REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
CONVOLAÇÃO
RECURSO DE APELAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
JUSTO IMPEDIMENTO
DECISÃO FINAL
QUESTÃO PRÉVIA
TEMPESTIVIDADE
QUESTÃO PREJUDICIAL
CONHECIMENTO PREJUDICADO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I - Uma vez convolado em requerimento de interposição de recurso de apelação (recurso de apelação 2) a reclamação deduzida pelo apelante (nos termos do art. 643.º do CPC) relativamente ao despacho do juiz de 1.ª instância que decretou a não admissão de recurso de apelação (recurso de apelação 1) da sentença de 1.ª instância, e circunscrito esse recurso de apelação 2 ao segmento decisório relativo ao incidente respeitante ao “justo impedimento” (sendo inexistente, o recurso não era admitido por intempestivo), invocado como fundamento para se ter praticado fora de prazo e legitimar a admissibilidade do requerimento de interposição do recurso de apelação 1, dando origem à decisão objecto do (após convolação) recurso de apelação 2, o regime que se adequa a ambos os recursos é o da previsão do art. 644.º, n.º 3, do CPC (relativo às decisões interlocutórias diferida e acessoriamente apeláveis), tal como se o despacho de indeferimento decorrente do incidente de “justo impedimento” fosse decisão intercalar que não admitisse recurso autónomo e devesse ser impugnada no âmbito do recurso interposto da decisão final. Perante a convolação de reclamação em apelação, a decisão apelada é uma decisão interlocutória de 1.ª instância atípica, a integrar no recurso da decisão final. Daqui surge a necessidade de tal matéria fazer necessariamente parte de um só recurso de apelação (assim tratado processualmente), com as duas questões suscitadas pelo recurso de apelação 1 e pelo recurso de apelação 2 a mereceram pronúncia hierárquica e conjunta pelo tribunal da Relação (a questão referida ao incidente de “justo impedimento” e a(s) questão(ões) respeitante(s) ao mérito da acção).
II - A aplicação do art. 644.º, n.º 3, depende do preenchimento do art. 660.º do CPC, que se verifica na medida em que a questão do “justo impedimento” era e é necessariamente questão prévia para se decidir da tempestividade da interposição e consequente admissão do recurso e conhecimento do mérito da decisão final escrutinada no recurso de apelação 1.
III - Não sendo conhecido o objecto da apelação 2 no acórdão proferido na apelação 1, tendo em conta a natureza prejudicial da questão recursiva levantada e pendente de decisão no que respeita ao incidente do “justo impedimento”, aplica-se o mesmo regime processual reservado pela lei quando se julga procedente a “omissão de pronúncia” na decisão recorrida (o art. 684.º, n.os 2 e 3, do CPC), funcionando o STJ como tribunal de cassação, com os devidos efeitos processuais, e ficando precludido o conhecimento do mérito do recurso. Além do mais, a falta de pronúncia do tribunal sobre questão prévia ao mérito do recurso – a montante – é equiparável – a jusante – à falta de apreciação de questão considerada prejudicada pela solução encontrada, uma vez revogado o acórdão: em ambas se impõe a remessa dos autos à Relação para que nesta se apreciem as questões omitidas (não aplicação do art. 665.º do CPC por força do art. 679.º).

Texto Integral




Processo n.º 806/17.1T8FAR.E1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Évora, 2.ª Secção Cível

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. A «FIDELIDADE, Companhia de Seguros, S.A.» propôs acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, pedindo que seja condenado a pagar à Autora a quantia de € 102.612,07 e os correspondentes juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento. Fundamentou tal pretensão no facto de ter ocorrido um acidente de viação que provocou danos (morte) a terceiro, suportados por si na sequência de um contrato de seguro automóvel, em que foi interveniente o veículo de matrícula 00-00-UZ conduzido pelo Réu, o qual conduzia sob a influência de uma taxa de álcool no sangue de 1,17 g/l, tendo sido o Réu o único responsável pelo embate que provocou a morte do condutor de velocípede sem motor que seguia na mesma via, tendo a Autora direito a reclamar do Réu o pagamento por reembolso, em exercício do direito de regresso que lhe assiste, dos valores que satisfez a BB e CC, na qualidade de únicos herdeiros legais de DD, em cumprimento das indemnizações devidas pela regularização dos danos emergentes da conduta estradal do Réu.

