DELIBERAÇÕES SOCIAIS
IMPUGNAÇÃO DAS DELIBERAÇÕES
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
Sumário

I - Nos casos em que os sócios deliberem, em assembleia geral, a dissolução da sociedade comercial, esta dissolução só se verifica na data dessa deliberação, se tal deliberação social não tiver sido impugnada judicialmente. No caso de a deliberação de dissolução ter sido objecto de impugnação judicial, aquela só opera os seus efeitos na data do trânsito em julgado da sentença que não invalida a deliberação e confirma a dissolução deliberada (improcedência da acção), tendo a pronúncia judicial, então, verdadeira natureza constitutiva (cfr. art. 142º, nº 4 do CSC).
II - Isto significa que, nestes casos de impugnação judicial da deliberação social de dissolução da sociedade, estando os efeitos da deliberação de dissolução pendentes até à pronúncia do tribunal, nunca esta acção de impugnação judicial se poderá extinguir, pois que, por força da deliberação de dissolução, não se verifica qualquer impossibilidade da lide prosseguir. Bem pelo contrário, o que o legislador prevê é justamente que a acção de impugnação judicial tenha que prosseguir, de tal forma que a dissolução deliberada pelos sócios só poderá operar os seus efeitos na data do trânsito em julgado da sentença que vier a não invalidar a deliberação e a confirmar a dissolução deliberada (improcedência da acção).
III - As deliberações sociais (onde se incluem a que deliberou a dissolução da Sociedade) adoptadas por alguns dos sócios em assembleia geral cujo aviso de convocação foi assinado por pessoa que não tinha competência para esse efeito (por se tratar de um gerente suspenso) - cfr. art. 56º, nº 2 do CSC - são nulas (art. 56º, nº 1, al. a) do CSC) por vício do procedimento.

Texto Integral

APELAÇÃO Nº 8497/17.3T8VNG.P2

Sumário (elaborado pelo Relator- art.º 663º, nº 7 do CPC):
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Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 2
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
I. RELATÓRIO.
Recorrente(s): - B… (liquidatário, da sociedade C…, Lda., Ré nos presentes autos)
Recorrido(a)(s): - D…;
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D… intentou a presente acção de impugnação de deliberações sociais contra C…, LDA., com sede na Rua … nº .., concelho de Paredes, …-… Paredes, pedindo que sejam declaradas nulas, ou anuladas, todas as deliberações tomadas na assembleia-geral da sociedade ré de 08 (oito) de Setembro de 2017, com as demais consequências legais.
Alega para tanto e, em síntese, que:
-É sócio da ré.
-Em Assembleia Geral Ordinária da ré, realizada no dia 18 de Julho de 2016, foi aprovado, com os votos favoráveis dos sócios E…, B… e “F…, Lda.” os seguintes pontos da ordem de trabalhos:
“1. Discutir, apreciar e votar o Relatório e Contas do exercício de 2015.”
“2. Discutir, apreciar e votar uma proposta de aplicação dos resultados.”
“3. Deliberação sobre as remunerações dos gerentes com ratificação das que têm vindo a ser auferidas.”
“4. Deliberação sobre os critérios de atribuição de comissões aos vendedores com ratificação das que têm vindo a ser auferidas.”
- O autor, legalmente representado por sua mãe, votou contra todos os pontos.
- As deliberações tomadas naquela assembleia geral foram objecto de impugnação, cujo processo corre seus termos pelo Tribunal – Juiz 3 – Proc.º 5708/16.1T8VNG.
- Encontra-se, ainda, pendente neste Tribunal a acção com o Proc.º 5985/17.5T8VNG - Juiz 1, no âmbito da qual foi decretada a suspensão dos gerentes E… e B…, por existência de perigo de lesão grave e dificilmente reparável do direito.
-Com data posterior à decisão de suspensão dos gerentes das suas funções, estes, por sua deliberação procederam à alteração da sede social, bem como deliberaram a liquidação e dissolução da sociedade.
-Por força da decisão proferida no âmbito do Proc. nº 5985/17.5T8VNG -Juiz 1, citado, os gerentes suspensos estavam impedidos de convocar qualquer assembleia geral de sócios.
-Com data de 5 de Agosto de 2017 foi emitida uma carta assinada por pessoa que não se consegue identificar, com o intuito de se convocar uma assembleia geral de sócios da sociedade ré, a ter lugar no dia 8 de Setembro de 2017, na sede social e com a seguinte ordem de trabalhos;
a) Análise, discussão e deliberação do Relatório de Contas do exercício de 2016;
b) Análise, discussão e deliberação das contas do exercício de 2016;
c) Deliberar a dissolução e liquidação da sociedade.
-Na data de 5 de Agosto de 2017, apenas o autor se encontrava designado gerente e representante especial da sociedade e não foi este que convocou a assembleia.
O autor comunicou aos sócios da sociedade ré a impossibilidade de se realizar a assembleia, quer, por não se encontrar validamente convocada que, por não se encontrarem apresentadas as contas da sociedade.
Conclui que, a assembleia sob apreciação não se pode considerar regularmente convocada, por não se encontrar efectuada por quem tem poderes para o efeito, sendo, como tal, inexistente, logo, as deliberações tomadas e que constam do documento denominado acta nº 1 do 3º Livro da sociedade ré, são nulas nos termos do disposto no art. 56º, nº 1, al. a) do Código das Sociedades Comerciais.
Acrescenta que, são ainda nulas, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 56º do Código das Sociedades Comerciais as deliberações;
“Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja o ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.
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Citada a Ré, esta não veio apresentar contestação.
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Na sequência, foi proferido despacho saneador/sentença que julgou procedente a acção.
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Interpôs recurso dessa decisão, o liquidatário da Ré.
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De seguida, foi proferido Acórdão no seguinte sentido:
“Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e, consequentemente, por falta de citação, anular todo o processado e determinar a remessa dos autos à primeira instância para apreciação da invocada incompetência do tribunal e, eventualmente, para processamento do incidente de habilitação (nos) termos do art. 372º do CPC”.
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Em cumprimento do Acórdão, o tribunal recorrido ordenou o prosseguimento da acção e considerando verificada a dissolução da sociedade, proferiu despacho a determinar que a acção prosseguisse contra o liquidatário da Ré Sociedade (e seu sócio) B….
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Devidamente citado, veio apresentar contestação nos autos, onde invoca:
- ineptidão da petição inicial;
-Ilegitimidade activa e passiva;
-Extinção da instância.
-extemporaneidade de Impugnação da Assembleia de 08 de Setembro de 2017, argumentando, quanto a esta questão, que o prazo para a proposição de acção de anulação é de 30 dias, conforme artº 59º do CSC, pelo que tendo esse prazo natureza substantiva, aplica-se-lhe, nos termos do art. 298º, nº 2 do CC, o regime próprio da Caducidade.
Reconhece que, no âmbito do processo Proc. nº 5985/17.5T8VNG - Juiz 1, foi decidido pelo Tribunal a suspensão dos gerentes, mas argumenta que tal apenas assim ocorreu porque não foi apresentada oposição ou recurso à decisão da suspensão dos gerentes pelo anterior mandatário da Ré.
Impugna a factualidade vertida no articulado em referência do AA ao processo 5608/16.1T8VNG, justificando que aqui os gerentes não foram destituídos, como alega o autor. Acrescenta que naqueles autos, já houve decisão de extinção da instância nos termos do art. 277º do CPC.
Pede a improcedência da acção com absolvição da instância por procedência da matéria de excepção ou a absolvição do pedido.
De igual modo, pede a condenação do autor como litigante de má-fé.
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Foi cumprido o contraditório quanto à matéria de excepção e pedido de litigância de má fé deduzida.
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Na peça processual apresentada o autor veio dizer que inexiste qualquer caducidade da acção, porquanto a deliberação é nula e a nulidade é susceptível de ser invocada a todo tempo.
Pede a improcedência do pedido de litigância de má fé deduzida.
Peticiona contra o réu a condenação como litigante de má fé.
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Foi proferida despacho saneador em que se julgou improcedente a matéria de excepção relativamente à nulidade do processo fundada em ineptidão da petição inicial, ilegitimidade activa e passiva, bem como, de igual modo, improcedeu o pedido de extinção da instância.
De igual modo, se decidiu que o processo também reúne já todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, seja no que diz respeito à excepção peremptória de caducidade invocada na contestação, seja no que diz respeito ao pedido formulado pelo Autor, pelo que se determinou a notificação das partes para se pronunciarem, o que fizeram.
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De seguida, foi proferida a seguinte sentença:
“V. Decisão:
Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente e, em consequência, declaram-se nulas todas as deliberações aprovadas na assembleia geral da sociedade “C…, Lda.” realizada no dia oito de Setembro de dois mil e dezassete.
Julgam-se improcedentes os pedidos de litigância de má fé formulados.
Custas a cargo da ré.
Registe e notifique.”.
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É justamente desta decisão que a Recorrente G…, Lda. veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
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Foram apresentadas contra-alegações pelo Recorrido, tendo este pugnado pela improcedência do Recurso apresentado.
Apresentou as seguintes conclusões:
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente coloca as seguintes questões que aqui importa apreciar:
1. a nulidade inominada da dispensa de audiência prévia/ nulidade da sentença nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC;
2. impossibilidade da lide prosseguir;
3. a petição inicial é inepta; inutilidade da lide, por falta de acta com data deliberativa de 08 de Setembro de 2017; erro de julgamento.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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O Tribunal de Primeira Instância considerou como factualidade relevante a seguinte:
III. Fundamentação
A) Factos provados:
Com relevo para a decisão da causa, e tendo por base as regras distributivas do ónus da prova e a posição das partes manifestada nos respectivos articulados, consideram-se provados os seguintes factos:
1- O autor é titular de uma quota no valor nominal de €8.437,00 no capital social da sociedade C…, Lda.
