 3 (três) anos de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 5/2006 (redacção da Lei n.º 12/2011); em cúmulo jurídico, veio a ser condenado na pena única de 12 anos de prisão; (ii) na parte cível, o arguido foi condenado a pagar à assistente BB o montante global de 12.000 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais emergentes, e o montante global de 160.000 euros e juros, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Ademais, foi julgado improcedente o pedido cível formulado pela assistente contra o Estado Português.

2. Não se conformando o arguido com o acórdão condenatório, e a assistente com a absolvição do Estado Português, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ….., que por acórdão de 17 de Novembro de 2020, julgou os recursos improcedentes, e manteve integralmente a decisão da 1.ª instância.

3. Não conformado, igualmente, com o acórdão do Tribunal da Relação, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes (transcritos) termos:

«1. O princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os fatos decisivos para a solução da causa e significa que o arguido está isento do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação.

2. Da conjugação do princípio da liberdade com o da presunção de inocência decorre o princípio in dubio pro reo, que não se trata de uma regra de valoração da prova, como por vezes erradamente se pensa, mas apenas de um critério de valoração da duvida sobre a prova e […] como o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, a dúvida sobre os fatos que alegadamente provam a sua responsabilidade criminal só pode reforçar esse estatuto de inocência e não uma eventual condenação .

3. A prova enquanto atividade probatória é o esforço metódico através do qual são demonstrados os fatos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, cabendo ao Julgador,

4. A livre apreciação da prova, enquanto atividade submetida à Constituição Penal, impõe ao Juiz, e bem, a prorrogativa de investigar oficiosamente todos os fatos que possam permitir, de forma imparcial, alcançar o alicerce da decisão.

5. Não pode o Julgador prender-se a meros conhecimentos, que possam servir para a base de convicção nem de presunções derivadas do Homem que ocupa a posição de julgador.

6. O aresto recorrido é sustentado pela valoração da prova indireta. Nesse sentido, esta deve ser definida e valorada nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.02.2012, relator Armindo Monteiro, no processo 1/09.3FAHRT.L1.S1, onde se lê que a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza. O exame crítico das provas é, em resultado de um juízo apriorístico sobre o seu valor, o pressuposto de formulação de uma relação de igualdade entre elas ou hierárquica, a fundamentar o porquê de umas merecerem o mesmo valor ou valor superior a outras, conducente ao seu detrimento, na formação da convicção probatória, levando, ainda ao conhecimento das provas que foram apreciadas, para, a final, se conhecer o processo lógico-racional, em globo, seguido pelo juiz.

7. A prova indireta, pela sua particularidade, tem um aspeto da maior importância no que respeita aos seus pressupostos: o indício deve ser provado por prova direta e não é possível existirem contraindícios. Além de mais, assenta num especial processo de lógica e de razão a que se associa um dever maior de fundamentação.

8. O Tribunal a quo desconsiderou a proteção processual oferecida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, violando o artigo 340.º, n.º 1, do CPP, que lhe impõe a busca pela verdade material e a boa decisão da causa, não determinou, por via do princípio da investigação, o exame à arma de fogo – prova material – que se encontra preservada.

9. Houve erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, na medida em que o Tribunal recorrido violou todas as regras de lógica e da experiência comum prescindindo de apurar a matéria de fato que resultou de toda a prova produzida. Na falta de melhor capacidade conclusiva, socorremo-nos do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que sustenta o ocorrido no aresto em crise, na medida em que o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

10.  Se a fundamentação da matéria de facto provada deve ter a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, não deixa de ser realidade que aquela tem, que ter presente a fundamentação da convicção do julgador, que deve ser feita com clareza, objetividade e discriminadamente, para mais quando se trata de decisão fundada em prova indireta. O Tribunal recorrido, violando este desiderato, proferiu acórdão que é nulo, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a) por aplicação do artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, pela ausência de qualquer exame critico da prova e, em alguns casos, pela ausência de fundamentação e fundamentação deficiente e, por fim, pela violação do artigo 169.º do CPP.»

4. Por seu turno, a Assistente, não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação ….. no segmento em que veio a manter a absolvição do demandado Estado Português do pedido cível por si formulado, interpôs recurso de Revista Excecional, nos termos do art. 672.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC e arts. 4.º e 400.º, n.º 3, ambos do CPP, para o Supremo Tribunal de Justiça, exarando as seguintes (transcritas) conclusões:

«(i) Nesta revista excecional está em causa a questão de saber em que situações poderá ser civilmente responsabilizado o Estado Português, quando um seu funcionário, agente ou representante, estando ao seu serviço, pratica um facto ilícito doloso, no exercício das suas funções e, presumivelmente, por causa desse exercício;

(ii) O presente recurso é importante para a melhor aplicação do direito, já que importa definir com rigor o quadro legal em que o Estado poderá vir a ser responsabilizado civilmente por atos dolosos praticados por um seu funcionário, agente ou representante, mormente explicitando-se o recorte normativo do conceito “…no exercício da função administrativa e por causa desse exercício…”, designadamente quando o ato ilícito por aquele praticado se insere no elenco funcional da competência que lhe estava adstrita;

(iii) Mais importa esclarecer, nesses casos, a quem compete o ónus da prova de demonstrar que se tratou de um ato pessoal do mencionado funcionário, agente ou representante;

(iv) Acresce que a matéria em apreço é de enorme relevância social, já que se projeta no direito de indemnização de inúmeras vítimas de crimes dolosos praticados nessas mesmas condições e que se repetirão potencialmente numa plêiade de casos futuros, contribuindo assim para a certeza e segurança da aplicação do direito;

(v) A presente revista excecional tem como fundamento a violação de Lei substantiva, porquanto tanto a sentença proferida pelo Juízo Central Criminal ..... como o Acórdão proferido pelo Excelentíssimo Tribunal da Relação  ….., não opera à correta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 3.º e 8.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 67/2007, de 31.12 e o artigo 342.º, n.º 2 do CC;

(vi) Motivo pelo qual deverá ser a mesma admitida nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, aplicado por força do previsto no artigo 4.º do CPP;

(vii) A responsabilidade civil extracontratual do Estado (bem como das demais pessoas coletivas públicas), por facto ilícito e culposo, tem como pressuposto que tal facto tenha sido praticado pelo titular do órgão ou pelo agente no exercício de funções e por causa desse exercício, ou seja, excluem-se do âmbito da responsabilidade administrativa os atos lesivos que tenham sido praticados, por titulares de órgãos e agentes, fora do exercício de funções ou, no exercício de funções, mas não por causa desse exercício, e, que por isso, se devam qualificar como atos pessoais dos seus respetivos autores materiais (que não envolvem qualquer responsabilidade direta do Estado, mas apenas a responsabilidade individual do agente que, como tal, se encontra sujeita ao regime de direito privado, a exercer nos tribunais comuns);  (viii) Desconhecendo-se completamente se o facto ilícito decorreu de um ato da vida privada ou pessoal do Arguido, mas sabendo-se que o exercício da função de sentinela à C........... importava a utilização e o manuseamento de uma espingarda ....., devidamente municiada com munições reais, deve-se presumir que o disparo dessa arma de fogo no desempenho dessa mesma atividade foi motivado pelo exercício dessa função, já que o ato de disparar aquela arma integra o quadro geral da respetiva competência ou função que lhe estava adstrita;

(ix) Por outro lado, o comitente deve ser responsabilizado pelos factos ilícitos praticados pelo comissário, desde que esse facto tenha, com as funções deste, uma conexão adequada;

(x) Assim, sempre que as funções do comissário, segundo um critério de experiência, favoreçam ou aumentem o perigo da verificação de certo dano, deverá o comitente arcar com a respetiva responsabilidade;

(xi)  Por outras palavras: deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário quando, quer pela natureza dos atos a que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objetos que lhe foram confiados, ele se encontra numa posição especialmente adequada à prática de tal facto;

(xii) Donde, independentemente do dolo ou negligência, a factualidade considerada provada no acórdão recorrido, enquadra-se inequivocamente no disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, ou, subsidiariamente, no disposto no artigo 500.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil;

(xiii) Destarte, a prova de que o ato foi praticado sem ser por causa do exercício dessas funções, competiria ao Estado Português, e tal não veio a suceder, pois desconhecem-se os motivos que estiveram na génese daquele disparo, o qual, até poderia ter ocorrido no âmbito de uma invasão do posto de sentinela ou do incumprimento de uma ordem de parar dada pelo sentinela;

(xiv) A prova de que o facto ilícito ocorreu dentro das finalidades funcionais emerge inequivocamente da prova indireta efetuada, já que o exercício da tarefa de sentinela importava o manuseamento de uma espingarda ..... devidamente municiada com munições reais, que foi precisamente o que veio a suceder no caso em apreço;

(xv) Tudo isto significa que o demandado cível Exército Português deverá ser solidariamente responsabilizado com o aqui Arguido pelo pagamento dos danos peticionados, considerando que se conclui que os seus órgãos ou agentes praticaram, por ação ou omissão, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, atos de gestão ilícitos e culposos e que foram estes que provocaram os danos sofridos pelo Soldado CC;

(xvi) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 2, 497.º, 500.º e 501.º do Código Civil e artigos 3.º e 8.º, n.ºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 67/2007, de 31.12.»

5.  O Ministério Público e a assistente responderam ao recurso penal, e o Estado Português respondeu ao recurso de revista excecional pugnando pela sua improcedência.

6. Também o MP no STJ sustentou que o recurso penal deverá improceder.

7. Notificado o arguido nos termos do art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada disse.

8. Quanto ao recurso da assistente na parte cível, atenta a interposição de revista excecional, foi proferido despacho de remessa do recurso à Formação Cível nos termos e para os efeitos do disposto no art. 672.º, n.º 3 do CPC, sendo que, posteriormente, após pronúncia daquela, se tomará posição/decisão.

9. Colhidos os vistos, e uma vez que não foi requerida audiência, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

10. As instâncias julgaram provada a seguinte factualidade (transcrição):

«1. O arguido AA é Soldado ………., frequentou o … Curso de Comandos e conhecia o Soldado CC (pertencente ao ... Curso de Comandos) desde Novembro de 2016.

2. Ambos estiveram em missão na República Centro Africana (RCA) para integrar a 2.ª FND (Força Nacional Destacada) /MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização na República Centro-Africana) em Bangui no período compreendido entre 04-09-2017 e 05-03-2018.

3. Após regressar da missão, CC ingressou na 2.ª Companhia até Setembro de 2018, momento em que ingressou na Companhia de Formação, tendo como função atribuída auxiliar na formação, em concreto na parte de tiro de combate.

4. Em 18 de Setembro de 2018, o Soldado CC viu averbado na sua ficha de matrícula um louvor fazendo referência, além do mais, à sua “reconhecida postura disciplinada, aprumada e atenta, possuidor de um assinalável espírito de camaradagem e contagiante boa disposição (E)”.

5. No dia 21 de Setembro de 2018, o arguido estava escalado para o serviço no Posto de Sentinela na “C.........” das 17H30 às 19H30.

6. Nesta data, o Oficial de Dia ao Regimento de Comandos era o Tenente DD e o condutor de Dia ao Regimento de Comandos era o 1.º Cabo EE.

7. O Posto da “C..........” visa garantir a segurança da área, sendo que o militar que nesse local e hora estiver a desempenhar funções está devidamente armado com uma espingarda automática ....., com um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva de calibre 7,62mm.

8. Nesse mesmo dia, o Soldado FF estava escalado para o serviço no Posto da “C...........”, para o turno das 15H30 às 17H30, tendo passado o serviço ao arguido Soldado AA que estava escalado para o turno seguinte.