2. O Réu deduziu Contestação com o fim da improcedência da acção. Invocou que apenas embateu no velocípede em virtude de, quando iniciou a manobra de ultrapassagem do mesmo, ter de se desviar de um veículo que circulava em sentido contrário e que invadiu parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem; ademais, o piso estava irregular e ondulado devido às árvores que circundavam a estrada, o que contribui para o acidente, na medida em que obrigava o condutor do velocípede a circular na via de forma irregular e que os veículos e os velocípedes não podiam circular junto à linha delimitadora da berma, tendo-se o acidente dado perto mas não completamente junto à berma. Para além disso, não conduzia sob o efeito do álcool, porque após o acidente, ingeriu, por engano, aguardente de medronho, pensando tratar-se de água. O acidente ocorrera por factor estranho e que não lhe é imputável; mesmo que conduzisse sob tal efeito, não há nexo de causalidade entre o acidente e o álcool.

3. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que fixou o objecto do litígio e os temas da prova (fls. 64 e ss).

Realizou-se audiência final em sessões de 3/10/2017 e 2/11/2017.

Foi proferida sentença pelo Juízo Central Cível de … – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de … em 11/12/2017 (fls. 184 e ss), que julgou procedente a acção e condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de € 102.612,07, acrescida de juros de mora desde a citação e até à data do integral pagamento, sendo calculados às taxas legais sucessivamente em vigor para os juros civis.

4. Não se conformando com o decidido, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora (TRE), em 21/2/2018 e, nessa ocasião, o Mandatário do Réu e Apelante requereu o julgamento da tempestividade do acto nos termos e para os efeitos do art. 140º do CPC (“justo impedimento”). A Recorrida respondeu nos termos legais, batendo-se pela improcedência da situação de justo impedimento e consequente intempestividade do recurso e ordenação do desentranhamento dos autos. Tal pronúncia mereceu ainda resposta do Réu e Recorrente.

Apreciando a fls. 281 e ss, a Senhora Juiz de Direito de 1.ª instância, em 6/3/2018, proferiu Despacho em que decidiu não resultar verificada qualquer situação de justo impedimento e não admitir, por intempestivo (fora do prazo legal de 40 dias), o recurso interposto em 21/2/2018 da sentença notificada em 12/12/2017 (arts. 638º, 1, 641º, 2, a), 644º, 1, a), CPC).

Desse Despacho apresentou Reclamação o Recorrente insatisfeito, de acordo com o previsto no art. 643º, 1, do CPC, para o TRE, em 9/4/2018. Simultaneamente voltou a requerer a tempestividade da prática de tal acto nos termos e para os efeitos do art. 140º do CPC. Na sequência, a Senhor Juiz de Direito de 1.ª instância, “independentemente [de] se entender que não há justo impedimento na situação dos autos (bem como que o despacho que julgou não verificado o justo impedimento só pode ser alterado através de recurso)”, decidiu que esta questão só poderia ser apreciada no âmbito da Reclamação à não admissão do recurso pelo TRE, remetendo os autos constituídos por apenso, devidamente instruídos, ao TRE (fls. 118-119 dos autos de Reclamação).

A Senhora Desembargadora Relatora proferiu Despacho em 17/5/2018 (fls. 125 e ss dos autos de Reclamação), mediante o qual, primeiramente, entendeu que a impugnação versava sobre “a decisão que julgou improcedente o deduzido incidente de justo impedimento, da qual a tempestividade do recurso se encontra pendente”, e, portanto, “aquilo que está em causa não é nenhum requisito de admissibilidade do recurso”, a apreciar nos termos do art. 643º, “mas sim a existência ou não de justo impedimento”, razão pela qual se deveria convolar, atendendo ao erro no meio processual utilizado (art. 193º, 3, CPC), em requerimento para interposição de recurso de apelação (art. 644º, 1, 2, g), CPC), submetido e condicionado ao prazo de 15 dias do art. 638º, 1, do CPC. Deste modo, decidiu determinar a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para que se pronunciasse relativamente ao incidente de justo impedimento e apreciasse os requisitos de admissibilidade do requerimento interposto como recurso, ou o Recorrente pagasse a multa devida pela sua interposição tardia.