2-No dia 18 de Julho de 2016 foi realizada uma Assembleia Geral ordinária da sociedade C…, Lda., com a seguinte ordem de trabalhos:
“1. Discutir, apreciar e votar o Relatório e Contas do exercício de 2015.” “2. Discutir, apreciar e votar uma proposta de aplicação dos resultados.”
“3. Deliberação sobre as remunerações dos gerentes com ratificação das que têm vindo a ser auferidas.”
“4. Deliberação sobre os critérios de atribuição de comissões aos vendedores com ratificação das que têm vindo a ser auferidas.”
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3- Na Assembleia Geral mencionada em 2), foi decidido, com os votos favoráveis dos sócios E…, B… e “F…, Lda.”, aprovar os pontos 1, 2, 3 e 4 daquela ordem de trabalhos;
4- O autor, representado por sua mãe, votou contra todos os pontos referidos em 2).
5- As deliberações tomadas naquela assembleia geral foram objecto de impugnação por parte do Autor, no âmbito do processo que correu seus termos pelo Tribunal – Juiz 3 – Proc.º 5708/16.1T8VNG.
6- Por decisão proferida em 14 de Julho de 2017 pelo Tribunal do Comércio de Gaia no âmbito da acção com o Proc. nº 5985/17.5T8VNG - Juiz 1, foi decretada a suspensão dos gerentes E… e B…, nomeando-se para assumir essa gerência o, aqui, autor.
7- Em 27/7/2017 foi registada a alteração da sede social da ré.
8- Com data de 5 de Agosto de 2017 é remetida ao autor, que a recebeu, uma carta através da qual lhe é comunicada a convocatória para uma assembleia geral de sócios da sociedade Ré para o dia 8 de Setembro pelas 15h00 na sede social.
9- Por força da decisão referida em 6), na data de 5 de Agosto de 2017 apenas o autor se encontrava designado gerente e representante especial da sociedade.
10- Não foi o Autor que convocou a assembleia referida em 8).
11- Na carta referida em 8) constava a indicação da seguinte ordem de trabalho:
a) Análise, discussão e deliberação do Relatório de Constas do exercício de 2016;
b) Análise, discussão e deliberação das contas do exercício de 2016;
c) Deliberar a dissolução e liquidação da sociedade.
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12)A Assembleia referida em 11) consta da acta n.º 1 do 3.º livro da sociedade C…, Lda.”.
13) Dessa acta consta que na assembleia em causa estiveram presentes os sócios E…, B… e a sociedade F…, devidamente representada, com carta mandadeira acompanhada de cópia de acta da assembleia geral da mandante que concedeu poderes e foi nomeada, H….
14) Consta da mencionada acta que foi deliberado liquidar e dissolver a sociedade Ré e nomeado como liquidatário judicial B….
15) O autor não esteve presente, nem se fez representar, nessa assembleia.
14) Da certidão da C. R. Comercial resulta o registo da Ap. 8/2017-09-09 da dissolução da sociedade C… e nomeado liquidatário B….
15) Os gerentes destituídos pela decisão proferida em 6) foram citados para deduzir oposição, o último em 10.08.2017.
16) A decisão referida em 6) foi mantida por sentença proferida em 8/11/2018.
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B) Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa, e tendo por base as regras distributivas do ónus da prova e a posição das partes manifestada nos respectivos articulados, provaram-se todos os factos.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Comecemos por apreciar as questões que se poderão considerar prévias invocadas pelo Recorrente.
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1. Dispensa da Audiência Prévia
Insurge-se o recorrente contra a dispensa da audiência prévia, decidida pelo tribunal recorrido, considerando que não foram cumpridos os requisitos que o permitiriam efectuar (cumprimento do princípio do contraditório /decisão surpresa – art. 3º, nº 3 do CPC), pelo que, quanto às questões invocadas, não pôde ser alegadamente realizado o exercício pleno do contraditório.
Julga-se liminarmente que não tem razão.
Conforme decorre dos autos, o tribunal recorrido, antes de proferir a decisão que constitui o objecto do presente recurso, notificou as partes do seguinte despacho:
“Finda a fase dos articulados, cumpriria agora ponderar a realização da audiência prévia prevista no art.º 591.º do C. P. C.
Entende-se, contudo, que a realização de tal diligência se mostra, no caso em apreço, desnecessária, devendo, por isso, ser dispensada.
Na verdade, o processo reúne já todos os elementos necessários ao conhecimento das excepções dilatórias suscitadas na contestação e tais excepções já foram suficientemente debatidas nos articulados.
Acresce que, como melhor se dirá à frente, o processo também reúne já todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, seja no que diz respeito à excepção peremptória de caducidade invocada na contestação, seja no que diz respeito ao pedido formulado pelo Autor.
Assim, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 591.º, n.º 1, al. d), 593.º, n.º 1 e 595.º, n.º 1, alíneas a) e b) do C.P.C., dispensa-se a realização da referida diligência.
Notifique”
(…)
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Compulsados os autos, entende este Tribunal que os mesmos já se encontram dotados de todos os elementos necessários para a apreciação do mérito da causa, uma vez que todos os factos necessários para a decisão, quer da excepção peremptória de caducidade invocada, quer do pedido do Autor, estão já assentes, inexistindo matéria controvertida que tenha de ser submetida a julgamento.
Com efeito, e em face do supra exposto, nestes autos apenas se encontra em discussão a subsunção jurídica a dar aos factos assentes.
Ora, como vem sendo entendido pela Jurisprudência que vem sendo emanada pelo Tribunal da Relação do Porto, ver por todos o Acórdão deste Tribunal datado de 12 de Novembro de 2015, com o n.º de processo 4507/13.1TBMTS-A.P1, disponível in www.dsgi.pt. “1- O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respectivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos actos previstos nas als. a), b), c) e g) do nº l do art.º 591º do Código de Processo Civil. 2- Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.
Assim, nos termos do citado art.º 3.º, n.º 3 do CPC, notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem quanto ao mérito da causa.
Prazo: 10 dias”.
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O recorrente faz apelo à discussão jurisprudencial e doutrinal que vem sendo estabelecida sobre a possibilidade de dispensar a realização da Audiência Prévia, nos casos em que o tribunal pretende decidir o mérito da causa no despacho saneador, alegando que não foram invocados ou não estão preenchidos os requisitos legais que o permitiriam fazer.
Tem-se considerado que é indiscutível que, no âmbito do processo comum de declaração, se instituiu, como regra, a obrigatoriedade de realização da audiência prévia (cfr. art. 591º do CPC), consignando o legislador, como excepção a essa regra, as situações enunciadas no art. 592º do mesmo diploma onde não haverá lugar a tal diligência.
Mas, não obstante seja essa a regra, permite-se, conforme dispõe o nº 1 do art. 593º, que o juiz possa dispensar a realização de tal audiência, quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º, ou seja, quando se destine a um dos seguintes fins: proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º (d); determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º (e) e proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes (f).
À primeira vista, lendo o nº 1 do citado art. 593º em conjugação com a alínea d) do nº 1 do citado art. 591º e o nº 1 do art. 595º, poderíamos ser levados a pensar que o juiz poderia dispensar a audiência quando ela se destinasse a proferir despacho saneador onde se conhecesse do mérito da causa, uma vez que esta situação está prevista na alínea b) do nº 1 do art. 595º e os artigos anteriores – onde se delimitam as situações em que a audiência pode ser dispensada – remetem para o nº 1 do art. 595º sem fazer distinção entre cada uma das alíneas que o compõem. Mas, uma leitura mais atenta conduz-nos a outro resultado. Na verdade, a realização da audiência prévia com o fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa está prevista na alínea b) do nº 1 do art. 591º e, portanto, se o legislador tivesse pretendido consignar a possibilidade de dispensa da audiência em tal situação, também se teria referido a essa alínea no nº 1 do art. 593º e a verdade é que não o fez, aludindo apenas às alíneas d), e) e f).
É certo, portanto, em face do exposto, que, estando em causa uma situação em que o juiz pretendia conhecer do mérito da causa no despacho saneador – como foi o caso – não estava verificada nenhuma das situações em que, nos termos previstos no nº 1 do citado art. 593º, a audiência prévia podia ser dispensada.
Isso mesmo se tem entendido em diversas decisões dos nossos tribunais que já se pronunciaram sobre essa questão[1] e assim também entende o Prof. Miguel Teixeira de Sousa em comentário ao Acórdão da Relação do Porto de 12/11/2015 – Jurisprudência (250) – em 21/12/2015 que pode ser consultado no Blog do IPPC[2].
No entanto, também se sabe que uma boa parte da nossa jurisprudência[3] tem entendido que, apesar de a lei não prever expressamente – na citada disposição legal – a possibilidade de dispensa da audiência prévia nos casos em que o despacho saneador conhece do mérito da causa, tal audiência poderá, ainda assim, ser dispensada pelo juiz no âmbito dos seus poderes/deveres de gestão processual e adequação formal caso entenda que a questão foi suficientemente debatida nos articulados e desde que as partes sejam ouvidas sobre o propósito de dispensar a audiência e lhes seja concedida a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria da causa que irá ser decidida (alegando por escrito aquilo que iriam alegar oralmente na audiência prévia caso esta fosse realizada).
Assim sendo, não temos dificuldade em admitir que, no âmbito desses poderes, o juiz possa dispensar a realização de audiência nos casos em que, nos termos da lei, ela seria obrigatória, desde que verificados estes requisitos que se podem ser sintetizados nos termos seguintes: - deve ser permitido que o juiz, quando pretenda conhecer imediatamente de questão substancial que põe termo ao processo, possa ouvir as partes para que estas influenciem a sua decisão, em lugar de ter de convocar a audiência prévia nos termos do art. 591.º, n.º 1, al. b), 2.ª parte, e 593.º, n.º 1, a contrario sensu; mas, em contrapartida, o juiz deverá prevenir as partes, de forma fundamentada, sobre a solução do litígio, o que implica a enunciação das questões a solucionar e a sua comunicação às partes (cf. art. 3.º, n.º 3).