9. O arguido executava o serviço que lhe foi distribuído nesse dia com a espingarda automática ....., com o número de série ......, e um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva de calibre 7,62mm.

10. Segundo a NEP (norma de execução permanente) datada de 13 de Março de 2018 o carregador deverá ser introduzido na arma sem munição na câmara.

11. Nesse dia 21 de setembro de 2018, o Soldado CC almoçou com o 2.º Cabo GG, Soldado FF e Soldado HH, onde falaram sobre as férias que este tinha tido na ……., demonstrando estar feliz e sem sinais de tristeza, depressivo ou infeliz, manifestando junto do Cabo GG o seu desejo de ingressar na GNR.

12. Após o almoço, cerca das 14h05m, CC ausentou-se do regimento de Comandos na sua viatura pessoal, da marca …., modelo …., cor ….., do ano de …., com a matrícula ..-..-PP, regressando cerca das 16h29m.

13. Pelas 18h23m, o Soldado CC dirigiu-se de uma forma descontraída à C............, onde estava de serviço o arguido Soldado AA.

14. Considerando as funções que estava a desempenhar, o arguido encontrava-se com uma arma afecta, uma espingarda automática ....., com um carregador municiado com 16 munições reais e 1 de salva, todas de calibre 7,62mm.

15. Entre as 18H16 e as 18H48, o Soldado CC e o seu melhor amigo Soldado II, trocaram mensagens escritas via WhatsApp, intervaladas em médias entre minuto e meio a três minutos, sempre de teor descontraído e bem-disposto, conversando sobre o futuro, e exibindo em várias das mensagens “emojis” de “riso/gargalhada”.

16. Entre as 18h48 e as 18h56, por motivos não apurados, o arguido empunhou a espingarda automática ..... que lhe estava adstrita em função do serviço de sentinela à C............ que estava a executar, e encostou-a ao peito de CC quando este se encontrava no exterior da C..............

17. Em acto contínuo, o arguido disparou a arma que empunhava, tendo atingindo a vítima na região peitoral esquerda, que redundou na sua morte.

18. O invólucro recolhido da munição que atingiu a vítima pertence ao mesmo lote que as munições encontradas no interior do carregador da espingarda automática ..... que veio a ser apreendido naquele local.

19. Pelas 18:56:26 o arguido AA através do seu telemóvel com o n.º ......85 ligou para o telemóvel de serviço do Oficial Dia ao Regimento de Comandos – Tenente DD, com o n.º ......65, a informar que havia um “homem ferido” e que precisava que ligassem para o 112, o que este fez obtendo a resposta de que teria de ser quem estava no local a ligar.

20. Pelas 18:58:14 o Oficial de Dia – Tenente DD ligou novamente ao arguido referindo-lhe que teria de ser ele a ligar para conseguir dar as instruções ao INEM, mas que se encontravam a caminho do local, referindo-se a ele e ao Condutor de Dia.

21. E pelas 18:59:20 é efetuada a chamada para o INEM pelo arguido, apesar de AA não ter pronunciado qualquer palavra durante os 25 segundos iniciais da chamada.

22. Simultaneamente, dirigem-se, numa viatura militar à C........, quer o Oficial de Dia quer o Condutor de Dia, e apenas quando ambos chegam ao local é que o último agarrou o telemóvel do arguido e iniciou conversa com o INEM referindo ao seu interlocutor “militar ferido, com gravidade por disparo de arma de fogo acidental, com perfuração do pulmão, ou seja, o projétil entrou e saiu, têm de vir com urgência para o local”.

23. Cerca das 19H11, a viatura dos Bombeiros ….. entrou no Regimento de Comandos e dirigiu-se à C.......... onde realizaram as manobras de suporte básico de vida não lhes tendo sido comunicado no local qualquer detalhe dos factos ocorridos que levaram àquele ferimento.

24. Pelas 19H19, a VMER entrou no Regimento de Comandos e dirigiu-se à C.........., sendo a equipa chefiada pela médica Dr.ª JJ, a qual questionou diversas pessoas sobre os factos ocorridos, quer nesse momento, quer já no momento em que procedia às manobras de suporte avançado de vida, não obtendo qualquer resposta, mas apenas silêncio, por parte de todos aqueles que se encontravam no local.

25. A médica da VMER solicitou que afastassem a arma do corpo para proceder às manobras necessárias com a vítima, o que foi feito pelo 1.º Cabo KK.

26. Pelas 19H22, o Coronel LL – Comandante do Regimento de Comandos - dirigiu-se à C........., tendo poucos minutos depois falado a sós com o arguido.

27. Após tal conversa, o arguido Soldado AA recebeu indicações do Coronel LL – Comandante do Regimento, para que este fosse tomar banho e comer qualquer coisa.

28. Nesse momento, o arguido agarrou o carregador……, levando-o consigo e entregou-o ao Soldado FF que se encontrava no exterior da C......., considerando que a PSP pretendia que o mesmo assinasse uns papéis, o que ainda fez antes de se ausenta.

29. O Soldado FF guardou o referido carregador no bolso do seu camuflado.

30. Em consequência da actuação do arguido, o Soldado CC viria a falecer pelas 19H42, sendo a causa de morte lesões traumáticas torácicas provocadas pela acção de natureza contuso-perfurante do aludido projéctil de arma de fogo, existindo dois orifícios: um de entrada (com bordos irregulares e ovalada, com orla escoriada e enegrecida) localizada na região peitoral esquerda, superior e medialmente ao mamilo e de saída (com bordos irregulares e ligeiramente evertidos) na região dorso-lombal, localizado a nível da região paravertebral dorsal esquerda.

31. O projétil que vitimou o Soldado CC descreveu um trajeto de frente para trás, de cima para baixo e ligeiramente da direita para esquerda.

32. A Polícia Judiciária Militar é informada da ocorrência pelas 19h30 pelo Tenente Coronel MM, deslocando-se de imediato para o Regimento de Comandos .........., juntamente com a equipa do Laboratório de Polícia Técnica e Científica da PJM, onde chegam cerca das 20h15.

33. A morte do Soldado CC deveu-se às lesões traumáticas torácicas provocadas por ação de natureza contuso-perfurante do aludido projéctil.

34. Ao atuar do modo descrito, o arguido AA sabia e quis disparar um tiro na zona do coração da vítima, o que lhe provocou perfuração do pulmão esquerdo, o que fez com intenção de matar e sabendo que qualquer disparo naquela zona conduziria necessariamente à morte do visado, como viria a ocorrer.

35. Mais sabia o arguido da qualidade de militar da vítima, da sua própria condição de militar em serviço de guarda a um paiol, e bem assim que o local em que cometeu os factos era uma Unidade Militar e que a arma que utilizava era uma arma de cariz militar, com capacidade acrescida de provocar danos atento o calibre militar da mesma, não se inibindo ainda assim de actuar.

36. No dia 28 de Novembro de 2018, pelas 19H45, na .........., …….., ....., o arguido AA tinha na sua posse, em concreto no seu quarto, dentro de um armário, dentro de uma caixa com a inscrição “NIKE”:

a. 4 (quatro) munições reais de calibre 7,62mm com o lote FNM 93-9 (o mesmo lote que da munição que vitimou mortalmente o Soldado CC);

b. 3 (três) munições de salva, de calibre 7,62mm, com o lote FNM 94-4;

c. 1 (uma) munição de salva, de calibre 7,62mm, com o lote FNM 83-7;

d. 1 (uma) munição de salva, de calibre 7,62mm, com o lote MEN 86-42;

e. 1 (uma) munição real, 5,56mm, com o lote FNM 02-23;

f. 5 (cinco) munições de salva, 5,56mm, com o lote CBC90;

g. 1 (uma) granada de mão de instrução ativa e não deflagrada ARGES PRHGR 85;

h. 1 (um) tubo de cartão (vazio) de acondicionamento de Morteiro M50A2 60MM.

37. O arguido AA não tinha qualquer autorização que lhe permitisse ter na sua posse as munições reais e de salva bem como a granada que sabia que detinha no interior da sua residência.

38. Em todas as suas condutas o arguido atuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou (pedido de indemnização civil):

39. CC nasceu em .. de Maio de 1995.

40. CC é filho da assistente BB, nascida em .. de Março de 1968.

41. O pai de CC faleceu em .. de Abril de 2017.

42. CC faleceu no estado de solteiro e não tinha filhos.

43. Em virtude do disparo realizado pelo arguido, o corpo de CC foi projectado para o chão.

44. Aí ficando imobilizado, em completa agonia, sangrando abundantemente do peito.

45. Tendo plena consciência do que lhe estava a acontecer.

46. E percepcionando a sua morte iminente.

47. CC sentiu dores quando foi baleado e tombou no chão.

48. E continuou a sentir dores quando ficou prostrado no chão a aguardar a chegada dos meios de socorro e quando foi alvo de manobras de suporte básico de vida.

49. CC dedicava muito amor, afecto e carinho à sua mãe.

50. A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida da assistente uma profunda tristeza, consternação e pesar.

51. Sendo uma lacuna na sua vida que jamais será preenchida.

52. A assistente anda deprimida e desorientada.

53. CC causava alegria e orgulho na respectiva família.

54. À data da sua morte, CC era militar do Exército e auferia anualmente o vencimento bruto de € 10.238,76.

55. Fora do Regimento dos Comandos, CC residia então apenas com a respetiva mãe.

56. A mãe de CC era viúva, não tinha então qualquer emprego e beneficiava da ajuda financeira deste filho para suportar todas as suas obrigações.

57. CC apoiava a sua mãe mensalmente com a entrega de uma importância em dinheiro não inferior a € 100,00.

58. A mãe de CC viu-se privada deste rendimento e deixou de conseguir satisfazer integralmente as suas despesas.

59. Viu-se obrigada a fazer restrições na sua vida e a pedir dinheiro emprestado a familiares e amigos.

60. O Exército Português suportou integralmente as despesas do funeral do soldado CC.

61. Em 1968, a Esperança Média de Vida à nascença era de 70 anos para as mulheres.

62. Em 1995, a Esperança Média de Vida à nascença era de 71 anos para os homens.

Mais se provou (contestação do Estado Português):

63. Em 21 de Setembro de 2018, CC era militar do Exército Português (Comandos).

64. Tinha celebrado contrato para prestação de serviço militar em 12 de Outubro de 2015 com a duração de 24 meses, renovável anualmente até ao limite máximo de 6 anos.

65. O arguido declarou então conhecer os seus direitos e deveres, os objectivos nacionais das Forças Armadas, a organização do Exército e o Regulamento de Disciplina Militar.

66. Frequentou, com sucesso, o curso de Comandos, através do qual recebeu formação sobre os deveres inerentes à sua carreira militar, especialidade, função e condutas a adoptar no interior do Regimento.

67. O arguido conhecia o teor das Normas de Execução Permanente, nomeadamente as que prescreviam que:

a. “A área do paiol é uma área de segurança de classe 1” à qual apenas podem aceder as pessoas devidamente identificadas, habilitadas e autorizadas” (NEP n.º 02.04, de 15Out17);

b. “A segurança física do paiol é de 24 horas” (NEP n.º 02.12, de 10Jan18);

c. “Para a segurança física do paiol, os militares vão equipados com espingarda automática com carregadores sinalizados” (NEP n.º 02.12, de 10Jan18).

68. A área da C............ está classificada como área de segurança “Classe 1” e corresponde à zona militar mais crítica e mais perigosa de todo o Regimento em virtude de aí estarem guardadas as armas, munições, explosivos, granadas e minas do Regimento.