Devolvidos os autos, proferiu-se Despacho a fls. 311 e ss dos autos principais (em 21/6/2018), no qual se julgou a não verificação de qualquer justo impedimento quanto ao requerimento de interposição do (convolado) recurso de apelação da decisão que julgou não verificado justo impedimento para a interposição (in)tempestiva e determinou o cumprimento do disposto no art. 139º, 5, c), do CPC, “em virtude do recurso em causa ter sido apresentado no 3º dia útil após o termo do prazo”. Foi notificado em 25/6/2018 para o pagamento em 10 dias. Não o tendo feito, foi notificado em 1/8/2019, para proceder ao pagamento em 10 dias do pagamento da multa e penalização nos termos do art. 139º, 6, do CPC. O Recorrente e Réu apresentou nos autos, em 5/9/2018, o comprovativo da liquidação da multa respectiva (fls. 325 e ss). Mas, em 7/9/2018, veio requerer a não produção de efeitos dessa última notificação e da multa aplicada (fls. 330 e ss). Por Despacho proferido em 19/10/2018 (fls. 337), a Senhora Juiz de Direito indeferiu o requerimento para dar sem efeito a emissão da guia nos termos do art. 139º, 6, do CPC e, estando paga a multa e a penalização, decidiu remeter os autos ao TRE para apreciação do recurso (depois de convolado).

5. O TRE, para decisão, identificou como questões decidendas: “1. Saber se a resposta dada ao facto 7 da matéria de facto provada deve ser alterada nos termos preconizados pelo recorrente, ou seja, que o R., no momento do embate não apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,13g/l. / 2. Saber se o R., ora recorrente, ilidiu a presunção a que alude o art. 27º/1 c) do Dec. Lei 291º/2007 de 21-08, ou seja, de que a condução sob o efeito do álcool não foi causa adequada à produção do acidente.” Decidindo, julgou serem improcedentes as Conclusões do Recorrente quanto à questão 1., mantendo-se o ponto 7. da matéria de facto provada, e serem, em parte, procedentes as Conclusões quanto à elisão da presunção referida sob 2. Enunciou, assim, no acórdão proferido em 20/12/2018 (fls. 342 e ss) o seguinte dispositivo: “(…) julga parcialmente procedente a apelação, revoga a sentença recorrida e condena o recorrente AA, a pagar à Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., a quantia de 41.044,82 € (quarenta e um mil, quarenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios desde a citação até integral pagamento”.

6. Não se resignando, interpôs a Autora recurso de revista para o STJ, em cujas alegações apresentou as seguintes Conclusões:

“1 – O Douto Acórdão da Relação de Évora ora proferido, vem apreciar o recurso do réu AA, julgando parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, considerando, que a culpa deve ser repartida na proporção de 60% para o veículo que invadiu a faixa de rodagem do réu, e 40% para este, e consequentemente, condenando o réu a pagar à Autora – Fidelidade, Companhia de Seguros S.A., a quantia de 41.044,82€, acrescida de juros moratórios desde a citação até integral pagamento, sem que se pronuncie do recurso quanto ao incidente do justo impedimento.

2 - Nos termos do art. 140º nº 1 do CPC considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato. A parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.

3 - Para a afirmação do justo impedimento do mandatário não é suficiente a verificação de uma situação de doença incapacitante do exercício da atividade profissional, sendo ainda necessário que a doença determine a impossibilidade de praticar o ato por terceiro. A doença do advogado da parte só constitui justo impedimento se for súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto, de praticar o ato, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato.

4 - O facto do Ilustre Advogado do Réu não ter apresentado o requerimento de recurso no prazo legal, ainda que esteja doente, apenas é imputável ao mesmo, uma vez que poderia ter subestabelecido, considerando que o próprio admite, apesar de alegar que não poderia pensar em trabalhar por questões médicas, que tentou trabalhar no período de doença, sendo certo que os 5 certificados de incapacidade temporária para o trabalho entre 06-02-2018 e 20-02-2018 revelam que a situação clínica não era de tal forma grave que fosse previsível uma incapacidade prolongada, sendo necessárias 4 prorrogações do certificado inicial, pelo que não seria uma situação de tal forma grave que o impedia de tomar uma das duas condutas acima referidas: contactar o constituinte ou subestabelecer.

5 - A causa impeditiva alegada não pode considerar-se, de modo nenhum, súbita e imprevisível, tendo em conta o historial clínico descrito, e que o ilustre Advogado bem conhece e padece desde criança.