Sendo assim, quando o juiz pretenda, no despacho saneador, conhecer imediatamente de questão substancial que põe termo ao processo, as partes podem ser notificadas para habilitarem o juiz a conhecer do mérito da causa, de modo a influenciarem a sua decisão. A notificação das partes, com a finalidade de estas poderem influenciar o juiz na discussão do mérito da causa, dispensa a realização da audiência prévia, se as partes concordarem com essa dispensa.
Este procedimento é, indiscutivelmente, uma boa técnica de agilização e simplificação processual, como instrumento de organização de todo o serviço do juiz, e evita a deslocação das partes e seus mandatários ao tribunal apenas para a realização, a maior parte das vezes, das alegações finais.
Ora, no caso concreto, movendo-nos ainda dentro destes pressupostos, julgamos que o tribunal recorrido contrariamente ao defendido pelo recorrente, cumpriu, de uma forma suficiente, estes requisitos ao proferir o citado despacho.
Com efeito, o despacho proferido atrás transcrito, precedido da realização de uma Tentativa de Conciliação, contendo a declaração de que se pretendia conhecer o mérito da causa no despacho saneador com dispensa da realização da audiência prévia (que implicaria uma segunda deslocação ao tribunal das partes e/ou seus Mandatários) e ordenando a notificação das partes para se pronunciarem no sentido de evitar uma decisão surpresa – ou seja, para dizerem por escrito aquilo que diriam oralmente caso fosse realizada a audiência – e delimitando quais eram as questões que iriam ser decididas, é uma decisão que cumpriria os aludidos requisitos, no âmbito dos poderes/deveres de gestão processual e adequação formal que estão atribuídos ao tribunal (art. 6º e 547º do CPC).
A única questão que se poderia levantar diria respeito ao facto de não decorrer dos autos que o tribunal tenha procedido previamente à audição das partes quanto à possibilidade de tal dispensa da Audiência Prévia poder ocorrer.
Com efeito, como decorre da decisão proferida, o tribunal decidiu, no âmbito dos aludidos poderes de gestão e adequação formal, dispensar a Audiência Prévia sem previamente ouvir as partes sobre essa possibilidade, mas a verdade é que as partes, tendo sido notificadas para exercer o princípio do contraditório, não estavam impedidas de, na sequência dessa notificação, requerer a realização da Audiência Prévia.
Nessa medida, julga-se que, dentro deste enquadramento processual, aquela omissão (falta de audição das partes prévia à dispensa da Audiência Prévia) constituiria mera irregularidade processual que estaria sanada pela ulterior intervenção do recorrente que não se coibiu de exercer o princípio do contraditório sem invocar tal irregularidade (e sem requerer a realização da Audiência Prévia)[4].
A verdade é que o recorrente foi notificado de um despacho onde se afirmou, clara e expressamente, que se pretendia conhecer o mérito da causa no despacho saneador sem que tal decisão fosse antecedida de audiência prévia e foi notificado para se pronunciar no sentido de evitar uma “decisão surpresa”.
Inclusivamente, na sequência dessa notificação, o recorrente veio pronunciar-se sobre as questões sobre as quais o tribunal anunciou que se iria pronunciar em termos de mérito.
Nestas circunstâncias, não seria aceitável que, quando confrontado com uma decisão que lhe foi desfavorável, pudesse vir agora aproveitar aquele facto – contra o qual nunca reagiu e que aceitou tacitamente – para o efeito de por em causa a decisão que veio a ser proferida.
Todas estas considerações conduziriam só por si à improcedência da argumentação do recorrente.
Mas importa dizer que, no caso concreto, nem sequer se torna necessário apelar a este tipo de fundamentação.
É que o valor da presente acção (8.437€) é inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação (30.000 €).
Ora, nestes casos, a tramitação processual que deve ser seguida pelo tribunal é aquela que se encontra prevista no art. 597º do CPC.
O que significa que, findos os articulados, é o juiz, consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo, que “cabe definir os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da acção e a necessidade e adequação dos actos ao seu julgamento”[5].
Este preceito legal estabelece, assim, que, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no art. 590, nº 2 do CPC (despacho pré-saneador), o juiz deverá, consoante a necessidade e adequação do acto ao fim do processo, decidir entre “… uma panóplia de opções quanto à tramitação subsequente dos autos…”[6].
Assim, se teremos casos em que a questão aconselha a observância de uma tramitação similar à definida de uma forma tabelar para o processo comum, outros teremos em que é possível avançar directamente para a Audiência final (art. 597º, al. g) do CPC).
“Entre estes dois limites, o juiz poderá deparar-se com as mais variadas situações, ou seja, em que será preciso assegurar o contraditório quanto a excepções não debatidas nos articulados, em que será útil convocar audiência prévia, em que se irá proferir despacho saneador, em que se justificarão outras medidas de adequação formal, de simplificação ou agilização processual, em que se mostrará conveniente proferir despacho a identificar o objecto do litigio e a enunciar os temas da prova ou ainda casos em que será aconselhável proferir despacho a programar os actos a praticar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respectivas datas. As hipóteses previstas nas diversas alíneas do art. 597º não são alternativas, isto é, não excluem reciprocamente, podendo o juiz conjugá-las entre si”[7].
O que é certo é que nestas situações (das acções de valor não superior à alçada da Relação) a opção traduzida na não convocação da audiência prévia será aquela que surgirá como sendo a regra geral, pois que, neste âmbito, “não é expectável (ao menos em curso normal) a realização da audiência prévia, sendo confiada (apenas) ao juiz a ponderação sobre a utilidade da sua convocação”[8].
Ora, aplicando-se ao caso concreto este regime previsto no art. 597º do CPC, não há dúvidas que, tendo em conta o estado do processo, a opção tomada pelo tribunal recorrido, pela tramitação processual seguida, era aquela que se impunha, em face da “panóplia de opções” que o legislador lhe atribuiu, no âmbito dos aludidos princípios da adequação formal, de simplificação ou agilização processual (arts. 6º e 547º do CPC), sendo que, mesmo assim, o tribunal denotou a preocupação de ainda cumprir o princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC), apesar de as questões, que enunciou no despacho proferido, já terem sido amplamente debatidas nos articulados que as partes tinham anteriormente apresentado.
De resto, importa dizer - voltando à primeira parte – que há quem entenda que nestas opções estabelecidas no art. 597º do CPC “não se trata de nada que o juiz não possa fazer nos processos de valor superior àquele limite”[9], pelo que “se nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação o juiz pode, igualmente, seguir a tramitação enunciada na disposição em causa, ou nas de valor não superior (pode) afastar-se da mesma, sempre à luz do dever de gestão ou adequação formal, a justificação da norma não se revela fácil de encontrar. A justificação daquela especificidade não se pode encontrar, por exemplo, quanto à dispensa da audiência prévia, na circunstância de o juiz, nas acções previstas no art. 597º do CPC não estar vinculado à disciplina estatuída no art. 593º do CPC, pois o afastamento daquele regime já se pode encontrar naqueles princípios gerais”[10].
Nesta conformidade, julga-se que a posição defendida pelo recorrente não merece ser acolhida, porque, como se julga ter demonstrado, além de não ser aceitável à luz do regime geral do processo comum (pelas razões explanadas), mostra-se ainda totalmente afastada pelo regime especial de tramitação processual previsto para as acções de valor não superior a metade da alçada do Tribunal da Relação, onde, como decorre do exposto, o Tribunal Recorrido detinha uma ampla liberdade (no uso legal de um poder discricionário) na fixação dos termos processuais que a acção deveria seguir, tendo em conta os aludidos poderes processuais e desde que não deixasse de cumprir o princípio do contraditório – como efectivamente ocorreu.
Por todo o exposto, e sem necessidade de mais alongadas considerações, julga-se, pois, improcedente o recurso com este fundamento.
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2. impossibilidade da lide;
Insiste o recorrente que, “tendo o A. intentado a acção contra a Ré quando esta já se encontrava em liquidação, em que o pedido e causa de pedir seria a pretensão de serem declaradas nulas ou anuladas todas as deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade Ré de 08 de Setembro de 2017, é notório e manifesto que há uma impossibilidade de prosseguir da lide nos termos do art. 277º, al. e), 1ª parte do Código de Processo Civil (CPC)”.
A questão que é colocada pelo recorrente, já foi devidamente decidida nos presente autos, sem que o recorrente tivesse, na primeira intervenção que efectuou no processo, invocado a nulidade da sua citação (enquanto liquidatário da Ré) – o que, aliás, como veremos de seguida seria contraditório com a posição por si defendida no recurso que interpôs.
O tribunal recorrido, no cumprimento do Acórdão da Relação (que declarou a nulidade da citação inicial da Ré Sociedade), justificou a opção da citação tomada da seguinte forma:
“Conforme se escreve no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa datado de 11 de Maio de 2017, disponível in www.dgsi.pt, cuja posição sufragamos, “ Uma acção declarativa de condenação interposta contra uma sociedade unipessoal por quotas que à data dessa interposição já se encontrava extinta pode prosseguir contra a única sócia e liquidatária daquela, sem necessidade de se recorrer para o efeito a incidente de habilitação desta, desde que o credor social, autor na acção, no requerimento em que peça a correspondente substituição da sociedade por aquela, invoque factualidade susceptível de integrar os requisitos da aplicação ou do art 163º, ou do art 158º, ambos do CSCom”.
Atento o exposto, é de deferir o requerido, que não fere o decidido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto[11].
Assim sendo, determina-se que a acção prossiga contra o sócio da sociedade Ré e seu liquidatário … (o aqui recorrente).
Cite-se em conformidade”.
