OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INCONSTITUCIONALIDADE
RETIFICAÇÃO
PRESSUPOSTOS
ERRO DE ESCRITA
Sumário


I -   Existe omissão de pronúncia quando o Tribunal não se pronuncia sobre questões de que devesse conhecer. Ora, o Tribunal analisou o recurso interposto, referiu que havia questões que se relacionavam com os crimes em particular, e outras que apenas se referiam à pena única e aos pressupostos da sua aplicação. Todavia, por força da irrecorribilidade do acórdão, de acordo com o disposto nos arts. 432, n.º 1, al. b), e 400, n.º 1, als. e) e f), do CPP, não pode, em concreto, analisar cada uma das questões relativas aos crimes parcelares. E, também, por força da irrecorribilidade, não pode apreciar a questão invocada a propósito da perda de vantagens.
II - Como é bem sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas Conclusões. E, após elencar as concretas questões que se extraiam de tais conclusões (de entre as quais as que agora são invocadas no requerimento de nulidade), o STJ pronunciou-se. Decidiu que não podia conhecer de tais questões porque, nessa parte, o acórdão da Relação de ... não é recorrível. A decisão de não conhecer de uma questão, fundada em óbvias razões legais, não é omissão de pronúncia. Excesso de pronúncia seria o contrário, além de violação de lei. O acórdão enunciou, expressamente, como questões objeto do recurso, as que o arguido/requerente pretende, agora, que sejam apreciadas por via do requerimento de arguição de nulidade que suscita. Sucede que, em relação a todas elas, reitera-se, existiu pronúncia.
III - E sobre a perda de vantagens a que o arguido alude no seu requerimento de nulidade, a fls 259 a 268 do acórdão emitiu-se pronúncia.
IV - Em relação a todas as questões que o arguido invoca no seu requerimento (agora sob o prisma de nulidades que devem ser retificadas), conforme resulta dos trechos transcritos, existiu pronúncia do STJ no sentido de que o recurso é inadmissível para conhecer dessas questões. Conforme se salienta, novamente, a fls 268 do acórdão. E a fls 297 e 298, no dispositivo do acórdão, mais uma vez, de forma clara. O acórdão alude, expressamente, às questões que o arguido traz novamente à tona no requerimento de arguição de nulidade, quer na sua fundamentação, quer no segmento decisório.
V -  A decisão que determinadas questões não podem ser conhecidas por via da irrecorribilidade não consubstancia omissão de pronúncia, conforme é jurisprudência pacífica do STJ. A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379, n.º 1, al. c), ex vi art. 425, n.º 4, ambos do CPP, verifica-se quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada, no recurso, pelos sujeitos processuais, ou seja a mesma de conhecimento oficioso.
VI - Quando se rejeita o conhecimento de determinadas questões com fundamento na irrecorribilidade a “não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares”, pelo que “não existe, por isso, qualquer nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia” (Ac. STJ, de 24-02-2021, Proc. n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1; Ac. STJ, de  02-05-2018, Proc. n.º 736/03.4TOPRT.P2.S1; Ac. STJ, de 18-02-2021, Revista n.º 617/18.7T8PVZ.G1-A.S1).
VII - O nosso CPP não coloca o arguido na situação de indefeso, impedindo-o de arguir nulidades do acórdão. É que, a impossibilidade de conhecer nulidades em casos de irrecorribilidade não preclude a possibilidade de reação, suscitando esses vícios perante o Tribunal que prolatou o acórdão. Conforme se escreve no Ac. STJ, de 05-11-2020, Proc. n.º 14514/16.7T9PRT.P1. Pelo que, tais nulidades deveriam ter sido arguidas perante o Tribunal da Relação respetivo.
VIII -  Não se pode dar como adquirido que a inconstitucionalidade alegada sobre a pena se encontra devidamente invocada. A inconstitucionalidade tem de se reportar a um concreto sentido normativo que foi acolhido no confronto com uma concreta ocorrência da vida real. O arguido limita-se a apelar à violação de normas da CRP, mas não conexionado com uma determinada interpretação normativa, nem circunscrevendo factos. Alguma tendência para a insubstancialidade das alegações neste sentido não deverá ser tida como error communis a fazer lei (Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 244/2007, Processo n.º 63/07, Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos).
IX - Não obstante, na decisão da pena única sopesaram-se os arts. 18.º e 27 da CRP (cf. pp. 273/274 do acórdão). E, de forma exaustiva, é explicado o raciocínio pelo qual se entende necessária, adequada e proporcional uma pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, reduzindo a pena única de 8 anos e 10 meses de prisão em que o arguido tinha sido condenado pelo Tribunal da Relação. Entendeu-se, portanto, que “um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto”, não permitiria a medida da pena propugnada pelo arguido.
X -  Sobre demais pretensas inconstitucionalidades (v., desde logo, STJ, de 27-02-2020, Proc. n.º 66/13.3PTSTR-A.S1): em relação à conformidade constitucional da interpretação que não admite o conhecimento de quaisquer questões relacionadas com os crimes, cuja esfera de conhecimento extravasa a competência do STJ, existiu pronúncia no acórdão. Por outro lado, o sentido de interpretação que o arguido invoca não corresponde à decisão do STJ. Em suma, improcede in totum o requerido.
XI - A retificação do acórdão da Relação requerida pelo MP da quantia de € 1.518,94, referida no 2.º parágrafo do dispositivo do Acórdão respetivo, por se tratar de lapso de escrita, para € 1.518.005,94, cuja perda efetivamente se quis determinar no aresto é evidente e procede.
XII - Pelo que se decide julgar totalmente improcedente o requerimento de arguição de nulidades por parte do requerente arguido e procedente o pedido de retificação do Ministério Público e, em consequência, determinar a retificação do lapso de escrita que consta do 2.º parágrafo do dispositivo do Acórdão da Relação, e assim: onde consta “€ 1.518,94”, deverá constar, “€ 1.518.005,94”.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

Relatório



1. AA, devidamente identificado nos autos, após prolação de acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 29.04.2020, veio, por requerimento de 14.05.2020, suscitar a nulidade do referido aresto ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1, e n.º 2, do art. 379, do CPP. Fê-lo nos seguintes termos:


I - Das contradições insanáveis e dos erros notórios de cáculo da sociedade Lubriquímica - Combustíveis e Produtos Químicos Lda.

1. Nas motivações e nas alegações de recurso que juntou ao autos em 30/09/2019, com a ref. citius 16…22, o arguido/recorrente alegou que continuavam a existir contradições insanáveis e erros notórios de cálculo nos factos provados nos n.ºs 3, 9, 18 e 23 da sociedade Lubriquímica - Combustíveis e Produtos Químicos Lda, - ver motivação de recurso e conclusões nºs 1 a 5, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

2. Com efeito, depois de conjugar o facto provado no n.2 3 com a tabela que consta do facto provado n.e 9, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu que, no trimestre de 06/09, em 15/11/2006, o arguido/recorrente apropriou-se de € 9,000,00, ao invés de € 13.529,90 (€ 4.577,69 + € 8.952,21), que havia resultado provado na primeira instância.

3. Para chegar ao valor final de € 95.723,47, que passou entretanto a constar dos factos provados 18 e 23, o Trib. Rel. … partiu do pressuposto de que o arguido/recorrente se apropriou da quantia total de 98.204,84€ {€ 9.920,43 + € 12,500,00 +- € 4.577,69 + € 8.952,21 + € 23.000,00 + € 23.197,02 + € 14.000,00 + € 2.057,49) - correspondente ao somatório dos "valores de correcção" que passaram a constar do facto provado 9 - e depois subtraiu-lhe o montante de € 423,88 (€ 9.423,88 -€ 9.000,00) e o montante de € 2.057,49.

4. Para encontrar o valor total dos factos provados 18 e 23, o acórdão recorrido devia ter deduzido à quantia total de € 98.204,84, os montantes de € 4.529,90 (€ 13.529,90 - € 9.000,00) e de € 2.057,49, o que perfaz € 91.617,45.

5. Dito de outra forma, nos factos provados 18 e 23, o tribunal devia ter concluído que o arguido se apropriou do valor total de € 91.617,45 (€ 9.920,43 + € 12,500,00 + € 9.000,00 + € 23.000,00 + € 23.197,02 + € 14,000,00), e não de € 95.723,47.

6.   Com o devido respeito, existindo um erro/lapso manifesto de cáculo, porquanto, o valor total de apropriação indicado pelo Venerando Tribunal da Relação excede o somatório de todas parcelas que resultaram provadas, o Egrégio STJ não podia deixar de ter apreciado e de ter corrigido (ou, em alternativa, de ter mandado o Tribunal da Relação corrigir) esse erro/lapso, nos termos do disposto no artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP ou, em alternativa, nos termos previstos no artigo 380º, n.º 1, al. b) do CPP.

7. Porém, ao invés de apreciar a questão, o STJ limitou-se a decidir o seguinte:


Tendo em conta as penas aplicadas, não é admissível recurso da decisão, pelo que as questões suscitadas se encontram subtraídas ao conhecimento deste tribunal.

8. Tal questão é prévia e independente do facto de o STJ considerar que a pena parcelar aplicada pelo crime de abuso de confiança referente à sociedade Lubriquímica - Combustíveis e Produtos Químicos Lda., estava subtraída ao seu conhecimento, por ser inferior a cinco anos de prisão.

9. Existe, por isso, omissão de pronúncia quanto a esta matéria, que determina a nulidade do acórdão proferido peio STJ, em 29/04/2020, com as ref.ª citius 92…68, 92…470 e 92 …71.

II - Da contradição insanável e do erro/lapso notório referente ao enquadramento normativo dos factos que se reportam ao empresário BB

10. Nas motivações e nas alegações de recurso que juntou aos autos em 30/09/2019, com a ref.- citius 16…22, o arguido/recorrente alegou que existia um erro/lapso manifesto, no que se referia ao enquadramento legai dos factos refentes ao crime de abuso de confiança que se reporta ao empresário BB. -Cfr motivação de recurso e conclusões n.ºs 31e 32, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos.

11. Quanto a esse empresário, o tribunal de primeira instância havia considerado provado que arguido/recorrente se havia apropriado da quantia de 21.693,48 € e, por isso, decidiu condená-lo pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea b), do Cód. Penal.

12. O Tribunal da Relação de … decidiu alterar a matéria de facto provada quanto a este empresário e passou a considerar que o arguido/recorrente fez seu o montante global de 18,730,13 €,

13.  No entanto, por lapso/erro evidente ou até, eventualmente, por esquecimento, o Venerando Tribunal da Relação acabou por não extrair dessa alteração a necessária consequência legal, ou seja, a alteração do enquadramento jurídico desses factos, para o artigo 205º, nºs 1 e 4, alínea a), do Cód. Penal.

14. Portanto, apesar de os factos provados se terem passado a enquadrar na alínea a), do n.º 4 do artigo 205º do Cód. Penal, o Venerando Tribunal da Relação manteve a condenação do arguido/recorrente, pela prática de um crime mais grave (previsto na alínea b) do mesmo artigo).

15. E, continuou também a ponderar a moldura penal da alínea b), tendo decidido a medida da pena concreta no âmbito dos limites mínimos e máximos previstos nessa alínea.

16. Portanto, no que se refere ao crime de abuso de confiança que envolve o empresário BB, o arguido/recorrente acabou por ser condenado por um crime mais grave do que aquele que resultou provado na decisão recorrida.

17. Não obstante, sem sequer apreciar essa questão, o STJ limitou-se a concluir que:

Como se viu (supra, 1 e 4.c), todas estas questões dizem respeito a crimes a que foram aplicadas penas de prisão inferiores a 5 anos, entre 4 meses e 2 anos e 10 meses.

Pelo que, não sendo a decisão recorrível nessa parte, não pode também este tribunal delas conhecer.

18. Com o devido respeito, o acórdão do STJ aqui em análise não podia ter deixado de analisar e de se pronunciar previamente, pelo correcto enquadramento legai dos factos que resultaram provados pelo Tribunal da Relação, ao invés de decidir imediatamente e desde logo que tal questão não era recorrível por a pena parcelar deste crime de abuso de confiança ser inferior a cinco anos de prisão.

19. Com efeito, se a gravidade do crime em análise e a medida da pena aplicável estão directamente dependentes do valor da apropriação que resultar dos factos provados, e se esses factos forem alterados, a coerência da decisão impõe que daí sejam extraídas as necessárias consequências jurídicas e processuais, nomeadamente, no que se refere ao enquadramento jurídico dos factos e à medida da pena aplicável.

20, Se, conforme resulta evidente, o acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de … não logrou fazê-lo, em toda a sua extensão, cabia ao Supremo Tribunal de Justiça corrigir esse erro, nos termos permitidos pelo nº 1, do artigo 380e do Cód. Proc. Penal, ex vi artigo 425º, n.° 4, do mesmo Código, independentemente da medida da pena parcelar aplicada no caso concreto.

21.   Não o tendo feito, o acórdão em análise, proferido peio STJ, em 29/04/2020, com as ref.2 citlus 92…68, 92…70 e 92…71, é nulo por omissão de pronúncia quanto a esta matéria, nos termos previstos na alínea c) do nº- 1 do artigo 379º do Cód, Proc. Penal.


Ill - Da contradição insanável e do erro/lapso notório quanto à perda de vantagem a favor do Estado que foi determinada

22. Na sua motivação e nas suas conclusões de recurso, o arguido insurgiu-se com a decisão do Venerando Tribunal da Relação de …, que julgou procedente o recurso Interposto peio Min. Público e, consequentemente, determinou a perda de vantagem patrimonial a favor do Estado. - Cfr motivação de recurso e conclusões nºs 67 a 82 do recurso interposto em 30/09/2019, com a ref.ª citius 16…22, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.

