RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
MATÉRIA DE FACTO
IDENTIDADE DE FACTOS
SUSPENSÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
INADMISSIBILIDADE
Sumário

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação … de 27/11/2020, proferido no processo nº 342/16.3IDAVR-AZ.P1-A, que correu termos no Juízo de Instrução Criminal de ... - Juiz …, da Comarca de …, que manteve a decisão da Juiz de Instrução Criminal, tendo sido interpretado que o art. 47º, nº 1, do RGIT não abarca o arguido funcionário não impugnante fiscal, e sido determinado que o processo-crime prossiga quanto a ele, ficando somente suspenso quanto à sua entidade patronal e aos gerentes desta, não obstante estarem com ele acusados em coautoria material, alegando que está em oposição com acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 342/16.3IDAVR-BA.P1, em 22/01/2020, transitado em julgado em 06 de fevereiro de 2020, e invocando o disposto no art. 437º, do CPP, nos seguintes termos:
«1. O acórdão fundamento foi também proferido em recurso nos mesmos autos principais do acórdão recorrido e teve como recorrente o arguido BB, transitou em julgado anteriormente ao acórdão recorrido, tendo corrido termos na Relação do Porto com o número de processo 342/16.3IDAVR-BA.P1 (do qual se junta cópia).

O acórdão fundamento revogou o despacho da Senhora Juiz de Instrução Criminal de … - Juiz … - Comarca de …, que tinha indeferido o pedido de suspensão do processo ao abrigo do nº 1 do art. 47º do RGIT, entendendo a Senhora Juiz que o facto do arguido não ser Impugnante no processo de impugnação fiscal não lhe permite "beneficiar da suspensão do processo, nos termos do preceituado no art. 47º do RGIT, pois que o que aí for apreciado e decidido não lhe aproveita, por não ser este impugnante em tais autos..." .

O acórdão fundamento revogou aquele despacho, sufragando o entendimento de que o nº 1 do art. 47º do RGIT é aplicável ao arguido apesar deste não ser Impugnante no processo de impugnação fiscal, determinando, por isso, a suspensão do processo crime até trânsito em julgado das impugnações fiscais pendentes.

JUSTIFICAÇÃO DA OPOSIÇÃO

Como já se disse, os dois acórdãos dizem respeito a dois recursos interpostos mos mesmos autos principais (Proc. 342/16.3IDAVR) e insurgem-se contra igual despacho da Senhora Juiz de Instrução Criminal de …-Juiz … — Tribunal Judicial da Comarca de …, que, nos dois casos, indeferiu o pedido de suspensão do processo ao abrigo do nº 1 do art. 47º do RGIT, com o mesmo fundamento, ou seja, entendendo que o facto de os arguidos não serem Impugnantes no processos de impugnação fiscal não lhes permite "beneficiar da suspensão do processo, nos termos do preceituado no art. 47º do RGIT, pois que o que aí for apreciado e decidido não lhe aproveita, por não ser este impugnante em tais autos...".
Os dois acórdãos têm por objecto uma situação fáctica idêntica e abordam a mesma questão jurídica, ou seja, a de saber se o nº 1 do art. 47º do Regime Geral das Infrações Tributárias, com a respectiva suspensão do processo, se aplica a funcionários da Impugnante das liquidações fiscais que com ela estão acusados em coautoria material pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada.
2 Quer o Recorrente no acórdão fundamento, quer o Recorrente no acórdão recorrido são funcionários das Impugnantes Fiscais e estão acusados em coautoria com elas pelo mesmo crime e pelos mesmos factos.

Sendo que quanto ao Arguido BB, no recurso que deu lugar ao acórdão fundamento, foi entendido que o nº 1 do art. 47º do RGIT se lhe aplicava, com a respectiva suspensão do processo crime, enquanto que no diz respeito ao aqui Recorrente foi determinado no acórdão recorrido que aquele preceito legal não se lhe aplica, com o consequente prosseguimento do processo crime.
Significa que neste caso concreto e no mesmo processo-crime, dois arguidos acusados do mesmo crime e pelos mesmos factos, vêm a mesma norma (nº 1 do arts 47º do RGIT) ser-lhes aplicada de forma diametralmente oposta.

No acórdão fundamento (do qual se junta cópia) foi revogada a decisão da Juiz de Instrução Criminal e, em consequência, foi aplicado o nº 1 do art. 47º do RGIT numa interpretação que abarca também o arguido funcionário da Impugnante Fiscal, determinando a suspensão do processo crime até trânsito em julgado da decisão final das impugnações fiscais apresentadas pela sua entidade patronal e coautoria no crime pelo qual ele está acusado.

No acórdão recorrido foi mantida a decisão da Juiz de Instrução Criminal e, em consequência, foi interpretado o nº 1 do art. 47º do RGIT no sentido que não abarca o arguido funcionário da Impugnante Fiscal, determinando que o processo-crime prossiga quanto a ele, sendo que o processo crime ficará apenas suspenso quanto à sua entidade patronal e aos gerentes desta, que com ele estão acusados em coautoria material.

CONCLUSÕES


1. É patente a oposição entre os acórdãos quanto à aplicação do nº 1 do art. 47º do RGIT a duas situações jurídica e factualmente iguais.
2. No acórdão fundamento foi revogada a decisão da Juiz de Instrução Criminal e, em consequência, foi aplicado o nº 1 do art. 47º do RGIT numa interpretação que abarca também o arguido funcionário da Impugnante Fiscal, determinando a suspensão do processo-crime até trânsito em julgado da decisão final das impugnações fiscais.
3. No acórdão recorrido foi mantida a decisão da Juiz de Instrução Criminal e, em consequência, foi interpretado o nº 1 do art. 47º do RGIT no sentido que não abarca o arguido funcionário da Impugnante Fiscal, determinando que o processo-crime prossiga quanto a ele, sendo que o processo crime ficará apenas suspenso quanto à sua entidade patronal e aos gerentes desta, que com ele estão acusados em coautoria material.