*
Conforme resulta destas decisões, proferidas a propósito do acto de citação, tendo em conta as circunstâncias processuais em que o Autor intentou a presente acção (na data em que foi instaurada a acção - 20.10.2017 - a Ré ainda não se mostrava extinta, mas já havia sido deliberado pelos sócios a sua dissolução, com nomeação do Recorrente como liquidatário – 5-9-2017 -, através da deliberação social que o Autor pretende impugnar através da presente acção), foi decidido no Acórdão anteriormente proferido nos presentes autos, que o acto de citação da Sociedade Ré era nulo e, nessa sequência, foi ordenada a citação do Liquidatário/recorrente – tal como, aliás, defendia o recorrente no recurso que havia interposto:
“Conclusões
I - Como se verifica pelos registos constantes das certidões comerciais, a acção foi proposta em 20 de Outubro de 2017, ou seja, momento em que a C…, Lda. (doravante designada por “C…”), já se encontrava numa fase de dissolução e com Liquidatário já nomeado, tal como demonstra a insc. - Insc. 10 AP.8/20170909 18:26:28 UTC.
II - o Sr. Liquidatário, réu não teve qualquer intervenção nos autos.
III – Falta de citação do Réu, na pessoa do Sr. Liquidatário.
IV - Não tendo o Sr. Liquidatário sido citado, e por consequência nunca ter intervindo nos autos tem de se concluir por falta de citação do réu, com as devidas consequências legais (…)”.
*
Nessa sequência, o recorrente, na aludida qualidade liquidatário (e sócio) da Sociedade Comercial C…, Lda., tendo sido citado, veio apresentar contestação, onde, apesar de invocar um conjunto de excepções, não veio arguir a nulidade da citação (antes reconhecendo que - item 25 da contestação – “Deve ser o liquidatário demandado, em representação dos ex sócios no momento da liquidação”).
Trata-se de questão que o recorrente também não incluiu nas conclusões apresentadas, pelo que, em princípio, não podia também tal questão constituir o objecto do presente recurso.
De qualquer forma, sempre se dirá, de uma forma liminar (e breve) que o recorrente não tem razão, pois que a “generalidade dos sócios” foi citada na pessoa do seu Liquidatário, tal como se impunha, na sequência do que atrás já explanamos.
Como é sabido, a lei distingue a falta de citação da nulidade da citação.
Haverá falta de citação – art. 188.º, nº 1, do CPC – quando: (a) o acto tenha sido completamente omitido; (b) tenha havido erro de identidade do citado; (c) se tenha empregado indevidamente a citação edital; (d) se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade; ou (e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, como decorre da letra da lei. Pode ser invocada em qualquer estado do processo, enquanto não dever considerar-se sanada – art. 198º, n.º 1 do CPC.
Quanto à nulidade da citação, ocorre quando na sua realização não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei, devendo ser arguida no prazo indicado para a contestação ou, sendo a citação edital ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, na primeira intervenção do citado no processo – art. 191.º, n.ºs 1 e 2, da lei adjectiva.
O art. 189º do CPC determina que a falta de citação considera-se sanada se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a nulidade.
O Prof. Alberto dos Reis escreveu que o réu, não tendo sido citado, não é obrigado a intervir no processo, podendo arguir essa nulidade em qualquer altura: “o réu, tendo conhecimento de que contra ele corre um processo em que não foi citado, ou intervém nele na altura em que se encontra ou argui a falta da sua citação”, ficando a falta “sanada se o réu a não arguir logo, isto é, no preciso momento em que, pela 1ª vez, intervém no processo” [12].
Para o Prof. Lebre de Freitas, “não faria sentido que o réu ou o Ministério Público interviesse no processo sem arguir a falta de citação e esta mantivesse o efeito de nulidade. Ao intervir no processo, o réu ou o Ministério Público tem, ou pode logo ter, pleno conhecimento do processado, pelo que, optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir iuris et de iure que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se”[13].
No caso dos autos, como já se referiu, o recorrente, tendo citado como liquidatário da Ré Sociedade comercial (“e da generalidade dos sócios”) ao intervir no processo pela primeira vez, apresentou contestação onde não arguiu o vício da citação.
Aliás, como decorre do exposto, a citação ordenada acabou por obedecer à posição que o recorrente havia assumido no recurso (e depois também na contestação), pois que a citação da Ré Sociedade (em liquidação e depois extinta - sem prejuízo do que mais à frente se dirá) foi efectuada na pessoa do liquidatário (em cumprimento do citado acórdão).
Ultrapassada esta questão processual que se mostra já decidida pelas referidas decisões (sendo que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação transitou em julgado – a citação não podia ser efectuada na Sociedade Ré - , por dele não ter sido interposto recurso e a eventual invocação de nova nulidade da citação – citação na pessoa do liquidatário (e sócio), aqui recorrente - mostra-se sanada), a questão que se coloca é a de saber se, ainda assim, a acção não deveria ter prosseguido, porque, no entendimento do recorrente, verificando-se a extinção da Sociedade Ré, a presente acção devia ser julgada também ela extinta por impossibilidade da lide prosseguir.
É esta a questão que importa abordar de seguida.
Ora, ponderando a argumentação do recorrente, julga-se que a sua posição não pode merecer aqui qualquer acolhimento, pois que, se assim fosse, estava encontrada a solução para dissolver, liquidar e extinguir uma sociedade comercial, mesmo em casos em que os respectivos requisitos legais não se verificavam, bastando para tal que os sócios maioritários assim deliberassem, mesmo que essa deliberação fosse nula (e com eventual prejuízo dos sócios que a ela se opusessem).
É evidente que a solução jurídica não pode ser essa.
Obviamente que, se a deliberação social de dissolução for impugnada (no caso por vicio de nulidade) por um dos sócios que com ela não concordou, a acção de impugnação nunca poderá extinguir-se por impossibilidade de prosseguimento da lide por força da subsequente extinção da Sociedade Comercial, pois que, se assim fosse, estava encontrada a fórmula de impedir o aludido sócio de exercer o seu direito de impugnar a deliberação social de dissolução da sociedade comercial.
Ou seja, se assim fosse, nestes casos, a impugnação que o sócio pretendesse deduzir contra a deliberação social de dissolução da Sociedade Comercial nunca seria discutida, o que, como é óbvio, não pode ser a solução legal.
Vejamos, então, se o legislador teve em consideração esta situação.
Prevê o art. 277, al. e), do CPC, que a instância se extingue com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Estabelece, por outro lado, o art. 269, nº 1, al. a), e nº 3, do CPC, que a instância se suspende quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no artigo 162 do CSC (Código das Sociedades Comerciais), e que essa morte ou extinção gera a extinção da instância (e não a sua suspensão) quando torne impossível ou inútil a continuação da lide.
Por conseguinte, a extinção de uma das partes traduzir-se-á numa extinção da lide quando se revelar impossível ou inútil a sua continuação.
No que se refere, em concreto, às sociedades comerciais, dispõe o art. 162º do Código das Sociedade Comerciais, sob a epígrafe “Acções pendentes”, que: “1. As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163, nºs 2, 4 e 5, e 164, nºs 2 e 5.
2. A instância não se suspende nem é necessária habilitação.”.
Esta regra processual é a decorrência dos preceitos legais que a precedem.
Com efeito, o legislador, depois de esclarecer os casos de dissolução (arts. 141º e ss. do CSC) e as modalidades de liquidação (arts. 151º e ss. do CSC) admissíveis, prevê que “os membros da administração da sociedade passam a ser liquidatários desta a partir do momento em que ela se considere dissolvida (nº 1 do art. 151º do CSC).
Esta modificação da sua estrutura organizativa, em princípio, opera-se automaticamente, logo após a dissolução da sociedade, “dando-se a entrada imediata no cargo”, pelo que “as mesmas pessoas mudam simplesmente de funções, deixando de integrar o órgão de administração (que se extingue) e passando a integrar o recém-formado órgão de liquidação” [14] – como sucedeu no caso concreto.
Ora, como o legislador, também, esclarece, “as funções dos liquidatários terminam com a extinção da sociedade, sem prejuízo, contudo, do disposto no art. 162º, artigo 163º e artigo 164º” (nº 8 do citado art. 151º).
Isto significa que “o modo normal ou fisiológico de os liquidatários cessarem as suas funções ocorre com a extinção do ente societário, na sequência do registo do encerramento da liquidação (art. 160º, nº 2). É o que nos diz o nº 8 do art. 151º, ressalvando, contudo, as situações (meramente eventuais) em que à data da extinção da sociedade estejam contra ele pendentes acções em tribunal - caso em que o liquidatário fica encarregado de representar em juízo, a generalidade dos sócios (art. 162º) …”.
Nestas situações, portanto, “apesar da extinção da sociedade, o liquidatário será ainda chamado ao exercício de funções (por assim dizer) residuais, às quais não lhe é permitido renunciar (art. 163º, nº 5 remissivamente aplicável às outras hipóteses)”[15].
Nesta sequência, o legislador esclarece, de uma forma expressa, que “os liquidatários têm, em geral, os deveres, os poderes, e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade” (art. 152º, nº 1 do CSC).
Ora, um desses deveres que se mantém é justamente o de “representar em juízo a generalidade dos sócios após a extinção da sociedade (arts. 162º a 164º)”[16].
O citado art. 162º do CSC diz respeito às acções pendentes à data da extinção da sociedade comercial, rejeitando o legislador, por óbvios inconvenientes, uma solução que manteria até à sentença a personalidade jurídica da sociedade. Com efeito, optou o legislador por estabelecer que “a solução da extinção da sociedade não acarreta a extinção da instância nas acções em que a sociedade seja parte; tais acções continuam considerando-se a sociedade substituída pela generalidade dos sócios”.
Acresce que “… por força da remissão legal estabelecida nos arts. 163º e 164º, os liquidatários (que até à extinção funcionavam no processo como representantes da sociedade), assumirão doravante, em juízo, a posição de representantes legais da generalidade dos sócios”.
Além disso, importa referir que, “nos termos do nº 2 do art. 162º, a instância não só não se suspende, como não se torna sequer, necessária habilitação dos sócios na posição da extinta sociedade”[17].