23. Entre várias incongruências e erros invocados, com especial relevo para a presente arguição de nulidade, o arguido alegou e concluiu que o acórdão recorrido, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, limitou-se a aderir ao valor que havia sido sugerido na acusação, pelo Ministério Público (correspondente a € 1.518.005,94). - Cfr conclusões 76 a 79 do recurso interposto em 30/09/2019, com a refª citius 16…42.

24. O Tribunal da Relação não ponderou sequer se tal valor correspondia, ou não, ao concreto proveito/vantagem patrimonial que resultou provado nos autos. – Cfr conclusões 76 a 79 do recurso interposto em 30/09/2019, com a refª citius 16…42


25. Com efeito, na acusação pública, o Min. Público requereu a perda de vantagem patrimonial, alegando que os arguidos tiveram um incremento patrimonial no valor de € 1.518.005,94, corresponde ao somatório do valor das "prestações tributárias devidas".

26. E, o acórdão da Relação limitou-se a aderir, de forma totalmente arbitrária, e determinou perdido a favor do Estado o valor de € 1,518.005,94, que havia sido proposto pelo Ministério Público.

27. Importa realçar que o arguido foi absolvido da prática de alguns crimes de abuso de confiança, que lhe eram imputados na acusação, e que estavam considerados no somatório do valor total das vantagens alegadamente obtidas com a prática de factos ilícitos, apontado pelo Min. Público (€ 1.518.005,94).

28.  Apesar disso, e de ter resultado como não provado que o arguido se apropriou dos valores referentes aos crimes pelos quais foi absolvido, tais valores continuaram a ser englobados, pelo Tribunal da Relação, nas vantagens alegadamente obtidas de forma ilícita.


29. Não tendo resultado provado que o arguido se apropriou dessas quantias (e muito menos, tendo resultado provado que o fez de forma ilícita), o Tribunal da Relação deveria ter tido o cuidado de deduzi-las no montante que inicialmente havia sido indicado pelo Min. Público (€ 1.518.005,94).

30. De igual modo, o Trib. Rel. … decidiu alterar a matéria de facto assente, reduzindo (de forma mais ou menos considerável) grande parte dos valores cuja apropriação era imputada ao arguido/recorrente, na acusação.

31, Não obstante a redução dos valores de apropriação que constavam na acusação, o Tribunal da Relação continuou a considerá-los no valor total da alegada vantagem patrimonial obtida pelo arguido e declarada perdida a favor do Estado (€ 1,518.005,94).

32. O artigo 110º do Cód. Penal, com a epígrafe, "Perda de produtos e vantagens" estabelece o seguinte:

"1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou inteiramente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.

3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída peio pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido."

 - negrito sublinhado nossos.


33. Portanto, só podem ser declarados perdidas a favor do Estado, as vantagens económicas que comprovadamente sejam provenientes de facto ilícito típico.

34. Ora, se o arguido foi absolvido quanto a alguns crimes de abuso de confiança que constavam da acusação, e se resultou provado que o arguido obteve vantagens muito inferiores àquelas que vinham descritas na acusação, o Tribunal da Relação de ... não podia declarado a perda do valor total de € 1.518.005,94.

35. Existe assim uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão, e um evidente erro/lapso no acórdão do Tribunal da Relação, que acabou por determinar a perda de vantagens a favor do Estado, em montante muito superior (€ 1.518.005,94) àquele que resulta do somatório das vantagens obtidas pelo arguido e que vêm descritas nos factos provados no mesmo acórdão.

36. Ou, dito de outra forma, o acórdão do Tribunal da Relação está a determinar a perda a favor do Estado de valores e vantagens que, conforme resultou provado, não foram sequer entregues ao arguido/recorrente pelas sociedades lesadas e que, por isso, não podiam ter sido objecto de apropriação ílícita da sua parte.

37. Portanto, verifica-se que o somatório do valor total das apropriações/vantagens de factos ilícitos típicos que resultaram provadas no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa é agora manifestamente inferior aos valores que inicialmente eram indicados pelo Ministério Público e que constavam da acusação (€ 1.518.005,94).

38. No entanto, e apesar de ter dado como provado que as vantagens económicas obtidas pelo agente foram muito inferiores àquelas que eram apontadas na acusação, o Tribunal da Relação acabou por determinar a perda do valor que era proposto pelo Min. Público nessa mesma acusação (€ 1.518.005,94).

39. Quanto a esta matéria, o acórdão do STJ, proferido pelo STJ, aqui em análise, proferido em 29/04/2020, com as refªs citius 92…68, 92…70 e 92…71, limitou-se a decidir o seguinte:

Os factos ilícitos que lhe dão causa constituem crimes a que foram aplicadas penas de prisão em medida inferior a 5 anos de prisão, subtraídas à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, por se tratar de questão que não se relaciona com a decisão relativa à aplicação de pena de que este tribunal possa conhecer, nem de matéria relativa a pedido de indemnização civil que deva ser apreciada, impõe-se também concluir pela inadmissibilidade do recurso nesta parte.

40. Com o devido respeito, tratando-se de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão do acórdão do Tribuna! da Relação, e verificando-se que existe um erro/lapso manifesto na decisão recorrida, o STJ não podia ter deixado de apreciar e de decidir esta questão, mesmo que considerasse que, por causa da pena parcelar aplicada aos crimes que lhe dão causa, tal matéria estava subtraída ao seu conhecimento.

41. Existe, assim e s.m.o., omissão de pronúncia quanto a esta matéria, que determina a nulidade do acórdão proferido pelo STJ, em 29/04/2020, com as refª citius 92…68, 92…70 e 92…71.


IV - Das inconstitucionalidades invocadas pelo arguido/recorrente


42. Na sua motivação e nas suas conclusões de recurso, o arguido suscitou a inconstitucionalidade da interpretação de várias normas feita pelo Venerando Tribunal da Relação de …, - Cfr motivação de recurso e conclusões n.ºs 21, 27, 35, 48, 59 e 82 do recurso interposto em 30/09/2019, com a refª citius 16…22, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.

43. Porém, o Colendo STJ acabou por não se pronunciar sobre nenhuma das inconstitucionalidades invocadas pelo arguido/recorrente, as quais se impunha que fossem sempre apreciadas e conhecidas.

44. Ao não apreciar, sequer, as questões de inconstitucionalidade colocadas pelo arguido, com o merecido respeito, o STJ deixou de pronunciar-se sobre questões que estava obrigado a apreciar e como tal, o acórdão proferido é nulo por violação do disposto no artigo 379º, nº .1, alínea c), do CPP, por remissão do artigo 425º.2, nº 4, do mesmo diploma.


V - Do Direito

45. O n.º 4 do artigo 425º do Código de Processo Penal esclarece que "É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento .".

46. O artigo 379º, nº 1, alínea c) do Cód, Proc. Penal, prevê que "é nula a sentença (...) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento."

47. O n.º 2 da mesma disposição acrescenta que "as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.e 4 do artigo 414º”"

48. Por sua vez, o artigo 380º do Cód. Proc. Penal, sobre a correcção da sentença, estabelece o seguinte:

"1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97º"


49. Além disso, nos termos do artigo 410º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a)A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b)A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.


50. Como é sabido, os vícios do artigo 410º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, são vícios de lógica jurídica que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

51. Com o merecido respeito, que é muito, o arguido/recorrente considera que acórdão em análise, proferido pelo Colendo STJ, não se pronunciou sobre questões que foram alegadas nas motivações e nas conclusões de recurso, e que se impunha que fossem apreciadas.

52. Com efeito, sendo a decisão proferida pela Relação indiscutivelmente recorrível (tanto que o Supremo admitiu o recurso e acabou por julgá-lo parcialmente procedente), todas as contradições insanáveis entre a fundamentação e a decisão, todos os erros/lapsos manifestos daquela decisão, e todas as inconstitucionalidades invocadas, tinham forçosamente de ser apreciados e corrigidos pelo STJ no acórdão proferido, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379º, n.º, alínea c) do Cód. Processo Penal.

54. Aliás, se analisarmos a parte do acórdão proferido que se refere à correcção dos pedidos de indemnização civil formulados, verificamos que o STJ decidiu precisamente nesse sentido, ou seja, independentemente de considerar que não era admissível recurso, por falta de sucumbência mínima, acabou por analisar a questão e alterou a decisão do Tribunal da Relação quanto a essa matéria.

55. E fê-lo com o fundamento de que, se o Venerando Tribunal da Relação decidiu alterar a matéria de facto, daí não podiam deixar de se extrair todas as consequências necessárias para a decisão final, o que o acórdão recorrido da Relação não logrou fazer em toda a sua extensão.

56.  Efectivamente, o acórdão aqui em análise começou por observar o seguinte:

Encontra-se, assim, preenchido o critério da alçada, porque todos os valores peticionados nos pedidos de indemnização civil têm valor superior à alçada do tribunal da Relação.

O mesmo já não sucede, porém, em relação ao critério da sucumbência, pois que a decisão recorrida não é, em nenhum caso, desfavorável ao recorrente em valor superior a metade desta alçada, ou seja, 15.000 euros.

Pelo que o recurso interposto pelo arguido/demandado civil para este Supremo Tribunal de Justiça quanto às indemnizações a que foi condenado não é admissível por falta de sucumbência mínima exigida pelo artigo 400.°, n.° 2, do CPP e pelo artigo 629º, nº 1, do CPC.

57. Não obstante essa observação prévia, o STJ acabou depois, e muito bem, por apreciar a questão e por julgar procedente esta parte do recurso interposto pelo arguido, o que justificou com base na coerência da decisão do recurso, que deve abranger toda a decisão (artigos 402º n.° 1, e 403º do CPP):

Assim, tendo em conta o teor da decisão (dispositivo) do acórdão recorrido – que, no ponto A. 1, alterou a matéria de facto nos termos acima transcritos - não se suscitam dúvidas relativamente aos valores fixados para efeitos de indemnização m condenação quanto aos pedidos cíveis em questão, que devem ser os determinado a no acórdão recorrido e não os que constam da decisão da 1ª instância. O que só por erro ou lapso evidente do acórdão recorrido, que pode ser suprido, não figura na parte decisória, não podendo entender-se, na lógica e coerência da decisão, que a isso se oponha o decidido no ponto C, que, "quanto ao mais", confirma o acórdão recorrido.

58. Ora, os doutos argumentos acima transcritos são aplicáveis também, ipsis verbis, às questões acima descritas, porquanto, apesar de ter decidido alterar a matéria de facto provada, reduzindo os valores das apropriações imputadas ao arguido, o Tribunal da Relação acabou depois por não extrair todas as consequências necessárias dessa decisão, designadamente, no que se refere ao enquadramento jurídico do crime de abuso de confiança, à medida da pena parcelar aplicada e no que se reporta à questão da perda de vantagens.

59. Face ao exposto, o arguido não pode deixar de suscitar a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alínea e), ambos do Cód., Proc. Penal, quando interpretadas no sentido de que os lapsos, erros e contradições evidentes do tribunal recorrido não podem ser apreciadas pelo tribunal de recurso, se os mesmos se prenderem com crimes cuja medida da pena parcelar não admita recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por ser inferior a cinco anos de prisão.

60. Tal interpretação do STJ é inconstitucional, porque viola o direito ao recurso e o acesso a todas as garantias de defesa, consagradas no artigo 32º, nº 1 da CRP, restringindo-os de forma desproporcionada, intolerável e injustificável, o que aqui se invoca para dar cumprimento ao artº 72 da LTC.

61. Com efeito, o arguido/recorrente legitimamente confiou que lhe seria garantido, pelo menos, um grau de recurso em todas as questões que invocasse em sua defesa e que o Tribunal da Relação conseguiria apreciar, julgar e extrair todas as consequências lógicas e legais da parte em que julgou tal recurso procedente.

62. Porém, por lapso, erro ou esquecimento, isso acabou por não acontecer.

63. E, inexistindo uma coerência lógica no acórdão do Tribunal do Tribunal da Relação, independentemente das penas parcelares aplicadas aos crimes respectivos, o STJ não podia ter deixado de corrigir essa parte do acórdão recorrido.

64. Nessa medida, a interpretação feita pela decisão do STJ, relativamente às normas previstas nos artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alinea e), do Cód. Proc. Penal, acaba também por violar os princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança, consagrados no artigo 2º da CRP.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverá ser deferido o presente pedido de declaração de nulidade do acórdão proferido ern 29/04/2020, com as ref.ª Cítius 92…68, 92…70 e 92…71, a fls. (…), por omissão de pronúncia no que se refere à apreciação e decisão das questões acima enunciadas, com todas as devidas e legais consequências.


2. Respondeu o Ministério Público, nos seguintes termos:

O Ministério Público, mantendo o teor do seu anterior requerimento em que pede a rectificação do que considera tratar-se de um erro ou lapso susceptível de ser corrigido, notificado que foi do requerimento do arguido, vem aos autos em epígrafe manifestar que se lhe afigura não padecer o douto acórdão da nulidade invocada a que alude o art.e 379º. alínea c) do C.P.Penal ou qualquer vício a que alude o art.e 410º do mesmo diploma, atento que como decorre da fundamentação e dispositivo, interpretou adequadamente a lei, respaldando-se também em jurisprudência firmada neste Supremo Tribunal de Justiça.

3. Por seu turno o Ministério Público veio requerer a retificação do dispositivo do acórdão do Tribunal da Relação … , pelos motivos que seguidamente se transcrevem:

O Ministério Público vem aos autos em epígrafe, ao abrigo do disposto no art º 380º n.° 1 b) do CPP, requerer a rectificação do que se lhe afigura tratar-se de um manifesto lapso material constante do Acórdão do Tribunal da Relação de … e de que agora se deu conta que é o seguinte:

No douto Acórdão do Tribunal da Relação de … sobre o qual se debruçou o douto Acórdão deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça a que se reporta o processo em epígrafe (na sequência do recurso interposto pelo arguido), consta o seguinte:

"Assim sendo e sem necessidade de outros considerandos procede o recurso do Ministério Público, determinando-se consequentemente a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido no montante de €1.518.005,94 sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé bem como a dedução de eventuais quantias em dívida que tenham sido entretanto pagas.”

