INSOLVÊNCIA
VENDA
LEILÃO
REMIÇÃO
ANULAÇÃO DA VENDA
ERRO
IRREGULARIDADE
PREÇO
BEM IMÓVEL
Sumário


I - É reconhecido ao cônjuge e parentes em linha recta do executado o direito de remição (art. 842.º do CPC), ou seja, o direito de, substituindo-se ao comprador ou adjudicatário, haverem para si os bens alienados na acção executiva, mediante o pagamento do maior preço que tiver sido oferecido por estes.
II - Sendo exercido o direito de remição, subsiste a alienação executiva do bem, verificando-se apenas uma substituição no que concerne à pessoa do adquirente.
III - Prevê o art. 838.º, n.º 1, do CPC a possibilidade de ser pedida a anulação da venda se vier a reconhecer-se, designadamente, a existência de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado.
IV - Trata-se de um regime especial de anulação da venda em que, diferentemente do que sucede no regime geral de anulação do negócio jurídico por erro, basta, na hipótese indicada, o reconhecimento de ter havido erro sobre a coisa alienada, por falta de conformidade entre as características verificadas aquando da transmissão e as que tiverem sido anunciadas.
V - Assistindo ao remidor o meio de tutela que competiria ao comprador, ou seja, o direito de anulação previsto no art. 838.º, n.º 1, aquele não pode beneficiar deste direito se o mesmo não pode ser concretamente exercido pelo comprador, como sucede no caso de, em relação a este, não se verificar o erro que constituiria fundamento da anulação.
VI - Nem ocorre também o fundamento de anulação a que alude o art. 839.º, n.º 1, al. c), do CPC, se não ficou demonstrado que a irregularidade cometida tenha influenciado, de alguma forma, a fixação do preço oferecido pela licitante, ao qual o titular do direito de remição está adstrito.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA e BB vieram propor esta acção declarativa comum CONTRA ISEGORIA CAPITAL, S.A. e a MASSA INSOLVENTE DE CC e DD, representada pela administradora da insolvência.

Pediram:

a) A declaração de nulidade do leilão do imóvel sito na …., ……., nos termos e para os efeitos dos n.°s 1 e 2 do art. 195.° do CPC, imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o n.° …..52, fracção …., da freguesia …..; e, cumulativamente,

b) a anulação da venda que se venha a realizar em consequência daquele leilão nos termos da alínea c) do n.° 1 do art. 839.° do CPC, imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o n.° ….52, fracção …., da freguesia  …..

Como fundamento, alegaram que são titulares do direito de remição, que pretendem exercer, existindo discrepâncias entre as características do bem imóvel objecto de venda e o respectivo anúncio de venda, tendo essas discrepâncias exponenciado o valor do bem.

As rés contestaram, excepcionando a falta de interesse em agir dos autores, a inadequação do meio processual, a falta de legitimidade e a extemporaneidade e consequente ineptidão da petição inicial.

Alegaram que, a existir qualquer nulidade, apenas o comprador a poderia invocar, no processo principal, sendo que o mesmo, conhecedor da presente acção, mantém a proposta de compra, negando qualquer divergência na descrição do imóvel efectuada no anúncio de leilão e o próprio imóvel.

Concluíram pela improcedência do pedido.

Na resposta os autores pugnaram pela improcedência das excepções deduzidas.

Em 02 de Abril de 2020, veio " Desperta Táctica ", notificada para o efeito no apenso de liquidação, informar os autos que, tendo conhecimento da presente acção e dos seus pressupostos, mantinha interesse na aquisição do imóvel, nos termos, condições e pelo preço licitado.

Considerando que o processo já continha todos os elementos necessários, ao que as partes, notificadas para o efeito, nada opuseram, foi proferida decisão que:

- Julgou improcedentes as excepções de falta de interesse processual dos autores, de falta de legitimidade dos autores e de desadequação do meio processual empregue;

- Apreciando o mérito da causa, julgou improcedente a acção, absolvendo os réus do pedido contra os mesmos formulado.