Assim, e em resumo, “com excepção das situações em que a extinção da sociedade determina a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, opera-se a substituição da sociedade liquidada por uma outra entidade legalmente qualificada como “generalidade dos sócios, também dotada de personalidade judiciária, a qual é representada pelos liquidatários que, em princípio, já estarão incumbidos de semelhantes funções relativamente á sociedade em liquidação (arts. 151º e 152º do CSC). Cremos que a referida substituição é automática…”[18].
Evidentemente que esta substituição automática não sucede em todas as situações, pois que poderão existir acções em que a instância deverá seguir contra outro sujeito processual[19] ou acções em que, consoante a natureza da relação controvertida, as mesmas não deverão ou não poderão prosseguir por se terem tornado inúteis ou impossíveis (cfr. art. 277º, al. e) do CPC)[20].
A questão que se coloca, pois, é a de saber se a natureza da relação controvertida, que aqui se mostra invocada pelo Autor, exige que a instância se extinga (por impossibilidade ou inutilidade da lide), conforme pretende o recorrente.
O tribunal recorrido, como já referimos, ponderando essa natureza da relação controvertida, concluiu justamente que a mesma impunha o prosseguimento da acção e, nessa medida, no cumprimento dos citados dispositivos legais, ordenou esse prosseguimento, operando a substituição automática da sociedade extinta pela generalidade dos sócios, representados legalmente pelo liquidatário, sem necessidade de ser promovida a habilitação.
Ora, ponderada a argumentação do recorrente, não podemos deixar de concordar com a solução jurídica seguida pelo tribunal recorrido, pois que é inequívoco que, tendo em conta a natureza da relação controvertida (da causa de pedir e do pedido formulado), o prosseguimento da presente acção não se tornou nem inútil, nem impossível – como decorre, desde logo, do que já atrás afirmamos relativamente ao resultado que tal solução jurídica poderia conduzir (impedimento do sócio de exercer o seu direito de impugnar a deliberação social de dissolução da sociedade comercial).
Senão vejamos mais em concreto.
No caso concreto, através da impugnada deliberação, pretenderam os sócios (sem intervenção do Autor) deliberar a dissolução da sociedade Ré (convocando, por quem não tinha poderes, por estar suspenso, uma Assembleia Geral societária para o dia 8 de Setembro e… deliberando no dia 5 de Setembro!).
Mas, obviamente, que o Autor, na sua qualidade de sócio (cfr. art. 59º, nº 1 do CSC), não tendo intervindo na referida Assembleia Geral da Ré, tem que poder pedir a nulidade de tal deliberação (tomada em acto convocado por quem não tinha poderes – sócio gerente suspenso), pois que a deliberação de dissolução constitui o pressuposto que está subjacente ao pedido de extinção da presente instância, por impossibilidade da lide.
Ou seja, que a dissolução da Sociedade Comercial, nos termos em que foi efectuada, não pode conduzir à extinção de instância por impossibilidade da lide, decorre, de uma forma clara, do facto de, sendo julgada procedente a presente acção, a Sociedade voltar a ter existência jurídica (declarada nula a deliberação que decidiu a dissolução da sociedade terão obviamente que ficar também afectados, por essa nulidade, todos os outros actos praticados pelos sócios (e liquidatário) que daquela são dependentes – desde logo, a liquidação e subsequente extinção da sociedade.
Nesta conformidade, visando a impugnação judicial deduzida pelo Autor, a nulidade da deliberação social que decretou a dissolução da sociedade, é evidente que a consequência dessa deliberação (que poderia ter como efeitos, em outros casos, como vimos, a extinção da instância por impossibilidade da lide prosseguir) não pode ter, atenta a natureza da relação controvertida, o efeito de impedir a impugnação dessa deliberação social (pois que seria essa a consequência – impedir a impugnação - se admitíssemos que a extinção da Sociedade implicava a impossibilidade da lide prosseguir).
Obviamente que, sendo tal deliberação social de dissolução da Sociedade Comercial impugnada, a acção em que tal impugnação seja discutida nunca se poderá extinguir por impossibilidade da lide prosseguir por força destas razões (designadamente, da própria natureza da relação controvertida).
Foi essa justamente a solução encontrada no ac. da RL de 12.5.2009, citado na decisão recorrida, para um caso em que, após ter sido deliberada a exclusão de um sócio (que se opunha à dissolução da Sociedade Comercial), foi deliberada a dissolução da Sociedade e em que se entendeu que tal deliberação não poderia nunca implicar a extinção da instância por impossibilidade da lide prosseguir, pois que é “evidente que, para além da extinção da sociedade na pendência de acção, por ela ou contra ela proposta, não determinar, em si mesma, a extinção da instância, de acordo com o art. 162 do C.S.C., acresce que com a presente lide pretende o A. anular deliberação social que, determinando a sua exclusão como sócio, terá permitido a dissolução da sociedade Ré sem a sua intervenção. Pelo que a anulação da deliberação pretendida poderá implicar a anulação de outras subsequentes que dela decorriam, designadamente a que determinou a respectiva dissolução e encerramento da liquidação, na medida em que aquela primeira deliberação é susceptível de influenciar o sentido da última (cfr. L.P. Moitinho de Almeida, “Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais”, 3ª ed., fls. 15 e ss.).
Deste modo, estamos perante situação em que, de forma evidente, a extinção da Ré não torna inútil a continuação da lide”.
Aqui chegados, julga-se que a solução jurídica seguida pela decisão recorrida – de ordenar o prosseguimento da acção -, atenta a natureza da relação controvertida, não podia efectivamente ser outra.
Sucede que, independentemente de todas estas considerações (e das decisões proferidas no presente processo relativamente ao acto de citação e representação da Sociedade Ré – a que aqui devemos obediência (trânsito em julgado do Acórdão e sanação da eventual nulidade da citação), a verdade é que o legislador prevê, de uma forma expressa, a solução jurídica para os casos como o concreto (impugnação judicial da deliberação social de dissolução da Sociedade Comercial).
Com efeito, o legislador resolve directamente a questão que aqui é colocada no nº 4 do art. 142º do CSC.
Pode-se ler nesse preceito legal o seguinte:
“Artigo 142.º
Causas de dissolução administrativa ou por deliberação dos sócios:
1 - Pode ser requerida a dissolução administrativa da sociedade com fundamento em facto previsto na lei ou no contrato e quando:
a) Por período superior a um ano, o número de sócios for inferior ao mínimo exigido por lei, excepto se um dos sócios for uma pessoa colectiva pública ou entidade a ela equiparada por lei para esse efeito;
b) A actividade que constitui o objecto contratual se torne de facto impossível;
c) A sociedade não tenha exercido qualquer actividade durante dois anos consecutivos;
d) A sociedade exerça de facto uma actividade não compreendida no objecto contratual.
2 - Se a lei nada disser sobre o efeito de um caso previsto como fundamento de dissolução ou for duvidoso o sentido do contrato, entende-se que a dissolução não é imediata.
3 - Nos casos previstos no n.º 1 podem os sócios, por maioria absoluta dos votos expressos na assembleia, dissolver a sociedade, com fundamento no facto ocorrido.
4 - A sociedade considera-se dissolvida a partir da data da deliberação prevista no número anterior, mas, se a deliberação for judicialmente impugnada, a dissolução ocorre na data do trânsito em julgado da sentença”
Como se pode ver, este preceito legal “… determina o momento em que a sociedade se considera dissolvida por deliberação dos sócios. A norma pesa duas hipóteses: se não há impugnação judicial ou se há impugnação judicial[21].
Na primeira hipótese, a dissolução opera na data da deliberação (independentemente da forma que ela revestiu).
Na segunda hipótese, a dissolução opera na data do trânsito em julgado da sentença que não invalida a deliberação e confirma a dissolução deliberada (improcedência da acção), tendo a pronúncia judicial, então verdadeira natureza constitutiva”[22].
Importa, pois, “assinalar, nesta matéria, uma particularidade: a de que , considerando-se a sociedade dissolvida na data da deliberação (de dissolução), se esta for judicialmente impugnada, a dissolução só ocorre apenas na data do trânsito em julgado da sentença (art. 142º, nº 4), pelo que, apesar de registável, é revogável”[23].
Isto significa que, nestes casos de impugnação da deliberação dos sócios de dissolução, os efeitos da dissolução deliberada “ficam pendentes” até que seja proferida a sentença na acção respectiva[24].
É este um dos casos em que a deliberação de dissolução da sociedade comercial ocorre por efeito de uma decisão judicial (no caso, a decisão judicial que julga improcedente a impugnação judicial da deliberação social de dissolução da sociedade)[25].
Nesta conformidade, nestes casos de impugnação da deliberação social de dissolução da sociedade, estando os efeitos da deliberação de dissolução pendentes até à pronúncia do tribunal, nunca esta acção de impugnação se poderá extinguir por efeito da deliberação, pois que, conforme decorre do exposto, não se verifica qualquer impossibilidade da lide prosseguir.
Bem pelo contrário, o que o legislador prevê é justamente que a acção de impugnação tenha que prosseguir, de tal forma que a dissolução deliberada pelos sócios só poderá operar os seus efeitos na data do trânsito em julgado da sentença que vier a não invalidar a deliberação e a confirmar a dissolução deliberada (improcedência da acção)
É o que resulta de uma forma directa do nº 4 do art. 142º do CSC.
Cumpre aqui referir que esta pendência dos efeitos da deliberação de dissolução decidida pelos sócios não significa necessariamente que o processo de extinção da sociedade comercial não possa prosseguir com a subsequente operação de liquidação[26] (o que seria relevante também para o apuramento de quem deve representar a Sociedade na pendência da acção de impugnação da deliberação de dissolução – questão que, como já referimos, já foi decidida anteriormente pelo Tribunal da Relação e a que aqui devemos obediência, mas que poderá ainda ser compatibilizada, como se vê, com o que dispõe neste preceito legal – embora na aludida decisão não se tenha ponderado a aplicação deste preceito legal).