Pelo exposto julga-se procedente o recurso do MP e determina-se a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido no montante de €1.518,94 sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias em dívida que tenham sido entretanto pagas".

A quantia de €1.518,94, referida no 2.º parágrafo do dispositivo do Acórdão, trata-se de um evidente lapso de escrita .

Com efeito, tal conclusão retirasse não só da acusação proferida pelo Ministério Público como pelo raciocínio explanado na fundamentação e consagração expressa no aresto do Tribunal da Relação de …, de que a vantagem obtida pelo arguido foi efectivamente a da quantia mencionada no 1º parágrafo do dispositivo - € 1.518.005,94, cuja perda se quis efectivamente determinar no aresto.

Só assim faz sentido uma vez que se concluiu pelo provimento do Ministério Público.

O que aliás se encontra também em consonância com o entendimento do arguido expresso no seu recurso.

O douto Acórdão deste Suprema Tribunal acerca do recurso interposto pelo arguido, neste segmento, expressamente em 27.4 referenciou o seguinte:

"Como se evidencia, o recurso tem por objecto, nesta parte, a decisão do Tribunal da Relação que, contrariamente ao decidido na 1ª instância, declarou a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial no valor de €1.518.005,94 quantia correspondente ao montante de que a Administração Tributária deixou de receber em consequência da prática dos crimes com fundamento no disposto no n.º 2 do art.º 111.º do C. Penal na redacção do Decreto-lei n.º 48/95 de 15/3".

Contudo o mesmo douto Acórdão em 27,1 refere também que o "Tribunal da Relação julgou procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, determinou a perda a favor do Estado de vantagem patrimonial obtida pelo arguido no montante de €1.518,94".

Esta última quantia, pelos motivos descritos, donde se conclui não se estar em presença de erro de julgamento mas sim mero de lapso de escrita, requer-se seja corrigida, sendo certo que como decorre da factualidade exposta, tal rectificação não importa modificação essencial.


4. Notificado, nada foi dito pelo arguido.

Sem vistos, dada a presente situação pandémica, na vigência de estado de emergência, cumpre apreciar e decidir em conferência.



II

Fundamentação



I - Do requerimento de arguição de nulidade ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1 e n.º 2 do art. 379, apresentado pelo arguido:

1. Conforme supra referido, o arguido veio arguir a nulidade do acórdão prolatado a 29.04.2020, pelos motivos que se transcreveram.

Ao abrigo do art. 379, n.º 2, do CPP ex vi art. 425, n.º 4, do CPP, cabe ao Tribunal suprir as nulidades de que eventualmente padeça o acórdão.

2.  O requerente considera que o acórdão é nulo, alegando existir uma afronta ao disposto no art. 379, n.º 1, al. c), do CPP, pelo facto de dever existir pronúncia no que se refere à apreciação e decisão das questões enunciadas no seu requerimento supratranscrito.

Em suma, sustenta que o acórdão omitiu pronúncia relativamente à:

a) contradição insanável e erro notório de cálculo no que concerne à sociedade Lubriquímica-Combustíveis Químicos Lda., que o STJ deveria ter apreciado e corrigido por via do disposto no art. 410, n.º 2, als. b) e c), do CPP (ou determinar que o Tribunal da Relação corrigisse), ou, em alternativa, no art. 380.º, n.º 1, al. b), do CPP;

b) contradição insanável e erro/lapso notório referente ao enquadramento normativo dos factos que se reportam ao empresário BB, que o STJ deveria corrigir nos termos do n.º 1 do art. 380.º, do CPP, ex vi art. 425.º, n.º 4, do CPP;

c) contradição insanável e erro/lapso notório quanto à perda de vantagem a favor do Estado que foi determinada;

d) inconstitucionalidades invocadas na motivação de recurso e conclusões n.ºs 21, 27, 35, 48, 59 e 82.


3. Existe omissão de pronúncia quando o Tribunal não se pronuncia sobre questões de que devesse conhecer. Ora, pelo contrário, o Tribunal analisou o recurso interposto, referiu que havia questões que se relacionavam com os crimes em particular, e outras que apenas se referiam à pena única e aos pressupostos da sua aplicação. Todavia, por força da irrecorribilidade do acórdão, de acordo com o disposto nos arts. 432, n.º 1, al. b), e 400, n.º 1, als. e) e f), do CPP, não pode, em concreto, analisar cada uma das questões relativas aos crimes parcelares. E, também, por força da irrecorribilidade, não pode apreciar a questão invocada a propósito da perda de vantagens.

4. As questões a que o arguido alude no requerimento de arguição de nulidade são questões que já tinha suscitado no recurso interposto do acórdão da Relação … . No entanto, não as qualificou como nulidade, enquadrando-as juridicamente de uma forma distinta. Relativamente à contradição/erro notório atinente à sociedade Lubriquímica-Combustíveis Químicos Lda., enquadrou a questão como se tratando de um erro-vício do art. 410, do CPP (certamente com intenção de lograr uma modificação da medida da pena). No que concerne à errada qualificação jurídica no que se reporta ao crime incidente sobre o empresário BB, a questão foi inserida a propósito da argumentação decerto com o fito de redução da medida da pena. Por último, já quanto à perda de vantagens a questão foi colocada no âmbito da argumentação aduzida provavelmente no sentido de sustentar que o mecanismo que o MP deveria ter utilizado seria o pedido de indemnização civil.

Assim,

5.  No recurso interposto da Relação … para o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido, em relação à sociedade Lubriquímica-Combustíveis Químicos Lda., exarou o seguinte:

O presente recurso versa sobre a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, porquanto, apesar de ter decidido julgar o recurso do arguido/recorrente parcialmente procedente e, consequentemente, ter alterado a matéria de facto provada nos termos indicados no acórdão, a negrito e a itálico, verifica-se que, pelo menos no que se refere à sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda., o acórdão recorrido mantém insanáveis contradições insanáveis entre os factos provados, o que se alega, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP.

Com efeito, quanto a esta sociedade, o tribunal recorrido continua a incorrer no mesmo erro do tribunal de primeira instância, dando como provado que o arguido se apropriou de quantias superiores àquelas que, conforme resultou também provado, lhe foram efectivamente entregues pela sociedade lesada. Em alternativa, e caso eventualmente se entenda que a incompatibilidade acima descrita não configura o vício previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP, o acórdão recorrido continua a padecer de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c) do artigo 410º do CPP, já que a apreciação que o tribunal recorrido faz dos factos dados como provados, acima descritos, é manifestamente incorrecta e desadequada, baseando-se em juízos ilógicos e em cálculos errados.


6. E conclui nos seguintes termos (transcrição que releva):

1. Continuam a existir contradições insanáveis e erros notórios de cálculo nos factos provados nos n.ºs 3, 9, 18 e 23 da sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP.

2.   Depois de conjugar o facto provado n.º 3 com a tabela que consta do facto provado n.º 9, o Tribunal da Relação … decidiu que, no trimestre de 06/09, em 15/11/2006, o arguido/recorrente apropriou-se de € 9.000,00, ao invés de € 13.529,90 (€ 4.577,69 + € 8.952,21), que havia resultado provado na primeira instância.

3.   Para chegar ao valor final de € 95.723,47, que passou agora a constar dos factos provados 18 e 23, o Trib. Rel. …  partiu do pressuposto de que o arguido/recorrente se apropriou da quantia total de 98.204,84€ (€ 9.920,43 + € 12.500,00 + € 4.577,69 + € 8.952,21 + € 23.000,00 + € 23.197,02 + € 14.000,00 + € 2.057,49) - correspondente ao somatório dos “valores de correcção” que passam a constar do facto provado 9 – e depois subtraiu-lhe o montante de € 423,88 (€ 9.423,88 -€ 9.000,00) e o montante de € 2.057,49.

4.   Para encontrar o valor total dos factos provados 18 e 23, o acórdão recorrido devia ter deduzido à quantia total de € 98.204,84, os montantes de € 4.529,90 (€ 13.529,90 - € 9.000,00) e de € 2.057,49, o que perfaz € 91.617,45.

5. Dito de outra forma, nos factos provados 18 e 23, o tribunal devia ter concluído que o arguido se apropriou do valor total de € 91.617,45 (€ 9.920,43 + € 12.500,00 + € 9.000,00 + € 23.000,00 + € 23.197,02 + € 14.000,00), e não de € 95.723,47. (...)”.


7. Como veremos adiante, e resulta das suas conclusões, o arguido suscitou esta questão com o intuito de ser reanalisada a medida da pena, por via da correção do valor apropriado para um montante inferior.

8. A propósito do empresário BB, traz à tona a seguinte questão nas conclusões do recurso que interpôs do acórdão da Relação …. :

28. Para proceder à determinação de cada uma das penas parcelares aplicadas ao(s) crime(s) de abuso de confiança, o tribunal de primeira instância teve em consideração os valores totais de apropriação que resultaram provados relativamente a cada cliente da ANEP.

29.   O T. R … decidiu alterar a matéria de facto assente (reduzindo, de forma mais ou menos considerável, os valores totais de apropriação de vários clientes da ANEP).

30. Mas depois, limitou-se a confirmar as penas parcelares que foram aplicadas pela primeira instância, sem nunca ponderar (como se lhe impunha) se tais penas deveriam, ou não, ser reduzidas na sequência da alteração da matéria de facto provada.

31. Por ser a situação mais evidente (e sem prejuízo de todas as outras descritas), veja-se o exemplo do empresário BB, relativamente ao qual, o tribunal de primeira instância considerou provado que arguido/recorrente se havia apropriado da quantia de 21.693,48 €, e decidiu condená-lo pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), na pena de 1 ano e 4 meses de prisão.

32. O Tribunal da Relação … decidiu alterar a matéria de facto provada quanto a este empresário e passou a considerar que o arguido/recorrente fez seu o montante global de 18.730,13 €, mas continuou a enquadrar esses factos no âmbito do artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Cód. Penal, e manteve a pena parcelar de 1 ano e 4 meses de prisão. (…)”.


9.  A questão foi chamada à colação com o propósito referido no ponto 30 das conclusões: para que fosse ponderada a redução da pena na sequência da alteração da matéria de facto provada.

10. O que volta a reafirmar nas conclusões, como adiante assinalaremos.

11. Por fim, a questão conexa com a temática da perda de vantagens, foi alegada no recurso para este STJ nas conclusões, nos seguintes termos.

76. Na acusação, o Min. Público requereu a perda de vantagem patrimonial, alegando que os arguidos tiveram um incremento patrimonial no valor de € 1.518.005,94, corresponde ao somatório do valor das “prestações tributárias devidas”.

77. O acórdão recorrido limitou-se confirmar, de forma totalmente arbitrária, o valor sugerido na acusação, pelo Ministério Público, sem considerar que o mesmo não corresponde ao concreto proveito patrimonial que resultou provado nos autos.

78. O arguido foi absolvido da prática de alguns crimes de abuso de confiança, que lhe eram imputados na acusação, mas tais valores não deixaram de ser incluídos no valor total da alegada vantagem patrimonial declarada perdida pelo tribunal recorrido.

79. O T. Rel … alterou a matéria de facto assente, reduzindo os valores totais cuja apropriação era imputada ao arguido/recorrente, mas tais valores (que o arguido comprovadamente não recebeu) não deixaram de ser incluídos no valor total da alegada vantagem patrimonial declarada perdida pelo tribunal a quo.

80. São precisamente estes os perigos e os excessos do instituto da perda de vantagens, que seriam perfeitamente evitáveis se o Ministério Público tivesse deduzido pedido de indemnização civil, uma vez que, essa seria a única forma de garantir a igualdade de armas, o princípio do contraditório e a efectiva contabilização dos alegados prejuízos sofridos e das alegadas vantagens obtidas.

81. O Ministério Público não podia lançar mão da perda de vantagens –instrumento sancionatório – quando decidiu não usar os meios civis que tinha ao seu dispor - que são os mais indicados para o Estado responsabilizar civilmente o infractor. – ver acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Abril de 2017, Proc. n.º 67/15.7IDPRT, in www.dgsi.pt.

82. A norma do artigo 111.º do Código Penal, na interpretação e na aplicação feita pelo acórdão recorrido, é inconstitucional, por violação dos princípios previstos no artigo 20.º, n.º 4, e no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, permite uma diferenciação intolerável entre as armas disponíveis aos diferentes intervenientes processuais e restringe o princípio da presunção da inocência, imputando o ónus da prova ao arguido/recorrente.


12. A questão da redução do valor da perda de vantagens foi inclusa como argumento para sustentar a tese de que o MP deveria ter deduzido pedido de indemnização civil que, atento o argumentário do recurso, evitaria os perigos e excessos de declarações de perdas por montantes superiores às vantagens obtidas.

Em suma,

13. Com estas alegações o arguido pretendia que, dando procedência ao recurso, este Supremo Tribunal de Justiça ponderasse a redução das penas parcelares, relativamente a crimes em que estava em causa a apropriação de quantias monetárias, em que o arguido sustenta existir erro de cálculo e/ou em que não se retiraram ilações a nível do enquadramento jurídico. É o que se extraiu da al. d) do pedido final do seu recurso “Deverão ser revistas e reduzidas, as penas parcelares aplicadas ao arguido/recorrente, nos termos descritos nas alegações e nas conclusões do presente recurso;”. Foi este o escopo da invocação de tais questões.