4.  As situações são jurídica e factualmente iguais; aliás os dois acórdãos foram proferidos no mesmo processo-crime e no que diz respeito a um despacho igual.

5. A oposição patente entre as duas decisões fundamenta o presente recurso.
6. Consequentemente, salvo melhor opinião, é necessária a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para dirimir este conflito jurisprudencial, fixando assim jurisprudência.
7. O Recorrente preconiza que o conflito deve ser dirimido no sentido do nº 1 do art. 47º do RGIT ser aplicado numa interpretação que abarca também o arguido funcionário da Impugnante Fiscal, determinando a suspensão do processo-crime até trânsito em julgado da decisão final das impugnações fiscais.

Termos em que se requer a Vªs Exas a admissão do recurso, prosseguindo os seus ulteriores termos, e, a final, que seja dirimida oposição de julgados com a competente fixação de jurisprudência, no sentido propugnado.

Junta: cópia do acórdão fundamento».
2. A Exmª Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu Parecer, no sentido da rejeição do recurso, nos seguintes termos: (transcrição)

(...)

«D - APRECIAÇÃO

D.1 - DA TEMPESTIVIDADE DO RECURSO
Conforme resulta do teor da certidão remetida pela …Secção do Tribunal da Relação …, o acórdão recorrido foi proferido em 20/11/2019, tendo sido notificado ao Ministério Público, por termo electrónico nos autos em 20/11/2019, e notificado na mesma data, ao Ilustre Mandatário do recorrente AA, por via electrónica.

O recorrente AA interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo sido proferida decisão sumária em 04/03/2020, que foi notificada ao Ministério Público em 05/03/2020, por termo nos autos, e que foi notificada na mesma data ao Ilustre Mandatário do recorrente, por via postal registada.
O recorrente AA reclamou da decisão sumária, tendo o Tribunal Constitucional proferido acórdão, em sede de reclamação para a conferência, em 23/06/2020, que foi notificado ao Ministério Público em 24/06/2020, por termo nos autos; e notificado na mesma data, ao Ilustre Mandatário do recorrente, por via postal registada.

O acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional transitou em julgado em 09/07/2020, e o requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, e respectiva motivação, deu entrada em 14/09/2020 (via email).
O art. 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), dispõe que à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil.
E, o art. 80º, nº 4, da citada LTC, dispõe que “Transitada em julgado a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários (...) ”.
O prazo para interposição do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar -cfr. o art. 438º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, sendo que as decisões judiciais consideram-se transitadas em julgado, logo que não sejam susceptíveis de recurso ordinário.

Assim, tendo o acórdão recorrido sido objecto de recurso directo para o Tribunal Constitucional e não sendo susceptível de recurso ordinário, o mesmo transitou em julgado em 09/07/2020.
O recurso para fixação de jurisprudência e respetiva motivação interposto pelo recorrente AA foi recebido, via email, em 14/09/2020, encontrando-se preenchido o pressuposto enunciado no artº 438º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.

Com efeito, estabelece o artigo 138.º do Cód. Proc. Civil, sob a epígrafe “Regra da continuidade dos prazos”, aplicável por força do disposto no art. 104º, do Cód. Proc. Penal que:
1- O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes”.

2- Quando o prazo para a prática do acto processual terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o 1º dia útil seguinte.
Face ao exposto, considera-se tempestivamente interposto o presente recurso, por quem tinha legitimidade para o efeito, estando reunidos todos os pressupostos legais para a sua admissibilidade e para a sua apreciação.

D.2 - DO RECURSO

Passando à emissão de parecer sobre a admissibilidade do presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência entende-se que o mesmo não preencherá os requisitos enunciados no art. 437º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, por não se estar perante uma identidade dos factos contemplados nas duas decisões.
E, para sustentar este nosso entendimento, começaremos por citar parte do sumário do Ac. STJ de 30/10/2019, in Proc. nº 324/14.0TELSB-N.L1-D.S1, acessível em www.dgsi.pt., que nos diz que:
“ (...) XII - No que respeita aos requisitos legais (decisões opostas proferidas sobre a mesma questão de direito e identidade de lei reguladora - requisitos resultantes directamente da lei), a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de forma uniforme e pacífica, aditou, de há muito e face ao disposto então no artigo 763.º do Código de Processo Civil, a incontornável necessidade de identidade dos factos contemplados nas duas decisões e de decisão expressa, não se restringindo à oposição entre as soluções ou razões de direito.

XIII - A exigência de soluções antagónicas pressupõe identidade de situações de facto, pois não sendo elas idênticas, as soluções de direito não podem ser as mesmas.
XIV - A oposição tem de ser expressa, e não meramente tácita, e incidir sobre a decisão, e não apenas sobre os seus fundamentos, e pressupõe igualmente uma identidade essencial da situação de facto de ambos os acórdãos em confronto.
XV - A expressão “soluções opostas” pressupõe que em ambas as decisões seja idêntica a situação de facto, com expressa resolução da questão de direito e que a oposição respeite às decisões e não aos fundamentos”.
XVI - Não se justifica a intervenção de uniformização do STJ quando questões distintas no plano factual receberam diversas soluções de direito (...) ”, (sublinhado nosso).

Temos assim que para a admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência torna-se necessário que cumulativamente se verifique a existência de soluções opostas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento relativamente à mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, com uma identidade das situações de facto contempladas nas decisões em confronto; e que os julgados explícitos ou expressos versem sobre situações de facto idênticas.

Ora, no caso em apreço, temos que a decisão recorrida e a decisão fundamento partem de diferentes realidades de facto e não fixam soluções diferentes para a mesma questão de direito.