69. Trata-se de área restrita a pessoal identificado, credenciado e autorizado.

70. No local existia uma placa de segurança com a indicação expressa “Área de Segurança Classe 1”.

71. No dia 21 de Setembro de 2018, entre as 17h30 e as 19h30, CC não estava ao serviço.

72. Deslocou-se ao posto de sentinela na C.......... sem conhecimento ou autorização superiores.

73. Bem sabendo que violava aquela NEP.

74. Em 21 de Setembro de 2018, a assistente vivia  …… e o soldado CC vivia no ……

75. A assistente tinha mais dois filhos além do soldado CC.

76. A assistente não ficou só e desamparada com o falecimento do soldado CC, tendo recebido reconforto dos outros filhos que atenuou a sua dor e desgosto.

77. No início do seu contrato, o soldado CC estava muito empenhado e satisfeito com a sua carreira militar.

78. Quando esteve em missão na República Central Africana em 2017, o soldado CC recebia mensalmente a retribuição base no valor de € 583,58, o suplemento da condição militar no valor de € 147,76 e o suplemento de missão no valor de € 2478,76, no total ilíquido de € 3240,57.

79. Quando não estava em missão no estrangeiro, o soldado CC recebia apenas mensalmente a retribuição base no valor de € 583,58 e o suplemento da condição militar no valor de € 147,76.

80. Era a perspectiva de realizar missões no estrangeiro que o incentivava muito a continuar no Exército Português e a manter o seu contrato até final.

81. No exame aleatório à urina efectuado em 19 de Junho de 2018, foi-lhe detectada presença de canabinóides.

82. CC planeava a sua admissão na Guarda Nacional Republicana ou numa empresa de segurança, a saída do Exército Português e o regresso à …….

Mais se provou (arguido):

83. O arguido prestou declarações no início da audiência de julgamento, negando a prática dos factos dados como provado e não manifestando qualquer arrependimento até ao respectivo encerramento.

84. O arguido não apresenta qualquer condenação averbada no respectivo certificado de registo criminal.

Mais se provou (relatório social do arguido):

85. O arguido nasceu em .. de Junho de 1997.

86. Natural ………, AA é o único filho, resultado da relação marital dos pais.

87. Os progenitores separaram-se pouco tempo após o seu nascimento, e constituíram novas relações afectivas originando o nascimento de um irmão por parte da mãe e quatro por parte do pai.

88. Aquando do nascimento do AA, os seus progenitores residiam na casa da avó paterna, tendo este integrado esse mesmo agregado familiar.

89. À procura de melhores condições de vida, a avó paterna e a tia paterna do arguido emigraram para Portugal em 2003.

90. Volvido um ano, e estando o arguido a atingir a idade de iniciar a escolaridade, o mesmo juntou-se aos seus familiares em Portugal, tendo sido acompanhado pelo seu primo NN, na altura com 2 anos.

91. O progenitor do arguido emigrou para  …… tendo a progenitora permanecido na …….., situação que os dois mantêm até à presente data, existindo, entre ambos, uma relação harmoniosa, apesar da separação.

92. Assim, desde a sua vinda para Portugal que o AA reside com os avós paternos, a tia OO e o primo NN, atualmente com .. anos de idade, no ......

93. AA fez a escolaridade, em tempo regular, até ao 12º ano.

94. No 9.º ano, o arguido sofreu uma retenção e optou pela área da Educação e Formação para Adultos- EFA, na Escola ……….. em ….., no curso de formação profissional de eletricidade, projeto e manutenção que o certificou com o 9º ano de escolaridade.

95. Posteriormente, o arguido inscreveu-se no curso de Informática, inicialmente em ensino diurno e depois em ensino nocturno, por iniciar actividade profissional, que o certificou com o 12º ano de escolaridade.

96. Durante este período, o percurso escolar, familiar e social do arguido decorreu sem qualquer problemática associada, sendo descrito como normal.

97. O arguido é descrito como pessoa educada, respeitadora, afável e amigo.

98. Terminada a formação escolar, o arguido decidiu integrar o curso de Comandos.

99. Inicialmente, esta decisão foi vista com alguma apreensão, principalmente pela avó (dado o trauma de guerra); no entanto foi amadurecida e acolhida como uma boa oportunidade de crescimento.

100. O dia do juramento de bandeira é descrito como um dia de muita alegria e orgulho para toda a família, tendo inclusivamente o progenitor – e outros familiares residentes no estrangeiro – estado presentes.

101. Em 2016, o arguido realizou o recrutamento no quartel de …. tendo ainda nesse mesmo ano feito o curso dos Comandos.

102. De Setembro de 2017 a Março de 2018, o arguido fez uma Missão na Republica Centro Africana.

103. No plano afetivo, o arguido tem uma relação de namoro, há cerca de um ano, com PP, com a qual perspectiva constituir agregado autónomo, assim que conseguir reorganizar-se.

104. Esta relação foi caracterizada como coesa, com laços fortes de afeto.

105. O meio familiar é descrito como humilde, trabalhador, feliz e principalmente de união e espírito de entreajuda.

106. Não obstante os progenitores não se encontrarem em Portugal, mantêm uma relação de proximidade com o arguido, quer através das visitas físicas, quer através dos contactos telefónicos estabelecidos com a progenitora.

107. AA sempre manifestou interesse por atividades desportivas praticando futsal com os amigos e frequentando o ginásio.

108. Em pequeno, o arguido frequentou o Atlético Clube do ....., que abandonou devido a alguns problemas nas articulações dos joelhos.

109. Ao nível da saúde, AA referiu ser saudável, afirmando ter contraído malária enquanto esteve em Missão, situação já ultrapassada.

110. À data dos factos sob julgamento, o arguido vivia com os avós, QQ, 60 anos de idade, funcionária de limpeza, RR, 60 anos de idade, ex militar e antigo combatente, na reserva, OO, sua tia, 30 anos de idade, operária na …., e NN, primo, .. anos de idade, estudante.

111. O agregado familiar do arguido reside na ………, ….… ....., numa habitação constituída por 4 assoalhadas – 3 quartos, 1 sala e 1 casa de banho.

112. Atendendo a que está para breve a celebração de contrato de compra e venda de uma nova habitação, a OO perspetiva a mudança de habitação até ao final do presente ano.

113. A nova habitação situa-se no ..... – junto ………………… – e é constituída igualmente por 4 assoalhadas – 3 quartos, 1 sala e duas casas de banho.

114. Em termos económicos, segundo os dados apurados, sugerem que as necessidades essenciais do quotidiano familiar são devidamente asseguradas, sendo que o arguido recebe cerca de 600€, OO aufere 800€/mês.

115. A este rendimento acrescem cerca de 140/150€ fruto do trabalho desempenhado pela sua avó nas limpezas (2h/dia) e a reforma do avô, de valor não apurado.

116. O agregado familiar é ajudado economicamente, pelos familiares residentes no estrangeiro, nomeadamente pelos progenitores do AA e do NN o que permite caracterizar a situação económica de desafogada.

117. AA apresentou de despesas fixas a amortização de um empréstimo bancário no valor mensal que ronda os 320€.

118. A imagem social do arguido é descrita como muito favorável, quer no meio mais restrito constituído por familiares e amigos, quer junto dos vizinhos, os quais inclusivamente prestam todo o apoio ao agregado familiar do arguido.

119. Em meio prisional, o arguido tem assumido um comportamento correto, sem incidentes, com adequadas relações interpessoais com os funcionários em geral e companheiros.

120. Tem beneficiado de visitas regulares da namorada.

121. Os avós, a tia e o primo vêm visitá-lo sempre que podem.

122. O arguido apresenta boa capacidade ao nível da descentração e resolução de problemas que poderá ser uma mais-valia para o seu processo de reinserção social.

123. É o primeiro contacto de AA com o sistema judicial.

124. No que se refere ao processo em apreço, o arguido manifesta alguma apreensão, referindo um impacto negativo do mesmo em termos pessoais.

125. O principal impacto da presente situação processual, relaciona-se com a privação de liberdade, revela-se preocupado com o sofrimento da família e apreensão quanto à eventual condenação em pena de prisão.

126. Embora não aceite de bom agrado uma condenação, o arguido manifestou disponibilidade para colaborar com o aparelho de justiça e respeito pelo que for determinado judicialmente.

127. No meio comunitário não se identificaram impactos negativos ou reações de hostilidade expressa.»

Vejamos – do recurso penal.

11. É “pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior” (ac. STJ, Relator Cons. Raúl Borges, 09-10-2019, Proc. n.º 3145/17.4JAPRT.S1).

O “objeto do recurso e os limites cognitivos do STJ (sem prejuízo da pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso) ficam delimitados pelo teor das conclusões que devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido, fazendo a súmula da motivação” (ac. STJ, Rel. Cons. Raul Borges, 11-09-2019, Proc. n.º 96/18.9GELLE.E1.S1 ).

12. Num primeiro tópico importa assinalar que o insurgimento do arguido se circunscreve à sua condenação pelo crime de homicídio, e apenas no que se reporta a temas (que adiante melhor precisaremos) relacionados com a matéria de facto e erros-vício, nada dizendo no que se reporta à medida da pena e pena única.

Pelo que, a não proceder o recurso, não compete ao STJ analisar oficiosamente as medidas da pena parcelar e/ou pena única aplicadas, precisamente porque não foram objeto de recurso, ou seja extravasa o âmbito do recurso (neste sentido, entre outros, o acórdão STJ de 17-10-2018, Proc. n.º 138/16.2PAMTJ.L1.S1, Rel. Raúl Borges) – ressalvada embora qualquer evidência de inadequação.

Aliás, nem sequer o Tribunal da Relação se pronunciou sobre tal matéria, uma vez que o arguido não a questionou.

13. Um segundo tópico prende-se com uma repetição de argumentação anteriormente aduzida perante a Relação.

Não deverá, contudo, entender-se que uma repetição consiste numa omissão de motivação (art. 414.º, n.º 2, do CPP).

A melhor interpretação vai no sentido de que a repetição é uma crítica desta vez direccionada ao acórdão da Relação, com os mesmos fundamentos [assim tem entendido a jurisprudência do STJ, v.g., ac. STJ de 12-07-2019, Rel. Lopes da Mota, Proc. n.º 74/16.2JDLSB.L1.S1: “Repetindo o recorrente a argumentação que apresentou perante o tribunal da Relação, reproduzindo ipsis verbis o recurso da decisão de 1.ª instância, sem qualquer elemento novo, entende-se, todavia, não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se a motivação apresentada como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância”].

De todo modo, é insofismável que a repetição da argumentação aduzida perante a Relação, que julga do facto, demonstra que o fulcro da discordância do recorrente se prende com questões conexas com a matéria de facto, destarte o exame e análise da prova que foi realizado.

O que, ademais, é assumido e evidenciado na minuta recursiva.

14. Num terceiro tópico cumpre dizer que compulsada a motivação e conclusões, nem todas as questões suscitadas naquela foram transpostas para as conclusões.

Não obstante, posto que identificadas na motivação, ao invés de um convite ao aperfeiçoamento, se adianta desde já decisão sobre as mesmas, em benefício do princípio da celeridade e economia processuais.

15. As questões invocadas pelo arguido podem-se sintetizar nos seguintes termos:

(i) errada valoração da prova, onde se incluiu uma crítica ao modo como o Tribunal recorrido se socorreu da prova indirecta;

(ii) violação do princípio in dubio pro reo;

(iii) violação do art. 340.º, n.º 1 do CPP pelo facto de não se ter determinado, por via do princípio da investigação, o exame à arma de fogo (nomeadamente ao gatilho) para aferir se existem, nomeadamente, vestígios de ADN, ou impressões digitais, da vítima;

(iv) erro notório na apreciação da prova;

(v) nulidade do acórdão por falta/insuficiência de fundamentação.

16. As três primeiras questões prendem-se com a matéria de facto, cujo conhecimento e apreciação extravasa o âmbito de competência do STJ (art. 434.º do CPP).