Não há, assim, dúvidas, em face do referido preceito legal e de todos os argumentos explanados, que não existe qualquer fundamento para determinar a extinção da presente instância com fundamento na impossibilidade da lide prosseguir, pois que a deliberação social de dissolução aqui impugnada, mostrando-se pendente” por força da impugnação judicial deduzida, teria que ser “confirmada” pela improcedência da presente acção.
E assim sendo, como decorre do exposto, podemos concluir que não se verifica, atenta a natureza da relação controvertida, uma situação de impossibilidade da lide.
Improcedem estes fundamentos do recurso por todas as razões expostas.
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3. a petição inicial é inepta; inutilidade da lide por falta de acta com data deliberativa de 08 de Setembro de 2017; erro de julgamento.

Estas três questões podem aqui ser reunidas porque os pressupostos que estão subjacentes ao seu levantamento, por parte do recorrente, dizem respeito às mesmas alegações fácticas.
No fundo, o recorrente pretende que sejam reconhecidas as excepções, vícios ou erros de julgamento, fundando-se na alegação de que os factos alegados pelo Autor não poderão conduzir à procedência do pedido formulado, por não terem correspondência com a realidade fáctica que decorre da prova documental junta aos autos.
Comecemos pela invocação de um erro de julgamento.
Pretenderá o recorrente impugnar a matéria de facto, mas a verdade é que, ao fazê-lo, não teve a preocupação de cumprir os requisitos processuais exigidos pelo legislador, nomeadamente, as alíneas a) e c) do art. 640º, nº 1 do CPC.
Importa dizer que, de facto, nesta matéria, como é consabido, o art. 640º, n.º 1 do CPC determina que, «quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) - os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) - os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Ora, o recorrente, ao pretender impugnar a matéria de facto, não cumpriu estes requisitos processuais, pelo que seria caso de rejeitar a impugnação deduzida.
No entanto, importa ter em atenção que os alegados erros que o recorrente aponta à decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto podem ser corrigidos oficiosamente pelo presente tribunal (art. 662º, nº 1 do CPC)
Com efeito, essa alteração oficiosa pode ocorrer nos seguintes casos exemplificados por Abrantes Geraldes, na citada obra, a págs. 241 e ss.:
“… quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova…” (por ex. um documento com valor probatório pleno); “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC)”; “ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC).
“Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte… “; finalmente, acrescenta este autor que “também não oferece dúvidas a possibilidade… de se modificar a decisão sobre a matéria de facto quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”.
No caso concreto, relativamente á alteração factual proposta quanto ao ponto 15 dos factos provados, resulta, de uma forma evidente, que a menção de que “Os gerentes destituídos pela decisão proferida em 6) foram citados para deduzir oposição, o último em 10.08.2017” se trata de um manifesto lapso de escrita, pois, que o que resulta das decisões proferidas no Proc. 5985/17.5T8VNG – Juiz 1 é que os gerentes foram suspensos.
Nesta conformidade, sem necessidade de mais alongadas considerações, altera-se a redacção do ponto 15 dos factos provados para:
15) Os gerentes suspensos pela decisão proferida em 6) foram citados para deduzir oposição, o último em 10.08.2017.
(sendo que na decisão proferida em 8.11.2018 foi mantida a decisão de “suspensão dos gerentes” - “III. DECISÃO os termos vistos e face ao exposto, mantenho a suspensão das funções de gerência da sociedade C… dos requeridos E… e B…, ordenada a fls. 104 e ss.”)
*
Entremos agora na questão, levantada pelo recorrente, das datas da convocatória, da acta da Assembleia Geral e da deliberação de dissolução da Ré (e demais deliberações).
Não consta da matéria de facto dada como provada, a menção dessas datas, tendo o tribunal recorrido se limitado a considerar reproduzido o teor das mesmas (da convocatória, da acta e das deliberações sociais).
A questão que o recorrente coloca diz respeito apenas ao facto de a decisão, que o tribunal recorrido proferiu, ter mencionado a data de 8.9.2017, como sendo aquela em que a deliberação social impugnada foi aprovada (na sequência, aliás, do pedido formulado pelo Autor na petição inicial).
Se compulsarmos a prova documental junta aos autos – admitida por ambas partes – podemos constatar que:
- a assembleia geral foi convocada para o dia 8.9.2017;
- a acta da Assembleia menciona como data da sua realização 5.9.2017;
- e a deliberação social tomada na referida data, foi inscrita no registo também nessa data – 5.9.2017.
(cfr., desde logo, os documentos juntos com a petição inicial pelo Autor)
Face a esta discrepância, o recorrente pretende retirar a consequência de que a petição inicial seria inepta e que, na ausência de prova de que a deliberação (e a Assembleia Geral) tivesse sido tomada no alegado dia 8.9.2017 (data que constava da convocatória, recorde-se), se verificava também a inutilidade da lide, por falta de acta com data deliberativa de 08 de Setembro de 2017.
É manifesto que o recorrente se pretende aproveitar de um circunstancialismo que não conduz às consequências, por si, invocadas.
Com efeito, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, o que se discute nos presentes autos é a deliberação social de dissolução da sociedade Ré que foi deliberada nas circunstâncias que ficaram mencionadas na matéria de facto provada –além das demais deliberações.
O objecto da presente da acção é muito claro:
O Autor, com a presente acção, visa a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade ré que constam do doc. nº 4 junto com a petição inicial (Acta), documento este onde se encontram as deliberações que são objecto de impugnação (designadamente, a deliberação de dissolução da Sociedade Ré).
Invoca, para esse efeito, que tal Assembleia Geral da Sociedade Ré foi convocada por quem não detinha poderes para o efectuar, pois que os gerentes que a convocaram estavam suspensos das suas funções, por força da decisão proferida no identificado processo – o que resultou inequivocamente provado (alegações que constituem a causa de pedir invocada como fundamento do pedido de nulidade das deliberações sociais constantes da Acta junta com a petição inicial).
Apesar desta clareza, o recorrente, tentando aproveitar-se da divergência existente quanto às datas (da convocatória, da assembleia e da deliberação), vem ainda alegar a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Mas salvo o devido respeito, essa sua pretensão não merece aqui qualquer acolhimento, pois que a petição inicial não é inepta - nem se pode entender que, por causa de tal alegação, a presente instância é inútil (como também defende o recorrente).
Como referimos, o Autor, pretendendo que as deliberações sociais tomadas na assembleia geral da Sociedade Ré, cuja acta se mostra junta com a petição inicial, sejam declaradas nulas, invoca, nesta, como causa de pedir, que as referidas deliberações foram tomadas em assembleia geral convocada por quem não tinha poderes para o efeito.
Ou seja, o que o Autor alega é que a assembleia geral em causa (contantes da acta que junta – cfr. art. 59º, nº 4 do CSC) nem sequer se pode considerar convocada, porque o aviso convocatório se mostra assinado por quem não tinha essa competência (cfr. art. 56º, nº 2 do CSC) e, nessa medida, as deliberações dos sócios dela constantes (tomadas em assembleia não convocada) são nulas (art. 56º, nº 1, al. a) do CSC).
Através da presente acção visa, pois, o Autor Recorrente a declaração de nulidade das deliberações sociais alegadamente adoptadas na assembleia geral a que se reporta a acta junta com a petição inicial.
Logo o objecto da presente acção são as ditas deliberações sociais.
Assim, neste contexto, e contrariamente àquilo que parece pensar o recorrente, a acta dessa assembleia não constitui o objecto da acção, sendo certo que a acta é a mera corporização ou expressão externa das próprias deliberações e do modo como as mesmas foram alegadamente adoptadas.
Da mesma forma, o objecto da presente acção não é a assembleia dos sócios, mas sim as deliberações sociais nela tomadas.
Nesta perspectiva, não faz qualquer sentido invocar que “O A. pretende a anulação duma assembleia, que o próprio A. afirma que não se realizou”.
Não há dúvidas, assim, qual é o objecto da presente acção (nulidade das deliberações sociais constantes da Acta junta como doc. nº 4 com fundamento em factos que consubstanciam os vícios de procedimento estabelecidos no art. 56º do CSC), sendo que o interesse na discussão da questão que é colocada pelo Autor (designadamente quanto à deliberação de dissolução da Sociedade Ré) se mantem actualmente (e por isso não é inútil o prosseguimento da presente acção), como decorre até do exposto quanto à impossibilidade da lide.
É o bastante para que se conclua que a presente acção se funda em causa de pedir bastante e não existe qualquer situação de inutilidade da lide.
Como é sabido, por força do princípio dispositivo, “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir” (art. 5º, do CPC).
A causa de pedir “é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido” [27].
Isto significa que, no caso concreto, incumbia ao Autor alegar e provar factos que consubstanciem a causa de pedir respectiva, com a efectiva concretização em factos que preencham esses conceitos. Assim, tinha o Autor que articular, a título de causa de pedir, os factos donde derive o seu direito.
Sem tais factos, não haverá causa de pedir suficientemente configurada – o que poderia determinar a ineptidão da petição inicial (art. 186º, nº 2, al. a), do CPC), consequente nulidade de todo o processo (art. 186º, nº 1 do CPC), vício que constitui excepção dilatória.
Como também referia o Prof. Alberto dos Reis[28] é inepta, por omissão de causa de pedir, a petição em que não se articulem factos positivos e concretos: quando o autor se limita a usar ou invocar os termos da própria lei, uma fórmula abstracta da lei ou uma dada figura legal, não está a expor a causa de pedir.
O recorrente invoca a falta total de causa de pedir e, assim, a ineptidão da petição inicial nos termos do art. 186º, nº 1 e 2, al. a) do CPC.
Vem-se entendendo que para que se possa afirmar a ineptidão pretendida se tem que verificar a falta total de causa de pedir - conforme se deduz da aplicação do arts. 577º, nº 1, al. b) e 186º, nº 2, al. a) do CPC.
Entende-se, assim, que nessa apreciação se têm que distinguir duas realidades diferentes.