Com efeito, as decisões em confronto foram tomadas com base em situações de facto diferentes, não se podendo afirmar-se estarmos perante a existência de oposição de acórdãos para os efeitos do disposto no art. 437º, nº 2, do Cód. Proc. Penal.
No caso, para apurar se estamos perante situações de facto idênticas para efeitos de recurso de fixação de jurisprudência teremos que analisar a matéria de facto fixada em cada um dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação ..., não obstante a questão em debate se prender em ambos os casos com a aplicação da suspensão do processo-crime a um funcionário acusado em co-autoria de um crime de fraude fiscal qualificada, conjuntamente outros arguidos que deduziram impugnações judiciais junto do respectivo TAF, e a quem lhes foi concedida esta suspensão ao abrigo do art, 47º, nº 1, do RGIT, tendo também sido concedida nos mesmos termos a um funcionário que não deduziu impugnação - caso do acórdão fundamento - e não o tendo sido a um outro funcionário que também não deduziu impugnação - caso do acórdão recorrido.
Contudo, após uma análise de ambas as situações verifica-se que a decisão da admissibilidade e a decisão da não admissibilidade da suspensão do processo-crime, nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, fundamenta-se em pressupostos distintos.

Assim, no âmbito do acórdão fundamento, a admissibilidade da suspensão do processo-crime nos termos do art. 47°, n° 1, do RGIT, até trânsito em julgado das decisões finais nos processos de impugnação judicial tributária (Proc. nº 1026/19.6 ..., e Proc. nº 1024/10.0 ... do TAF ...), prendeu-se com o facto de ter sido entendido que a decisão resultante de tal impugnação poderá afectar o aí recorrente BB, por se verificar também quanto a si uma relação de prejudicialidade.

E, no âmbito do acórdão recorrido, a não admissibilidade da suspensão do processo-crime nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, prendeu-se com o facto de ter sido entendido que o recorrente AA não será afectado/ prejudicado pela decisão que vier a ser proferida nos processos de impugnação judicial tributária (Proc. nº 375/19.8… e Proc. nº 376/19.6…, do TAF de …), uma vez que o que aí se discute nem sequer é decisivo para o processo-crime, no que concerne à existência de fraude fiscal e sua configuração, nem para a escolha e medida da pena a aplicar, já que tal impugnação destina-se à correcção da liquidação de IVA e IRC, não tendo qualquer relevo para apurar da conduta ilícita que lhe é imputada.
Face ao exposto, entende-se não estar preenchido o pressuposto de natureza substantiva, a que alude o art. 437º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, para que o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência possa ser aceite, pelo que somos de parecer que o mesmo deverá ser rejeitado, por não se verificar uma oposição de julgados, nos termos do art. 441 º, nº 1, do Cod. Proc. Penal».

3. Com dispensa de Vistos, foram os autos à Conferência.


***

II. FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto relevante para a decisão do presente recurso é a seguinte: 1. No processo nº 342/16.3IDAVR a correr termos pelo Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, da Comarca de …, o arguido AA, ora recorrente, requereu a suspensão do processo penal ao abrigo do disposto no art 47º do RGIT, alegando que a acusação fundamenta-se em factos alegadamente praticados enquanto funcionário e técnico oficial de contas da “S…”.

Alega ainda que corre termos o processo nº 375/19.8… no Tribunal Administrativo e Fiscal de …, intentado pela sociedade arguida “S…”, no qual se discutem os alegados factos pelos quais o arguido está acusado neste processo.

Assim, pretende o arguido ser abrangido pela suspensão do processo a que alude o art. 47º do RGIT, apesar de não constar como impugnante.
O Mº Pº tomou posição no Despacho de fls. 8186 e segs., promovendo o indeferimento da pretensão do arguido.

A Mmª Juíza de Instrução Criminal indeferiu o pedido de suspensão do processo penal, requerida pelo arguido AA, com os seguintes fundamentos: (...)

«Dispõe o art. 47°, nº1, do RGIT que “Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.

Compulsados os presentes autos decorre que o processo supra identificado que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de … consiste, de facto, numa impugnação judicial intentada pela sociedade “S…”.

O arguido AA encontra-se acusado não como representante legal desta sociedade, mas sim, como o mesmo refere, como seu trabalhador e TOC

O arguido requerente AA não figura como impugnante, pelo que a suspensão dos autos a si não aproveita.

Veja-se, neste sentido o Acórdão da Relação do Porto, de 03.07.20 13, disponível em www.dgsi.pt. nos termos do qual:

“1 - Do art.° 47° do RGIT resulta que, ocorrendo impugnação judicial de determinada situação tributária, o processo penal tributário suspende-se até ao trânsito em julgado, constituindo essa decisão caso julgado material no processo penal tributário;

II - Tal situação só faz sentido havendo repercussão de um processo no outro – causa prejudicial -, pelo que o objecto de ambos tem de ser o mesmo ou estar numa relação de dependência directa e necessária;

III - Sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo, é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo”.

A impugnação judicial tem um carácter individual e pessoal, pelo que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio.

De facto, o caso julgado formado pela decisão proferida em processo tributário ocorre apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram (cfr. art. 48° do RGIT), pelo que apenas se verifica em relação aos impugnantes, perante os quais tal decisão faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados/arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam, por isso, abrangidos pelo caso julgado.

De igual forma, no Acórdão do TR do Porto, de 06.06.2012, in www.dgsi.pt refere-se a este propósito que “O carácter individual da suspensão do processo ou prazo de investigação (que suspende de igual modo o prazo de prescrição) (art° 21° RGIT e 15° RJIFNA) parece também emergir do disposto no art° 42° RGIT e 43° RJIFNA, ao impor a suspensão do prazo de conclusão dos actos de inquérito, enquanto não for proferida decisão sobre a situação tributária do investigado, sendo também esta investigação de carácter individual.