Discordando, os autores interpuseram recurso de apelação, que a Relação, por maioria, julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformados, os autores vêm pedir revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

I. O presente recurso vem interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação ….. com a referência ….., de 09 de Março de 2021 o qual determina a improcedência do recurso interposto pelos recorrentes, confirmando a sentença recorrida, determinando assim a improcedência dos pedidos formulados pelos recorrentes/autores na ação declarativa em questão.

II. Em síntese, os Recorrentes, enquanto titulares do direito de remição, pretendem que seja determinada a anulação do leilão do Imóvel infra identificado, na medida em que o mesmo foi realizado com recurso à publicitação de elementos enganosos.

III. Com efeito, no âmbito do processo de insolvência a que os presentes autos correm por apenso, foi determinada a venda em Leilão eletrónico do imóvel correspondente à fração autónoma …., correspondente ao n.º ….. do prédio urbano sito na  …., …., descrito na Conservatória do Registo Predial ….. sob o n.º ….52, e inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …71, tendo a realização do leilão ficado a cargo da Recorrida leiloeira;

IV. A Recorrida leiloeira anunciou o leilão do referido imóvel atribuindo-lhe uma a área de 741,92 m2, jardim privativo piscina e garagem.

V. Conforme resulta reconhecido na decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, a descrição do Imóvel constante do anúncio não coincide com a realidade do imóvel;

VI. O Imóvel tem uma área bruta privativa 184,400m2, não sendo parte integrante do mesmo um jardim privativo, com a área anunciada, sendo os jardins constantes das imagens do anúncio parte comum com manutenção a cargo do condomínio;

VII. A garagem e piscina anunciadas foram construídas sem licenciamento camarário, não constando da descrição do imóvel;

VIII. Consideram os tribunais recorridos que a nulidade invocada pelos recorrentes não é atendível por não influenciar a decisão “já que a mesma não revela ter tido ou ter qualquer influência na tomada de decisão negocial do licitante”, que mantém a vontade aquisitiva apesar das divergências entre o anunciado e a realidade do imóvel.

IX. Entendimento com o qual não se conformam os Recorrentes, os quais entendem verificar-se erro na aplicação das normas de processo nos termos do artigo 674.º, n.º 1 alínea b), em concreto, o artigo 838.º, n.º 1, 839.º n.º 1 alínea c) e 195.º, todos do CPC.

X. As desconformidades quanto às reais qualidades/caraterísticas do imóvel a vender e as anunciadas determinam a anulação da venda nos termos do artigo 838.º, n.º 1, do CPC.

XI. Entendem os Recorrentes que, enquanto remidores, assumem a qualidade de adquirentes e gozam da tutela conferida pelo artigo 838.º, n.º 1, do CPC, do mesmo modo que o licitante, pelo que, independente dos erros sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o que foi anunciado não ter determinado o desinteresse do licitante na aquisição pelo valor da licitação, mesmo após os conhecer, são de molde, só por si, a determinar a anulação da venda a pedido daqueles a quem assiste o direito de remição, independentemente dos referidos erros terem hipoteticamente exponenciado o preço da aquisição;

XII. Bastando para efeitos de anulação a desconformidade entre o anunciado e a realidade.

XIII. Termos que, o artigo 838.º, n.º 1 determina a anulação da venda a que se reportam os presentes autos;

XIV. Nos termos do disposto no artigo 839.º, n.º 1 alínea c) em conjugação com o disposto no artigo 195.º, a nulidade em questão só será atendível quando tenha influência sobre a decisão, no caso dos autos, sobre o valor da venda do imóvel;

XV. Ora, sucede que apesar de não terem sido arrolados para os autos quaisquer elementos de prova dos quais fosse possível extrair que o valor oferecido pelo licitante foi exponenciado pela publicitação de elementos enganosos, as regras da experiência comum determinam que elementos como a área do imóvel, tanto mais quando passa de 184,400m2 para 741,920m2, e a existência de piscina e de garagem são elementos que determinam uma valorização do mesmo, o que necessariamente colocaria os potenciais licitantes na predisposição de apresentar licitações por valor superior ao que licitariam se conhecessem as características reais do imóvel.