14. E no que concerne à perda de vantagens na al. g), a final do seu recurso, pediu o arguido: “Deverá revogar-se o acórdão do T. Rel. … , ora recorrido, confirmando-se a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, na parte em que decidiu indeferir o pedido de perda de vantagens a favor do Estado, nos termos do art.º 111.º, n.º 2 e 4 do Código Penal, nos termos requeridos pelo Ministério Público, na acusação deduzida no processo.

Ou seja, as questões que suscitou tinham um propósito expresso no recurso: revogar o acórdão da Relação … nessa parte.


15.   Sucede que, conforme salientado no acórdão de 29.04.2020, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões. E, após elencar as concretas questões que se extraiam de tais conclusões (de entre as quais as que agora são invocadas no requerimento de nulidade), o STJ pronunciou-se. Decidiu que não podia conhecer de tais questões porque, nessa parte, o acórdão da Relação … não é recorrível. A decisão de não conhecer de uma questão, fundada em óbvias razões legais, não é omissão de pronúncia. Excesso de pronúncia seria o contrário, além de violação de lei.

Na verdade,

16.    Nomeadamente, quanto à sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda, a fls 41 do acórdão exarou-se (transcrição na parte que ora releva):

Tendo em conta as conclusões da motivação, as questões colocadas pelo recorrente são as seguintes:

(a) Contradições insanáveis e erros notórios de cálculo nos factos provados nos n.ºs 3, 9, 18 e 23 da sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda, nos termos do artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP (conclusões 1-5); (…)

(g) Erro na determinação de cada uma das penas parcelares aplicadas ao(s) crime(s) de abuso de confiança, pois que, alega, tendo alterado a matéria de facto, reduzindo os valores da apropriação, não considerou essa redução (conclusões 28 a 31);

(h) Erro de qualificação jurídica quanto aos factos relativos à situação de que foi vítima o empresário BB, pois que, alega, o Tribunal da Relação decidiu alterar a matéria de facto provada quanto a este empresário e passou a considerar que o arguido/recorrente fez seu o montante global de 18.730,13 €, mas continuou a enquadrar esses factos no âmbito do artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Cód. Penal, e manteve a pena parcelar de 1 ano e 4 meses de prisão (conclusão 32);

(…)

(q) Erro quanto à determinação da perda de vantagem patrimonial a favor do Estado, quanto ao respectivo valor e quanto ao recurso ao instituto da perda de vantagens do crime (conclusão 67 a 82).

Ou seja,

17. O acórdão enunciou, expressamente, como questões objeto do recurso, as que o arguido/requerente pretende, agora, que sejam apreciadas por via do requerimento de arguição de nulidade que suscita. Sucede que, em relação a todas elas, reitera-se, existiu pronúncia.

Mais concretamente,

18. A fls 235 do acórdão emitiu-se pronúncia nos seguintes termos:

Da não admissibilidade do recurso relativamente às questões relacionadas com os crimes a que foram aplicadas as penas parcelares, não superiores a 5 anos de prisão

21. Quanto às alegadas contradições insanáveis e erros notórios de cálculo nos factos provados nos n.ºs 3, 9, 18 e 23 da sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda, nos termos do artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP [supra, 10 (a)]:

O arguido havia sido condenado em 1.ª instância na pena de dois anos e quatro meses de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al. a), por referência ao disposto no artigo 202.º, al. a), do Código Penal [supra, 1.3 (XV)] e na pena de um ano e dois meses de prisão pela prática de um crime de fraude fiscal p. p. pelo artigo 103.º Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho [supra, 1.6 (XV)]. O tribunal da Relação, julgando parcialmente procedente o recurso do arguido, alterou a matéria de facto provada quanto a estes crimes [supra, 4.3 (A.1) e 12 (XV)], considerou que “a alteração para menos, do valor de que o arguido se apropriou, não tem influência na qualificação do crime de abuso de confiança” e manteve a condenação nessas penas [supra, 4.3 (C)].

Tendo em conta as penas aplicadas, não é admissível recurso da decisão, pelo que as questões suscitadas se encontram subtraídas ao conhecimento deste tribunal.” (negrito nosso).

19. Em suma, após enunciar a questão (“contradições insanáveis e erros notórios de cálculo nos factos provados nos n.ºs 3, 9, 18 e 23 da sociedade Lubriquímica – Combustíveis e Produtos Químicos Lda, nos termos do artigo 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP”) o acórdão pronuncia-se, decidindo que “não é admissível recurso da decisão, pelo que as questões suscitadas se encontram subtraídas ao conhecimento deste tribunal.


20. A fls 253 e 254 do acórdão, em relação a BB, emitiu-se pronúncia nos seguintes termos:

25. O mesmo sucede quanto às questões indicadas nas alíneas (g) a (l) do ponto 10: erro na determinação de cada uma das penas parcelares aplicadas aos crimes de abuso de confiança (g); erro de qualificação jurídica quanto aos factos relativos à situação de que foi vítima o empresário BB (…)

Como se viu (supra, 1 e 4.c), todas estas questões dizem respeito a crimes a que foram aplicadas penas de prisão inferiores a 5 anos, entre 4 meses e 2 anos e 10 meses.

Pelo que, não sendo a decisão recorrível nesta parte, não pode também este tribunal delas conhecer.” (negrito nosso).

21. Em síntese, após enunciar a questão (“erro na determinação de cada uma das penas parcelares aplicadas aos crimes de abuso de confiança” e “erro de qualificação jurídica quanto aos factos relativos à situação de que foi vítima o empresário BB”) o acórdão pronuncia-se, decidindo que “não sendo a decisão recorrível nesta parte, não pode também este tribunal delas conhecer.”.


22. E sobre a perda de vantagens a que o arguido alude no seu requerimento de nulidade, a fls 259 a 268 do acórdão emitiu-se pronúncia nos seguintes termos:

27. Quanto aos alegados erros na determinação da perda de vantagem patrimonial a favor do Estado, quanto ao respectivo valor e quanto ao recurso ao instituto da perda de vantagens do crime [supra, 10 (q)]:

27.1. Como se viu, o tribunal de 1.ª instância, indeferiu o pedido de perda ampliada de bens a favor do Estado, bem como o pedido de perda a favor do Estado nos termos do artº. 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, requeridas pelo Ministério Público (supra, 3).

O Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação e, segundo o acórdão recorrido, colocou a seguinte questão: “Saber se no caso de não ter sido deduzido pedido de indemnização cível, pode ser declarada a perda da vantagem patrimonial” (supra, 4.2).

O Tribunal da Relação julgou procedente o recurso do Ministério Público e, em consequência, determinou a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido, no montante de 1.518,94 €, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias da dívida que tenham sido, entretanto, pagas [supra 4.3.(B)].

27.2. O Tribunal da Relação apreciou e decidiu esta questão nos seguintes termos:(…)

“Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, procede o recurso do MºPº, determinando-se, consequentemente, a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido, no montante de € 1 518 005,94, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias da dívida que tenham sido, entretanto, pagas”.

27.3. No recurso que agora interpõe da decisão da Relação, defende o recorrente, em síntese, que o recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação não devia ter sido julgado procedente e não devia ter sido determinada a perda de vantagem patrimonial, a favor do Estado, nos termos fixados no acórdão recorrido, pois que (1) a Autoridade Tributária optou por instaurar processos de execução fiscal, ao invés de deduzir pedido de indemnização civil no processo; (2) a Autoridade Tributária foi já ressarcida de grande parte das quantias que lhe eram devidas, quer directamente pelos sujeitos passivos, quer pelos responsáveis subsidiários, por meio do procedimento de reversão, quer pelo próprio arguido; (3) os ofendidos deduziram pedidos de indemnização civil (no âmbito do presente processo-crime e em separado), onde reclamaram o pagamento dos danos descritos na acusação/pronúncia, e não podem ser prejudicados pela declaração de perda de vantagens a favor do Estado, designadamente, quando os bens e as quantias apreendidas são necessários para garantir o ressarcimento dos seus prejuízos (n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal); (4) o Ministério Público apenas deverá accionar o mecanismo da perda das vantagens quando o ofendido se desinteressar do ressarcimento; (5) ressarciu voluntariamente alguns lesados e a própria Autoridade Tributária, sendo que a declaração de perda das vantagens do crime não pode constrangê-lo a pagar duas vezes, nem pode culminar num duplo ressarcimento do Estado; (6) não pode haver perda de vantagens a favor do Estado quando o lesado obteve a reparação do prejuízo que alegadamente lhe foi causado; (7) o Ministério Público não logrou contabilizar e provar quais foram as concretas vantagens patrimoniais que alegadamente foram adquiridas através de facto ilícito; (8) o Ministério Público requereu a perda de vantagem patrimonial, alegando que os arguidos tiveram um incremento patrimonial no valor de € 1.518.005,94, que corresponde ao somatório do valor das “prestações tributárias devidas”; (9) o acórdão recorrido limitou-se confirmar, de forma totalmente arbitrária, o valor sugerido na acusação, pelo Ministério Público, sem considerar que o mesmo não corresponde ao concreto proveito patrimonial que resultou provado nos autos; (10) foi absolvido da prática de alguns crimes de abuso de confiança, que lhe eram imputados na acusação, mas tais valores não deixaram de ser incluídos no valor total da alegada vantagem patrimonial declarada perdida pelo tribunal recorrido; (11) o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto assente, reduzindo os valores totais cuja apropriação era imputada ao recorrente, mas tais valores (que o arguido comprovadamente não recebeu) não deixaram de ser incluídos no valor total da alegada vantagem patrimonial declarada perdida; (12) os perigos e os excessos do instituto da perda de vantagens, seriam perfeitamente evitáveis se o Ministério Público tivesse deduzido pedido de indemnização civil, uma vez que essa seria a única forma de garantir a igualdade de armas, o princípio do contraditório e a efectiva contabilização dos alegados prejuízos sofridos e das alegadas vantagens obtidas; (13) o Ministério Público não podia lançar mão da perda de vantagens – instrumento sancionatório – quando decidiu não usar os meios civis que tinha ao seu dispor, que são os mais indicados para o Estado responsabilizar civilmente o infractor.

Concluindo que a norma do artigo 111.º do Código Penal, na interpretação e na aplicação feita pelo acórdão recorrido, é inconstitucional, por violação dos princípios previstos no artigo 20.º, n.º 4, e no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, uma vez que permite uma diferenciação intolerável entre as armas disponíveis aos diferentes intervenientes processuais e restringe o princípio da presunção da inocência, imputando o ónus da prova ao arguido/recorrente.

27.4. Como se evidencia, o recurso tem como objecto, nesta parte, a decisão do Tribunal da Relação que, contrariamente ao decidido em 1.ª instância, declarou a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial no valor de € 1 518 005,94, quantia correspondente ao montante de que a Administração Tributária deixou de receber em consequência da prática dos crimes, com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 111.º do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março. Precisando, não se trata de uma decisão de perda alargada decidida de acordo com o regime estabelecido na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.

Nos termos daquele preceito, que, no essencial, corresponde ao n.º 1, al. b), do artigo 110.º, na redacção introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio – que transpõe a Directiva n.º 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia, alterando o Código Penal e a Lei n.º 5/2002, ajustando-os com vista a assegurar a plena conformidade do direito interno com aquela directiva (cfr., a este propósito, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 51/XIII, que esteve na origem da Lei n.º 30/2017) – a declaração de perda abrange as vantagens obtidas pelo agente de um facto ilícito típico, “sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé”.

Com a revisão do Código Penal de 1982, em 1995, a perda deixou de se referir às vantagens adquiridas através do “crime”, implicando, no seu teor literal, um facto ilícito típico culposo e punível – o que permitia que fosse considerada uma “pena acessória” [assim, DAMIÃO DA CUNHA, “Perda de bens a favor do Estado. Arts. 7.º-12.º da lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira)”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. vol. III, 2009, p. 138ss] – passando a constituir uma consequência jurídica da prática de facto ilícito típico “de natureza análoga à da medida de segurança”, como acentuava FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português. Parte Geral II. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas / Editorial Notícias, 1993, par. 1002ss). Tendo a providência de perda uma finalidade eminentemente preventiva, seria contrário a tal finalidade que esta “não tivesse lugar só porque o agente actuou sem culpa” (cfr. PEDRO CAEIRO, “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º 2, Abril-Junho 2011, pp. 306-307; para mais desenvolvimentos sobre a natureza do instituto, cfr. Raul de Campos e Lencastre Brito Coelho, A Recuperação de Ativos à luz da Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2018, repositório.ul.pt, ulfd137600_tese.pdf, pp. 98ss).

Acentuando que a perda, do ponto de vista das finalidades prosseguidas, de prevenção geral, se encontra “mais próxima das penas do que das medidas de segurança” e que nela não é possível identificar os pressupostos de perigosidade da medida de segurança (aspecto particularmente sublinhado por Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, Imprensa nacional Casa da Moeda, 2012, p. 97), defende Pedro Caeiro ser preferível conceber a perda (clássica) como um “tertium genus dentro da panóplia das reacções criminais” (loc. cit. p. 308). Ou então, sendo de excluir a natureza de pena acessória ou de efeito da pena ou da condenação ou de medida de segurança, poderá ainda, em linha com esta concepção, configurar-se a perda como uma “providência conservatória in rem”, porque dirigida ao seu objecto, podendo nela ver-se as características de uma “providência condenatória de natureza análoga ao pedido de indemnização civil”, embora com finalidades (preventivas) distintas desta (assim, Raul Brito Coelho, ob. cit., p. 104).