6 - Atento o teor do próprio requerimento do Ilustre Advogado, não resulta demonstrada a existência de qualquer doença incapacitante que o impedisse de contactar terceiros, pelo que não se verifica qualquer situação de justo impedimento, não tendo ocorrido qualquer facto que, de forma absoluta, impediu a prática do ato e era normalmente imprevisível, por escapar à previsão do homem médio que usa de diligência normal, o qual terá que prever que poderá adoecer e terá que solicitar a terceiro que efetue o requerimento em causa.

7 - Face à matéria de facto dada como provada, resulta, salvo o devido respeito, inequívoco que o comportamento do recorrido deu causa exclusiva ao acidente.

8 - Com efeito, conforme bem consta da matéria de facto dada como provada, a condução levada a efeito pelo recorrido não pode escapar ao juízo de censura ético-jurídica.

9 - Um cidadão médio, ainda mais … da GNR, com profundo conhecimento sobre as ligações entre o álcool e acidentes de viação, colocado na posição de condutor, não circularia a 80 km/h, com uma taxa de álcool no sangue de 1,13 g/l de sangue.

10 - Não iniciaria a ultrapassagem de um velocípede que segue junto à linha delimitadora de uma faixa de rodagem, na sua mão de trânsito e sem praticar qualquer infração estradai, em local já seu conhecido e de habitual passagem, com piso irregular e ondulado devido às raízes das árvores, com 3,50mt de largura na sua hemi-faixa, quando tem que guardar uma distância lateral mínima de 1,5mt na ultrapassagem de velocípedes e abrandar a velocidade, se tem veículos em sentido contrário,

11 - Dado que é por demais evidente, que não poderia cumprir a distância de segurança para fazer a ultrapassagem,

12 - Sendo evidente, mesmo considerando que um veículo se cruzou com o recorrido e invadiu ligeiramente a sua hemi-faixa, versão que a ora recorrente sempre estranhou, até atenta as declarações da testemunha do recorrido - EE -, o qual referiu que "circulava atrás do veículo do Réu nas circunstâncias do acidente aqui em causa, o qual, repentinamente, desviou-se para a direita e viu algo a ser projetado, que seriam a bicicleta e o ciclista. Se o Réu não tivesse voltado de novo à estrada teria embatido num pinheiro. Não se apercebeu de nada anormal antes do embate, seguindo o Réu normalmente à sua frente, não tendo reparado em qualquer veículo em sentido contrário" (negrito nosso),

13 - Se não fosse a ultrapassagem que o recorrido efetuou ao velocípede, não teria sido este atingido, e consequentemente o corpo do infeliz DD sido projetado contra uma árvore causando-lhe a sua morte,

14 - Na medida em que o recorrido, tinha todas as condições para evitar o embate no velocípede (reduzir/moderar a velocidade, acionar órgão de travagem), não fosse a manobra de ultrapassagem que efetuou, não fosse acima de tudo, as suas capacidades de perceção, atenção e reação estarem diminuídas devido à sua taxa de álcool no sangue de 1,13g/l.

15 - Não foram apuradas quaisquer circunstâncias relativamente à ultrapassagem daquele veículo que se cruzou com o recorrido, em que medida ocupou a sua faixa de rodagem e quais os motivos,

16 - Não pode assim, concluir-se que aquela ultrapassagem concorreu para o embate, pois nenhuma prova se logrou nesse sentido, nem sequer esse veículo atingiu o recorrido,

17 - Tendo sido essa a conclusão e convicção da Sra Meritíssima Juiz da 1ª Instância,

18 - Sendo o comportamento do recorrido a única causa adequada e exclusiva à produção do evento, por violação grosseira do disposto nos artigos 3º, n.º 2, 18º, n.º 3, 24º, n.º 1 e 38º, n.os 1 e 2, al. e) do Código da Estrada.

19 - Nos autos não se apurou que o recorrido conduzisse em excesso de velocidade, mas que circularia a 80km/h, sendo a velocidade permitida no local de 90 km/h,

20 - No entanto, o artigo 24º, n.º 1 do Código da Estrada, impõe que "O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente",

21 - Assim sendo, era exigível ao recorrido que adotasse a atitude de seguir atento ao trânsito de molde a aperceber-se de que um a ultrapassagem do velocípede não poderia ser feitas nas condições legalmente exigidas e de forma a evitar que lhe embatesse caso tivesse que guinar ligeiramente como veio a suceder, bem se sabendo que as cautelas devem ser redobradas atenta a circunstância de circular na via um velocípede.

