ERRO MATERIAL
LAPSO MANIFESTO
RETIFICAÇÃO
RECURSO
INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PROCESSO PENDENTE
INSOLVÊNCIA FORTUITA
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
INEFICÁCIA
CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS
Sumário


I- Existe erro material quando o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real.
II- Erro material este que tem que emergir do próprio texto da decisão, ou seja, é o próprio texto da decisão que há de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão.
III- Não é o que acontece quando, havendo incidente de qualificação da insolvência pendente, o juiz escreve/considera que não pende qualquer incidente de qualificação e, em consequência, na decisão de encerramento dos art. 232.º e 233.º do CIRE, declara o caráter fortuito da insolvência (por aplicação do art. 233.º/6 do CIRE).
IV- Em tal hipótese, estamos perante o “manifesto lapso” previsto no art. 616.º/2/b) do CPC, que, cabendo recurso da decisão em que o “manifesto lapso” foi cometido, só por via de recurso pode ser reparado.
V- Porém, estando já pendente o incidente de qualificação de insolvência (apenso que faz parte do mesmo processo de insolvência em que foi proferido o despacho de encerramento), estava esgotado o poder jurisdicional do juiz se pronunciar sobre o caráter fortuito da insolvência, nos termos do art. 233.º/6 do CIRE, pelo que, ao fazê-lo, proferiu uma decisão que viola as normas processuais (o art. 613.º/3 do CPC) e que é, por isso, ineficaz.

Texto Integral


Proc. 380/09

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

Gandiver (Portugal) – Produção e Comercialização de Hortofrutícolas, Unipessoal, Lda., apresentou-se à insolvência e foi por sentença, transitada em julgado, declarada insolvente, tendo, no prosseguimento dos autos, em 26-09-2019, sido proferida a seguinte decisão:

“(…) O Sr. Administrador de Insolvência refere que inexistem bens propriedade do insolvente, pelo que a massa é insuficiente para suportar as custas do processo e as despesas da massa, razão pela qual pugnou pelo encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 232.º, nº 1 e 2 do CIRE. (…)

Nos termos do disposto no artigo 232º, nºs 1 e 2 do CIRE, verificando o Administrador da Insolvência que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, dá conhecimento desse facto ao juiz e este, ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente.

Presume-se a insuficiência da massa quando o seu valor seja inferior a 5.000,00 euros – artigo 232º, nº 7, do CIRE.

Assim, é um facto que, neste momento, e para efeitos do disposto no artigo 232.º, n.º 7, do CIRE, é insuficiente o património da insolvente, porquanto não está apreendido e desconhece-se a existência de qualquer bem da massa que seja igual ou superior a € 5 000,00.

Face ao exposto, declaro encerrado, nos termos dos artigos 230º, nº 1, al. d) e 232º nº 2 do CIRE, por insuficiência da massa insolvente, o presente processo de insolvência.

Fica o Sr. Administrador da Insolvência advertido nos termos do disposto no nº 4 do artigo 232º, do CIRE.

Cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência, pelo que os devedores recuperam o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão do negócio, sem prejuízo dos efeitos da qualificação de insolvência e do disposto no artigo 234º do CIRE – artigo 233º nº 1, al. a), do CIRE, bem como ainda dos efeitos resultantes da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.

Cessam as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência, exceto as relativas à apresentação de contas e aos trâmites do incidente de qualificação da insolvência – artigo 233º nº 1, al. b) do CIRE.

Todos os credores da insolvência podem exercer os seus direitos contra os devedores, sem prejuízo do que dispõe o artigo 242º, do CIRE – artigo 233º, nº 1, al. c), do CIRE.

Os credores da massa insolvente podem reclamar dos devedores os seus direitos não satisfeitos – artigo 233º nº 1, al. d), do CIRE, sem prejuízo do que dispõe o artigo 242º, do CIRE.

Ficam extintas os apensos de reclamação de créditos, de restituição e separação de bens, que se encontrem pendentes, exceto se já tiverem sido proferidas sentenças – cfr. Art. 233.º, nº 2, al. c) do CIRE.