E por outro lado cremos como no Acórdão da RP de 28/03/2012, processo 22/07.OIDAVR- A.PI, in www.dgsi.pt que: “A suspensão do processo penal fiscal (4771 RGIT) em consequência de uma impugnação judicial só reveste caráter obrigatório se a mesma for absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (crime fiscal ou tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com caráter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal.” por só assim se encontrar legitimada, através da adequação e proporcionalidade, a restrição do direito do arguido à prescrição do procedimento criminal, pelo decurso do prazo previsto na lei penal”.

Não poderá, pois, o arguido beneficiar da suspensão do processo, nos termos do preceituado no art. 47° do RGIT, pois que o que ai for apreciado e decidido não lhe aproveita, por não ser este impugnante em tais autos, como supra referido.

Assim, com tal fundamento, indefere-se o requerido».

Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs recurso em 08 de julho de 2019, e por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20 de novembro de 2020, foi negado provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida,  com os seguintes fundamentos, na parte que aqui releva:

«2.1. Objeto do recurso:

(...)

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a única questão a apreciar e decidir é então a de se saber se, sendo vários os arguidos no mesmo processo acusados em coautoria material, pelos mesmos factos, da prática de um crime de fraude fiscal qualificada, e tendo um deles deduzido impugnações judiciais contra as liquidações adicionais de IRC e IVA, pode o arguido recorrente beneficiar da suspensão do processo nos termos do art. 47° do RGIT, mesmo não tendo deduzido impugnação judicial na qual se discute a situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados.

2.2. Apreciação do recurso.
A Mmª. Juiz de Instrução indeferiu a suspensão do processo conforme requerida pelo recorrente, por entender que o arguido não pode dela beneficiar, nos termos do art 47º, do RGIT, porquanto o que vier a ser decidido na impugnação judicial não lhe aproveita, por não ser impugnante nos aludidos autos.

E o recorrente pede que seja revogada esta decisão, e substituída por outra que mande suspender o processo nos termos do art. 47° do RGIT, sendo a questão axial do recurso, decorrente do próprio despacho recorrido, a de saber se o assinalado dispositivo legal, com a respectiva suspensão do processo, só se aplica ao impugnante das liquidações fiscais ou se abrange terceiros não impugnantes dessas liquidações, nomeadamente o recorrente.

Vejamos então.
Além das circunstâncias de facto já expostas no despacho recorrido, haverá ainda de se considerar as seguintes circunstâncias extraídas dos autos

a) O arguido AA (141) foi acusado nos referidos autos da prática, em coautoria material e na forma consumada de um crime de fraude fiscal qualificada p. p. pelos arts 103° e 104°, n° 2, al. a), e n° 3, do RGIT (NUIPC131/l2.8… — S… — Sociedade …, Lda.) — cfr. pág. 566 verso.
b) O arguido AA foi acusado enquanto técnico oficial de contas de contas da “S… — Sociedade …., Lda.”, em coautoria material com esta e os alegados gerentes da mesma, também arguidos nos autos, por, em resumo, lançar contabilisticamente custos fictícios referentes a serviços de transporte de apara broca (circuito .1 documental falso) - cfr. itens 961 a 966 e 991 a 994 da acusação.
c) A arguida “S… — Sociedade …, Lda.” (140) foi acusada nos referidos autos da prática, em co-autoria material, na forma consumada e em concurso real de infracções de:


1. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103° e 104°, n° 2, ai. a) e n° 3 e art. 7° do RGIT (NUIPC131/12.8… — V…, Lda.)
2. Um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103° e 104°, n° 2, ai. a) e n° 3 e art. 7° do RGIT (NUIPC131/12.8… — S… — Sociedade …, Lda.)

d)  Conforme consta de fls. 632 e ss. e 657 e ss. da presente certidão, correm termos os processos de impugnação judicial 375/19.8… e 376/19…., no Tribunal Administrativo e Fiscal de … intentados ambos pela sociedade “S… — Sociedade …, Lda.” (nesses processos visa-se a correção das liquidações adicionais de IRC e IVA, resultantes da inspeção tributária de que foi alvo, com fundamento na veracidade das faturas apresentadas).

Avançando para a apreciação do recurso:
O crime fiscal implica um juízo prévio sobre factos e direito de natureza fiscal que será suporte de um juízo penal. Pelo que, no processo penal fiscal surgem frequentemente questões prejudiciais de natureza fiscal.
Sendo certo que o art° 7° do Código de Processo Penal consagra o princípio da suficiência do processo penal de forma ampla ao dispor que:
“1. O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.

O princípio da suficiência do processo penal consiste na competência do tribunal penal para decidir todas as questões prejudiciais penais e não penais que interessarem à decisão da causa, e tem por escopo essencial dar condições para o normal processamento dos autos penais, permitindo a concentração e continuidade processuais em prazo razoável.

Em suma, o fundamento do princípio repousa em evitar-se, por um lado, a contradição de julgados e, por outro, que o exercício do “jus puniendi” do Estado seja paralisado.

Como ensina Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, volume 1, Coimbra, 1974, a pág.164, “O fundamento que subjaz a um tal princípio não é difícil de intuir: se não se contivesse dentro dos mais apertados limites a possibilidade de o processo penal ser sustido ou interrompido — e, em todo o caso, fracturado pelo simples surgimento nele de uma questão (penal, ou sobretudo, não penal) susceptível de uma cognição judicial autónoma, pôr-se-iam em sério risco as exigências, compreensíveis e relevantíssimas, de concentração processual ou de continuidade do processo penal; e permitir-se-ia que, por este modo, se levantassem indirectamente obstáculos ao exercício daquele processo (...) “.
E as questões prejudiciais são aquelas que, possuindo objecto — ou até natureza — diferente do da questão principal do processo em que surgem, e sendo susceptíveis de constituírem objecto de um processo autónomo, são de resolução prévia indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal, dependendo o sentido deste conhecimento da solução que lhes for dada.