Vejamos.

17. A discordância do recorrente incide sobre a forma como foi apreciada a prova e julgada a matéria de facto.

A alegada violação da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, a valoração da prova indirecta, é suscitada “no âmbito da matéria de facto”, pelo que a sua sindicância não cabe ao STJ enquanto tribunal de revista (art. 434.º do CPP).

A jurisprudência do STJ é constante na inadmissibilidade do recurso em casos similares.

Vd, entre outros, o acórdão do STJ, de 19.09.2019, Proc. n.º 157/17.1JAPRT.G1.S1 (disponível, como os mais citandos, na base de dados do IGFEJ): “não é admissível o recurso interposto pela arguida na parte relativa à impugnação da decisão de facto em que se insurge contra o exame crítico da prova uma vez que, nos termos do art. 434.º do CPP, ao STJ apenas compete o reexame da matéria de direito.”

E relativamente ao princípio do in dubio pro reo o STJ só o pode sindicar “se, da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido” (ac. do STJ, de 03.05.2018, Proc. n.º 444/14.0JACBR.C1.S1), o que não sucede no caso concreto.

18. Uma nota em relação à prova indirecta.

O arguido não coloca em causa que a mesma pode ser utilizada, o que é pacífico na jurisprudência do STJ (como v.g. se retrata no Acórdão deste STJ de 01-07-2020, proferido no Proc. n.º 39/11.0GAPNF.P1.S2, e no Acórdão do STJ de 05-06-2019, proferido no Proc. n.º 14/17.1GCFAR.E1.S, quando ali expressamente assume “I - Podemos considerar hoje consensual, na doutrina e na jurisprudência, que é admissível a “prova indireta” ou “indiciária” como meio de fixação dos factos provados. Embora ela não esteja admitida expressamente na lei, a regra da não taxatividade das provas leva a considerá-la como legítima por não ser proibida por nenhuma disposição legal (art. 125.º do CPP). II - Contrariamente à prova direta, que imediatamente dá a conhecer um facto investigando, a prova indireta parte de um ou mais indícios (factos diretamente conhecidos, que funcionam como factos instrumentais) para chegar, por inferência, ao conhecimento de um outro facto, que é o objeto da investigação, conhecimento obtido por meio de um juízo mental, de um procedimento lógico e intelectual, assente em determinadas regras credíveis (regras científicas, regras da normalidade da vida, regras da experiência comum). Este facto novo, obtido por este procedimento intelectual, e observadas que sejam as regras referidas, quando elas permitam determinar o facto com o grau de certeza exigível em processo penal, ou seja, aquele que ultrapassa toda a dúvida razoável, esse facto novo, dizíamos, tem o mesmo valor probatório que o resultante das provas diretas.) e cuja conformidade constitucional foi atestada, entre outros, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 521/18, de 17-10-2018, que decidiu: “Não julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.ºs 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição, o artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal”.

Do que o arguido discorda é o modo como o Tribunal recorrido valorou os indícios, o que se insere do domínio da apreciação da matéria de facto, matéria que escapa à malha de sindicância do STJ.

19. Na verdade, é patente, e o arguido não o esconde na peça recursória, que diverge quanto à apreciação que o Tribunal recorrido fez da prova.

Esgrime um conjunto de prova que, na sua perspectiva, demonstra a existência de contraindícios que abalam os indícios de que o Tribunal recorrido se socorreu para dar como provado que o arguido cometeu um homicídio.

Pelo que, por força de tais contraindícios, pugna para que o STJ o absolva, dando como não provado, nomeadamente, que disparou a arma e matou intencionalmente a vítima.

No entanto, está vedado ao STJ conhecer a matéria de facto e questões conexas com esta, como seja a alegada errada apreciação da prova e valoração de indícios e contraindícios.

Essa sindicância é atribuída, por lei, apenas ao Tribunal da Relação (art. 428.º do CPP).

E, no que se reporta à violação do princípio in dubio pro reo, como se referiu, o mesmo apenas é da competência do STJ na sua componente jurídica e não factual.

O arguido argumenta no recurso que a prova é susceptível de gerar dúvida.

Mas essa é a convicção do recorrente, não do acórdão recorrido da Relação, de onde emana, ostensivamente, o entendimento de que a prova produzida demonstra cabalmente a culpabilidade daquele.

20. Entende o arguido que o Coletivo (de julgamento) violou o dever de investigação oficiosa previsto no art. 340.º, do Código de Processo Penal, ao não determinar a realização da perícia/exame científico adicional (recolha de vestígios de ADN e de impressões digitais) à arma de fogo (G3).

Refere que duas testemunhas SS e TT no decurso da audiência de julgamento abordaram tal temática, pelo que incumbia ao Juiz/Coletivo oficiosamente, perante a inércia da defesa, determinar a realização de tal perícia/exames.

Contudo, a alegada violação do art. 340.º, do CPP, por não ter sido realizada uma perícia (na perspectiva do arguido, essencial) também se insere no domínio fáctico, estando para além dos limites de competência do STJ, delimitados pelo art. 434.º, do CPP.

Com a referida perícia/exame, em suma, pretende tentar apurar se a vítima colocou as “mãos” na G3, nomeadamente se o dedo contactou com o gatilho ou com a coronha da arma. Com um fito: abonar a tese do suicídio alegada pela Defesa. Estamos, pois, no âmbito da matéria de facto.

21. Por outro lado, verifica-se que estamos perante uma questão interlocutória que extravasa a competência do STJ.

Na verdade, o arguido no recurso para a Relação sustentou que o Tribunal de 1.ª Instância, oficiosamente, deveria ter determinado a perícia, ao abrigo do art. 340.º, do CPP.

E apelou junto da Relação para que determinasse a realização de tal perícia.

O Tribunal da Relação decidiu esta questão, considerando, em suma, que a perícia não se revela pertinente e, de todo modo, o arguido deveria ter invocado oportunamente a invalidade, encontrando-se a mesma sanada.

Veja-se o que disse o acórdão da Relação quanto a esta questão (transcrição):

«Violação do art.º 340º CPP:

Como segunda questão suscitada no recurso, o recorrente invoca que houve violação do art.º 340º CPP por ausência de diligência de prova que qualifica de essencial para determinação da verdade, diligência de prova essa que se pode resumir à necessidade de, estando a arma do crime – espingarda automática G3 – apreendida nos autos e, como tal, é uma prova, em sentido material, porquanto se relaciona com a prática do facto qualificado como crime, no âmbito da investigação deve, sempre que tal se revele possível, serem recolhidas amostras de ADN e de impressões digitais nas armas de fogo, para concluir, depois de fazer referência a depoimentos que transcreve da testemunha SS (Investigador Chefe) e do perito TT que “deve ser determinada a realização do exame à arma de fogo – prova material – que se encontra preservada e, assim, cumprindo o desiderato do artigo 340.º, n.º 1, do CPP, homenageando a proteção processual que resulta da Convenção (artigo 8.º da CRP), estabelecida a recolha de ADN e de vestígios lofoscópicos que possam ser comparados quer com o arguido, quer com a vítima.

Fazendo uso desses meios de prova avançados pelo recorrente, importa realçar a resposta dada pelo Sr. Perito no sentido de que “no entanto, sendo arma de utilização, que não só pelo soldado AA, vai, vai dar origem a muitas amostras de mistura, se nós tivéssemos um, um resultado positivo em termos de vestígios biológicos, nada indica que não estivesse lá o perfil de outros, de outros utilizadores, e por isso, acabamos por, na altura, no local, tomar a decisão de não o fazer”, embora admita que “a posteriori podia ser, sempre ter sido feita.»

O modelo processual penal acusatório, integrado por um princípio de investigação judicial, que preside ao actual Código de Processo Penal, dirigindo-se ao apuramento da verdade material, impõe que, na prossecução dessa finalidade, recaia sobre o juiz “o ónus de investigar oficiosamente, independentemente das contribuições das partes, o facto submetido a julgamento”, como refere Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1988, p. 129.

O princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos artºs. 323º al. a) e 340º nº 1 do C.P.P., tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais, mesmo não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação - Cfr., neste sentido, os acórdãos, do STJ, de 25.03.1998, BMJ 475/502 e do TRE de 01.04.2008, Proc. nº 360/08.

O enfoque a salientar será sempre o da respectiva apreciação à luz do princípio da necessidade, que se constitui no critério justificativo e delimitador da acção do juiz no apuramento da verdade material.

De modo igual deverá o juiz proceder – sempre sem prejuízo do contraditório – se a produção de novos meios de prova for requerida pelos sujeitos processuais, posto que aqui cabendo-lhe o dever de verificar se, “notoriamente” (i) as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas, (ii) se o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, enfim, (iii) se o requerimento tem finalidade meramente dilatória, casos em que indeferirá a pretensão formulada.

O princípio da investigação ou da verdade material sofre, assim, as limitações impostas pelos princípios da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade – da legalidade – só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei – e da adequação – não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios.

Na óptica do recorrente, o tribunal deixou de promover oficiosamente diligência probatória que aquele reputou de essencial para o apuramento da verdade material, isto apesar de essa diligência em concreto ter sido discutida em sede de produção de prova testemunhal e pericial – daí as invocações dos depoimentos atrás referidos.

Releva-se aquela concreta resposta do sr. Perito para secundar a assertiva de que a utilização, pelo tribunal, da faculdade a que alude o art.º 340º CPP, sempre dentro da perspectiva da respectiva necessidade, esbarraria e ver-se-ia comprometida pela real possibilidade de existirem diversas amostras de mistura, ou seja, de a arma em questão, pelo manuseio sucessivo por várias pessoas – que vão desde o encarregado da arrecadação de armas quando forneceu a arma ao piquete de serviço, os soldados que, anteriormente ao arguido, a mantiveram na sua posse durante os turnos de serviço de guarda ao paiol, o próprio arguido na medida em que, dificilmente e só para falar no concreto período de serviço cujo inicio ocorreu às 17h30 (vide fls. 290 dos autos), se conceberia que não lhe tivesse tocado, pessoa não identificada que, após o evento fatídico, afastou a arma do corpo para facilitar a assistência pelo INEM (facto provado 25) - o que tornaria o exame propugnado de uma obtenção no mínimo duvidosa.

Depois, em termos da própria adequação para provar o que o recorrente pretenderia com tal exame, partindo do pressuposto de que nesse exame se apuraria existir ADN da vítima na arma, essa concreta existência apenas revela que a vítima teria tido contacto com a arma em questão.

Daí a extrapolar que o disparo fatídico foi da sua autoria vai um passo que exigiria, para a mesma, que se verificasse outro vestígio objectivo que viesse a confirmar esse disparo, qual seja, a existência de partículas/resíduos da pólvora da detonação que só o arguido veio afinal revelar.

Se bem que se possa considerar que a afirmação da necessidade ou da essencialidade do exame se mostre dirigida à confirmação de presença de ADN do arguido (cfr. permite a alegação constante de pág. 114 da motivação), figura-se que também não seria pela constatação de que na arma existiriam vestígios de ADN do arguido que resultaria, de imediato e só por isso, a atribuição da autoria do disparo ao recorrente.

Ademais, conceda-se alguma perplexidade (sem questionar o afirmado na motivação recursiva) diante da alegação de (i) ter sido a defesa do arguido quem, primeiro, colocou o problema da má prática e da omissão da realização de exames científicos à arma de fogo - prova material do crime – e de que (ii) que o Tribunal a quo assumiu ter interrogações – similares às da defesa - sobre a ausência de realização de exames científicos, mormente ADN e recolha de impressões digitais, conhecendo, porque questionou que a arma utilizada no disparo está preservada, desde o dia do fatídico evento, calou-se perante a afirmação do perito de que no entanto, a posteriori podia ser, sempre ter sido feita, a defesa não tenha requerido expressamente a realização desse exame, ao constatar que o tribunal não avançou oficiosamente para a determinação de tal exame, deixando-se ficar à mercê da ponderação oficiosa pelo tribunal acerca dessa necessidade e adequação.