Uma coisa é a causa de pedir que é o acto ou facto central da demanda, o núcleo essencial de que emerge o direito do A..
Outra coisa diferente são os fundamentos de facto - a que o art. 552º, nº 1, al d) do CPC faz referência - que abrangem não só a causa de pedir, mas ainda outros factos que servem ou para demonstrar a existência da causa de pedir ou para a esclarecer ou para a completar.
Ora, se olharmos para o pedido formulado pelo A. não podemos deixar de reconhecer que este alega, como julgamos ter demonstrado em cima, a causa de pedir inerente ao pedido de condenação que formula.
Importa, pois, concluir, dentro destes princípios, que o pedido formulado se mostra alicerçado na correspondente causa de pedir (como atrás referimos).
Injustificada é assim a alegação do Recorrente no sentido de afirmar que existe falta de causa de pedir.
Deste modo, só por estas considerações poderíamos concluir pela improcedência da excepção dilatória de nulidade invocada pela R., pois que, não se constata, nem se verifica, a falta de causa de pedir.
Mas, como, de resto, bem assinala o tribunal recorrido, e como se depreende do teor da contestação apresentada, a verdade é que o Recorrente compreendeu, não só a pretensão de tutela jurisdicional que lhe era dirigida pelo Autor, como os fundamentos por este invocados nesse sentido. E tanto assim foi que esgrimiu os argumentos que teve por pertinentes a esse respeito, rebatendo os factos e as conclusões que servem de suporte à pretensão do Autor.
Temos, como tal, que o Recorrente interpretou convenientemente a petição inicial do Autor, o que, nos termos do nº 3 do art. 186º do CPC sempre obstaria ao reconhecimento de que a petição inicial padeceria do vício invocado.
Por todo o exposto, julga-se improcedente a nulidade invocada pelo Recorrente nos termos dos arts. 577º, nº 1, al b), 278º, nº 1 e al. b), e 186º do CPC.
Da mesma forma, e como decorre também do exposto, julga-se também improcedente o fundamento invocado relativamente à inutilidade do prosseguimento da presente lide.
*
Aqui chegados, resta-nos, pois, confirmar o enquadramento jurídico substantivo que o tribunal recorrido apresentou na fundamentação de direito, enquadramento esse que, aliás, o recorrente não chega a pôr em causa (pois que a sua defesa, tanto quanto se nos afigura, se dirige apenas à invocação de questões processuais).
Como decorre do exposto, o Autor, com a presente acção, visava a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade ré que constam do doc. nº 4 junto com a petição inicial (Acta), documento este onde se encontram as deliberações que são objecto de impugnação (designadamente, a deliberação de dissolução da Sociedade Ré).
Logrou o Autor provar que tal Assembleia Geral da Sociedade Ré foi convocada por quem não detinha poderes para o efectuar, pois que os gerentes estavam suspensos das suas funções, por força da decisão proferida no processo identificado na matéria de facto
Logrou, pois, provar que a Assembleia Geral em causa nem sequer se pode considerar convocada, porque o aviso convocatório se mostra assinado por quem não tinha essa competência (cfr. art. 56º, nº 2 do CSC) e, nessa medida, as deliberações dos sócios dela constantes (tomadas em Assembleia Geral não convocada) são nulas (art. 56º, nº 1, al. a) do CSC).
Estabelece o art. 248.º do CSC, sob a epigrafe Assembleias Gerais, que:
“… 3 - A convocação das assembleias gerais compete a qualquer dos gerentes e deve ser feita por meio de carta registada, expedida com a antecedência mínima de quinze dias, a não ser que a lei ou o contrato de sociedade exijam outras formalidades ou estabeleçam prazo mais longo.”.
Ora, no caso concreto, como se disse, provou-se que, na data da mencionada convocatória, o único gerente em funções era o aqui autor, uma vez que os demais haviam sido suspensos de funções por força da decisão proferida em 14/7/2017 no âmbito do processo n.º n.º5985/17.5T8VNG - Juiz 1 do Tribunal do Comércio de Gaia.
Além disso, provou-se que o autor não esteve presente na mencionada assembleia.
Ora, estabelecendo a lei que a incumbência de convocar as assembleias cabe ao gerente da sociedade, cargo que na situação em apreço, e na sequência de decisão judicial, era apenas exercido pelo autor, teremos de concluir que a Assembleia Geral foi convocada por quem não tinha poderes para o fazer.
Ora a consequência deste vício do procedimento é a prevista no art. 56º do CSC (deliberações nulas) onde se preceitua que:
“1 - São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados; (…)
2 - Não se consideram convocadas as assembleias cujo aviso convocatório seja assinado por quem não tenha essa competência, aquelas de cujo aviso convocatório não constem o dia, hora e local da reunião e as que reúnam em dia, hora ou local diversos das constantes do aviso”.
Como esclarece Coutinho de Abreu[29], referindo-se às deliberações nulas por vícios de procedimento e, mais especificamente, às deliberações de assembleia não convocada: “Assembleia geral não convocada é, antes de mais, a assembleia não precedida de qualquer convocatória; ninguém foi convocado, mas, ainda assim, alguns sócios reuniram-se e adoptaram deliberações. Compreende-se que estas deliberações sejam nulas; apesar da falta de convocação ser vício de procedimento, é vício muito grave, na medida em que afasta sócios do exercício de direitos fundamentais da socialidade …
Por isso mesmo deve igualmente ser considerada assembleia não convocada a realizada sem a presença de um ou mais sócios que não foram convocados (convocados foram somente alguns ou algum (…) – são nulas as deliberações adoptadas em assembleia na qual alguns deles não participou por não ter sido convocado.
Outros casos há ainda em que, por força da lei, a assembleia não se considera convocada – com a consequência de as deliberações aí tomadas serem nulas. Nos termos do nº 2 do art. 56º, não se consideram convocadas as assembleias cujo aviso convocatório seja assinado por quem não tenha essa competência, aquelas cujo de cujo aviso convocatório não constem o dia, hora e local de reunião e as que reúnam em dia e hora ou local diverso dos constantes do aviso. Assim considera-se não convocada, por exemplo, a assembleia geral da sociedade por quotas cujo aviso convocatório seja assinado por sócio não gerente… “[30].
No mesmo sentido, refere Pinto Furtado[31]: “atento o disposto no art. 56º, nº 2 do CSC, será pois “nula“ a deliberação aprovada em assembleia convocada por cartas registadas ou por anúncios que se mostrem assinados por pessoa incompetente, ou seja, por quem não for um dos gerentes de sociedade de quotas (art. 248º, nº 3 do CSC)“.
Cumpre esclarecer ainda que a nulidade das deliberações sociais tomadas em assembleia geral não convocada “não é uma nulidade típica. É atípica (invalidade mista lhe chamam geralmente), pois pode o vício da falta de convocação ser sanado, posteriormente por vontade de todos os sócios que não participaram nas deliberações (os primacialmente protegidos pela cominação do art. 56º, nº 1, al. a), convalidando-se elas então”.
De resto, “a nulidade (atípica) não afecta necessariamente todas as deliberações tomadas em assembleia não convocada. Apesar da ausência (total ou parcial) da convocação, não são (por isso) nulas “se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados (2ª parte do nº 1 do art. 56º)”[32].
Atente-se, no entanto, que, no caso concreto, também não se verifica esta situação, em termos factuais, e isso porque, como acima se referiu, provou-se que o aqui Autor não esteve presente, nem se fez representar.
Aliás, em face da data aposta na acta da assembleia, e a data aposta na convocatória, muito dificilmente tal presença poderia ocorrer (sendo este também outro vício de procedimento que aqui poderia ser imputado às deliberações sociais adoptadas na acta junta como doc. nº 4 da petição inicial – “assembleias que reúnam em dia e hora ou local diversos dos constantes do aviso” – v. os autores que atrás se citaram).
Ante o exposto é manifesta a nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré que, nos termos expostos, não se pode considerar convocada (no referido sentido).
Assim sendo, podemos concluir que as deliberações sociais adoptadas na assembleia geral da sociedade C…, constantes da acta junta como documento nº 4 da petição inicial são nulas, como bem entendeu o tribunal recorrido – o que se decide.
*
Finalmente, insurge-se o recorrente contra a comunicação que o tribunal recorrido determinou relativamente ao cumprimento dos deveres estatutários por parte do Exmo. Mandatário do recorrente.
Consta, efectivamente, da parte final da sentença proferida a seguinte frase:
Posto isto: Face ao teor da contestação, nomeadamente, ao articulado em 28.º, comunique esta peça processual à Ordem dos Advogados para os fins tidos por convenientes.
*
Entende o recorrente que “a comunicação à Ordem do Advogados é desproporcional e inadequada”.
Cumpre decidir.
Compulsados os autos, verifica-se que, no indicado item 28 da contestação, o Exmo. Mandatário do recorrente escreveu o seguinte:
“28. Requerimento este (referindo-se a requerimento apresentado pela parte contrária “no requerimento apresentado pelo AA, a 27.11.2019, refª5950729), feito de forma ardilosa, pouco honesta, de manifesta má-fé processual, que será também objecto de queixa crime por denúncia caluniosa, facto, que será deduzido mais adiante, nesta contestação”.
*
Como é sabido, para cumprir o dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente, o Advogado tem o direito — e, sobretudo, tem o dever — de optar por exprimir livremente o seu pensamento e de “apreciar, discutir e criticar tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato e até onde lhe pareça necessário ao triunfo da causa que está a seu cargo”, como já ensinava o Professor Alberto dos Reis.
Daí que a jurisprudência da Ordem dos Advogados venha, reiterada, firme e pacificamente, reconhecendo a legitimidade do emprego pelo Advogado de “expressões mais ou menos enérgicas, veementes, vibrantes, consoante a natureza do assunto e o temperamento emocional de quem as subscreve” e do uso de um estilo de menor moderação e elegância, contundente ou irónico, que, não sendo o mais desejável, se justifique nas circunstâncias do patrocínio.