Esse princípio geral, todavia, que não impede o tribunal de suspender o processo para que o tribunal com competência específica decida qualquer questão não penal essencial para se conhecer da existência de um crime e que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal. Tal excepção ao princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art.7°, no. 1, do CPP, está prevista no seu n° 2, “Quando para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal, que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente.”

Assim, quando o tribunal penal entender que é necessário decidir a questão prejudicial num tribunal não penal o processo deve ser suspenso para que o tribunal competente decida.
É o que sucede quando estamos perante matéria que apresenta particulares especificidades como sucede em relação aos crimes penais fiscais, o que se depreende da simples leitura dos artigos 21º, nº 4, 42º e 47º do RGIT.
Neste domínio, o princípio da suficiência do processo penal não tem a amplitude que se lhe reconhece para os restantes crimes (por referência a questões prejudiciais cíveis ou administrativas, por exemplo), havendo mesmo quem veja nos artigos 42° e 47° desse diploma uma excepção à suficiência penal, chegando até a defender-se a imperatividade da suspensão do processo penal tributário face à leitura do artigo 42°, n° 2 e 47°, n° 1 citados -cfr. Jorge dos Reis Bravo, in “Prejudicialidade e “adesão” em processo penal tributário”, revista do M.P., ano 29, n° 115 — Jul-Set 2008, págs. 103-116 (89-130).

Prosseguindo:
Estatui o art. 47.°, n° 1 da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), sob a epígrafe «Suspensão do processo penal tributário» que “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças”.
Resulta assim deste normativo que ocorrendo impugnação judicial sobre determinada situação tributária, o processo penal tributário suspende-se até ao trânsito em julgado, valendo a decisão caso julgado no processo penal tributário (art° 48 RGIT) constituindo assim como que causa prejudicial a resolver no processo administrativo fiscal contencioso.
Claro que tal situação só faz sentido havendo repercussão de um processo no outro/causa prejudicial, pelo que o objecto de ambos tem de ser o mesmo ou estar numa relação de dependência directa e necessária.

Ora, como se destacou supra, nesses processos de impugnação tributária que a sociedade “S…  — Sociedade …,   Lda.”   intentou visa-se a correção das liquidações adicionais de IRC e IVA, resultantes da inspecção tributária de que foi alvo.
E tais impostos são relativos á aludida sociedade e só ela os impugnou, importando ainda assim saber se a suspensão que requereu e lhe foi concedida a suspensão do processo lhe é ou deve ser aplicável. (sublinhado e realce nosso)

Não desconhecemos que a resposta não é unânime nem única.
Mas, não podemos deixar de sufragar o entendimento acolhido na decisão recorrida de que a impugnação tributária apenas suspende o processo em relação aos impugnantes.
Tal questão tem vindo a ser debatida a nível jurisprudencial, sobretudo a propósito da questão do prazo prescricional, ou seja, se só em relação aos impugnantes se suspende o aludido prazo.

E o carácter individual e pessoal da acção do impugnante é inquestionável, como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso apresentada no tribunal a quo, pois que apenas pode condicionar os efeitos da sua acção em relação a si mesmo, e não em relação a quem não é parte na impugnação, nem nela interveio, sendo esta uma característica intrínseca do efeito do caso ‘‘ julgado das decisões judiciais, que só produzem efeito, em regra, perante quem é parte na causa ou nela interveio. E acrescenta, efectivamente, o caso julgado formado pela decisão proferida em processo tributário ocorre apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram (cfr. art°. 48° do RGIT), pelo que apenas se verifica em relação aos impugnantes perante os quais tal decisão faz caso julgado e não perante quaisquer outros eventuais interessados/arguidos que nesse processo não intervieram, que não ficam, por isso, abrangidos pelo caso julgado.

E não se argumente com a letra do art. 47º do RGIT que estatui “... .o processo penal tributário suspende-se até.. ..“ de onde poderia inferir-se o contrário, por se referir a todo “o processo penal tributário”, pois que tal circunstância é desde logo contrariado pela referencia ás “respectivas sentenças” o que sugere desde logo a existência de diversos arguidos e diversas impugnações ou oposições (pois o uso do plural, para significar outra coisa era desnecessário).
Acresce que o carácter individual da suspensão do processo ou prazo de investigação (que suspende de igual modo o prazo de prescrição (art° 21° RGIT) parece também emergir do disposto no art° 42° RGIT, ao impor a suspensão do prazo de conclusão dos actos de inquérito, enquanto não for proferida decisão sobre a situação tributária de investigado sendo também esta investigação de carácter individual.

Neste apontado sentido, veja-se o decidido nos Acórdãos desta Relação de 20/5/2009 nos termos do qual “Sendo vários os arguidos no mesmo processo, e tendo uns impugnado a liquidação tributária e outros não, a suspensão da prescrição prevista no art. 47° do RGIT não ocorre em relação aos arguidos que não impugnaram essa liquidação.”. O que foi reafirmado pelo Acórdão de 5/1/20 onde se lê “Com efeito, apesar de estarmos, nos presentes autos, no domínio de um crime plurisubjectivo ou de comparticipação necessária, é inequívoco que a prescrição do procedimento criminal reveste, nitidamente, natureza individual. Ora, assim sendo, a suspensão da prescrição emergente da suspensão do processo penal tributário há-de, respeitar, exclusivamente, ao(s) impugnante(s) — e não a quaisquer outros. Desta sorte, conclui-se que a suspensão da prescrição surge inaplicável a quem não figure como impugnante daí que não seja a mesma extensível ao recorrente. A causa da suspensão não pode ser aplicável senão ao arguido que tenha apresentado a impugnação judicial”, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Por conseguinte, a suspensão do processo visa essencialmente solucionar questões de decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal - como resulta do art. 21º , n 4 do RGIT, - e como se escreve no citado aresto de 20/5/2009 e “cumprindo o disposto no art. 47° do RGIT e as normas idênticas que o precederam, por um lado, a missão de garantir a receita fiscal do Estado e, por outro, a de obstaculizar a que a dedução da impugnação possa favorecer o surgimento da prescrição do procedimento criminal, dúvidas não restarão de que só poderá ser aplicável aos subscritores da impugnação e não as quaisquer outros que com eles possam ter tido uma ligação, ainda que incidental, como sejam os que lhes forneceram as facturas, pois que a prescrição é inelutavelmente a nosso ver uma questão estritamente pessoal; e assim sendo e “sendo a impugnação estritamente pessoal, não pode ela beneficiar ou prejudicar terceiros sob pena de, assim não acontecendo, se poder vir a responsabilizar outrem pela prática de factos alheios, o que, de todo em todo é proibido no âmbito do direito penal e respectivo processo”, e por só assim se encontrar legitimada, através da adequação e proporcionalidade, a restrição do direito do arguido á prescrição do procedimento criminal, pelo decurso do prazo previsto na lei penal ” — cfr. Acórdãos também desta Relação de 6/6/2012 e de 3/7/2013 convocados na decisão recorrida, ambos também disponíveis em www.dgsi pt