De qualquer modo, a classificação do meio de prova alegadamente omitido pelo tribunal assume especial relevo nas consequências jurídico-processuais que dessa omissão poderão resultar.

Com efeito, a propósito dos critérios materiais de admissibilidade da prova, a doutrina, em especial o Professor Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH, 3ª ed., pág. 856) - distingue três critérios materiais:

- a prova “essencial”, “indispensável”, “absolutamente indispensável” ou “estritamente indispensável”;

- a prova “necessária”, “previsivelmente necessária” ou “absolutamente necessária”, “útil”, “de interesse”, “relevante” ou “de grande interesse”;

- a prova “conveniente”.

Considera ser fundamental em termos práticos a diferença entre estes tipos de critérios, na justa medida em que se «a omissão de prova do primeiro tipo constitui uma nulidade sanável nos termos do artigo 120º n.º 2 al. d)», já “a omissão da prova do segundo tipo constitui uma irregularidade nos termos do artigo 123º” e, finalmente, “a omissão da prova do terceiro tipo não constitui qualquer vício processual”.

Na consideração do conteúdo normativo do art.º 340º do CPP - que o recorrente entende ter sido violado na vertente do princípio da investigação ou do dever de produção oficiosa de meios de prova -, impor-se-ia tratar-se de “prova necessária”, visto o duplo uso do termo: “se lhe afigure necessário”, “Se o tribunal considerar necessária…”.

Contudo, o recorrente alega também ter o Tribunal a quo incorrido na nulidade (do julgamento) a que alude o art.º 120º n.º 2 al. d) do C.P.P.

Ora, este preceito refere-se “à omissão posterior (reportando-se à fase de julgamento) de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.”

Independentemente do critério de admissibilidade de prova que estiver em causa – “necessária” ou “essencial” –, o certo é que o eventual vício decorrente da alegada omissão de produção do respectivo meio de prova se mostrava já sanado quando o recorrente interpôs o presente recurso.

Com efeito, encontrando-se o recorrente presente e devidamente assistido por mandatário constituído na audiência de julgamento em que foi integralmente produzida a prova, até porque se arroga o ter questionado/colocado a questão em primeiro lugar, quer se entenda ter o tribunal incorrido numa nulidade sanável [art.º 120º n.º 2 al. d)], quer se entenda ter cometido uma mera irregularidade [art.ºs 340º n.º 1 e 123º do CPP], deveria o respectivo vício ter sido oportunamente alegado até ao final da audiência de julgamento – art.ºs 120º n.º 3 al. a) e 123º do CPP.

Não o tendo feito, o eventual vício encontra-se sanado.

Acresce que, não se tratando de nulidade da sentença (tanto mais que qualquer invalidade por omissão, a ter ocorrido, teve lugar antes de a sentença ter sido proferida), uma vez detectado, deveria o aludido vício ter sido arguido perante a 1.ª instância e não já em sede de recurso.

Só as nulidades insanáveis e as nulidades da sentença podem ser arguidas em sede de recurso da decisão final, sendo certo que a omissão de diligências de prova, ainda que constituísse nulidade processual, reporta-se a actos ou omissões ocorridas numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379º do CPP, pelo que se submete ao regime geral sobre nulidades ou irregularidades processuais.

Termos em que se conclui no sentido de que a eventual nulidade, não sendo absoluta e não tendo sido, tempestivamente, arguida junto do tribunal de 1.ª instância, sempre se encontraria sanada, pelo que não afecta a validade da sentença proferida nos autos.

Não obstante, sempre se dirá que o tribunal a quo não omitiu qualquer diligência essencial à descoberta da verdade.

Estamos perante uma decisão interlocutória relativamente à qual não é admissível recurso, cf. art. 400.º, n.º 1, al. c) do CPP, que reserva a competência do STJ na sindicância do acórdão da Relação no que concerne aos segmentos decisórios que conheçam, “a final, do objecto do processo”.

22. Decisão “que põe termo à causa” é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou o encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise, trata-se da decisão que põe termo àquela relação jurídica processual, ou seja, que determina o terminus da relação entre o Estado e o cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal” (acórdão do STJ, 19.10.2016, Proc. n.º 108/13.2P6PRT.G1.S1).

Ora, a decisão em relação à (não) realização da perícia/exame científico à arma de fogo incidiu sobre uma questão intercalar relativa à (des) necessidade de produção de uma prova. É certo que o art. 432.º, n.º 1, al. d), do CPP preceitua que se recorre para o STJ de “decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores”.

Mas, conforme se esclarece no acórdão do STJ, de 14.03.2018, Proc. n.º 22/08.3JALRA.E1.S1 , “Este preceito carece, porém, de interpretação em conjugação com o art. 400.º, n.º 1, al. c), que estabelece que “não é admissível recurso” “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo”; “Em consideração do elemento sistemático de interpretação, deve concluir-se que a remissão da al. d) n.º 1 do art. 432.º do CPP apenas abrange os casos previstos nas alíneas a) e c) do mesmo preceito, não sendo admissível recurso para o STJ de decisões proferidas pela Relação em recurso de decisões interlocutórias, por tais decisões não conhecerem, a final, do objecto do processo (al. b) e art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP).”

23. O STJ só “conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (dos tribunais de júri ou colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações”, e a “circunstância do recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não a altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que o foi o principal” e por isso, “é irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo” (acórdão do STJ, de 12.03.2015, Proc. n.º 724/01.5SWLSB.L1.S1).

24. Não abala esta interpretação o facto de o arguido não ter suscitado a questão perante o Tribunal da 1.ª instância, arguindo a nulidade e/ou irregularidade, e apenas o ter feito perante o Tribunal da Relação.

Aliás, feriria o princípio da igualdade vedar o recurso a quem foi mais diligente arguindo a nulidade e/ou irregularidade e provocando uma decisão da 1.ª instância, e aqueles outros, como o arguido, que apenas o fizeram junto do Tribunal da Relação. Seria, até, uma maneira de contornar a norma, e tentar lograr uma sindicância por parte do STJ de matéria que está impedido de conhecer.

25. Em suma, reitera-se, o que está em causa é a discordância do recorrente em relação à forma como foi apreciada a prova e julgada a matéria de facto.

A jurisprudência do STJ é constante na inadmissibilidade do recurso em casos similares.

Vide, acórdão do STJ, de 19.09.2019, Proc. n.º 157/17.1JAPRT.G1.S1: “não é admissível o recurso interposto pela arguida na parte relativa à impugnação da decisão de facto em que se insurge contra o exame crítico da prova uma vez que, nos termos do art. 434.º do CPP, ao STJ apenas compete o reexame da matéria de direito.” .

26. Pelo que, em relação a três das questões suscitadas: (i) errada valoração da prova; (ii) violação do princípio in dubio pro reo; (iii) violação do art. 340.º, n.º 1 do CPP pelo facto de não se ter determinado, por via do princípio da investigação, o exame à arma de fogo – não é admissível o recurso.

27. No seu recurso, o arguido apela também à existência de um erro notório na apreciação da prova, ao abrigo do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

28. Não é da competência do STJ conhecer dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelo arguido, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (arts. 427.º e 428.º, n.º 1, do CPP) [acórdão do STJ, de 19-02-2020, Proc. n.º 118/18.3JALRA.C1.S1].

O STJ apenas tem competência para o reexame da matéria de direito (art. 434.º CPP). A alusão na primeira parte do art. 434.º do CPP a “Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” não significa que o STJ possa analisar a matéria de facto. O que lhe é permitido é aferir, oficiosamente, se do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras da experiência, se verificam os vícios elencados no art. 410.º n.º 2, do CPP.

29. Note-se, contudo, que o prisma de análise e de intervenção é distinto do Tribunal da Relação.

Este Tribunal pode conhecer do facto, o que lhe permite imiscuir-se em toda a dimensão da facticidade.

Já o STJ, não obstante a remissão para o art. 410.º do CPP, nunca perde a sua génese de Tribunal de Revista.

É o Direito que lhe cumpre analisar de acordo com o julgamento da matéria de facto plasmada no acórdão recorrido do Tribunal da Relação.

30. A possibilidade de o STJ não decidir do Direito por reporte a vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP funciona como válvula de segurança, com as limitações inerentes aos poderes de cognição do STJ.

Este não sindica o julgamento da matéria de facto. Mas sim se do texto do acórdão recorrido - acórdão da Relação - se denotam vícios, de tal monta, que são impeditivos do STJ realizar o adequado reexame de Direito.

Porque os factos são insuficientes para essa reapreciação, ou por ser patente uma contradição entre a fundamentação, ou entre esta e a decisão ou por serem ostensivos e clamorosos os erros na análise da prova (art. 410.º, n.º 1, do CPP). Mas, volta-se a realçar. Todas estas questões conexas com o poder de cognição do STJ: o reexame da matéria de direito.

31. Ora, conforme resulta das conclusões, mas principalmente da motivação (a que atentaremos, pelo que referimos em § 11), é patente a discordância do arguido quanto ao julgamento da matéria de facto, não se conformando com o exame e apreciação da prova que foi feita, o que ainda é mais evidente quando essas questões já tinham sido suscitadas no âmbito do recurso (da matéria de facto) para o Tribunal da Relação.

32. Basta atentar nas alegações para percecionar que o arguido almeja uma sindicância da matéria de facto pelo STJ, como se não fosse um Tribunal de Revista, mas funcionasse como uma Tribunal de Relação com poderes cognitivos no domínio de facto.

Relembre-se: o arguido, em síntese, toca, essencialmente, nos seguintes aspectos para sustentar um erro notório na apreciação da prova ao abrigo do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP: a) Existe um documento autêntico, que conjugado com prova testemunhal, não permitia que o Tribunal considerasse a inexistência de personalidade suicida do Soldado CC; b) Há prova que atesta que quando chamado auxílio a vítima estava consciente. Atenta contra a lógica de um assassino pedir auxílio quando a vítima ainda o pode identificar como autor do disparo, bem como, envio de mensagens de sedução perto da hora do crime; c) Não se provou qualquer motivo para matar; d) O arguido tinha treino para atirar a matar a uma distância segura (ou seja, que evitasse qualquer reacção da vítima), pelo que o tiro de contacto é algo muito pouco provável se se tratar de uma iniciativa assassina; e) O relatório da autópsia não permite concluir pela etiologia homicida ou suicida; f) A localização do invólucro: cabia uma acção sobre o próprio – suicídio - ou um homicídio; g) A vítima não apresenta quaisquer tipos de vestígios relacionados com lesões caraterísticas de uma atitude de defesa, apesar de ter treino para o efeito, e a prova apontar no sentido de que perante o encosto de uma arma ao peito reagiria; h) O perito UU afirma não conseguir assegurar que a pólvora nas mãos do arguido provenha de um disparo; i) A pólvora proveio do facto do arguido ter tocado na vítima; j) Há testemunhas ouvidas que não concebem a possibilidade do homicídio; k) A vítima poderia ter acedido a munições, justamente por se encontrar afeto à instrução de tiro; l) Uma testemunha militar declarou que se tentou matar com uma G3, sendo que o local do corpo onde a vítima tem o orifício de entrada é o mesmo que a testemunha, no peito, por baixo do mamilo esquerdo.

33. Nesta sua argumentação o arguido traz à colação a sua análise da prova, indicando aquela que no seu entendimento sustenta a tese da defesa, avaliando a prova, transcrevendo trechos das testemunhas que, na sua óptica, revelam um errático julgamento de facto pelo Tribunal recorrido.