XVI. Ora, apesar de o licitante que apresentou o maior lance se conformar com as características reais, na medida em que a publicitação do imóvel pelas suas características reais sempre determinaria que as licitações precedentes à daquele licitante fossem de valor mais reduzido, e consequentemente que o lance superior fosse de valor inferior ao efetivamente apresentado, de forma a acompanhar o valor efetivo do imóvel.

XVII. Assim, a nulidade invocada, em face das regras da experiência comum, sempre afetaria a decisão de venda, determinando a alteração do valor da mesma, tendo assim influência na decisão, isto é, na determinação do valor pelo qual o imóvel seria vendido para efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC.

XVIII. Acresce que, em consonância com o constante da fundamentação da declaração de voto vencido, “a vingar a licitação nos moldes em que foi anunciada e levada a cabo, uma das duas, ou o tribunal chancela a venda de uma coisa que não tem as qualidades que foram anunciadas, ou, então, procede à venda do imóvel com qualidades diferentes das reais, com consequente afetação de direitos de terceiros, mormente dos condóminos das partes comuns (jardins). Qualquer destas vias, correspondem a soluções que a ordem jurídica não pode tutelar.”

XIX. Assim, a nulidade invocada sempre afetaria a decisão de venda, determinando a alteração do valor da mesma, pelo que deve ser declarada a nulidade da venda nos termos do artigo 195.º do CPC.

XX. Consequentemente entendem os recorrentes que, dando provimento ao presente recurso, devem as decisões recorridas ser anuladas e substituídas por outra que determinando a procedência dos pedidos dos recorrentes, determine a anulação e repetição do leilão, impedindo o licitante D......., Lda de participar no mesmo, conferindo-lhe o direito de preferir na compra do imóvel pelo valor da maior licitação caso os recorrentes não pretendam exercer o direito de remição.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e revogar-se as decisões recorridas, determinando-se a procedência dos pedidos dos recorrentes, declarando-se a anulação do leilão.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se se, no caso, os titulares do direito de remição podem anular a venda de um imóvel, considerando que, embora se verifique uma desconformidade entre as características do imóvel e a descrição que do mesmo é feita no respectivo anúncio da venda, o terceiro licitante, que conhece o imóvel e ofereceu pelo mesmo determinado preço – o maior lance –, mantém interesse no negócio projectado e no preço oferecido, estando ciente dessa desconformidade.

III.

Vêm provados os seguintes factos (conforme decisão que se reproduz):

1. No âmbito do processo de insolvência a que se reportam os autos identificados em epígrafe, foi determinada a venda em leilão eletrónico do imóvel correspondente à fração autónoma …., correspondente ao n.° … do prédio urbano sito na Quinta ….., ….., descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.° ……52, e inscrito na matriz urbana sob o artigo n.°…….71

2. A realização do leilão eletrónico ficou a cargo da leiloeira ISEGORIA CAPITAL, S.A. que utiliza uma marca e nome comercial da sociedade LEILOSOC Market Partners.

3. O leilão teve início às 9h00 do dia 01 de outubro de 2019, terminando pelas 18h00 do dia 31 de outubro de 2019.

4. O leilão do imóvel encontra-se disponível em: https://leilosoc.com/list- imovel/1977/lote-detail-imovel/39445/title/moradia-v4-c-piscina-....., com o título moradia V4 com piscina-…….

5. Os autores são, respetivamente, pai e mãe da insolvente.

6. Os autores, pretendendo exercer o referido direito de remição, comunicaram ao processo de insolvência bem como à administradora de insolvência a intenção de exercer o direito de remição, quanto à alienação do bem em causa nos presentes autos e, assim, adquirir o imóvel em termos idênticos àqueles do licitante adjudicatário no âmbito deste leilão.

7. Na descrição constante do anúncio do website com o endereço acima referido e bem assim nos panfletos distribuídos pela leiloeira, o imóvel que corresponde ao Lote …, ou seja a vivenda em ….., em causa é anunciado com a área de 741,92 m2.