A insolvência é fortuita, por força do disposto e 233º, nº 6, do CIRE (de acordo com este artigo sempre que o processo seja encerrado, sem que tenha sido aberto incidente de qualificação nos termos do disposto no art. 36.º, nº 1, al. i) do CIRE, o que acontece no caso vertente) (…).”

Decisão este de que a credora reclamante Hortovitorino, Chaveca, Lda. requerer a retificação, quanto ao segmento em que declarou a insolvência como fortuita, por se encontrar pendente um incidente de qualificação da insolvência.

Pedido de retificação que, em 11-10-2019, mereceu a seguinte decisão:

“Assiste razão à requerente, o incidente de qualificação de insolvência está pendente, razão pela qual houve lapso em ter qualificado automaticamente a mesma como fortuita nos termos do disposto 233.º/6 do CIRE.

Assim, os autos vão sempre prosseguir para apreciar tal desiderato. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs recurso AA, requerido no pendente incidente de qualificação de insolvência, recurso que, por acórdão da Relação …. de 11/03/2021, foi julgado totalmente improcedente.

Ainda inconformado, interpõe agora o mesmo AA o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição “por outro que decida a questão controvertida da forma peticionada pela aqui Recorrente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1- Quer o Acórdão Recorrido, quer o Acórdão Fundamento, versaram sobre as mesmas questões fundamentais de Direito e deliberaram de forma absolutamente contraditória no domínio da mesma legislação.

2- As mesmas questões fundamentais de direito em apreço nos referidos Acórdão e objeto do presente Recurso, são as seguintes: O erro material ou lapso da sentença previsto no artigo 614.º do CPC tem que resultar do próprio texto da sentença ou pode se recorrer a elementos exteriores a esta para correção do referido erro material? Dessa correção pode resultar a alteração da decisão de mérito?

3- E, existindo erro ou lapso manifesto não resultante do próprio texto da sentença , a forma de reação deverá ser a retificação de erros materiais ou antes a reforma da Sentença a ser requerida em sede recursória nos termos do artigo 616.º do CPC, sob pena de transito em julgado da sentença, nos termos do artigo 613.º nº 1 e 2 do CPC?

4- Perante tais questões, o Acórdão Recorrido entendeu que: O erro da decisão é ostensivo ou manifesto, uma vez que resulta incongruente que, constando dos autos um incidente de qualificação de insolvência, se declare na sentença que tal incidente não existe, sendo, por isso, o erro detetável no contexto da decisão porque todo os elementos para decisão constavam já do processo. Dito de outro modo, a correção da sentença efetuada pelo tribunal não se baseou em qualquer elemento ou informação nova que tenha sido trazida aos autos para ponderação acrescida, e que, só através desta, o lapso foi corrigido – todos os elementos para a decisão já constavam do processo no momento em que se decidiu, quer a sentença quer a correção da sentença.”

5 – Por sua vez, o Acórdão Fundamento entendeu que, “como se pode ler no Ac. do STJ de 12.02.2009, quendo o decisor se “engana”, tal pode ter como causa o erro material, o lapso manifesto ou o erro de julgamento. O primeiro, “na sua modalidade escrita (lapsos calami) consiste na exatidão, na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo. Mas é necessário que resulte evidente do texto dessa decisão. Haverá, pois, uma divergência, clara e ostensiva, entre a vontade real do decisor e o que veio exarado no texto”

E ainda, “Mas ainda que assim não fosse e, portanto, ainda que tivesse existido, de facto, uma divergência entre aquilo que se escreveu e o que se pretendia escrever, a verdade é que nunca se poderia afirmar que tal esse erro é detetável na sentença; nada se escreveu aí que evidencie ou indicie a existência de um erro desse tipo e, portanto, nada nos permitiria afirmar que estava emcausa um erro material e nãoum erro de julgamento e se esse erro material – ainda que tivesse existido – não é perceptível e não pode ser detectado.”

7- O erro constante da Sentença de Insolvência, proferida em 26/09/2019, que consistiu em aplicar uma norma- artigo 233.º nº 6 do CIRE- que não se aplicava por ter sido aberto o incidente de insolvência, é um silogismo judiciário.