Em suma, o objecto recursório situa-se no domínio da facticidade e questões relacionadas com a (in)correção do julgamento da matéria de facto.

Ou seja, é ostensivo que o arguido utiliza o recurso para demonstrar um erro de julgamento, que não se confunde com o erro vício do art. 410.º n.º 2, al. c), do CPP. Em nenhum momento se questiona, por exemplo, que os factos dados como provados pela Relação não permitiram a condenação pelo crime de homicídio, ou que é contraditória uma decisão condenatória tendo como premissa tal factualidade. E nessa medida não se vislumbra que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, quaisquer dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

34. Importa reiterar este ponto.

Está para além do alcance do STJ sindicar o erro de julgamento, ou seja, avaliar se o juízo de análise probatória do Tribunal Recorrido está correcto. Se fez uma análise da prova correta ou incorreta, face ao que as testemunhas disseram em julgamento, confrontando as gravações (transcrições) e os documentos existentes, por forma a concluir pela absolvição. Justamente o enfoque deste recurso.

35. O espaço cognitivo do STJ é reservado para o erro vício.

De conhecimento oficioso e não despoletado pelo arguido, pois, quando assim é, estamos, regra geral, perante impugnações da matéria de facto que vêm “camufladas” através da invocação do art. 410.º do CPP.

36. Um erro notório na apreciação da prova, para efeito do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, há-de traduzir-se na constatação de um equívoco clamoroso, insustentável, evidente, porque da análise do acervo probatório, nunca se poderia ter dado como provado dado facto material, revelando-se essa decisão chocante e arbitrária, face à lógica e ao senso comum.

Ademais, tem que resultar, exclusivamente, da leitura do acórdão recorrido – de per si, ou quando conjugado com as regras de experiência comum – evidenciando um lapso manifesto e de tal modo patente que é facilmente percepcionada pelo cidadão comum como uma conclusão ilógica, incorrecta ou visivelmente violadora do sentido da decisão e, por isso, manifestamente insustentável.

37. Ora, a argumentação aduzida pelo arguido foi sopesada pelo Tribunal da Relação, que formou a sua convicção por via da existência de diversos indícios, considerando-os suficientes para concluir no sentido de se dar como provada a factualidade criminosa.

Da leitura do acórdão não se pode retirar que seja arbitrária, ilógica, inadmissível, essa conclusão.

Pelo contrário, da leitura do acórdão recorrido, seja pela apreciação da prova feita pelo próprio Coletivo de Juízes Desembargadores, seja quando estes se socorreram de alguma motivação da matéria de facto feita pelo Coletivo da 1.ª instância, verifica-se que se trata de uma leitura lógica e coerente de valoração da prova.

38. Aliás, visão totalmente distinta do arguido tem a assistente, e que não se afigura ilógica, demonstrativa de que não se pode qualificar a convicção do Tribunal recorrido como consubstanciando um erro vício com a sua génese numa ostensiva má apreciação da prova.

Em suma, a assistente chama à colação: a) um conjunto de prova que demonstra que a vítima não tinha tendência suicida; b) na altura do disparo apenas estavam no local a vítima e o arguido; c) a prova demonstra que não foi a vítima a realizar o disparo; d) o arguido estava de serviço a quem tinha sido confiada a G3 para exercício de funções de sentinela que foi utilizada no disparo mortal; e) a arma não se insere no padrão típico do comportamento suicida; f) o facto da vítima ter ficado na posição de decúbito ventral é igualmente incompatível com a tese de suicídio; g) a vítima não apresenta qualquer lesão em qualquer das suas mãos, designadamente em qualquer dos seus polegares, o que afasta a tese de disparo pela própria vítima; g) a vítima nesse dia apresentava um estado de espírito normal, bem-disposto e alegre; h)  a vítima apresentava apenas uma partícula na palma da mão direita e uma outra partícula no dorso da mão esquerda incompatível com a tese do suicídio; i) o arguido apresentava oito partículas características ou consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo, que seriam bem mais, porque lavou as mãos; j) as declarações do arguido foram sendo alteradas ao longo do processo e apresentam várias inconsistências, incoerências e contradições; k) o estado em que estava a vítima não permitia intervir ativamente na investigação criminal.

39. por outro lado, concretamente, não se vislumbra que a fundamentação aduzida no acórdão revidendo afronte as regras de experiência a valoração da prova por si feita.

Pelo contrário, a argumentação que aduziu conjuga um conjunto de premissas que conduzem a uma conclusão plausível de homicídio.

Em síntese, o acórdão recorrido sopesou: a) a vítima nesse dia demonstrava estar feliz e sem sinais de tristeza; b) não tinha predisposição para o suicídio; c) os suicidas optam, na maioria das vezes, por zonas armas de cano curto e disparam para outras zonas, como seja,  tiros “encostados ao ouvido” ou os tiros no “céu-da-boca”, na expectativa de minorar o seu sofrimento”; d) a possibilidade que a vitima teve, ou teria, de se suicidar em ambiente e tempo diverso do referido nos autos; e) a vítima morreu em resultado do disparo realizado com a espingarda automática G3 apreendida nos autos e não apresenta partículas características ou consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo; e) o arguido apresentava partículas características ou consistentes com resíduos de disparo de armas de fogo, sendo que a presença destas partículas é compatível com disparo, manipulação ou proximidade a disparo de arma de fogo.

40. Toda essa materialidade foi julgada provada com fundamento em diversa prova indicada pela Tribunal recorrido, nomeadamente, depoimentos, prova pericial e documental, e não resulta do texto do acórdão recorrido e das razões aduzidas que os mesmos contrariam de forma patente as regras da lógica.

Ou seja, os termos em que o Tribunal recorrido aduz a sua argumentação para dar como provados os factos indiciários, e como conjuga estes para lograr a conclusão de morte causada intencionalmente pelo arguido, é perfeitamente plausível, lógica, coerente e sem afrontar as regras de experiência. Não há qualquer erro clamoroso na apreciação da prova, vício que o arguido invoca.

41. E, com principal enfoque, não se pode concluir que para dar como não provado que o arguido tenha predisposição suicida e, pelo contrário, que nesse dia demonstrava estar feliz, o Tribunal recorrido, por reporte ao documento exarado pelo Coronel de Infantaria Psicólogo VV, tenha violado o art. 169.º, do CPP, ou, entendendo-se que se está  perante uma perícia, tenha afrontado o art. 163.º, n.º 1, do CPP, que confere valor reforçado à prova pericial [o que, a existir, configuraria um vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, cf. entre outros, o acórdão do STJ, de 24-02-2021, Proc. n.º 34/11.0TAAGH.L1.S1 ].

42. Aceita-se, conforme assumido pelas instâncias, que o documento elaborado pelo Sr. Psicólogo VV, é um relatório pericial, na medida em que se traduz numa avaliação pelo Sr. Psicólogo da percepção/apreciação de factos, que exigem especiais conhecimentos técnicos e científicos.

O Sr. Psicólogo emitiu um juízo técnico.

Cumpre ainda salientar que se trata de um relatório pericial que foi realizado para uma finalidade distinta e não para estes autos.

Mas, independentemente dessa questão, tratando-se de uma perícia, há-de seguir-se o regime a que alude o art. 163.º do CPP (não se convocando, nesta sede, o disposto no art. 169.ºdo CPP), ou seja, a convicção do julgador pode divergir do juízo contido no parecer, desde que fundamente a divergência.

43. Assim, a entender-se que o documento elaborado pelo Sr. Psicólogo VV ter um valor reforçado por via da sua qualificação como perícia, não se poderá concluir pela existência de erro vício face à inexistência de colisão com a sua força probatória, pelos motivos que adiante assinalaremos.

44. Dispõe o art. 163.º, n.º 1, do CPP que o “juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”

Ou seja, no processo penal a prova pericial tem um valor reforçado. Mas não tem valor absoluto.

O tribunal não tem que aceitar inexoravelmente as conclusões periciais.

Excepção prevista no n.º 2 do art. 163.º, do CPP, segundo o qual a convicção pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos, mas, quando assim é, deverá sempre fundamentar a divergência.

45. O Tribunal qualificou a prova que o arguido chama à colação de pericial.

Mas ficou convencido de que a vítima no momento do crime não tinha tendência suicida, e explica porquê.

46. Note-se que igual questão tinha sido suscitada junto do Tribunal da Relação, por reporte ao Tribunal da 1.ª instância.

Ali se escreveu, a este propósito: «na medida em que a opinião ali reflectida pelo Sr. Perito psicólogo não pode deixar de ser entendida como sendo uma autêntica perícia, não podendo deixar de ser tratada como prova pericial, essa opinião pode ser objecto de divergência pelo Colectivo, claro que em respeito pelo disposto no art.º 163º CPP, mais especificamente, com a observância do requisito do n.º 2 do art.º 163º CPP, isto é com fundamentação dessa divergência. Foi o que sucedeu no caso, pois o Colectivo teve o cuidado de fundamentar essa dissidência quanto à sintomatologia depressiva quando na fundamentação da matéria de facto provada avança: “…não revelou uma personalidade pré-suicida, pois não eram conhecidos quaisquer problemas de saúde ou acontecimentos emocionais recentes que pudessem ter germinado e fazer evoluir uma vontade suicida ao ponto de culminar, por exemplo, num disparo mortal sobre si próprio no interior da unidade militar onde prestava serviço. Pelo contrário, CC era uma pessoa muito alegre no relacionamento com os outros, com gosto pela vida, e não lhe eram conhecidos problemas (vide depoimentos das testemunhas WW, II, GG, XX, HH, YY e ZZ). O pai de CC tinha falecido em Abril de 2017 e CC continuou a ser extrovertido, não obstante a tristeza sofrida com esta perda (Vide depoimentos das testemunhas WW e II, e Louvor do Brigadeiro-General Comandante da Brigada de Reacção Rápida de 16.8.2018, por referência à missão terminada em Março de 2018, de fls. 321v.). No último exame psicológico realizado ao arguido em Fevereiro de 2018, o mesmo tinha sido considerado apto para a continuação da missão (Vide relatório do Centro de Psicologia Aplicada do Exército de fls. 229-231). CC tinha planos de curto e médio prazo. Na véspera da sua morte, CC evidenciava ter uma vida amorosa satisfatória e planeava encontrar-se com a sua namorada CCC nos dois dias imediatamente seguintes ao disparo mortal que o vitimou (Vide Sessões n.º 137 a 140 e 145 que constam a fls. 187v. e 188 do Apenso E). Por outro lado, o arguido tinha frequentado um curso de “vigilante” recentemente na empresa “Fator X” e estava empenhado em ingressar na Guarda Nacional Republicana (Vide depoimentos das testemunhas II, GG e AAA; Documentos de fls. 27-28 do Apenso A; Acessos entre 13.9.2018 e 18.9.2018 ao portal do candidato no site da GNR de fls. 184 e 185 do Apenso E; Sessões do WhatsApp n.º 155 a 160, 981, 2003-2007, 2023 do Apenso E).”»

47. Ora, no que concerne ao acórdão recorrido, também no mesmo se fundamentam as razões que abonaram a conclusão de que a avaliação do Sr. Psicólogo não prova a tendência suicida no momento do evento.

Aliás, o que emerge, é que nem sequer se considera que o juízo científico foi nesse sentido.