Considerou-se a este propósito no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 392/2015 (DR, Série II, de 23.09.2015): “A doutrina tem apontado, como fundamento político-criminal deste regime de perda de vantagens, finalidades preventivas (quer de prevenção geral, quer de prevenção especial) considerando que, ao procurar colocar o arguido na situação patrimonial em que estaria se não tivesse praticado determinado ilícito, subtraindo as vantagens resultantes do mesmo, se visa demonstrar que «o crime não compensa», ideia que é reafirmada «tanto sobre o concreto agente do ilícito-típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspeto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de prevenção)» (Cfr., Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pág. 632). No entanto, além destas finalidades preventivas, a este regime também está subjacente uma necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente. Um Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém através de condutas ilícitas ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas, mesmo que estas não correspondam a um dano de alguém em concreto. Neste regime geral, a perda das vantagens pressupõe a demonstração de que as mesmas foram obtidas, direta ou indiretamente, como resultado da prática de um facto ilícito, ou seja, exige a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido”.

E afirmou-se no acórdão de 30-10-2019 deste Supremo Tribunal [processo 324/14.0TELSB-N.L1-D.S1 (Raul Borges)]: “Como é sabido, a declaração de perda de bens a favor do Estado, ou o confisco, na via alargada ou não, e a punição do branqueamento (criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida –  assim, Faria Costa e Eduardo Paz Ferreira), servem, por vias diversas, o mesmo desiderato: a pretensão estadual de atacar as vantagens do crime. Na base está não um crime em sentido técnico (facto ilícito típico culposo e punível), mas a prática de um facto ilícito típico, designação presente nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 111.º do Código Penal. A propósito da perda a favor do Estado dos instrumentos, objectos ou direitos relacionados com o crime, prevista pela primeira vez no Alvará de 4 de Junho de 1825, e posteriormente no artigo 75.º do Código Penal de 1886, nos artigos 107.º a 109.º do Código Penal de 1982 e artigos 109.º a 111.º do Código Penal de 1995 (intocados nas Reformas de 1998 e de 2007) e da consideração da sua natureza jurídica como efeito penal da condenação, configurando-se como um «confisco especial», veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-05-1997, publicado na CJSTJ 1997, tomo 2, pág 201, por nós citado no acórdão de 28-05-2008, proferido no processo n. ° 583/08”.

27.5. Do que vem de dizer-se pode, pois, seguramente afirmar-se, no que releva para a economia da decisão, que a declaração de perda, independentemente da classificação que lhe possa ser atribuída, sendo uma consequência jurídica de carácter patrimonial dos ilícitos cometidos, não é uma pena nem uma medida de segurança, nem uma forma de indemnização civil por danos emergentes do crime, regulada na lei civil (artigo 129.º do Código Penal, Título VI da Parte Geral). Devendo notar-se, a este propósito, que a perda não se inclui nos capítulos relativos às penas (Capítulo II), às penas acessórias e efeitos das penas (Capítulo III) ou às medidas de segurança (Capítulo VII), mas num capítulo autónomo (Capítulo IX) do Título III (Das consequências jurídicas do crime) da Parte Geral (Livro I) do Código Penal.

Os factos ilícitos que lhe dão causa constituem crimes a que foram aplicadas penas de prisão em medida inferior a 5 anos de prisão, subtraídas à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, por se tratar de questão que não se relaciona com a decisão relativa à aplicação de pena de que este tribunal possa conhecer, nem de matéria relativa a pedido de indemnização civil que deva ser apreciada, impõe-se também concluir pela inadmissibilidade do recurso nesta parte.” (negrito nosso).

23. Ou seja, após enunciar a questão (“Quanto aos alegados erros na determinação da perda de vantagem patrimonial a favor do Estado, quanto ao respectivo valor e quanto ao recurso ao instituto da perda de vantagens do crime”) o acórdão pronuncia-se, decidindo “por se tratar de questão que não se relaciona com a decisão relativa à aplicação de pena de que este tribunal possa conhecer, nem de matéria relativa a pedido de indemnização civil que deva ser apreciada, impõe-se também concluir pela inadmissibilidade do recurso nesta parte.'

24. Em suma, em relação a todas as questões que o arguido invoca no seu requerimento (agora sob o prisma de nulidades que devem ser retificadas), conforme resulta dos trechos transcritos, existiu pronúncia do STJ no sentido de que o recurso é inadmissível para conhecer dessas questões.

25. Conforme se salienta, novamente, a fls 268 do acórdão, quando se escreve:

“28. Dispõe o artigo 420. °, n ° 1, al. c), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível. Sendo que a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior (artigo 414.º, n º 3).

Assim, devendo o recurso ser rejeitado relativamente a todas as questões enunciadas, sem prejuízo das rectificações do acórdão recorrido que, como se viu, se tornam necessárias e se comportam nos poderes do tribunal de recurso (artigo 380.º, n.º 2, do CPP), resta apreciar as questões de direito (artigo 434.º do CPP) relacionadas com a determinação da pena única conjunta, de 8 anos e 10 meses de prisão, aplicada pelo acórdão recorrido.

Sendo a decisão recorrível nesta parte, por se tratar de pena superior a 8 anos de prisão (artigo 399.º e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP), fica, assim, o conhecimento do recurso limitado à apreciação desta questão, a única que se inscreve nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 432.º, n ° 1, al. b), do CPP) [supra, 10 (m), (n) e (o)].” (negrete nosso).

26. E a fls 297 e 298, no dispositivo do acórdão, mais uma vez, de forma clara, consta que:

III. Decisão

47. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a)   Corrigir o acórdão recorrido, nos termos dos artigos 380.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP, de modo que da alínea C) da “decisão”, onde consta “Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido”, passe a constar:

“C) Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido, excepto:

1. Quanto à pena única, reduzir a pena de 9 anos para 8 anos e 10 meses de prisão;

2. Quanto aos montantes a pagar na procedência dos pedidos de indemnização civil, alterar de “68.006,57 €” para “61.263,21 €” o valor a pagar a Brex Revestimentos e Isolamentos, Ld.ª, de “68.850,41 €” para “68.166,74 €” o valor a pagar a Dirk Jan Geert De Proft e de “87.819,92 €” para “87.397,58 €” o valor a pagar a CC, mantendo-se, no mais, o decidido”.

b) Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso do arguido AA relativamente a todas as questões suscitadas no recurso, excepto no que diz respeito à determinação da pena única.

c) Declarar prescrito o procedimento criminal quanto aos dois crimes de fraude fiscal p. p. pelo artigo 103.º do RGIT referentes à sociedade “Adnarim - Comércio de Automóveis, Ld.ª” e à sociedade “Lubriquímica Combustíveis e Produtos Químicos, Ld.ª” e quanto ao crime de falsificação de documento p. p. pelo artigo 256.º, n.º 1, als. b), d) e e), do Código Penal referente à sociedade “Aires Oliveira & Azevedo Lda”.

d) Julgar procedente o recurso na parte relativa à determinação da pena única e, em consequência, reduzir a pena única de 8 anos e 10 meses de prisão para 6 anos e 6 meses de prisão.

e) Manter, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas.” (sublinhado e negrito nosso).

27. O acórdão alude, expressamente, às questões que o arguido traz novamente à tona no requerimento de arguição de nulidade, quer na sua fundamentação, quer no segmento decisório.

28. Decidindo que essas questões não poderiam ser conhecidas pelo STJ, em virtude da irrecorribilidade do acórdão da Relação … nessa parte. Ou seja, pronunciou-se. E mais, apesar de salientar que tal não prejudicava as “rectificações do acórdão recorrido”, entendeu que as mesmas não poderiam ser retificadas. Na realidade, onde se entendeu verificarem-se os pressupostos da retificação, o Tribunal efetuou a correção. Conforme fls 268 do acórdão, ali se assinalou: devendo o recurso ser rejeitado relativamente a todas as questões enunciadas, sem prejuízo das rectificações do acórdão recorrido que, como se viu, se tornam necessárias e se comportam nos poderes do tribunal de recurso (artigo 380.º, n.º 2, do CPP).Sendo que essas correções foram enunciadas e consignadas no dispositivo do acórdão e não incluem as questões que o arguido convoca no requerimento de arguição de nulidade.

29.  A decisão que determinadas questões não podem ser conhecidas por via da irrecorribilidade não consubstancia omissão de pronúncia, conforme é jurisprudência pacífica do STJ. A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379, n.º 1, al. c), ex vi art. 425, n.º 4, ambos do CPP, verifica-se quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada, no recurso, pelos sujeitos processuais, ou seja a mesma de conhecimento oficioso. Verifica-se que questão é o dissídio ou o problema concreto a decidir que diretamente contenda com a substanciação da causa de pedir e do pedido e que só existe omissão de pronúncia quando não se pondera a questão e se impunha conhecer da mesma [ac. STJ, Rel. Margarida Blasco, 14-05-2020, Proc. n.º 498/18.0YRLSB.S1 - 5.ª Secção]. Quando se rejeita o conhecimento de determinadas questões com fundamento na irrecorribilidade a “não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares”, pelo que “não existe, por isso, qualquer nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia” (Ac. STJ de 24-02-2021, Proc. n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1, Relator: Conselheiro Sénio Alves). No mesmo sentido, Ac. STJ, de 02-05-2018, Proc. n.º 736/03.4TOPRT.P2.S1 Relator Oliveira Mendes: “A rejeição do recurso ou a sua rejeição parcial por motivos formais, designadamente por irrecorribilidade da decisão impugnada ou de parte dela, como sucedeu no caso vertente, tem por efeito necessário o não conhecimento do recurso ou, no caso de rejeição parcial, o não conhecimento da parte rejeitada, não enfermando, assim o acordão visado da arguida omissão de pronúncia.” Posição idêntica podemos extrair da jurisprudência das Secções Cíveis. Entre outros, Ac. STJ, de 18-02-2021, Revista n.º 617/18.7T8PVZ.G1-A.S1, Relator: Conselheiro Tibério Nunes da Silva,: “O conhecimento, pelo STJ, das nulidades imputadas ao acórdão da Relação pressupõe que o recurso de revista seja admissível, o que, estando-se perante revista “normal”, é impedido pela existência de dupla conforme”.

30. No fundo, a discordância do arguido prende-se com a impossibilidade do conhecimento de tais questões por via da inadmissibilidade do recurso que interpusera do acórdão do Tribunal da Relação. Mas o acórdão reclamado justificou, claramente, os motivos pelos quais entendeu que tais questões não poderiam ser conhecidas em sede de recurso. E mais, aduziu os argumentos pelos quais entende que tal não afronta a Constituição da República Portuguesa. Como ali se escreveu:

15. Nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º. Dispõe o n.º 1 deste preceito que não é admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos» [al. e)] e «de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos» [al. f)], isto é, se ocorrer uma situação de verificação de dupla conforme.

Estas regras são aplicáveis quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso [assim, entre outros, os acórdãos (todos em www.dgsi.pt) de 13.1.2016. no Proc.174/11.5GDGDM.L1.S1 (João Miguel), de 18-02-2016, no Proc. 68/11.4JBLSB.L1-A.S1 (Armindo Monteiro), de 17-03-2016, no Proc. 177/12.2TDPRT.P1.S1 (Isabel Pais Martins), de 20-10-2016, no Proc. 597/14.8PCAMD.L1.S1 (Francisco Caetano), de 23-11-2016, no Proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1 (Sousa Fonte)].

O Tribunal Constitucional (TC) tem-se pronunciado pela conformidade constitucional deste regime, o que sucedeu, nomeadamente, no acórdão do Plenário n.º 186/2013, de 4.4.2013 (DR, 2.ª Série, de 09.05.2013), que decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do nº 1, do artigo 400º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão». Ainda a este propósito pode ver-se, entre outros, o acórdão do TC n.º 659/2011 que decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido em recurso pela relação que confirme a decisão da 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão».

Como tem sido repetido pelo TC, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» [por todos, os acórdãos do TC 64/2006, 659/2011 e 290/2014; neste sentido também, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14.03.2018, no processo 22/08.3JALRA.E1.S1.48, e de 30-10-2019, no processo 455/13.3GBCNT.C2.S1, em www.dgsi.pt, bem como o acórdão de 12.12.2018, no processo 211/13.9GBASL.E1.S1,www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/criminal_sumarios _ 2018.pdf, e ainda o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12, de 09.10.2013 (DR 1.ª série, de 12.11.2013)].

16. Este regime de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei» – e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais – de acordo com o qual «qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei»).

17. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, dispõem, assim, os sujeitos processuais de duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso. Querendo impugnar a decisão em matéria de facto, incluindo por via de arguição dos vícios da decisão em matéria de facto a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal – cfr., por todos, o acórdão de 2.10.2014, no Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt) e em matéria de direito, faculta a lei a via de recurso para o tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada. Porém, limitando o recurso a matéria de direito (artigo 403.º do CPP), a lei impõe caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: não excedendo 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior, tal competência pertence ao Supremo Tribunal de Justiça [artigos 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º do CPP]. A possibilidade de um segundo grau de recurso (de direito) para o Supremo Tribunal de Justiça, justificada pela gravidade das penas, releva da liberdade do legislador (como tem sublinhado o Tribunal Constitucional – cfr. nomeadamente, o acórdão TC 64/2006), reforçando o direito ao recurso garantido pela Constituição.