8. Bem como jardim privativo, piscina e garagem.

9. Porém, a descrição do imóvel constante do anúncio não coincide com a realidade do imóvel, e com a realidade que consta dos elementos carreados para os presentes autos, designadamente através da caderneta predial e certidão do Registo Predial.

10. Na Caderneta Predial, o imóvel tem uma área bruta privativa 184,400m2.

11. Não sendo parte integrante do imóvel um jardim privativo, com a área anunciada.

12. Os jardins visíveis nas imagens do anúncio, não se encontram vedados, não são propriedade privada da fração, nem se encontram adstritos ao uso exclusivo da fração, sendo parte comum e estando a manutenção a cargo do condomínio.

13. O imóvel corresponde apenas a uma fração, designada pela letra ….., do prédio urbano sito na ….., inscrito na Conservatória do Registo Predial ….. sob o n.° …...52.

14. Constituindo os referidos jardins anexos à fração ….., que não se encontram vedados, parte comum do referido prédio urbano.

15. Não integrando a área da fração autónoma correspondente ao imóvel objeto do presente leilão.

16. A garagem referida no anúncio foi construída sem licenciamento camarário.

17. Não correspondendo assim a obra edificada às telas finais que se encontram aprovadas no projeto de construção da Câmara Municipal ……..

18. Sendo uma obra desprovida de licenciamento camarário.

19. Não constando tampouco da descrição do imóvel constante da certidão predial ou da caderneta predial.

20. A piscina referida no anúncio foi construída sem licenciamento camarário.

21. Não correspondendo assim também esta obra edificada às telas finais que se encontram aprovadas no projeto de construção da Câmara Municipal …….

22. Sendo uma obra desprovida de licenciamento camarário.

23. Não constando tampouco da descrição do imóvel constante da certidão predial ou da caderneta predial.

24. Tais obras de edificação desprovidas de licenciamento camarário, garagem e piscina, foram realizadas pelo anterior proprietário, mas ainda assim tais benfeitorias.

25. O licitante adjudicatário do imóvel (autor da maior proposta) Desperta Táctica, Lda., nunca questionou a validade do leilão efetuado.

26. Tendo reiterado o propósito de aquisição do imóvel licitado.

27. Já tendo sido celebrado contrato promessa de compra e venda relativamente ao aludido imóvel.

28. O aludido licitante, tendo tido conhecimento da interposição da presente ação, reafirmou o propósito de outorga da compra e venda prometida.

29. O referido licitante conhece as verdadeiras características do imóvel e que, nessa medida, não determinou a sua vontade aquisitiva com base nos elementos publicitários.

30. O comprador inspecionou, na presença de colaboradores da ré, o bem imóvel objeto dos autos.

IV.

1. Dispõe o art. 842º do CPC (aqui aplicável subsidiariamente, considerando a norma do art. 17º, nº 1, do CIRE):

Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes e ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.

É, assim, reconhecido ao cônjuge e parentes em linha recta do executado o direito de remição, ou seja, o direito de, substituindo-se ao comprador ou adjudicatário, haverem para si os bens alienados na acção executiva, mediante o pagamento do maior preço que tiver sido oferecido por estes.

Constitui, no fundo, um direito de preferência, qualificado, circunscrito ao processo executivo, que o remidor exerce em termos similares aos do comprador que vai substituir; tem por finalidade a protecção do património familiar do executado, evitando a saída dos bens desse património[2].

Por outro lado, prevê o art. 838º, nº 1, do CPC a possibilidade de ser pedida a anulação da venda se vier a reconhecer-se, designadamente, a existência de erro sobre as qualidades da coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado.

Trata-se de um regime especial de anulação da venda: diferentemente do que sucede no regime geral de anulação do negócio jurídico por erro, são dispensados os requisitos da essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário[3].

Assim, para a procedência do pedido de anulação da venda, basta, na hipótese indicada, o reconhecimento de ter havido erro sobre as qualidades da coisa alienada, por falta de conformidade entre as características constatadas aquando da transmissão e as que tiverem sido anunciadas.