A decisão acerca do que é necessário ao bom desempenho do mandato ou ao cumprimento do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente compete ao Advogado.
Neste sentido, deve presumir-se-lhe, enquanto no exercício do patrocínio — e, assim, no desempenho de função de interesse público — o animus defendendi e ter por necessárias à defesa da causa as expressões que utiliza ou as imputações que faça.
Esta presunção só deve ser afastada se, num juízo de ponderação, feito segundo as leges artis, sobre as circunstâncias processuais concretas em que foram produzidas as expressões ou imputações ofensivas utilizadas e os fins a que obedeceu o seu uso, se concluir que elas foram ostensivamente inadequadas à defesa da causa.
Em tais situações, quando as expressões ou imputações violam o dever de urbanidade, o Advogado exorbita do exercício da função de interesse público em que está investido e excede os limites que legitimam a sua livre actuação.
Nesse caso, tais condutas poderão preencher o conceito estatutário da violação do dever de urbanidade (cfr. artigo 95° do EOA onde estabelece como dever geral de urbanidade o seguinte: “No exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas”).
Assim, um dos deveres recíprocos dos Advogados é proceder com a maior correcção e urbanidade, abstendo-se de qualquer ataque pessoal, alusão deprimente ou critica desprimorosa, de fundo ou de forma.
Na mesma linha, importa ainda atender que o próprio CPC estabelece o princípio da cooperação entre Mandatários (art. 7º do CPC) o dever de agir de boa-fé e observar os aludidos deveres de cooperação (art. 8º do CPC) e, finalmente, o dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados “por um especial dever de urbanidade”.
Além disso, nenhuma das partes deve usar nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra (nº 2 do citado art. 9º; cfr. também o art. 112º, nº 1, al. a) do EOA).
Importa ainda salientar que a violação de qualquer dever consagrado no Estatuto da Ordem dos Advogados constitui infracção disciplinar e que o Tribunal inclusivamente está obrigado a participar à Ordem dos Advogados (art. 121º do EOA).
No caso concreto, analisado o teor da referida peça processual, afigura-se-nos que as expressões utilizadas pelo recorrente seriam desnecessárias e inadequadas à defesa da posição do Réu.
No entanto, fazendo o aludido juízo de ponderação entre o direito de defesa e o dever de urbanidade, admite-se que o Exmo. Mandatário não tenha extravasado, de uma forma ostensiva, os referidos limites.
Nesta conformidade, determina-se que tal comunicação à Ordem dos Advogados fique sem efeito, sem prejuízo de eventual iniciativa da parte contrária (se assim for o seu entendimento).
*
III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o Recurso apresentado pelo Recorrente, e em consequência, decide-se manter a Decisão Recorrida e, nessa medida, decide-se:
- julgar a presente acção procedente e, em consequência, declarar-se nulas todas as deliberações sociais aprovadas na assembleia geral da sociedade “C…, Lda.” constantes da acta junta como documento nº 4 da petição inicial.
No mais, mantém-se integralmente a sentença recorrida (com excepção da aludida comunicação).
*
Custas pelo Recorrente (art. 527º, nº 1 do CPC).
Notifique.
*
Porto, 7 de junho de 2021
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
______________
[1] Cfr. Acórdãos da Relação de Lisboa de 09/10/2014 (processo nº 2164/12.1TVLSB.L1-2), de 05/05/2015 (processo nº 1386/13.2TBALQ.L1-7) de 19/10/2017 (processo nº 155421-14.5YIPRT.L1-8) e de 08/02/2018 (processo nº 3054-17.7T8LSB-A.L1-6); Acórdãos da Relação do Porto de 24/09/2015 (processo nº 128/14.0T8PVZ.P1), de 12/11/2015 (processo nº 4507/13.1TBMTS-A.P1) e de 27/09/2017 (processo nº 136/16.6T8MAI-A.P1); Acórdão da Relação de Guimarães de 10/07/2018 (processo nº 910/13.5TBVVD-L.G1) e Acórdão da Relação de Évora de 10/05/2018 (processo nº 2239/15.5T8ENT-A.E1), todos disponíveis em dgsi.pt.
[2] https://blogippc.blogspot.com/2015/12/jurisprudencia-250.html#links
[3] Acórdãos da Relação de Lisboa de 09/10/2014, 05/05/2015 e 08/02/2018 (supra-referidos na nota 2); Acórdãos da Relação do Porto de 24/09/2015, 12/11/2015 e 27/09/2017 (também já referidos na nota 2) e o Acórdão da Relação de Évora de 30/06/2016, proferido no processo nº 309/15.9T8PTG-A.E1, e Ac. da RC 3.3.2020 (Catarina Gonçalves – que, nesta parte, aqui seguimos de perto) disponíveis em dgsi.pt.
[4] Neste sentido, v. por exemplo, o ac. da RC 3.3.2020 (Catarina Gonçalves – que aqui seguimos de perto), in dgsi.pt onde se refere o seguinte: “Nessas circunstâncias, tendo sido dispensada a audiência prévia (bem ou mal, não interessa) e tendo sido concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria em discussão, estavam reunidas as condições necessárias para que o despacho saneador pudesse apreciar o mérito da causa e, portanto, nunca poderia aqui afirmar-se que este despacho era nulo por ter apreciado matéria que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar. O que existiu foi apenas uma irregularidade processual que, conforme referimos, resultou do facto de as partes não terem sido ouvidas antes de ser dispensada a audiência prévia, mas tal nulidade tinha que ser arguida, nos termos previstos no artigo 199º do CPC, no prazo de dez dias a contar da notificação do despacho que dispensou tal audiência. Tal irregularidade não foi arguida nesse prazo e, como tal, ficou sanada (…)”.
[5] A. Geraldes/P. Pimenta/Luís Sousa, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 703.
[6] João Correia/Paulo Pimenta /Sérgio Castanheira, in “Introdução ao Estudo e à aplicação do Processo civil de 2013”, págs. 86 e 87;
[7] A. Geraldes/P. Pimenta/Luís Sousa, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 703. No mesmo sentido, P. Pimenta, in “Processo Civil declarativo”, pág. 329 (nota 755).
[8] Paulo Pimenta, in “Processo Civil declarativo”, pág. 299. Aliás este Autor refere inclusivamente que a opção do legislador de conceder ao juiz neste preceito legal diversas opções “significa que, nesse contexto, a decisão de gestão processual (porque é disso que se trata) tomada pelo juiz se inscreve no uso legal de um poder discricionário, não sendo susceptível de impugnação em recurso (art. 630º, nº1 do CPC)”.
[9] Prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao processo Civil, conceito, e princípios gerais à luz do novo código”, pág. 229.
[10] António Júlio Cunha, in “Direito processual civil declarativo”, pág. 310.
[11] Na verdade, o que ficou decidido no Acórdão foi que “eventualmente” deveria ser processado o incidente de habilitação nos termos do art. 372º (352º) do CPC.
[12] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 447.
[13] In “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 369.
[14] Carolinha Cunha, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. II, págs. 720 e 721.
[15] Carolinha Cunha, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. II, págs. 725 e 726.
[16] Carolinha Cunha, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. II, pág. 732.
[17] Carolina Cunha, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. II, págs. 757 e 758.
[18] A. Geraldes/P. Pimenta/Luís Sousa, in CPC anotado, Vol. I, pág. 311.
[19] É o caso, por exemplo, de uma determinada acção que respeite a um bem social que ficou cabendo em partilha a determinado sócio, caso em que alguma parte da doutrina defende que a lide deve continuar só contra este.
[20] Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in “CPC anotado”, Vol. I, pág. 530 dão como exemplo de casos em que a extinção da parte (da Sociedade) torna impossível ou inútil a lide, o caso “do de nomeação ou destituição de órgão social da sociedade entretanto extinta”.
[21] Raúl Ventura (1993), pág. 87 escreveu que “manifestamente, só interessa a acção de anulação, pois que no caso de nulidade da deliberação não chega a haver dissolução” (nota do autor que se cita).
[22] Ricardo Costa, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. II, pág. 665.
[23] Paulo Olavo Cunha, in “Impugnação das deliberações sociais”, pág. 235.
[24] Paulo Olavo Cunha, in “Direito das Sociedades Comerciais”, (ano 2016), pág. 1048.
[25] Paulo Olavo Cunha, in “Direito das Sociedades Comerciais”, (ano 2016), pág. 1046.
[26] Refere Paulo Olavo da Cunha, in “Direito das Sociedades Comerciais”, (ano 2016), pág. 1048 que “sendo a dissolução judicialmente impugnada, pode discutir-se se tem sentido prosseguir com a operação de liquidação, visto que se a impugnação judicial obtiver provimento e proceder, a sociedade deverá manter-se em plena actividade”, concluindo que na sua opinião se inclina para considerar que o disposto no nº 4 do art. 142º aplicável a todos os casos de dissolução, por não fazer sentido que a liquidação prossiga- como se nada tivesse acontecido – e se possa concretizar quando o acto que o espoleta ainda se encontra sob escrutínio judicial”.
[27] V. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, p. 245
[28] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, pá. 377
[29] In “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. I, pág. 656 e 657.
[30] Pedro Maia, in “Invalidade de deliberação social por vicio de procedimento” (ROA – 2001), pág. 711 refere também que: “à ausência total ou absoluta da convocatória, o art. 56º, nº 2 equipara outras situações em que, não obstante ter sido efectuada uma convocatória, é idêntica a lesão imposta aos interesses dos sócios. Aí se prevê o caso de o aviso convocatório ter sido assinado por quem não tinha essa competência… de o aviso convocatório não mencionar o dia, hora e local de reunião e de a assembleia decorrer em dia e hora ou local diverso dos constantes do aviso”.
[31] In “Deliberações de Sociedades Comerciais “, pág. 573.
[32] Coutinho de Abreu, in “CSC em comentário” (Coord. Coutinho de Abreu), Vol. I, pág. 657.