Conforme ali se escreve «Ainda quanto ao estado de espirito não será de menos referir que a asserção que o recorrente tira de que pessoas com síndrome obsessivo-compulsivas têm uma certa tendência a ter comportamentos suicidas – assente em literatura científica que citou – parte de um pressuposto que não se mostra demonstrado nos autos qual seja a assunção de que a vítima sofria de síndrome/perturbação obsessiva-compulsiva pela sinalização trazida a esta discussão resultante do Relatório do Centro de Psicologia Aplicada do Exército, junto aos autos a fls. 229, quando ali se menciona “Existiram alguns aspectos do foro familiar que podem potenciar, de forma natural, uma sintomatologia de algum humor deprimido como é referido no Parecer de Entrevista de Avaliação Psicológica”. A indicação de sintomatologia, naquele relatório e naquela data, não significa nem determina que a vítima sofresse, efectivamente, do apontado síndrome e, muito menos, que na data do fatídico evento essa sintomatologia ainda persistisse ou a síndrome se tivesse confirmado; são afirmações científicas diferentes, tal como o será afirmar-se que uma pessoa só porque deu espirros signifique que está constipado ou com gripe. Acrescentamos neste ponto que a leitura que o recorrente faz do apontado relatório se mostra abusiva. Na verdade, consultando o teor de fls. 230 dos autos, no tocante ao quadro “Alteração das escalas da BSI”, nenhuma sinalização se mostra feita quanto à “Obsessão-Compulsão”. Tal ausência de sinalização mostra-se extensível ao quadro “EADS” no tocante a “Depressão”. Depois, o episódio da morte do pai, mesmo desconsiderando o tempo entretanto decorrido, e a não permanência da vítima na ….. durante todo o período de licença que lhe havia sido concedida, nenhum contributo traz a essa questão. O decesso de um antecessor nunca deixa de ser um marco psicológico na vida de um filho, independentemente do grau de proximidade que exista entre ambos e da inevitabilidade daquele evento, mas daí concluir, como o recorrente pretende, que será uma revelação de condição para uma tendência suicida vai um longo passo que não se mostra revelado pela prova nem nos factos. De resto, a testemunha BBB, irmão da vítima, apresentou as razões da prematura vinda para o continente “Regressou novamente para acabar… a carta de condução de pesados, que ele tava tirar… e a seguir entregar-se para ir… em missão. Ele levantou a cabeça [impercetível 00:10:17] e continuou a sua vida.”. Nada de mais natural. Acerca do consumo de estupefacientes pela vítima, cremos que se mostra demonstrado minimamente que a vítima não era toxicodependente, apesar de algumas referências testemunhais de consumo diário, como decorre do resultado negativo obtido no exame toxicológico feito na sequência da autópsia. O que de relevo e objectivamente se mostra demonstrado nos autos é que o malogrado soldado, repetimos o que se mostra referido na fundamentação da matéria de facto, “o perfil psicológico de CC apurado em julgamento não revelou uma personalidade pré-suicida, pois não eram conhecidos quaisquer problemas de saúde ou acontecimentos emocionais recentes que pudessem ter germinado e fazer evoluir uma vontade suicida ao ponto de culminar, por exemplo, num disparo mortal sobre si próprio no interior da unidade militar onde prestava serviço. Pelo contrário, CC era uma pessoa muito alegre no relacionamento com os outros, com gosto pela vida, e não lhe eram conhecidos problemas (vide depoimentos das testemunhas WW, II, GG, XX, HH, YY e ZZ). …CC tinha planos de curto e médio prazo. Na véspera da sua morte, CC evidenciava ter uma vida amorosa satisfatória e planeava encontrar-se com a sua namorada CCC nos dois dias imediatamente seguintes ao disparo mortal que o vitimou (Vide Sessões n.º 137 a 140 e 145 que constam a fls 187v. e 188 do Apenso E). Concluímos, por esta via, que não só as provas postas em destaque pelo recorrente não inviabilizam o impugnado facto, dado como provado, como não impõem, na acepção do art.º 412º n.º 3 CPP, decisão diversa da tomada e, muito menos, em sentido contrário.»

48. E de todo modo, o vício do erro notório já tinha sido suscitado perante o Tribunal da Relação em termos análogos ao que o arguido o faz perante o STJ, e foi o mesmo julgado improcedente.

Como se assinalou: «Uma invocação de vício nesses termos confunde-se com uma impugnação ampla da matéria de facto como, de resto, o recorrente já anteriormente havia feito quantos aos factos provados e que, também anteriormente, já tivemos oportunidade de apreciar pelo que não tem condições intrínsecas para ser apreciada.»

49. Cumpre referir, uma vez mais, que não cabe ao STJ avaliar e efectuar uma reanálise do que as testemunhas disseram em audiência de julgamento, mormente fazer uma reapreciação e nova valoração dos depoimentos das mesmas, nomeadamente do depoimento de ZZ quanto ao eventual estado de espírito e anímico da vítima.

O que o recorrente pretende, sob a capa da invocação do vício do art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, é afirmar que a decisão recorrida deveria ter extraído da prova produzida uma conclusão diferente daquela que consta da decisão – veja-se, a título de exemplo, o recurso na parte da convocação/transcrição do depoimento da Dra. Ana JJ sobre o momento de consciência ou não da vítima e o facto do arguido providenciar pelo socorro da vítima; a convocação/transcrição do depoimento de DDD sobre a questão do distanciamento do disparo e da (des)necessidade de proximidade do disparo; a convocação/transcrição do depoimento de EEE, FFF e DD sobre a possibilidade de defesa da vítima numa situação de um disparo próximo da mesma; a convocação/transcrição do depoimento de BBB sobre o relacionamento da vítima com outros colegas do regimento; ao convocar conteúdo de conversações de whatsapp de colegas do arguido e vítima sobre o sucedido; convocação/transcrição do depoimento de UU sobre os vestígios de pólvora nas mãos do arguido e vítima; na convocação/transcrição do depoimento de GGG e HHH sobre a possibilidade de tese suicida ou homicida, etc. Estamos, verdadeiramente perante impugnação da matéria de facto, que se encontra excluída do conhecimento do STJ, como impõe o art. 432.º do CPP.

50. No âmbito da apreciação oficiosa do erro notório da apreciação da prova, o STJ apenas analisa se a apreciação da prova e consequente decisão da matéria de facto (dada como provada e não provada) plasmada no acórdão recorrido, colocado na perspectiva do homem médio (atenta as regras da experiência comum) é plausível e possível.

Não cabe sindicar se o Tribunal da Relação andou bem ou mal na apreciação da prova, ou seja, se devia ou não ter feito leituras diversas dos depoimentos das testemunhas.

Essa tarefa é do Tribunal da Relação que conhece de apreciação da prova (recurso da matéria de facto).

51. Em suma, do texto escrito e do raciocínio empreendido pelo Tribunal recorrido, não se vislumbra que o exame dos indícios atente contra as regras da lógica e da experiência comum.

Pelo contrário, não pode deixar de concluir-se que, efectivamente, o Tribunal apreciou de forma lógica e razoável a prova produzida e extraiu de forma concertada e com um raciocínio coerente e plausível as conclusões das mesmas, que levaram à factualidade provada, não incorrendo o acórdão recorrido em qualquer erro notório na apreciação da prova.

52. Concluindo, o recurso do arguido é inadmissível, porque todas as questões estão conexas com a matéria de facto.

E, uma vez que as conclusões delimitam o âmbito do recurso, e o mesmo se cingiu a tal temática, não colocando em crise a medida da pena [o que impede o seu conhecimento oficioso, posto, designadamente, que se não evidencia desmesura que suscite reparo (cfr. entre outros, o acórdão do STJ de 17-10-2018, Proc. n.º 138/16.2PAMTJ.L1.S1); aliás, não colocou essa questão perante o Tribunal da Relação, pelo que sempre se trataria de questão nova (cfr. acórdão do STJ de 27-04-2017, Proc. n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1)], nada sobra para o STJ conhecer no que concerne à condenação penal.

53. O arguido invoca ainda a nulidade do acórdão recorrido “nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a) por aplicação do artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP, pela ausência de qualquer exame critico da prova e, em alguns casos, pela ausência de fundamentação e fundamentação deficiente e, por fim, pela violação do artigo 169.º do CPP.”

54. Primeira nota para salientar que a nulidade é suscitada praticamente nos mesmos termos em que o arguido o fez no que se refere ao acórdão da 1.ª instância, desta feita imputando os mesmos vícios ao acórdão recorrido, demonstrativo que a sindicância e o fulcro do insurgimento se prende com a não conformação ao modo como o Tribunal da 1.ª instância e o Tribunal da Relação julgaram a matéria de facto.

Se quisermos ser mais claros: do que se trata não é da invocação de uma nulidade, mas, verdadeiramente, de uma impugnação da matéria de facto.

Tal já se revelou evidente na fundamentação do acórdão recorrido, quando expressamente assumiu:

“(…) Ora, o tribunal recorrido explicou, com precisão e minúcia, as razões que o levaram a dar por assente uns factos e a desconsiderar outros, mormente a tese do suicídio que havia sido esgrimida pelo arguido, raciocínio que foi feito com base em critérios objectivos, assente nas regras da experiência e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, não tendo, por isso e ao contrário do que enuncia o recorrente, nada de arbitrário.

É certo que o recorrente dele discorda, daí a necessidade de repetir as citações dos depoimentos e do conteúdo dos documentos e perícias, mas apenas e tão só, no legítimo desacordo na forma de ver e analisar a prova e, dessa aferição, retirar as necessárias consequências, pelo que, o invocado vício, não se situam no contexto e quadro de funcionamento legal do mesmo, mas apenas e tão só, no plano do desentendimento do juízo sobre a prova».

55. Segundo aspecto para afirmar que, na pureza dos princípios, não sendo admissível o recurso penal, o conhecimento da nulidade competiria ao Tribunal da Relação.

Contudo, apelando aos princípios da economia de actos, celeridade e agilização processual, atendendo que o Tribunal da Relação já motivou porque entende inexistir nulidade no acórdão da 1.ª instância, e uma vez que a argumentação aduzida é exactamente a mesma, irá conhecer-se de tal questão.

56. Conforme se escreveu recentemente no acórdão do STJ, de 06-05-2021, Proc. n.º 214/19.0JDLSB.L1.S1,

“V - A fundamentação dos atos judiciais não deve ser compreendida como uma finalidade em si mesma, mas antes como um instrumento ou como uma exigência inscrita em nome dos direitos e das garantias de todos sujeitos processuais, mais particularmente do arguido, que logo cede e deixa de ter sentido quando esse ato não seja suscetível de interferir com a resolução do litígio. VI - A parte final do citado n.º 5 do art. 97.º, do CPP, explicita que o dever de fundamentação se desdobra quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito, prendendo-se a primeira com a prova ou com a falta dela, com todos os motivos que levaram o tribunal a considerar provados determinados factos em detrimento de outros que não ficaram demonstrados, enquanto que a fundamentação de direito se relaciona com a argumentação jurídica de que o tribunal se socorreu (ou se deve socorrer) para encontrar a solução concreta para o caso ou, dito por outras palavras, o enquadramento jurídico que foi encontrado pelo juiz para o quadro factual que foi objeto de julgamento no processo. VII - Da conjugação art. art. 97.º, n.º 5, do CPP, com os demais atinentes aos atos decisórios dos juízes, muito em particular com os arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º, n.ºs 1 e 2, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a), e 425.º, n.º 4, todos do CPP, resulta inequívoco que o dever de fundamentação não assume exatamente a mesma extensão consoante o ato decisório seja um simples despacho interlocutório, uma sentença de um tribunal singular ou um acórdão de um tribunal ou coletivo de 1.ª instância ou, ao invés, um acórdão de um tribunal de superior grau hierárquico, proferido em sede de recurso. VIII - As sentenças e os acórdãos que conheçam do objeto da causa estão feridos de nulidade, caso não explicitem os motivos de facto e de direito da decisão, como decorre expressamente da conjugação do disposto nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP; ao invés, a falta de fundamentação dos demais atos decisórios dos juízes constitui, por princípio, uma simples irregularidade, em resultado da aplicação do regime geral das invalidades dos atos processuais previsto nos arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP. IX - Ainda que possamos afirmar que as exigências em matéria de fundamentação dos acórdãos proferidos em sede de recurso não sejam tão intensas quanto as relativas aos acórdãos proferidos em 1.ª instância, ainda assim entendemos que os acórdãos proferidos em recurso têm que fundamentar de forma explícita e completa os alicerces da sua decisão e da sua divergência (quando for o caso) relativamente ao acórdão de 1.ª instância; a imposição constitucional de fundamentação das decisões exige que a diferente decisão do tribunal de recurso esteja suficientemente explicada para que todos os intervenientes processuais possam entender (e dessa forma mais facilmente aceitar) a nova decisão.”