Para além de tudo isto há que ponderar ademais que quem pode impugnar a liquidação do imposto(s) é a sociedade devedora, no caso a sociedade “S… — Sociedade …, Lda.” e que tal liquidação é apenas do conhecimento desta e dos seus gerentes, pelo que obviamente o arguido aqui recorrente, simples funcionário daquela, não tem nem pode ter conhecimento da liquidação e legitimidade para a impugnação, donde não pode ser impugnante, e assim sendo também por esta via não pode o processo penal tributário ser, por força do disposto no art 47º RGIT suspenso em relação a ele, pois não será afectado/ prejudicado pela decisão que vier a ser proferida na impugnação (apenas eventualmente beneficiado), sendo certo que o que se discute em sede de impugnação judicial tributária nem sequer é decisivo para o processo de natureza criminal criminal, concretamente no que concerne à existência de fraude fiscal e sua configuração nem para a escolha e medida da pena a aplicar.
Assim a impugnação judicial apenas determina a suspensão do processo penal fiscal em relação ao impugnante e em relação aos directamente afectados como seja o seu gerente, a não ser que circunstancias particulares imponham outra solução, o que de todo não se vislumbra, tanto quanto é certo que o resultado da impugnação judicial fiscal para correcção da liquidação de IVA e IRC não tem qualquer relevo para se apurar da conduta ilícita imputada ao arguido ora recorrente. (sublinhado e realce nosso)

Nesta sequência, concluiu acertadamente a decisão recorrida ao afirmar que o arguido requerente AA porque não figura como impugnante, não pode beneficiar da suspensão do processo nos termos do preceituado no artigo 470, n° 1 do RGIT, e em consequência indeferiu o pedido de suspensão por aquele formulado.
Pelo exposto a pretensão recursiva do recorrente é improcedente, sendo de confirmar a decisão recorrida».
2. No processo nº 342/16.3IDAVR-BA o arguido BB foi acusado pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, enquanto funcionário e responsável pelo tratamento e emissão de faturas da Sociedade "V…, Lda.", em coautoria material com esta sociedade, com os respetivos gerentes e demais arguidos, requereu a suspensão do processo-crime, ao abrigo do art. 47º do RGIT, face às impugnações judiciais deduzidas por esta Sociedade contra as liquidações adicionais de IRC e de IVA referentes aos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013, a quais deram origem ao Proc. nº 1026/19.6 …, e ao Proc. nº 1024/19.0 …, a correr termos pelo TAF …, tendo tal pedido de suspensão sido indeferida pela Mmª Juíza de Instrução Criminal.
Inconformado com este despacho o arguido BB interpôs recurso, para o Tribunal da Relação …, requerendo a substituição do despacho recorrido, por outro que ordene a suspensão do processo em relação ao recorrente.
Por acórdão do Tribunal da Relação …, proferido no âmbito do processo nº 342/16.3IDAVR-BA.P1, em 22/01/2020, foi concedido provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos, na parte que aqui releva:

(...)

«Vejamos:

No Proc. 342/16.3IDAVR-AX.P1, em que figurava como recorrente CC, estando em causa o processo interposto pela “M…. Unipessoal, LDA ”, para correção da liquidação de IVA, de que o mesmo não era representante legal, ou funcionário, foi considerado não se verificar uma verdadeira questão prejudicial cuja resolução se impusesse prévia e indispensavelmente.
Isto, tendo presente que questão prejudicial não penal em processo penal, é aquela que tendo um objecto diferente daquele que constitui a questão principal do processo penal em que surge, a sua resolução prévia surge como indispensável para o conhecimento da questão principal.
Ou seja, é aquela que, pertencendo a outro ramo do Direito, se mostra necessário decidir previamente e para poder resolver a que é objecto do processo penal.

Neste caso, os pressupostos de facto não são idênticos.

O aqui recorrente era funcionário da sociedade que figura como impugnante nos dois processos de impugnação tributária que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal d…, cuja prejudicialidade se invoca, sendo responsável pelo tratamento e emissão de facturas da sociedade “V…., Lda.”, presumindo-se que agia por conta e no interesse daquela.
Acontecendo que foi decidida a suspensão do processo em relação não só à sociedade, como aos gerentes V… e I…, acusados em co-autoria com o aqui recorrente, da prática do crime de fraude fiscal qualificada aqui em causa.
Assim, e sob pena de se cair na situação absurda invocada no recurso, tem de se considerar que tal relação de prejudicialidade também se verifica em relação ao recorrente.

Consequentemente, o recurso merece provimento.

Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se o Despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que declare a suspensão provisória do processo em relação ao aqui recorrente BB, nos termos do artigo 47 n°1 do RGIT, até trânsito em julgado das decisões finais nos dois processos de impugnação judicial identificados nos autos».