18.  Tratando-se de recurso interposto de decisão proferida pelo tribunal da Relação, não é aplicável a jurisprudência fixada no acórdão n.º 5/2017 (DR Série I de 23.06.2017) no sentido de que «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal colectivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

19.  Como tem sido repetidamente afirmado, estando este Tribunal, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso de uma decisão, encontra-se também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4), questões relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos, com constitucionalidade e com a determinação da pena ou de penas parcelares, em caso de concurso, de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP [cfr., nomeadamente o acórdão de 28.03.2018 (Proc. 22/08.3JALRA.E1.S1), cit. supra, e os acórdãos de 11.4.2012, ECLI:PT:STJ:2012:3989.07.5TDLSB.L1.S1.F6 (Oliveira Mendes) e ECLI:PT:STJ:2012:1042.07.0PAVNG.P1.S1.D1 (Raul Borges), de 3.6.2015, ECLI:PT:STJ:2015:293.09.8PALGS.E3.S1.83 (João Silva Miguel), de 07.05.2014, ECLI:PT:STJ:2014:250.12.7JABRG.G1.S1.06 (Oliveira Mendes) bem como o acórdão de 14.03.2018, ECLI:PT:STJ:2018:22.08.3JALRA.E1.S1.48]. «Estando o STJ impedido de sindicar o acórdão recorrido no que tange à condenação pelos crimes em concurso, obviamente que está impedido, também, de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação», lê-se no acórdão deste STJ de 12.03.2014, no Proc.1699/12.0PSLSB.L1.S1 (Oliveira Mendes), em www.dgsi.pt. [cfr. também o acórdão de 14.05.2015, Proc. 8/13.6GAPSR.E1.S1 (Nuno Gomes da Silva), no mesmo local]"

31. Sublinhe-se que o nosso CPP não coloca o arguido na situação de indefeso, impedindo-o de arguir nulidades do acórdão. É que, a impossibilidade de conhecer nulidades em casos de irrecorribilidade não preclude a possibilidade de reação, suscitando esses vícios perante o Tribunal que prolatou o acórdão. Conforme se escreve no Ac. STJ, de 05-11-2020, Proc. n.º 14514/16.7T9PRT.P1 - Relatora: Conselheira Margarida Blasco, “Não sendo o recurso admissível, conforme se decide, as eventuais nulidades de sentença ou acórdão, para serem conhecidas, devem arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão que delas enferma, em requerimento autónomo, nos termos do disposto nos arts. 379.º, n.º 2, do CPP, cujo regime é complementado pelo n.º 4 do 615.º do CPC. O prazo é de 10 dias, como estabelece o art. 105.°, n.° 1, do CPP.”. Pelo que, tais nulidades deveriam ter sido arguidas perante o Tribunal da Relação … .

32. É certo que, conforme salienta o referido Ac. STJ, 05-11-2020, Proc. n.º 14514/16.7T9PRT.P1, Relatora: Conselheira Margarida Blasco: “O facto de o recorrente ter arguido as nulidades em requerimento de interposição de recurso não é obstáculo ao seu conhecimento pelo tribunal recorrido, como se retira do art. 193.º, n.º 3, do CPC.”. Pelo que se decidiu: “Não cabendo ao Supremo [indevidamente solicitado] decidir sobre se a arguição das nulidades teve ou não lugar dentro do prazo previsto para o efeito, determina-se que, após o trânsito em julgado da presente decisão, se remetam os autos ao Tribunal da Relação, a fim de apreciar o requerimento de interposição do recurso como sendo de arguição de nulidades do acórdão recorrido.”

33.   Contudo, conforme já salientámos, no recurso interposto, o arguido não veio arguir as nulidades nos termos que o fez no ulterior requerimento após a prolação do acórdão. Essas questões foram invocadas sob outra “roupagem” (cf. pontos supra 6 a 25). Acresce que a solução propugnada em 32, no referido acórdão, reporta-se a situações em que existe uma rejeição in totum do recurso (por via de nulidades expressamente invocadas no recurso), remetendo-se os autos novamente para a Relação conhecer das nulidades. O que não sucedeu neste processo, em que se decidiu do segmento recorrível. E em que se decidiu o que era passível ser corrigido. Pelo que, sempre seria impossível qualquer aproveitamento. Sendo que, de todo modo, essa arguição de nulidade não constava da interposição de recurso. Em suma, as referidas nulidades deveriam ter sido invocadas perante o Tribunal da Relação.

34.   Mas diga-se, a latere, que não se vislumbra que, mesmo que o arguido tivesse arguido as referidas nulidades atempadamente, e estas fossem procedentes, as mesmas determinariam uma decisão final diversa em relação à medida da pena.

Na verdade, os erros que o arguido alega existirem cingem-se a diferenças pouco significativas, se atentarmos no montante global apropriado, o número de crimes, e de vítimas e demais fatores que se sopesaram. Atente-se que, em relação à sociedade Lubriquímica Combustíveis e Produtos Químicos, Ld.ª, o arguido invoca um erro de cálculo que se situa em 4.106,02€. Ou seja, ao invés de uma apropriação na ordem dos 95 000€, entende que deveria dar-se como assente uma apropriação na ordem dos 91.000€. E no que concerne a BB está em causa uma diferença de 2.693,35€. Ora, se atentarmos no acórdão da Relação, no que concerne aos crimes de abuso de confiança atinente àqueles ofendidos, existiu uma redução do montante que se julgou apropriado, mas que se considerou insuficiente para alterar a medida das penas parcelares. E, muito menos, diga-se, se vislumbra o condão de influir na pena única. Trata-se de uma gota de água que se diluiu na grandeza dos números em que está imersa. Ou seja, na dimensão global da apropriação e prejuízos, na quantidade de pessoas que foram afetadas, no número de crimes praticados, na persistência da atuação criminosa. Pelo que, a pena única aplicada (reduzida no STJ em mais de 1 ano em relação à condenação da Relação …), continuaria a ser uma pena justa, por proporcional, adequada e não excessiva, atentas as razões de prevenção e culpa que emergem do comportamento global do arguido, descritos no acórdão.

Por outro lado, em relação à perda de vantagens, o Ac. da Relação … determinou que se deveria atender aos valores entretanto pagos. De onde se interpreta que pretende ressalvar que podem existir “acertamentos” /imputações no montante que declarou perdido a favor do Estado, destarte por via de factos extintivos da obrigação, nomeadamente aquando da execução da decisão condenatória.

35.  Não obstante, apesar do arguido apelidar o seu requerimento de arguição de nulidade, e pedir a final que fosse declarado esse vício, no corpo da sua fundamentação acaba por suscitar a questão de um dever de correção pelo STJ, ao abrigo do art. 380 do CPP.

36. Nos termos do art. 380, n.º 1, al. b), do CPP (ex vi do n.º 3 e do art. 425, n.º 4, do CPP) cabe ao tribunal corrigir a sentença, oficiosamente ou a requerimento, quando “a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”.

37. É verdade que a “inadmissibilidade do recurso não obsta à correcção do acórdão recorrido, nos termos das als. a) e b) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 380.º, do CPP” (Ac. STJ, Rel. De 29-04-2020, Proc. n.º 928/08.0TAVNF.G1.S1 – Relator: Conselheiro Lopes da Mota, sumário do acórdão prolatado no presente) e que a “lei não obriga que seja o autor da decisão a rectificá-la, estando ao alcance do tribunal de recurso, neste caso o STJ, proceder à correcção” (Ac. STJ, de 17-09-2009, Proc. n.º 3466/02.0YRCBR.S1 – Relator: Conselheiro Maia Costa).

38. No entanto, o acórdão analisou e decidiu as questões que poderiam ser objeto de retificação. Conforme resulta do dispositivo final, deliberou-se “Corrigir o acórdão recorrido, nos termos dos artigos 380.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP, de modo a que da alínea C) da “decisão”, onde consta “Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido”, passe a constar: “C) Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido, excepto: 1. Quanto à pena única, reduzir a pena de 9 anos para 8 anos e 10 meses de prisão; 2. Quanto aos montantes a pagar na procedência dos pedidos de indemnização civil, alterar de “68.006,57 €” para “61.263,21 €” o valor a pagar a Brex Revestimentos e Isolamentos, Ld.ª, de “68.850,41 €” para “68.166,74 €” o valor a pagar a Dirk Jan Geert De Proft e de “87.819,92 €” para “87.397,58 €” o valor a pagar a CC, mantendo-se, no mais, o decidido”.” (negrito nosso).

39. Já em relação às questões que o arguido enuncia no requerimento de arguição de nulidade, entendeu-se não ser de proceder à retificação. Decidiu-se que não poderiam ser objeto de conhecimento pelo STJ. Conforme se exara no dispositivo do acórdão, deliberou-se “b) Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso do arguido AA relativamente a todas as questões suscitadas no recurso, excepto no que diz respeito à determinação da pena única.”, c)  Declarar prescrito o procedimento criminal quanto aos dois crimes de fraude fiscal p. p. pelo artigo 103.º do RGIT referentes à sociedade “Adnarim - Comércio de Automóveis, Ld.ª” e à sociedade “Lubriquímica Combustíveis e Produtos Químicos, Ld.ª” e quanto ao crime de falsificação de documento p. p. pelo artigo 256.º, n.º 1, als. b), d) e e), do Código Penal referente à sociedade “Aires Oliveira & Azevedo Lda”. d) Julgar procedente o recurso na parte relativa à determinação da pena única e, em consequência, reduzir a pena única de 8 anos e 10 meses de prisão para 6 anos e 6 meses de prisão. e) Manter, no mais, a decisão recorrida.” (negrito nosso).

40. O que também se extrai de fls 268 do acórdão, quando ressalta: devendo o recurso ser rejeitado relativamente a todas as questões enunciadas, sem prejuízo das rectificações do acórdão recorrido que, como se viu, se tornam necessárias e se comportam nos poderes do tribunal de recurso (artigo 380.º, n.º 2, do CPP). Sendo que, as correções que se entendeu que o STJ poderia fazer constam do dispositivo do acórdão e não incluem (como já se referiu) as questões que o arguido convoca no requerimento de arguição de nulidade.

41. Pelo que, nessa parte, impera o caso julgado formal e o princípio do esgotamento do poder jurisdicional. Decidindo que tais questões não devem ser objeto de retificação, e que não podem ser conhecidas pelo STJ, por serem irrecorríveis, as mesmas não podem ser alteradas por via do requerimento interposto pelo arguido/requerente. Como se menciona no Ac. STJ, de 18-02-2016, Proc. n.º 606/11.2TACHV.G1.S1- Relatora: Conselheira Isabel Pais Martins, “Proferido o acórdão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, o que significa que este tribunal, oficiosamente ou a requerimento, não pode alterar a decisão que proferiu nem os fundamentos em que ela se apoia e que, com ela, constituem um todo incindível (art. 613, n.º 1, do CPC, aplicável ao processo penal, nos termos do art. 4.° do CPP).”

42. É certo que esse mesmo Acórdão mencionado em 37 refere que “O princípio da extinção do poder jurisdicional não obsta, porém, a que o tribunal proceda à correcção da decisão sempre que a mesma falhe na observância das exigências contidas no art. 374.º, desde que essa falta não consubstancie uma nulidade da sentença, como decorre da al. a) do n.º 1 do art. 380.º do CPP, ou quando ela contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial, como estatui a al. b) do n.º 1 do mesmo artigo, sendo o art. 380.° aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, como estabelece o n.º 4 do art. 425.° do mesmo diploma.”.

43.   Contudo, diga-se, desde logo, a retificação requerida implicaria uma modificação essencial do acórdão prolatado.

44.    Conforme se assinala no Acórdão do STJ, de 23.04.2020, Proc. n. º 176/18.0GDTVD.L1.S1 – Relatora: Conselheira Helena Moniz, que se se debruçou sobre a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, “Não existe, pois, omissão de pronúncia, mas um diferente entendimento quanto às regras relativas à recorribilidade das decisões em processo penal, maxime, as decorrentes da articulação entre os arts. 432.º, e 400.º, n.º 1, do CPP. Quando muito poderia existir um erro de direito decorrente de uma errada interpretação daqueles dispositivos, porém estaríamos perante um erro, que não uma omissão de pronúncia, que poderia determinar uma correção da decisão apenas se não importasse uma modificação essencial da decisão [cf. art. 380.º, n.º 1, al. a), do CPP]. Ora, ainda que pudéssemos interpretar as normas referidas como admitindo o recurso quanto às questões relativas aos crimes em particular, o certo é que o seu conhecimento neste momento implicaria uma modificação essencial do acórdão que não é admissível, pelo que também por aqui improcede a pretensão do recorrente.”

45.    É que, na verdade, ao decidir que tais questões (que o arguido pretende retificar) não podem ser conhecidas, e pronunciar-se sobre os segmentos do acórdão da Relação … que poderiam ser retificados ao abrigo do art. 380, do CPP, a retificação que se requer teria de implicar, necessariamente, uma modificação essencial do acórdão do STJ.

46.     Modificação que implicaria conhecer questões que o acórdão entende estarem subtraídos ao poder de cognição do STJ, ou retificar o que se entendeu não ser admissível. O que demonstra a essencialidade da modificação que se requer, e impede o recurso ao mecanismo do art. 380 do CPP.

47. De todo modo se dirá, muito brevemente o seguinte. O arguido enxerta o pedido de retificação no requerimento de nulidade, a título de subsidiário. Não enquadrou essas questões no recurso para o STJ sob o manto do art. 380 do CPP, mas sim à luz de outros institutos (cf. pontos supra 6 a 25). Para além disso, no acórdão decidiu-se, expressamente, o segmento do acórdão da Relação … que poderia ser retificado.

48. Acresce que as questões suscitadas não poderiam ser retificadas porque não se verificam os pressupostos legais. Conforme se exara no Ac. STJ, de 18-02-2016, Proc. n.º 606/11.2TACHV.G1.S1- Relatora: Conselheira Isabel Pais Martins, “Os erros ou lapsos a que o art. 380.º, n.º 1, al. b), se refere são erros materiais na declaração da vontade do tribunal e não erros de julgamento. É necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o tribunal foi vítima de erro material: quis escrever uma coisa e escreveu outra. Há-de ser o próprio contexto da decisão que há-de fornecer a demonstração clara do erro material.”

49. Da leitura do acórdão recorrido não se pode concluir “sem sombra de dúvida, que o tribunal foi vítima de erro material: quis escrever uma coisa e escreveu outra.”.