Prevê-se ainda no art. 839º, nº 1, do CPC várias situações em que a venda executiva fica sem efeito, interessando aqui a da al. c), por invalidade processual: anulação do acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, quer por nulidade da própria venda, quer por nulidade de acto anterior de que a venda dependa absolutamente.

2. Não se discutindo, no caso, que os autores, pais do insolvente, sejam titulares do direito de remição, reconheceu-se no acórdão recorrido, tendo em conta a factualidade provada, que se verificou uma desconformidade entre as características do imóvel, objecto da venda, e a descrição que do mesmo foi feita no respectivo anúncio para venda.

A tal propósito e sobre as consequências daí decorrentes, escreveu-se o seguinte:

Os elementos dissonantes publicitados prendem-se com a circunstância de se indicar tratar-se de uma “moradia” com “jardim privativo, piscina e garagem”, sem mencionar expressamente:

- Quanto ao “jardim”, que este não integra a fração, nem se encontra adstrito ao uso exclusivo da fração, sendo parte comum e estando a manutenção a cargo do condomínio; verifica-se, pois, discrepância das áreas anunciadas;

- Quanto à “piscina e garagem”, que se trata de edificações feitas sem licenciamento camarário.

Refira-se que pela consulta da certidão predial e da caderneta predial os interessados facilmente percecionariam estas discrepâncias, até pela ausência de qualquer referência a estes equipamentos - cfr. os números 4 a 23 dos factos assentes.

A desconformidade apontada, configurando uma hipótese de erro sobre a coisa transmitida por desconformidade com o anunciado, possibilita ao comprador deduzir pretensão de anulação da venda, nos termos enunciados no art. 838.º, tratando-se, pois, de um meio de tutela do comprador. Nesse sentido, essa tutela é extensível ao remidor ou ao preferente que exerçam o respetivo direito e exclusivamente nesse pressuposto, conclusão que se afigura evidente, por força da operação de substituição a que já se aludiu.

Ora, não é esse o caso dos autos, porquanto o interessado licitante que adjudicou o imóvel, autor da maior proposta, manifestou expressamente a sua vontade de concretizar a venda, pelo preço licitado, renunciando prévia e antecipadamente a qualquer pretensão anulatória estabelecida a seu favor, conclusão que se retira da factualidade dada por assente sob os números 25 a 30.

Impõe-se, no entanto, ir mais longe na análise, porquanto se retira dessa factualidade que o preço oferecido pelo licitante o foi ponderando as concretas e específicas características do imóvel em causa, que o licitante conhecia, o mesmo acontecendo, aliás, com os autores, que pretendem exercer o seu direito de remição conhecendo o imóvel em questão.

A tese dos apelantes, de que “a anulação pretendida decorre do facto de o referido leilão haver sido realizado com recurso à publicitação de elementos enganosos que determinaram a exponenciação do valor pelo qual o imóvel, conforme resulta da matéria de facto assente na sentença recorrida, nos factos 7.° a 24.°” (conclusão D), não tem, pois, qualquer suporte nos factos provados, inexistindo elementos que permitam concluir que o valor oferecido pelo licitante resultou dessa “exponenciação do valor” do imóvel, determinada pela “ publicitação de elementos enganosos”.

Igualmente, pelas mesmas razões, é destituída de fundamento a afirmação dos apelantes de que dessa forma foram ludibriados licitantes.

Nesse contexto, carece de fundamento a invocação de que “[u]ma vez que a venda nos termos em que foi efetuada, isto é, mediante o anúncio de características que não correspondem à realidade, traduz uma manifesta violação das exigências imposta pelas regras da boa fé que deve caracterizar a generalidade das relações contratuais (art . 227.°, n.° l, do Código Civil)” (conclusão H), mesmo admitindo que “a regra da conduta de boa fé tem um conteúdo diversificado e aberto”. O que se poderia discutir é exatamente o contrário, isto é, se não se justificaria o apelo aos ditames da boa-fé para contrariar o comportamento dos autores, na formulação de uma pretensão anulatória no condicionalismo evidenciado no processo, em que os autores, com pretexto no erro aludido, mais não pretendem senão discutir o preço oferecido pelo licitante, que, presume-se, reputam exagerado, olvidando que o que o legislador pretende é possibilitar a valorização máxima dos bens objeto de venda, em ordem à satisfação dos interesses dos credores; daí que, muito sugestivamente, se leia na sentença recorrida que “como bem refere a Ré, Massa insolvente, o objectivo primacial dos procedimentos judiciais de liquidação é a valorização máxima dos activo apreendido, com o propósito último da satisfação, tão completa quanto possível, dos interesses dos credores”. (…)