8- E desse silogismo judiciário, o Tribunal concluiu que a Insolvência era fortuita.

9- O Tribunal partiu de um erro sobre um facto que se verificava, aplicou uma norma que não se aplicava e tomou uma decisão. O erro é manifesto, mas não é um erro material, tal como configurado no artigo 614.º do CPC, mas simum erro de julgamento invocável, nos termos do artigo 616.º em sede de reforma de Sentença, arguível no recurso da mesma.

10- O erro advém de não se ter atentado na circunstância de o referido incidente ter sido aberto, não resultando, de todo, do texto da sentença, nem do contexto da mesma.

11- -De tudo o que antecede, é notória a contradição entre a posição assumida pelo Tribunal da Relação ….. nos Acórdãos Recorrido e Fundamento em face da mesma questão fundamental de Direito e em face à mesma legislação, sendo certo que a Recorrente perfilha integralmente os fundamentos constantes do Acórdão Fundamento, porquanto é a única Decisão que, no entender da Recorrida, dá efectivo cumprimento, desde logo, aos Princípios e Direitos Fundamentais que devem presidir à interpretação, integração e aplicação da legislação.

12- Sendo certo que a Recorrente perfilha, integralmente, os fundamentos constantes do Acórdão Fundamento, sendo que na Decisão proferida, o Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 613.º nº 1e 2, 614.º e 616.º todos do CPC.

13- Não tendo sido intentando o competente recurso da Sentença de insolvência, em 26/09/2019 deve considerar-se que a mesma transitou em julgado in totum, tendo, pois, transitado a decisão, constante na referida sentença, que considerou a insolvência como fortuita. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II. Fundamentação de facto

Os elementos factuais relevantes, como já consta do relatório, são:

 - na decisão proferida em 26-09-2019, o Exmo. Juiz declarou a insolvência fortuita, por força do disposto e 233.º/6 do CIRE, por “o processo ser encerrado [quando não] tenha sido aberto incidente de qualificação nos termos do disposto no art. 36.º/1/1i) do CIRE, o que acontece no caso vertente”;

 - naquela data, em 26-09-2019, estava pendente o incidente de qualificação de insolvência, iniciado em 21/05/2019 e cujo despacho inicial, transitado em julgado, a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, foi proferido em 30/05/2019);

 - posteriormente, em decisão proferida em 11-10-2019, o Exmo. Juiz assumiu, por o incidente de qualificação de insolvência estar pendente, ter havido lapso em ter declarado a insolvência como fortuita nos termos do disposto 233.º/6 do CIRE e, corrigindo o lapso, declarou que “os autos vão sempre prosseguir para apreciar tal desiderato” (o incidente de qualificação).

*

III – Fundamentação de Direito

Não suscita qualquer controvérsia que, na decisão proferida em 26-09-2019, ao declarar-se o caráter fortuito da insolvência – estando em tal data pendente o incidente de qualificação da insolvência – foi cometido um lapso, traduzindo-se a questão suscitada na presente revista em saber se tal lapso podia ser, como foi, corrigido pelo tribunal que o cometeu.

Diz-se no art. 613.º/1 do CPC que, proferida uma sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao mérito da causa; o que, nos termos do art. 613.º/3 do CPC, é com as “necessárias adaptações aplicável aos despachos”.

Cessação do poder jurisdicional do juiz que deve ser entendida em termos hábeis e que “apenas” quer dizer e significar que o juiz, proferida a sentença/despacho, deixa de poder alterar o que decidiu e os respetivos fundamentos, ou seja, respeitando o que decidiu e os seus fundamentos, o juiz mantém o exercício do poder jurisdicional para a resolução de questões marginais, acessórias ou secundárias que a sentença/despacho suscitar.

É o caso da retificação dos erros materiais (aqui se incluindo, de acordo com o art. 614.º/1 do CPC, a omissão sobre o nome das partes ou sobre custas e os “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”), assim como é o caso, não cabendo recurso ordinário da decisão, do suprimento das nulidades (cfr. art. 615.º/4 do CPC) e da reforma das decisões em que tenha havido um dos “manifestos lapsos” referidos no art. 616.º/2 do CPC.