22- Resultando da leitura supra exposta, com indiscutível clareza, que o evento ocorreu porque o recorrido conduzia o seu veículo desatento ao trânsito que circulava à sua frente,

23 - Não tendo espontaneamente tomado qualquer precaução perante a aproximação de um eventual veículo que surgisse de frente,

24 - Devendo o acórdão recorrido ser revogado em conformidade, fixando-se a culpa na produção do acidente do recorrido em 100%.”

A final, solicitou a revogação do acórdão recorrido e a prolação de acórdão que, “perante a matéria de facto tida por provada, considere o Réu e aqui Recorrido como único e exclusivo culpado pela eclosão do acidente dos autos e, em consequência, ser condenado a pagar à Recorrente a quantia de € 102.612,07 e correspondentes juros”.

Não foram apresentadas contra-alegações pelo Recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO e FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia da apreciação recursiva da decisão de 1.ª instância no incidente sobre o “justo impedimento”

1. Resulta dos autos que está pendente a apreciação do recurso de Apelação (doravante: recurso de apelação ou Apelação 2), decorrente da convolação ex vi art. 193º, 3, do CPC, de Reclamação deduzida pelo Recorrente Apelante relativamente ao despacho de não admissão do recurso de Apelação da sentença proferida nos autos em 1.ª instância (doravante: recurso de apelação ou Apelação 1).

Essa convolação de Reclamação para requerimento para interposição de recurso de apelação foi determinada pelo Despacho proferido em 17/5/2018 pela Senhora Juiz Relatora no TRE (enquanto tribunal ad quem no exercício dos poderes atribuídos pelo art. 643º do CPC), condicionada pelo pagamento da multa imposto pela prática no 3º dia útil após o termo do prazo para a Apelação 2. Tal veio a ser cumprido pelo despacho de fls. 311 e ss (no qual também se julgou não verificado o justo impedimento). Uma vez paga, ainda que com penalização adicional no âmbito do art. 139º, 6, do CPC, o despacho ulterior, proferido em 1.ª instância, veio verificar o pagamento de multa com penalização e remeter para apreciação ao TRE essa Apelação 2, decorrente de convolação processual (que faz fls. 2 e ss dos autos de Reclamação).

O recurso de apelação 2 incide sobre o mérito do despacho de 1.ª instância proferido em 6/3/2018 no incidente respeitante ao “justo impedimento”, invocado pelo Apelante como fundamento para se ter praticado fora de prazo e legitimar a admissibilidade do requerimento de interposição do recurso de apelação 1. Este despacho – reitere-se, proferido em 6/3/2018, fls. 281 e ss dos autos principais – julgou improcedente o incidente por não se verificar o “justo impedimento” invocado. E, como sustentou o despacho da Senhora Juiz Relatora no TRE, a intempestividade do requerimento de interposição do recurso de apelação 1 é a consequência da decisão de julgar inexistente o justo impedimento (cfr. fls. 125v).

Uma vez convolado na plenitude dos seus efeitos, uma vez paga a multa e a penalização do 139º, 5 e 6, do CPC, recorde-se, ainda, que esse mesmo despacho da Senhora Juiz Relatora no TRE (transitado em julgado) enquadrou o fundamento recursivo na al. g) do art. 644º do CPC («Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: De decisão proferida depois da decisão final.»). Em condições processuais normais e não patológicas, a apelação seria autónoma, subiria em separado (art. 645º, 2, CPC) e com efeito devolutivo (art. 647º, 1, CPC). Atentas as circunstâncias, porém, em que o recurso de apelação é requerido juntamente com a invocação do “justo impedimento” que dá origem à decisão posterior objecto do recurso de apelação 2, o regime que mais se adequa a ambos os recursos é, porém, o da previsão do art. 644º, 3, do CPC, tal como se o despacho de indeferimento no incidente de “justo impedimento” fosse decisão intercalar que não admitisse recurso autónomo e devesse ser impugnada no âmbito do recurso interposto da decisão final (decisão interlocutória diferida e acessoriamente apelável)[1]. Ao fim e ao cabo, perante a convolação de Reclamação em Apelação, estamos perante uma decisão interlocutória de 1.ª instância atípica, a integrar e a admitir no recurso da decisão final[2].