50.  Na verdade, em relação à 1.ª questão suscitada – atinente à sociedade Lubriquímica-Combustíveis Químicos Lda. – relembre-se o que se escreveu no acórdão recorrido, pp. 338 a 340:

Quanto à sociedade Lubriquímica Combustíveis e Produtos Químicos, Lda:

Entende o recorrente que existe um lapso no valor total indicado na tabela constante do nº 9 dos factos provados uma vez que «o somatório do valor da correcção que consta de cada período tributário perfaz € 98.204,84 e não o valor de € 101.007,82».

For sua vez, o M°Pº considera que o valor errado não está no somatório mas sim numa das parcelas, pois «o Tribunal incorreu em lapso de escrita na transposição da tabela que consta do art. 314 da acusação, para o qual remeteu a pronúncia, na medida em que, no mês de Junho de 2006, na coluna relativa à correcção se fez constar o valor de 23.187,02, quando o valor correcto é de 26.000,00», devendo ser rectificado.

Efectivamente há divergência entre o que consta na coluna relativa de “Valor da Correcção” na pronúncia e no acórdão. Porém, nada nos permite qualificar como “lapso de escrita” uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorrecção material se não detecta da sua simples leitura.

O que se detecta é a existência de um erro de cálculo na soma dos valores da coluna donde constam os "Valores da Correcção", o qual pode ser corrigido, nos termos do art°380º, nº 1, al. b) do C.P.P. e se corrige pela seguinte forma.

Onde, no n.º 9 consta «Total: 101.007,82 €», deverá passar a constar «Total: € 98 204,84»

Quanto à impugnação da matéria de facto:

Facto nº 3, conjugado com o nº 9:

- o arguido apurou IVA no montante de € 9 423,88;

- recebeu da sociedade um cheque desse montante, emitido a favor da DGT, para seu pagamento;

- após isso, para seu proveito e com a finalidade de diminuir o valor do Imposto devido pela sociedade, o arguido adulterou ou mandou adulterar essa declaração periódica de IVA, alterando o campo 22, onde fez constar a quantia de € 15 823,78 de IVA dedutível;

- pagou € 423,88 de IVA;

- nesse período o valor do IVA a deduzir era de € 6 871,57, conforme o apurado em Inspecção realizada pelos serviços fiscais;

- o valor de IVA a pagar era de € 9 376,09, conforme o apurado pela inspecção de finanças;

- o valor da correcção foi de € 8 952,21 [€ 9 376,09 (IVA devido) € 423,88 (IVA pago)].

Assim, o montante de que o arguido se apropriou foi de € 9 000,00 (€ 9 423,88 (valor titulado pelo cheque que lhe foi entregue pelo legal representante da sociedade) - € 423,88 (IVA pago).

Já o valor a ter em conta no que ao crime de fraude fiscal concerne, é o da correcção de € 8 952,21. correspondente à diferença entre o IVA devido e o IVA pago.

Facto nº 7, conjugado com o nº 9:

- o arguido apurou IVA no montante de € 23 863,74;

-  recebeu da sociedade um cheque desse montante, emitido à ordem da IGCP, para seu pagamento;

- após isso, para seu proveito e com a finalidade de diminuir o valor do Imposto devido pela sociedade, o arguido adulterou ou mandou adulterar essa declaração periódica de IVA, alterando o campo 24, onde fez constar a quantia de € 2 967,42 de IVA dedutível;

- pagou € 23 863,74 de IVA;

- nesse período o valer do IVA a deduzir era de € 909,93, conforme o apurado em inspecção realizada pelos serviços fiscais;

- o valor de IVA a pagar era de € 25 921,23, conforme o apurado pela Inspecção de finanças;

- o valor da correcção foi de € 2 057,49 [€ 25 921,23 (IVA devido) - € 23 863,74 (IVA pago)].

No caso, o arguido não se apropriou de qualquer montante pertencente à sociedade.

O valor a ter em conta no que ao crime de fraude fiscal concerne, é o da correcção de € 2 057,49, correspondente à diferença entre o IVA devido e o IVA pago.

Assim e em conclusão:

O valor total de que o arguido se apropriou, pertencente à sociedade e a que deu destino diferente daquele para que lhe fora entregue, foi de 95 723,47 [€ 98 204,84 - (€423,88+2 057,49)].

Já o valor a ter em conta no que ao crime de fraude fiscal concerne, é o total da correcção - € 98 204,84 -, correspondente à diferença entre o IVA devido e o IVA pago,

Consequentemente, os n° 11, 18 e 23, passarão a ter a seguinte redacção:

11º Em virtude das alterações que o arguido AA foi introduzindo nos campos 20 22 e 24, ao longo dos anos e nos trimestres constantes na tabela supra, este obteve uma diminuição do valor do IVA a pagar pela soledade Lubrlquimica Combustíveis e Produtos Químicos, Lda, no conjunto daqueles trimestres, no montante de € 98 204,84, que corresponde à diferença entre o valor inicialmente apurado e comunicado e o valor resultante da adulteração

18º. Desta forma, o arguido AA apoderou-se das quantias que lhe haviam sido entregues pala sociedade Lubriquimica Combustíveis e Produtos Químicos, Ld.a, para pagamento do IVA dos trimestres supra referidos, dando-lhe um destino diferente ao que os mesmos se destinavam com o propósito de se locupletar, fazendo suas, ilegítima e conscientemente, tais quantias que sabia não lhe pertencer, prejudicando assim a sociedade em € 95 723,47.

23º O arguido AA, como consequência direta e necessária da conduta vinda de descrever, fez seu o montante de € 95 723,47, dando-lhe o destino que bem entendeu, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que atuava contra a vontade e em prejuízo da sociedade Lubriquímica Combustíveis e Produtos Químicos, Lda e dos seus legais representantes.

Note-se que a alteração, para menos, do valor de que o arguido se apropriou, não tem influência na qualificação do crime de abuso de confiança.

51. Se nos circunscrevermos ao escrito, não resulta do mesmo qualquer erro de cálculo. O Tribunal escreveu que existiu uma apropriação de 95 723, 47€, exarando que corresponde ao valor que foi entregue ao arguido 98 204,84€, subtraindo os valores de 423,88€+2057,49€ que efetivamente o arguido pagou a título de IVA. Não resulta do texto que o Tribunal da Relação queria escrever algo distinto. Pelo que, a questão apenas seria de se equacionar enquanto vício de raciocínio, erro de julgamento, que está subtraída ao conhecimento deste Tribunal, face à irrecorribilidade do acórdão nessa parte.

52. O mesmo se diga em relação à questão concernente a BB. No que ora releva, escreveu-se no acórdão recorrido, pp. 359 e 360:

Em conclusão:

O valor total de que o arguido se apropriou, pertencente à sociedade e a que deu destino daquele para que lhe fora entregue, foi de €_18 730,13 [21 693 48 - 2 963,35 (168,63+1 497,56+9,05+36,29+1 251,82) correspondente ao valor titulado pelos cheques.

Já o valor a ter em conta no que ao crime de fraude fiscal concerne, é o total da correcção - € 20 300,00

Consequentemente, os nºs 12, 16 e 18 passarão a ter a seguinte redacção:

12º. O arguido AA, em execução do seu plano, de forma a apoderar-se daquela diferença de € 18 730,13, à revelia de BB, na posse dos cheques supra referidos, que lhe foram entregues emitidos ao portador ou à ordem da ANEP, depositou-os em conta bancária de que era titular ou que podia livremente movimentar.

16º. Desta forma, o arguido AA apoderou-se dos cheques que lhe haviam sido entregues po BB para pagamento do IVA, nos trimestres supra referidos, dando-lhe um destino diferente daquele a que os mesmos se destinavam, com o propósito de se locupletar fazendo suas, ilegítima e conscientemente, de tais quantias, que sabia não lhe pertencer, prejudicando, assim, aquele empresário em € 18 730,13.

18º. O arguido AA, como consequência direta e necessária da conduta vinda de descrever, fez seu o montante global de € 18 730,13, dando-lhe o destino que bem entendeu, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que atuava contra a vontade e em prejuízo de BB.

  Note-se que a alteração, para menos, do valor de que o arguido se apropriou, não tem influência na qualificação do crime de abuso de confiança.

53. Também aqui não existe qualquer elemento no texto que nos permita concluir que o Tribunal da Relação não quis escrever que a alteração para menos “do valor que o arguido se apropriou, não tem influência na qualificação do crime do abuso de confiança”. O arguido invoca um erro de direito, que não cabe apreciar em virtude da irrecorribilidade.

55. E, igualmente, quanto à perda de vantagens, não resulta que o Tribunal da Relação … por lapso de escrita não tenha subtraído os montantes que o arguido menciona no seu requerimento de nulidade. Pelo contrário.

56. Como se escreveu a fls 390 do acórdão recorrido:

“Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, procede o recurso do MºPº, determinando-se, consequentemente, a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido, no montante de € 1 518 005,94, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias da dívida que tenham sido, entretanto, pagas”.

Ou seja, não resulta do texto do acórdão da Relação que, só por lapso, não tenha imputado quantias que refere o arguido.

O que resulta é que quis, efetivamente, declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 1 518 005,94, sem prejuízo de quantias que já “tenham sido, entretanto, pagas”.

Aliás, na esteira do recurso do MP para o Tribunal da Relação, onde se salienta a pp. 10, que “Uma coisa é indiscutível: como se enfatiza no Acórdão do TRP de 31.05.2017, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo, no qual, depois de se concluir pela possibilidade de declaração de perda de vantagem quando não haja pedido de indemnização civil pela Autoridade Tributária e Aduaneira, será sempre necessário, numa fase executiva, conhecer das contingências das cobranças tributárias subsequentes, uma vez que a Autoridade Tributária e Aduaneira apenas poderá ser ressarcida uma vez, sob pena de enriquecimento ilícito.

57. Concluindo, nem sequer se verificariam os pressupostos para uma retificação.

58. Suscita, ainda, o arguido, a nulidade de omissão de pronúncia, por não se ter conhecido das inconstitucionalidades invocadas nas conclusões n.ºs 21, 27, 35, 48, 59 e 82.

59. Ora, no que concerne às questões a que se reportam as conclusões n.ºs 21 27, 25, 48 e 82, foi decidido que as mesmas não poderiam ser conhecidas pelo STJ, por serem irrecorríveis. Como tal, as inconstitucionalidades suscitadas a propósito das mesmas ficam cobertas pelo manto da irrecorribilidade. Aliás, o que se extrai do que se escreveu a p. 234 do acórdão: “Como tem sido repetidamente afirmado, estando este Tribunal, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso de uma decisão, encontra-se também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4), questões relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos, com constitucionalidade e com a determinação da pena ou de penas parcelares, em caso de concurso, de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.°do CPP” (negrito nosso).

60. E, pelos motivos já assinalados, decidindo o Tribunal não conhecer, por extravasar a sua competência, não existe qualquer omissão de pronúncia.

61. Refere ainda o arguido que não foi conhecida a inconstitucionalidade que suscitou nas conclusões 59: “A medida concreta da pena única aplicada ao arguido/recorrente deverá ser reduzida para, no máximo, 5 anos de prisão, e deverá ser suspensa, sob pena de violação evidente dos artigos 1o, 2o, 18°, n.°2, e 27°, n.° 1, todos da CRP, bem como, dos artigos 71°e 77° do Cód. Penal.”

62. Antes de mais, não se pode dar como adquirido que a inconstitucionalidade se encontra devidamente invocada. A inconstitucionalidade tem de se reportar a um concreto sentido normativo que foi acolhido no confronto com uma concreta ocorrência da vida real. O arguido limita-se a apelar à violação de normas da CRP, mas não conexionado com uma determinada interpretação normativa, nem circunscrevendo factos.

Alguma tendência para a insubstancialidade das alegações neste sentido não deverá ser tida como error communis a fazer lei (cf. P. Ferreira da Cunha, Síntese de Justiça Constitucional, Oeiras, A Causa das Regras, 2018, p. 131 ss.; Idem, Direito Constitucional Geral, nova ed., Lx., Quid Juris, 2013, p. 451). Com efeito, desde logo, o Acórdão do Tribunal Constitucional 244/2007, Processo n.º 63/07, Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos; Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8).

63. Não obstante, na decisão da pena única sopesou-se os arts. 18.º e 27 da CRP. Como se escreveu a pp. 273/274 do acórdão:

“Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.°, n.° 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.°, n.° 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade - segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos -, adequação - que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins - e da proporcionalidade em sentido estrito - de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na «justa medida», impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).” (negrito nosso).

64. E, seguidamente, explicou-se, como essas normas constitucionais se projetam na medida da pena (p. 274 do acórdão):

“A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e n.º 1 do 71.º do Código Penal).”(negrito nosso).

65.  Subsequentemente, de forma exaustiva, é explicado o raciocínio pelo qual se entende necessária, adequada e proporcional uma pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, reduzindo a pena única de 8 anos e 10 meses de prisão em que o arguido tinha sido condenado pelo Tribunal da Relação. Entendeu-se, portanto, que “um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto”, não permitiria a medida da pena propugnada pelo arguido.

66. Relembre-se parte do que se exarou no acórdão:

41.3. O valor total dos prejuízos causados aos ofendidos pelos crimes de abuso de confiança perfaz, assim, um valor total de, no mínimo, 2.403.184,91 euros.

O valor dos prejuízos reparados pelo arguido (pagamento de impostos com ressarcimento das sociedades – supra, 41.1.2.) foi de 160.551,29 euros. Levando em consideração os valores indicados em 41.1.1, e admitindo-os pelo seu máximo, no total de 196.605,55 euros, a reparação poderá ter atingido o montante de 357.156,84 euros.

Ou seja, no que releva para a decisão da parte criminal, os dados revelados pela matéria de facto provada permitem concluir, com segurança, que os danos produzidos pela actividade criminosa do arguido agora em análise (crimes de abuso de confiança e de falsificação) ultrapassam 2 milhões de euros.