Seguindo esta linha de raciocínio, as Instâncias qualificaram o “lapso cometido” como um erro material e, em consequência, consideraram que se mantinha o poder jurisdicional para o corrigir.

Temos pois que o cerne da questão suscitada na revista acaba por residir em saber se o “lapso cometido” pode/deve ser qualificado como um erro material.

A propósito do “erro material”:

Dizia (e continua atual) o Prof. Alberto dos Reis[1] que “importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode emendar o erro.

Diz o Conselheiro Lucas Ferreira[2] que o “erro de cálculo ou de escrita (lapsus calami) deve emergir do próprio contexto da sentença ou das peças do processo para que ela remeta”, sendo também retificáveis, “para além desses erros, quaisquer outras inexatidões que tenham na sua génese a expressão na sentença de uma vontade (declarada) não correspondente à vontade (real) do juiz prolator. Erros materiais que, por isso, não se confundem com erros de julgamento”

E decidiu, recentemente, este STJ[3] que “se da análise da fundamentação de uma decisão judicial se conclui que ela não poderia conduzir à decisão que dela formalmente consta, haverá nulidade, suscetível de correção nos limites estritos da incongruência entre uma e outra; se do confronto entre a decisão e elementos com prova plena, constantes do processo, ressaltar um erro de julgamento ostensivo, poderá o mesmo ser corrigido requerendo a reforma da decisão”; e, ainda[4], “que não se confunde o erro de julgamento, cuja correção só por via de recurso pode ser obtida (ou, nos termos fortemente restritivos em que a lei admite a reforma de uma decisão judicial, através de um pedido de reforma – artigo 616º do CPC), com o erro material cuja retificação pode ser conseguida nos termos previstos no artigo 614º do CPC, e que abrange, por exemplo, “erros de escrita ou de cálculo” detetáveis no contexto da decisão.

Significa o que se acaba de transcrever que o erro material tem que emergir do próprio texto da decisão, tem que se traduzir numa vontade declarada que, do texto da própria decisão, sem margem para dúvidas, se percebe não corresponder a mesma (a vontade declarada) à vontade real do juiz que proferiu a decisão.

O que, com todo o respeito, não aconteceu com e na decisão de 26/09/2019 (em que foi cometido o lapso).

Efetivamente, o que temos é uma manifesto lapso – é, face aos elementos do processo e à pendência do incidente de qualificação, um erro de julgamento ostensivo – que poderia/deveria ter sido corrigido no recurso que devia ter sido interposto (uma vez que, cabendo recurso da decisão, atento o valor dos autos, não podia o juiz reformar o decidido – cfr. art. 616.º/2/b) do CPC).

Escreveu-se/raciocinou-se no acórdão recorrido “que resulta incongruente que, constando dos autos um incidente de qualificação de insolvência, se haja declarado na sentença que tal incidente não existe, sendo, por isso, o erro detetável no contexto da decisão porque todo os elementos para decisão constavam já do processo”, acrescentando-se que “a correção da sentença efetuada pelo tribunal não se baseou em qualquer elemento ou informação nova que tenha sido trazida aos autos para ponderação acrescida: todos os elementos para a decisão já constavam do processo no momento em que se decidiu, quer a sentença quer a correção da sentença.

Compreende-se o raciocínio, mas não se pode acompanhar, uma vez que o erro material tem que emergir do próprio texto da decisão e não também do confronto entre a decisão e todos os elementos constantes do processo, uma vez que, em substância, o que está em causa, repete-se, é perceber-se, sem margem para dúvidas, do texto da decisão, que o que nela se escreveu/decidiu (a vontade declarada) não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão.

Ora – é o ponto – a partir do texto da decisão supra transcrita (e cuja decisão de correção deu lugar à apelação e à presente revista) não se pode afirmar que a vontade real do juiz, no dia 26/09/2019, não correspondesse ao que escreveu/decidiu.