Noutra sede, perspetivando agora o disposto no art. 839.º, nº1, alínea c), e dando de barato a possibilidade de convocação desse preceito por parte dos autores, enquanto titulares de um direito de remição e no contexto indicado no processo, entende-se, pelas razões já apontadas, que não se verifica um dos requisitos para a anulação uma vez que não está demonstrado que a irregularidade cometida tenha influenciado, de alguma forma, a fixação do preço oferecido pelo licitante, ao qual o titular do direito de remição está adstrito.

Os recorrentes discordam, entendendo que, enquanto remidores, assumem a qualidade de adquirentes e gozam da tutela conferida pelo artigo 838.º, n.º 1, do CPC, do mesmo modo que o licitante, pelo que, independentemente de a desconformidade provada não ter determinado o desinteresse do licitante na aquisição pelo valor da licitação, ela, só por si, determina a anulação da venda a pedido daqueles a quem assiste o direito de remição.

Por outro lado, apesar de reconhecerem que não existem elementos de prova, dos quais fosse possível extrair que o valor oferecido pelo licitante foi exponenciado pela publicitação de elementos desconformes com a realidade, afirmam que essa desconformidade, em face das regras  da experiência comum, sempre afectaria a decisão de venda, determinando a alteração do valor da mesma, tendo assim influência na decisão, isto é, na determinação do valor pelo qual o imóvel seria vendido para efeitos do disposto no artigo 195.º do CPC.

Com todo o respeito, não têm razão.

Com efeito, ficou provado – factos 25 a 30 – que a licitante inspeccionou o bem imóvel objecto da venda; conhece as verdadeiras características desse imóvel, não se tendo determinado a adquiri-lo com base nos elementos anunciados.

Por isso, a licitante nunca questionou a validade do leilão efectuado, tendo reiterado o propósito de adquirir o imóvel, tendo até já celebrado contrato-promessa para o efeito.

Perante estes factos, uma conclusão parece, desde logo, segura: se conhecia as verdadeiras características do imóvel e se não se determinou a adquirir tendo em atenção os elementos publicitados, a licitante não incorreu em erro sobre as reais qualidades do imóvel.

Apesar da desconformidade provada, que é objectivamente evidente, a licitante não foi enganada, como não o terão sido também os recorrentes, já que, como se afirmou no acórdão recorrido, conheciam o imóvel em questão (são pais do insolvente).

Todavia, mesmo desconsiderando este último facto (que os recorrentes não impugnaram), o certo é que não há, da parte da licitante, qualquer erro sobre a coisa transmitida. Ora, contrariamente ao que é afirmado pelos recorrentes, para efeitos de anulação, não pode aqui bastar a mera e objectiva desconformidade entre o anunciado e a realidade; como parece evidente, será ainda necessário que o adquirente incorra em erro sobre essa falta de conformidade.

Erro que, como se referiu, não existe.

Por outro lado, como dissemos atrás, o direito de remição constitui um direito de preferência, conferindo ao seu titular a faculdade de se substituir ao comprador na aquisição do bem, através do pagamento do preço oferecido por este.

Assim, "sendo exercido o direito de remição, subsiste a alienação executiva do bem, verificando-se apenas uma substituição no que concerne à pessoa do adquirente"[4].

Ora, subsistindo a alienação e operando-se apenas a dita substituição, será de concluir que o remidor, estendendo-se-lhe o meio de tutela que competiria ao comprador, ou seja, o direito de anulação, nos termos do art. 838º, nº 1, não pode beneficiar desse direito se o mesmo não pode ser concretamente exercido pelo comprador, como sucede no caso, por não se verificar, em relação a este, o erro que constituiria fundamento da anulação.