II. O DIREITO

O art. 437º, do CPP, sob a epígrafe “Fundamento do Recurso”, consagra o seguinte:
«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar».
«2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação,  ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3     Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5   O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.'

Relativamente à interposição, o art. 438.º do mesmo Código estabelece: “1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com

0  qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 - ...".
Como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal, «Destes preceitos extrai-se, tal como vem afirmando insistente e uniformemente a jurisprudência1, que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de um conjunto de pressupostos - uns de natureza formal e outros de natureza substancial.

São de natureza formal:
- A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;
- A identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento) e, se este estiver publicado, o lugar da publicação;

- O trânsito em julgado de ambos os acórdãos;

1 Cfr. AC do STJ 12/12/18 no processo nº 906/14.0PFLRS-A.L1-A.S1, Relator Fernando Samões, e jurisprudência
ali citada, «Nomeadamente, os acórdãos do STJ de 9/10/2013, no processo 272/03.9TASX, e de 20/11/2013, no
processo 432/06.0JDLSB-Q.S1, da 3ª Secção; de 13/7/2009, no processo 1381/04.2TAOER.L1-B.S1 e de
22/9/2016, no processo 43/10.6ZRPRT.P1-D.S1, da 5.ª Secção; de 20/12/2017, no processo n.º 125/ 15.8T9PFR.P1-
A.S3, de 21/6/2017, no processo n.º 2644/09.6TABRG.G1-B.S1 e de 22/3/2017, no processo n.º
6275/08.0TDLSB.L3-B.S1, estes também da 3 ª Secção e disponíveis em
www.dgsi.pt

- A justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência; e
- A legitimidade do recorrente, restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis.

Constituem pressupostos de ordem substancial:
- A verificação de identidade da legislação à sombra da qual os acórdãos foram proferidos;
- As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar “soluções opostas” para a mesma questão fundamental de direito;
-   A questão decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e

-  Haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito, pois só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.

Este último pressuposto, embora não esteja previsto expressamente na lei, resulta da necessidade de tal identidade para aferir da oposição sobre a mesma questão de direito.

Por isso, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito, como foi referido no acórdão deste Tribunal, processo n.º 4042/06 - 3.ª Secção, de que nos dá notícia o acórdão do mesmo Tribunal e Secção, de 20/10/2011, proferido no processo n.º 1455/09.3TABRR.L1-A.S12.

O mesmo pressuposto da identidade fáctica tem vindo a ser exigido, de forma unânime, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal3.

Importa, pois, que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes para poder desencadear a aplicação das mesmas normas e relevar na definição da oposição das soluções encontradas.
A exigência de uma identidade das situações de facto nos dois acórdãos em conflito decorre de só com ela ser possível estabelecer uma comparação que permita concluir que, relativamente à mesma questão de direito, existem “soluções opostas”, como pressupõe o n.º 1 do citado art.º 437.º.

Além disso, a questão decidida em termos contraditórios deve ter sido objeto de decisões expressas.

Como se lê no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal, de 10 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 583/02.0TALRS.C.L1.A.S14, “[a] oposição relevante de acórdãos só se verifica quando, nos acórdãos em confronto, existam soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposição de fundamentos ou de afirmações, soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário», sendo que «[a]s soluções de direito devem reportar-se a uma mesma questão fundamental de direito, no quadro da mesma legislação aplicável e de uma mesma identidade de situações de facto”.

Acresce que “[s]endo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário e, por isso, excecional, é entendimento comum deste Supremo Tribunal (v. desde logo o Ac. de 23 de Janeiro de 2003, processo n. 1775/02-5ª), que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso, deve fazer-se com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) por essa excecionalidade”5.

No caso subjudice o recorrente veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação do Porto de 27 de novembro de 2020, proferido no processo nº 342/16.3IDAVR-AZ, a correr termos pelo Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, da Comarca …, que lhe negou a suspensão do processo crime, ao abrigo do art. 47° do RGIT, por não ter deduzido impugnação judicial, considerando que o acórdão recorrido está em oposição com acórdão do Tribunal da Relação … proferido no processo nº 342/16.3IDAVR-BA.P1, em 22 de janeiro de 2020 sendo este o apresentado como acórdão fundamento.

O presente recurso foi interposto em tempo, pelo arguido que tem legitimidade, para o efeito. (art. 446º nº 1 e 2 do CPP).

O recorrente justificou a oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que, no seu entender, motiva o conflito de jurisprudência.
Assim sendo, mostram-se preenchidos os pressupostos de natureza formal de admissibilidade do recurso.

Relativamente aos pressupostos de ordem substancial, os mesmos não se verificam.

Com efeito, as decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, não partiram de idêntica situação de facto.

O que está em causa nos presentes autos é a aplicação do art. 4, do RGIT, sob a epígrafe “Suspensão do processo penal tributário”, o qual consagra o seguinte:

«1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças.

2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie».

Ora, no acórdão recorrido o que foi considerado para que não fosse concedida a suspensão do processo, nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, foi a circunstância de o recorrente AA encontra-se acusado não como representante legal desta sociedade, mas sim, como seu trabalhador e TOC, “(...) não tem nem pode ter conhecimento da liquidação e legitimidade vara a impugnação, donde não pode ser impugnante, e assim sendo também por esta via não pode o processo penal tributário ser, por força do disposto no art° 47° RGIT suspenso em relação a eleí...)":

(…) nesses processos de impugnação tributária que a sociedade “S… — Sociedade …, Lda.” intentou, visa-se a correção das liquidações adicionais de IRC e IVA, resultantes da inspecção tributária de que foi alvo.

E tais impostos são relativos á aludida sociedade e só ela os impugnou, importando ainda assim saber se a suspensão que requereu e lhe foi concedida a suspensão do processo lhe é ou deve ser aplicável. (

O recorrente AA foi acusado de lançar contabilisticamente custos fictícios referentes a serviços de transporte de apara broca (circuito documental falso), e a Sociedade S… foi acusada da prática, em coautoria material de dois crimes de fraude fiscal qualificada.