O que sucede – que é coisa diferente – é que o juiz não analisou bem o processo e por isso não se deu conta dum elemento factual que, tomado em conta, implicava necessariamente decisão diversa da proferida, porém, o que decidiu/declarou corresponde totalmente à sua vontade real (no dia em que proferiu a decisão).

Enfim, o que aconteceu preenche claramente a hipótese prevista no já referido art. 616.º/2/b) do CPC[5] – segundo o qual “é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida” – dando lugar, se não coubesse recurso da decisão, à sua reforma pelo próprio juiz (a requerimento duma parte).

Só que a decisão em causa tinha recurso, pelo que, não podendo por isso ser reformada, restava a via de recurso[6], o que, não tendo acontecido, estabilizou o decidido, o que significa que se encontrava esgotado o poder jurisdicional do juiz para corrigir o “lapso cometido”, pelo que, fazendo-o, violou o disposto no art. 613.º/1 do CPC.

Mas, estabilizado o decidido, não significa que, no caso, o decidido possa e deva ser cumprido (que é, em termos úteis, o que o recorrente pretende).

Como resulta de tudo o que vem de referir-se, declarou-se, com fundamento em não “ter sido aberto incidente de qualificação”, o caráter fortuito da insolvência, porém, quando foi exarada tal declaração, estava pendente e a prosseguir os seus termos o apenso do incidente de qualificação da insolvência (cujo despacho inicial, transitado em julgado, a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, é de 30/05/2019).

Entendemos pois que estamos perante uma situação equiparável à prevista no art. 625.º/2 do CPC, ou seja, sendo o processo de insolvência um único processo (formado pelo processo principal e pelos apensos), estamos perante decisões incompatíveis proferidas num mesmo processo: as proferidas no âmbito do prosseguimento do apenso do incidente de qualificação de insolvência (designadamente, a que declarou aberto o incidente e a que, em 09/10/2019, mandou citar o ora recorrente para os termos do art. 188.º/6 do CIRE) e a sub-judice, proferida a dizer que não existe incidente de qualificação de insolvência e que por isso esta é fortuita, tendo no processo que ser considerada “eficaz” e cumprida apenas a proferida e passada em julgado em primeiro lugar, o mesmo é dizer, sendo ineficaz o trecho da decisão sub-judice, datada de 26/09/2019, que declarou fortuita a insolvência.

Enfim – é a observação final – a pendência do incidente de qualificação de insolvência (e os despachos de prosseguimento no mesmo proferidos) havia como que esgotado o poder jurisdicional do juiz se pronunciar sobre o caráter fortuito da insolvência, nos termos do art. 233.º/6 do CIRE, pelo que, ao fazê-lo, proferiu uma decisão que viola as normas processuais (o já referido 613.º/3 do CPC) e que é, por isso, ineficaz[7].

É quando basta para, embora com outro fundamento, concluir pela improcedência da revista, uma vez que a decisão proferida em 26/09/2019, conquanto se deva manter nos seus precisos termos, é ineficaz.

*

IV - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a revista, face à ineficácia, para a insolvência, da decisão (do trecho em que se declara a insolvência fortuita, por o processo ter sido encerrado sem ter sido aberto incidente de qualificação) proferida em 26/09/2019.

Custas da apelação e da revista pelo requerente/recorrente.

Lisboa,13/07/2021

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Paula Boularot

*O relator declara que, nos termos do art. 15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n. 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Conselheiros adjuntos.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] In CPC anotado, Vol. 5.º, pág. 130.
[2] In Direito Processual Civil, Vol. II, pág. 377.
[3] In Ac. STJ de 26-11-2015, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza.
[4] In Ac. STJ de 07-05-2015, Proc. 18-A/2001.E1.S1.
[5] O que também faz perceber que, se preenche tal preceito, é porque não é “erro material”.

[6][6] Havendo então lugar ao processado referido no art. 617.º/2, 3 e 4 do CPC, ou seja, havendo recurso, podia o juiz reformar o decidido, o recorrente desistir do recurso e o recorrido pedir a subida do recurso “para decidir da admissibilidade da alteração introduzida na sentença”.

[7] Cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 218.