No que respeita à segunda razão acima referida invocada pelos recorrentes – no sentido de que, segundo as regras da experiência, a desconformidade verificada determinou a exponenciação do valor do imóvel, para efeitos do disposto no art. 195º do CPC –, concluiu a Relação que essa afirmação não tinha qualquer suporte nos factos provados (o que os recorrentes, aliás, aceitam), estando, pois, subjacente o entendimento de que não havia fundamento ou justificação para a formulação de um qualquer juízo presuntivo a tal respeito.

Estando-se ainda no domínio dos factos, esse entendimento, como é pacífico, não é susceptível de controlo neste recurso de revista.

Refira-se, de todo o modo, que nada tem de ilógico pensar-se que a licitante, conhecendo as verdadeiras características do imóvel, tenha oferecido o preço que tinha por adequado a tais características.

Conclui-se, por isso, como no acórdão recorrido, que, para efeitos do disposto no art. 839º, nº 1, al. c), do CPC, não ficou demonstrado que a irregularidade cometida tenha influenciado, de alguma forma, a fixação do preço oferecido pela licitante, ao qual o titular do direito de remição está adstrito.

Acrescente-se que não se vê razão para não "chancelar" a venda nos termos referidos, ou seja, daquele imóvel em concreto, com as suas reais qualidades, que eram conhecidas da licitante e que determinaram a vontade desta em adquirir.

O que não deve, parece-nos, é tutelar-se o interesse particular dos remidores em, no fundo, ver reduzido o valor do imóvel com fundamento na exponenciação desse valor e sua influência na decisão de adquirir, que não ficaram provadas.

Interesse que, para além disso, contraria o objectivo do legislador, que é, na liquidação em processo de insolvência, o de valorização máxima dos bens apreendidos em ordem à (máxima) satisfação do interesse dos credores.

Em conclusão:

1. É reconhecido ao cônjuge e parentes em linha recta do executado o direito de remição (art. 842º do CPC), ou seja, o direito de, substituindo-se ao comprador ou adjudicatário, haverem para si os bens alienados na acção executiva, mediante o pagamento do maior preço que tiver sido oferecido por estes.

2. Sendo exercido o direito de remição, subsiste a alienação executiva do bem, verificando-se apenas uma substituição no que concerne à pessoa do adquirente.

3. Prevê o art. 838º, nº 1, do CPC a possibilidade de ser pedida a anulação da venda se vier a reconhecer-se, designadamente, a existência de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado.

4. Trata-se de um regime especial de anulação da venda em que, diferentemente do que sucede no regime geral de anulação do negócio jurídico por erro, basta, na hipótese indicada, o reconhecimento de ter havido erro sobre a coisa alienada, por falta de conformidade entre as características verificadas aquando da transmissão e as que tiverem sido anunciadas.

5. Assistindo ao remidor o meio de tutela que competiria ao comprador, ou seja, o direito de anulação previsto no art. 838º, nº 1, aquele não pode beneficiar deste direito se o mesmo não pode ser concretamente exercido pelo comprador, como sucede no caso de, em relação a este, não se verificar o erro que constituiria fundamento da anulação.

6. Nem ocorre também o fundamento de anulação a que alude o art. 839º, nº 1, al. c), do CPC, se não ficou demonstrado que a irregularidade cometida tenha influenciado, de alguma forma, a fixação do preço oferecido pela licitante, ao qual o titular do direito de remição está adstrito.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 12 de Julho de 2021.

F. Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Proc. nº 7688/16…….
F. Pinto de Almeida (R. 414)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª ed., 385 e 386; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 263.
[3] Cfr. Autores e Obs. Cits, pgs. 396 e 258, respectivamente; também Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 3ª ed., 495 e o Acórdão do STJ de 17.06.2014, acessível em www.dgsi.pt. Como se afirma neste Acórdão, esta solução justifica-se pela "necessidade de proteger o adquirente induzido em erro pela descrição do objecto da venda, que é feita no próprio processo e, assim, garantida pelo tribunal".
[4] Carvalho Gonçalves, Ob. Cit., 504.