Daqui surge a necessidade de tal matéria fazer parte de um só recurso de apelação – que assim deve ser tratado processualmente –, com as duas questões suscitadas pelos recursos de apelação 1 e apelação 2 a mereceram pronúncia hierárquica e conjunta pelo Tribunal da Relação: a questão referida ao incidente de “justo impedimento” e a(s) questão(ões) respeitante ao mérito da acção. Em particular, na medida em que a questão do “justo impedimento” era e é necessariamente questão prévia para se decidir da tempestividade da interposição e consequente admissão do recurso e conhecimento do mérito da decisão final escrutinada no recurso de apelação 1 – assim se preenchendo no caso a prescrição do art. 660º do CPC, como é sua condição adjectivo-processual[3].

2. A aqui Recorrente invoca expressamente a falta de pronúncia do acórdão recorrido sobre o julgamento do incidente de “justo impedimento”, suscitado pelo Mandatário do Réu aquando da interposição do recurso de apelação e remetido para decisão do TRE pelo despacho proferido em 19/10/2018. Assim se sustenta nas Conclusões 1. (in fine), 2. a 6., em referência ao (mais claramente) alegado a fls. 372 e ss, expressando então, em especial: “não estamos em presença de uma situação de justo impedimento, ou seja, de causa que tenha impossibilitado a prática atempada dos atos”; “dever-se-ia relevar de todo inútil e prejudicada a também pretendida apreciação do recorrido, quanto ao recurso da sentença proferida”, “impondo-se a sua revogação” (fls. 375-376, sublinhado nosso).
O certo é que, perante o despacho proferido em 19/10/2018 (fls. 337) para apreciação da Apelação 2, o acórdão recorrido, prolatado em 20/12/2018, não se pronuncia sobre a questão relativa ao incidente de justo impedimento, que deve ser considerada como questão intercorrente e prejudicial à resposta a dar no objecto da Apelação 1. Ora, tendo em conta essa natureza da questão recursiva levantada e pendente de decisão no que respeita ao incidente do “justo impedimento”, teremos que lançar mão do mesmo expediente processual reservado pela lei quando se julga procedente a “omissão de pronúncia” na decisão recorrida. Isto é, o art. 684º, 2 e 3, do CPC, funcionando o STJ como tribunal de cassação, com os devidos efeitos processuais, e ficando precludido o conhecimento do mérito do recurso. Além do mais, a falta de pronúncia do tribunal sobre questão prévia ao mérito do recurso – a montante – é equiparável – a jusante – à falta de apreciação de questão considerada prejudicada pela solução encontrada, uma vez revogado o acórdão recorrido: em ambas se impõe a remessa dos autos à Relação para que nesta se apreciem “em primeira mão as questões omitidas” (não aplicação do art. 665º do CPC por força do art. 679º)[4].

III. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em anular o acórdão recorrido e mandar baixar os autos ao Tribunal recorrido para que, pelos mesmos juízes se possível, profira nova decisão em que se conheça da apelação da decisão proferida a fls. 281 e ss, relativa ao incidente de “justo impedimento” invocado pela Recorrente.
Custas a cargo do Recorrido.

STJ/Lisboa, 2 de Junho de 2020


Ricardo Costa – Relator

Maria da Assunção Raimundo

Ana Paula Boularot

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[1] RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 644º, pág. 151.
[2] V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, págs. 217-218.
[3] Assim, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II cit., sub art. 644º, pág. 151 (“a Relação só conhece da impugnação das decisões interlocutórias, quando a infração cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento tenha interesse para o recorrente”).
[4] Para a fundamentação deste regime, para decisões tomadas em revista pelo STJ, na aplicação do art. 679º do CPC, que exclui a convocação do art. 665º («Regra da substituição ao tribunal recorrido»), em especial o n.º 2 (« Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.»), v. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 679º, págs. 425-426 (onde se encontra a citação), sub art. 684º, págs. 440-441 (reforçando o paralelismo com as nulidades fundantes de cassação). Concordante com esta leitura doutrinal e a sua solução: Ac. do STJ de 4/4/2017, processo n.º 5371/15.1T8OAZ.P1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.