A Sociedade S… deduziu impugnações judiciais contra as liquidações adicionais de IRC e IVA, resultantes da inspeção tributária de que foi alvo, com fundamento na veracidade das faturas apresentadas, que deram origem ao Proc. nº 375/19.8… e ao Proc. nº 376/19.6…, a correr termos no TAF de … .

Ora, foi igualmente entendido que recorrente AA “(…) não será afetado/ prejudicado pela decisão que vier a ser proferida na impugnação (apenas eventualmente beneficiado), sendo certo que o que se discute em sede de impugnação judicial tributária nem sequer é decisivo para o processo de natureza criminal, concretamente no que concerne à existência de fraude fiscal e sua configuração nem para a escolha e medida da pena a aplicar (…) e que “(…) a impugnação judicial apenas determina a suspensão do processo penal fiscal em relação ao impugnante e em relação aos diretamente afetados como seja o seu gerente, a não ser que circunstancias particulares imponham outra solução, o que de todo não se vislumbra, tanto quanto é certo que o resultado da impugnação judicial fiscal para correção da liquidação de IVA e IRC não tem qualquer relevo para se apurar da conduta ilícita imputada ao arguido ora recorrente (…).

No acórdão fundamento considerou-se que o aí recorrente BB “(...) era funcionário da sociedade que figura como impugnante nos dois processos de impugnação tributária que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal …, cuja prejudicialidade invoca, sendo responsável pelo tratamento e emissão de faturas da sociedade "V…, Lda.", presumindo-se que agia por conta e no interesse daquela (...)”. Também foi entendido que tendo sido decidida a suspensão do processo-crime em relação à Sociedade “V…, Lda." e aos seus gerentes V… e I…, que foram acusados em coautoria com o aí recorrente BB, da prática do crime de fraude fiscal qualificada, a decisão resultante da impugnação judicial fiscal nos dois processos do TAF … poderá afetar este último, por se verificar uma relação de prejudicialidade também em relação a si, tendo sido deferida a requerida suspensão do processo-crime, nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, até trânsito em julgado das decisões finais nestes dois processos de impugnação judicial.

Como supra se referiu um dos fundamentos de ordem substancial para que haja oposição de julgados, para os efeitos do art. 438º, nº 2 do CPP, é que a questão decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito.
No caso em apreço, não há identidade quanto à situação factual e não há conflitualidade entre a solução de direito adotada num e noutro.

Com efeito, ao invés, tal como bem salienta a Exmª PGA junto deste Supremo Tribunal, «(...), após uma análise de ambas as situações verifica-se que a decisão da admissibilidade e a decisão da não admissibilidade da suspensão do processo crime, nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, fundamenta-se em pressupostos distintos.

Assim, no âmbito do acórdão fundamento, a admissibilidade da suspensão do processo-crime nos termos do art. 47°, n° 1, do RGIT, até trânsito em julgado das decisões finais nos processos de impugnação judicial tributária (Proc. nº 1026/19.6 …, e Proc. nº 1024/10.0 … do TAF …), prendeu-se com o facto de ter sido entendido que a decisão resultante de tal impugnação poderá afectar o aí recorrente BB, por se verificar também quanto a si uma relação de prejudicialidade.

E, no âmbito do acórdão recorrido, a não admissibilidade da suspensão do processo-crime nos termos do art. 47°, n° 1 do RGIT, prendeu-se com o facto de ter sido entendido que o recorrente AA não será afectado/ prejudicado pela decisão que vier a ser proferida nos processos de impugnação judicial tributária (Proc. nº 375/19.8… e Proc. nº 376/19.6…, do TAF de …), uma vez que o que aí se discute nem sequer é decisivo para o processo-crime, no que concerne à existência de fraude fiscal e sua configuração, nem para a escolha e medida da pena a aplicar, já que tal impugnação destina-se à correcção da liquidação de IVA e IRC, não tendo qualquer relevo para apurar da conduta ilícita que lhe é imputada».

Do exposto, se concluiu que estamos perante situações de facto diferentes, que chegaram a conclusões diferenciadas, não se verificando a necessária oposição.
Neste sentido, uma vez que as situações de facto são diferentes, os acórdãos pretensamente colidentes não se encontram em oposição, inexistindo decisões opostas sobre a mesma questão jurídica.
“Para haver idêntica situação de facto e decisões jurídicas opostas mister se tornava, que a situação de facto fosse consensual, considerada identicamente a mesma como bastante na descrição em ambos os acórdãos, para gerar a solução jurídica mas que vieram a gerar soluções jurídicas diferentes”6.

A discrepância das situações de facto inviabiliza a similitude da consequência jurídica. Inexistindo identidade de situações de facto, conclui-se pela não oposição de julgados.

E, concluindo-se pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado, nos

termos da 1 .ª parte do n.º 1 do art.º 441.º do CPP.


***

III. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso.

Custas pela requerente fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Uc’s. Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).

Lisboa, 06 de janeiro de 2021

Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

___________

2 .Disponível em www.dgsi.pt.
3 Cfr., entre outros, os acórdãos de 11/1/2017, processo n.º 895/14.DPGLSB.L1-A.S1, 22/3/2017,
6275/08.0TDLSB.L3-B.S1, 21/6/2017, processo n.º 2644/09.6TABRG.G1-B.S1 e de 20/12/2017, processo n.º
125/ 15.8T9PFR.P1-A.S3, todos disponíveis no mesmo sítio da internet.

4 Relatado pelo Exmo. Conselheiro Santos Cabral, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.

5 Cfr. citado acórdão de 20/10/2011.

6   Cfr.   Acórdão   do   STJ,   de   21/6/2017,  processo n.º    2644/09.6TABRG.G1-B.S1,    in    www.dgsi.pt,    relatado    pelo Conselheiro Pires da Graça.