57. Mais uma vez, o arguido, para fundamentar a ausência de exame crítico da prova ou falta/insuficiente fundamentação do acórdão recorrido, quanto à motivação da factualidade dada como provada - como se de uma impugnação da matéria de facto se tratasse -, convoca a transcrição de vários depoimentos, como por exemplo o depoimento de SS, de III, de HHH, de JJJ, de KKK, EE, DD e XX, bem como, volta a chamar à colação o documento elaborado pelo Sr. Psicólogo para traçar o perfil psicológico da vítima, considerando que decidiram mal as instâncias, voltando a tratar a temática sobre a tese de suicídio versus homicídio, considerando ser a primeira (suicídio) e não a última (homicídio) a merecedora de crédito.

58. Na fundamentação da matéria de facto (bem como na de direito), impõe-se que o tribunal recorrido explique o caminho e percurso seguido para chegar àquela decisão de facto (e de direito), não se impõe que sejam exauridos de forma exaustiva todas os argumentos e considerações feitas pelo arguido.

Todavia, ao analisarmos o acórdão recorrido podemos concluir que o Tribunal expôs de forma estruturada e completa os motivos que conduziram à tomada de decisão, não sendo de forma alguma lacunoso nem se eximiu a conhecer das questões de prova que lhe foram colocadas, mormente sopesando de forma pormenorizada os indícios e contraindícios em causa.

59. Ora, o acórdão da Tribunal da Relação, como o proferido em 1.ª instância, são exemplo de como se deve fundamentar.

Ao invés de se esconderam em fórmulas vagas, genéricas, imprecisas, examinaram, pontualmente, a factualidade em presença.

Discorreram extensivamente, de forma explícita, sobre os motivos que os convenceram no sentido da condenação.

Analisaram os contraindícios invocados pelo arguido.

E disseram claramente quais as provas que desvalorizaram, as que descredibilizam e porque, e como, a conjugação dos indícios demonstra a intenção de matar.

Atendendo a que a nulidade é colocada nos mesmos termos que se suscitou perante a Relação, pela clareza de fundamentos do acórdão, pouco haverá a acrescentar ao que ali já tinha sido aduzido, com o qual se concorda.

Reitera-se embora que com a nulidade suscitada a verdadeira pretensão seria suscitar a (re)análise da matéria de facto pelo STJ, o que, reconhecidamente, vai para além da sua competência.

60. Ao contrário do alegado pelo arguido, as instâncias ponderaram a tese de suicídio da vítima.

O acórdão recorrido realizou um exame crítico da prova produzida sobre esta questão, tendo tomado em consideração a prova existente e chamada à colação pelo arguido (nomeadamente, fazendo uma ponderação crítica e concertada dos vários depoimentos referidos pelo arguido no recurso, como de III, HHH, JJJ, KKK, EE, DD e XX, etc).

Ou seja, explicou/fundamentou de forma clara e pormenorizada os motivos porque afastou a tese do suicídio.

61. Uma vez mais, reitera-se, inexiste qualquer falta de exame crítico da prova ou falta de fundamentação ou insuficiência de fundamentação quanto ao documento elaborado pelo Sr. Coronel de Infantaria Psicólogo VV.

O Tribunal recorrido fundamentou de forma clara e pormenorizada a sua convicção quanto ao mesmo e às conclusões que extraiu quanto ao perfil psicológico da vítima. A título de exemplo, transcreve-se um trecho do acórdão recorrido que evidencia de forma clara a tomada de posição sobre aquele meio de prova e as conclusões sobre o perfil psicológico da vítima:

«Já tivemos oportunidade de nos pronunciarmos acerca da sinalização referida no relatório de psicologia de fls. 229 a 231 em que, apesar de ali se mostra indicada como de valor 9 na escala BSI relativa a “Ob-Complusão” e se mostrar na “ficha de apoio à interpretação do processo” apenas a sinalização no campo “hostilidade” na escala BSI, terminando o director que elaborou essa ficha que o examinado não evidenciou “qualquer indício psicopatológico”. Ora a leitura que o recorrente faz daquele relatório, tendente a demonstrar que houve violação do art.º 169º CPP, ignorou por completo este último aspecto integrante do relatório: a ficha interpretativa.

Não poderá esquecer o recorrente que o apontado relatório psicológico tinha uma concreta finalidade, qual seja, a de aferir da prontidão do mesmo para a missão no estrangeiro, daí que a conclusão que o tribunal retirou do mesmo é a exacta dimensão conclusiva a que o mesmo se destinava.

Na verdade, a plenitude de prova que assiste ao documento, enquanto documento autêntico e nos termos permitidos pelo art.º 169º CPP, apenas se pode reflectir quanto aos resultados evidenciados nos testes e à opinião do sr. Perito psicólogo que a elaborou com base nos mesmos testes.

Porém, na medida em que a opinião ali reflectida pelo Sr. Perito psicólogo não pode deixar de ser entendida como sendo uma autêntica perícia, não podendo deixar de ser tratada como prova pericial, essa opinião pode ser objecto de divergência pelo Colectivo, claro que em respeito pelo disposto no art.º 163º CPP, mais especificamente, com a observância do requisito do n.º 2 do art.º 163º CPP, isto é com fundamentação dessa divergência.

Foi o que sucedeu no caso, pois o Colectivo teve o cuidado de fundamentar essa dissidência quanto à sintomatologia depressiva quando na fundamentação da matéria de facto provada avança: “…não revelou uma personalidade pré-suicida, pois não eram conhecidos quaisquer problemas de saúde ou acontecimentos emocionais recentes que pudessem ter germinado e fazer evoluir uma vontade suicida ao ponto de culminar, por exemplo, num disparo mortal sobre si próprio no interior da unidade militar onde prestava serviço.

Pelo contrário, CC era uma pessoa muito alegre no relacionamento com os outros, com gosto pela vida, e não lhe eram conhecidos problemas (vide depoimentos das testemunhas WW, II, GG, XX, HH, YY e ZZ).

O pai de CC tinha falecido em Abril de 2017 e CC continuou a ser extrovertido, não obstante a tristeza sofrida com esta perda (Vide depoimentos das testemunhas WW e II, e Louvor do Brigadeiro-General Comandante da Brigada de Reacção Rápida de 16.8.2018, por referência à missão terminada em Março de 2018, de fls. 321v.).

No último exame psicológico realizado ao arguido em Fevereiro de 2018, o mesmo tinha sido considerado apto para a continuação da missão (Vide relatório do Centro de Psicologia Aplicada do Exército de fls. 229-231).

CC tinha planos de curto e médio prazo.

Na véspera da sua morte, CC evidenciava ter uma vida amorosa satisfatória e planeava encontrar-se com a sua namorada CCC nos dois dias imediatamente seguintes ao disparo mortal que o vitimou (Vide Sessões n.º 137 a 140 e 145 que constam a fls. 187v. e 188 do Apenso E).

Por outro lado, o arguido tinha frequentado um curso de “vigilante” recentemente na empresa “Fator X” e estava empenhado em ingressar na Guarda Nacional Republicana (Vide depoimentos das testemunhas II, GG e AAA; Documentos de fls. 27-28 do Apenso A; Acessos entre 13.9.2018 e 18.9.2018 ao portal do candidato no site da GNR de fls. 184 e 185 do Apenso E;

Sessões do WhatsApp n.º 155 a 160, 981, 2003-2007, 2023 do Apenso E).”

Inexiste, assim, a apontada violação do art.º 169º CPP.»

62. Verifica-se, incontornavelmente, que o recorrente não aceita a convicção quanto à factualidade dada como provada assumida pelas instâncias; porém, esta divergência não pode assimilar-se à pretextada falta de exame crítico da prova ou insuficiente fundamentação.

63. O raciocínio espelhado - na apreciação das provas e na factualidade dada como provada e não provada - no acórdão recorrido, ao contrário do alegado, apresenta-se claro e transparente.

Não se pode confundir falta de exame crítico da prova e/ou falta de fundamentação da matéria de facto provada (e não provada), com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.

64. Pode o recorrente não concordar com o raciocínio seguido; contudo, o mesmo evidencia uma estrutura clara e coerente dos motivos que levaram à decisão da matéria de facto, mormente porque foi afastada a tese do suicídio e dada como provado um homicídio levado a cabo pelo arguido, não padecendo o acórdão recorrido de qualquer nulidade, nomeadamente por falta ou insuficiente fundamentação.

65. Por último, e em complemento do atrás referido nos pontos 17, 19 e 26, importa aduzir uma breve referência ao princípio da presunção de inocência (previsto no art. 32.º da CRP).

O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido.

Sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, «só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, e só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção» (cfr. acórdão do STJ, de 27-01-2021, proferido no Proc. n.º 1663/16.0T9LSB.L1.S).

66. Como se referiu e reiterou acima, a fundamentação da decisão em matéria de facto mostra uma apreciação e valoração da prova feita de forma racional, lógica, plausível e de harmonia com as regras da experiência comum, pelo que, de modo algum, se pode concluir que aquela mesma prova gera factos incertos, susceptíveis de causarem uma dúvida razoável que afaste a valoração efectuada pelo tribunal recorrido.

Verifica-se também, face à fundamentação da matéria de facto, que o Tribunal recorrido não cristalizou um qualquer estado de dúvida razoável sobre a factualidade dada como provada, como ademais se verifica do seguinte trecho do acórdão recorrido “Porém, como já se disse, mostra-se estabelecida a convicção do Colectivo no sentido de se concluir, sem margem para qualquer dúvida razoável, que foi o arguido que disparou sobre o CC, e que o fez com intenção de o matar, convicção essa que acompanhamos tal como anteriormente mencionámos.”

67. Pelo exposto, o acórdão recorrido não incorreu em qualquer violação do princípio da presunção de inocência e/ou do princípio in dubio pro reo.

68. Tudo visto e ponderado, não pode deixar de concluir-se pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.

69. Cabe tributação, nos termos prevenidos no artigo 513.º, do CPP, e no artigo 8.º e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais – ressalvado apoio judiciário.

70. Em conclusão e síntese: (i) ainda que as questões suscitadas pelo arguido (relativas ao erro de avaliação da prova, à violação do favor rei, à violação do princípio da investigação e à presença de vícios de procedimento) reportem ao julgamento levado, nas instâncias, sobre a matéria de facto, cujo conhecimento não cabe na competência do STJ (artigo 434.º, do CPP), não pode deixar de concluir-se, mesmo ex abundanti, pela improcedência do alegado; (ii) não vindo pedida a atenuação da pena, não pode o STJ levar suprimento em tal matéria; (iii) a questão que pertine ao pedido cível será oportunamente decidida, como acima se deixou editado.

III

70. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a) negar provimento ao recurso interposto pelo arguido;

b) condenar o arguido nas custas, com a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.

Lisboa, 1 de Julho de 2021

António Clemente Lima(Relator)

Margarida Blasco