43. A actividade criminosa do arguido decorreu entre 2004 e 2008, durante cerca de 4 anos, em execução de um plano previamente concebido que, no essencial, consistia na adulteração dos dados relativos a declarações de impostos, de modo a apropriar-se das quantias que lhe eram entregues para o efeito, bem como de importâncias entregues para pagamento de contribuições à Segurança Social, rasurando cheques de cujas importâncias se apropriava e falsificando certidões de regularização de dívida.

É muito elevado o grau de ilicitude dos factos, considerados no seu conjunto, tendo em conta o número de crimes praticados, os elevados valores dos montantes das apropriações, consideradas individualmente e na sua totalidade, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, a repetida e insistente violação dos deveres que particularmente se impunham ao arguido na sua qualidade de técnico oficial de contas, bem como muito elevada é a determinação criminosa, com intenção persistente ao longo do tempo, de modo a organizar a actividade criminosa visando a obtenção ilícita dos elevados valores indicados, ocultando-a dos seus clientes e aproveitando-se da confiança que estes nele depositavam. Militam, pois, severamente contra o arguido as circunstâncias a que se referem as alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 71.º do Código Penal.

As condições económicas e sociais do arguido à data dos factos [al. d) do mesmo preceito], tendo em conta os tipos de crime cometidos no exercício da sua actividade de técnico oficial de contas, que requeriam, necessariamente, boas relações no meio empresarial, de modo a beneficiar da confiança dos seus clientes, não podem beneficiar o arguido, pois que, elas mesmas, não deixaram de proporcionar as condições requeridas à perpetração dos crimes. Das condições pessoais do arguido, actualmente com 62 anos de idade, que revelam o seu grau de inserção social e familiar e condições de vida sem carências de ordem económica, pode extrair-se que os factos praticados correspondem a uma deliberada opção de vida, com vista à rápida obtenção de elevados proveitos financeiros no meio empresarial que conhecia e em que inscreveu a sua actividade.

A ausência de antecedentes criminais à data dos factos [al. e) do mesmo preceito], associada à circunstância de o arguido vir, posteriormente, a sofrer outras condenações por factos, de natureza similar, cometidos em ocasiões muito próximas, anteriores e posteriores, não tem relevante valor de atenuação, sendo que, face à natureza e circunstâncias dos crimes cometidos, poderia mesmo contribuir para reforçar a confiança necessária a que o arguido levasse a efeito a sua actividade.

O mesmo sucede quanto a outros aspectos da conduta anterior ao crime, sendo que, quanto à conduta posterior, apesar da parcial reparação dos danos causados, não revelam arrependimento manifestado em efectiva determinação para reparar, tanto quanto possível, as consequências dos crimes praticados (mesma alínea do n.º 2 do artigo 71.º]. Foram muito elevadas as importâncias de que o arguido se apropriou e que usou em proveito próprio, não estando demonstrado que não pudesse, na medida do possível, restituir tais importâncias que não lhe pertenciam.

As circunstâncias em que a actividade criminosa foi preparada e desenvolvida e os fins visados permitem concluir que os factos praticados revelaram manifesta falta de preparação do arguido para conduzir uma conduta lícita e que foi essa falta de preparação para agir com respeito pelas regras do direito, que particularmente se impunham ao arguido, que o orientou na sua actividade, o que não pode deixar de constituir um efeito agravante [al. f) do mesmo preceito], dadas as elevadas necessidades de prevenção especial evidenciadas, que justificam a aplicação da pena. As circunstâncias dos factos provados presentes no “facto complexivo”, expressam elevada censurabilidade, podendo afirmar-se que aqueles factos, pelo seu nível de organização, planeamento, interligação e modus operandi, manifestam consideráveis necessidades de prevenção especial.

Os crimes cometidos não constituem factos isolados, mas repetidos de forma essencialmente homogénea e organizada, o que, nessa medida, não poderá deixar de ser tido como efeito agravante.

A benefício do arguido militam essencialmente as circunstâncias de os factos terem sido cometidos há mais de 12 anos, ou seja, o longo tempo decorrido desde a prática dos crimes, de o arguido não ter sido condenado por outros crimes praticados em data posterior a 14.08.2009 (a que corresponde a condenação, em 27.09.2016, no processo 1171/12.9TAVNG) e a idade actual do arguido (62 anos), o que, atenua consideravelmente as exigências actuais de prevenção especial de reintegração, que devem ser tidas em conta no momento de determinação e aplicação da pena. Na consideração destas exigências deve evitar-se, tanto quanto possível, a dessocialização, satisfeitas que se mostrem as de prevenção geral, de protecção dos bens jurídicos lesados, em função da gravidade concreta da lesão, na ponderação das circunstâncias relevantes concorrentes por via da culpa e da prevenção, nos termos anteriormente ponderados.

Na determinação da pena deverá também, com se referiu, ter-se em conta a exclusão das penas correspondentes aos crimes cujo procedimento criminal se encontra prescrito e que, assim, não podem concorrer para a formação da pena única.

43. Não se considera a possibilidade da pretendida atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º do Código Penal, pois que, como tem sido decidido por este tribunal (cfr. acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER.S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1), esta possibilidade apenas deve ser ponderada com relação à aplicação das penas singulares aplicadas aos crimes em concurso, o que, neste caso, como se disse, tendo em conta a medida destas, se encontra subtraído à competência deste tribunal no âmbito dos seus poderes de conhecimento do recurso, limitados às questões respeitantes à determinação da pena única conjunta resultante do concurso de crimes.

44.  Em conformidade com o exposto, na ponderação conjunta dos factores de determinação da pena (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal) e dos factos e da personalidade do arguido neles revelada (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal), justifica-se uma redução da pena única conjunta aplicada, que, assim, se fixa em 6 anos e 6 meses de prisão, a qual, tendo em conta a moldura da pena do cúmulo e todas as circunstâncias anteriormente referidas, nesta medida se considera como necessária, adequada e proporcional à realização das finalidades preventivas de protecção dos bens jurídicos violados e de reintegração (artigo 40.º do Código Penal).

Pelo que, embora com fundamentos diversos, procede parcialmente o recurso.

45.  Sendo a pena superior a 5 anos, que constitui pressuposto formal requerido, mostra-se excluída a possibilidade de suspensão de execução da pena de prisão (artigo 50.º do Código Penal), não havendo, pois, que conhecer desta questão.” (negrito nosso).

67. Ou seja, existiu uma pronúncia expressa em relação à conformidade constitucional da medida da pena única com a CRP. Ao aludir-se aos arts. 18.º e 27 da CRP, explicar-se a sua projeção na medida pena, enunciarem-se os critérios que permitem alcançar a proporcionalidade da pena, e mencionar-se expressamente que a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, é necessária, adequada e proporcional, naturalmente que resulta de forma inequívoca uma decisão no sentido da compatibilização constitucional. Em relação à suspensão da execução da pena de prisão o acórdão pronunciou-se, também expressamente, excluindo essa possibilidade, por apenas ser admissível se a pena concreta não ultrapassasse os 5 anos de prisão.


68. Por fim, no próprio requerimento de arguição de nulidade o arguido invoca inconstitucionalidades:

59. Face ao exposto, o arguido não pode deixar de suscitar a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alínea e), ambos do Cód., Proc. Penal, quando interpretadas no sentido de que os lapsos, erros e contradições evidentes do tribunal recorrido não podem ser apreciadas pelo tribunal de recurso, se os

60. Tal interpretação do STJ é inconstitucional, porque viola o direito ao recurso e o acesso a todas as garantias de defesa, consagradas no artigo 32º, n.º 1 da CRP, restringindo-os de forma desproporcionada, intolerável e injustificável, o que aqui se invoca para dar cumprimento ao art.9 72 da LTC.

61. Com efeito, o arguido/recorrente legitimamente confiou que lhe seria garantido, pelo menos, um grau de recurso em todas as questões que invocasse em sua defesa e que o Tribunal da Relação conseguiria apreciar, julgar e extrair todas as consequências lógicas e legais da parte em que julgou tal recurso procedente.

62. Porém, por lapso, erro ou esquecimento, isso acabou por não acontecer.

63. E, inexistindo uma coerência lógica no acórdão do Tribunal do Tribunal da Relação, independentemente das penas parcelares aplicadas aos crimes respectivos, o STJ não podia ter deixado de corrigir essa parte do acórdão recorrido.

64. Nessa medida, a interpretação feita pela decisão do STJ, relativamente às normas previstas nos artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alínea e), do Cód. Proc. Penal, acaba também por violar os princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança consagrados no artigo 2º da CRP.


69. Antes de mais, convém assinalar a jurisprudência do STJ, a propósito de inconstitucionalidades suscitadas no requerimento de arguição de nulidade e/ou retificação.

Conforme ressalta o ac. STJ, de 27-02-2020, Proc. n.º 66/13.3PTSTR-A.S1 - Relator: Conselheiro Francisco Caetano: "I - As nulidades de sentença em processo penal têm a sua sede no art. 379.º, do CPP e prendem-se com a omissão de fundamentação ou da decisão, condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, ou com a omissão ou excesso de pronúncia: II - A reclamação arrimada em pretensas nulidades de acórdão não é a sede para suscitar ex novo questões de constitucionalidade sobre as quais o tribunal reclamado, à falta de arguição (art. 70.º, n.º 1, al. b), da LTC) se não pronunciou.”. E a propósito da rectificação, decidiu-se no Ac. STJ, de 02-05-2018 Proc. n.º 736/03.4TOPRT.P2.S1 - Relator: Conselheiro Oliveira Mendes,: “I - O incidente previsto no art. 380. °, do CPP, sob a epígrafe “correcção da sentença”, trata-se de incidente que, grosso modo, abrange os institutos da rectificação, esclarecimento e reforma da sentença, não sendo o meio processual adequado de denúncia ou invocação de inconstitucionalidades, sendo certo que o meio próprio de denúncia ou arguição de inconstitucionalidades das decisões é o recurso, no caso para o TC, pressupondo obviamente a ocorrência dos requisitos e condicionalismos legalmente exigíveis.'

70. De todo modo, em relação à conformidade constitucional da interpretação que não admite o conhecimento de quaisquer questões relacionadas com os crimes, cuja esfera de conhecimento extravasa a competência do STJ, existiu pronúncia no acórdão, conforme já se referiu anteriormente.

71. Por outro lado, o sentido de interpretação que o arguido invoca não corresponde à decisão do STJ. Na verdade, o arguido suscita a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 432.°, al. b) e 400.°, n.° 1, al. e), do CPP, “quando interpretadas no sentido de que os lapsos, erros e contradições evidentes do tribunal recorrido não podem ser apreciadas pelo tribunal de recurso”.

72. Ora, o acórdão em nenhum momento afirmou da existência da evidência de lapsos, erros e contradições, pelo que nunca poderia ser suscitada esta dimensão da inconstitucionalidade.

73. Em suma, deve improceder in totum o requerido.


II - Pedido de retificação do Ministério Público:

74.   Solicita o Ministério Público a retificação do acórdão da Relação …, pelos motivos supratranscritos, requerendo que se retifique a quantia de € 1.518,94, referida no 2.º parágrafo do dispositivo do Ac. da Relação …, por se tratar de lapso de escrita, para € 1.518.005,94, cuja perda efetivamente se quis determinar no aresto.

75.   Esta retificação não suscita qualquer dúvida, nem sequer é controversa, não só atenta a ausência de resposta do arguido, mas porque resulta evidente de todas as peças processuais que constam dos autos. Na verdade, se compulsarmos a acusação, acórdãos dos Tribunais de Recurso, recurso do arguido, resulta patente que todos consideram que o valor que o acórdão da Relação … decidiu declarar perdido foi 1.518.005,94€ (sem prejuízo da ressalva que fez). Ressalte-se que o arguido no recurso para o STJ dá por assente que a decisão de perda de vantagens foi nesse valor e o mesmo sucede no requerimento de arguição de nulidade.

76.    E, se nos quisermos ater ao acórdão do Tribunal da Relação …, o lapso de escrita é evidente, bastando confrontar a fundamentação com o dispositivo.

Assim, na p. 390, escreveu-se:

Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, procede o recurso do Mº Pº, determinando-se, consequentemente, a perda a favor do estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido, no montante de € 1 518 005,94, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias da dívida que tenham sido, entretanto, pagas.

E logo de seguida, a p. 391, no dispositivo, escreveu-se:

B. Julgar procedente o recurso do MºPº e, consequentemente, determinar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelo arguido, no montante de € 1 518,94, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (Autoridade Tributária incluída) ou de terceiros de boa fé, bem como da dedução de eventuais quantias da dívida que tenham sido, entretanto, pagas.

77. Trata-se, apenas, de um evidente erro ou lapso (dir-se-ia outrora lapsus calami), por omissão, que pode corrigir-se (artigo 380.º, n.º 1, al. a) e b), ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP), pois que não se suscitam quaisquer dúvidas quanto aos fundamentos e sentido da decisão, sem quaisquer outras consequências, nomeadamente ao nível da nulidade do acórdão recorrido por ocorrência do motivo previsto nos artigos 374, n.º 3, al. b), e 379, n.º 1, al. a), do CPP (o acórdão contém a decisão condenatória, só que esta enferma de um lapso quanto à indicação do valor).

78. Pelo que assiste plenamente razão à pretensão do Ministério Público.


III

Dispositivo



Termos em que, decidindo em conferência, a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acorda em:

a) Julgar totalmente improcedente o requerimento de arguição de nulidades por parte do requerente arguido.

b) Julgar procedente o pedido de retificação do Ministério Público e, em consequência, determinar a retificação do lapso de escrita que consta do 2.º parágrafo do dispositivo do Acórdão da Relação … e assim: onde consta “€ 1.518,94”, deverá constar, € 1.518.005,94.

Custas pelo requerente arguido e Taxa de Justiça:   5 UCs


Supremo Tribunal de Justiça, 28 de abril de 2021

Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta