SERVIDÃO DE ESTILICÍDIO
USUCAPIÃO
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
MATÉRIA DE FACTO
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


Constando da decisão sobre a matéria de facto que o beiral do telhado da casa dos réus goteja directamente sobre o logradouro do prédio dos autores e que as águas do telhado escoam, desaguam ou são conduzidas para o mesmo logradouro em circunstâncias (temporais e outras) que permitem dizer que a situação se consolidou juridicamente (i.e., ocorreu usucapião), devem retirar-se daí as devidas consequências, concluindo-se que se constituiu uma servidão de estilicídio a favor do prédio dos réus.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. AA e mulher BB, residentes na ......., instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra:

1.º - CC, viúva, e suas filhas DD e EE, residentes em ...... e …., respectivamente;

2.º - FF, viúva, residente na ……, .......;

3.º - GG, viúva, e seus filhos HH, II, JJ e KK, todos residentes em ........;

4.º - LL, viúva, e seus filhos MM e NN, residentes em ........ e …….,

Pedindo que, na procedência da acção, sejam os réus condenados:

a) a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do imóvel urbano melhor descrito nos pontos e da petição inicial (inscrito na matriz predial urbana ....... sob o artigo …01 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ....... sob o n.º ........516);

b) a demolirem, em 15 dias, o beiral na parte que se encontra a ocupar o espaço aéreo do logradouro dos autores e a impedirem que goteje sobre o logradouro destes;

c) a fecharem as aberturas (janelas) que deitam directamente sobre o logradouro dos autores;

d) a removerem o plástico rígido;

e) a cortar, e tapar, o tubo que deita sobre o logradouro dos autores”.

Para o efeito, alegam, em síntese:

Tendo adquirido o imóvel identificado por usucapião, tal prédio confina com um outro prédio urbano propriedade dos réus, em compropriedade e sem determinação de parte ou direito, inscrito na matriz urbana da mesma freguesia sob o artigo …62º, no qual os réus efectuaram obras “recentemente”;

Que com a realização das obras os réus colocaram o beiral do telhado da casa a ocupar o espaço aéreo do logradouro do prédio dos autores em cerca de 30 cm e a gotejar sobre o mesmo logradouro;

Na nova parede da fachada norte abriram 2 janelas com cerca de 1,5 metro de altura e 80 cm de largura, que deitam directamente sobre o logradouro do prédio dos autores;

Nestas aberturas colocaram ripas de cimento em toda a altura, ripas estas que, no mês de Julho de 2014, retiraram sem autorização e contra a vontade dos autores, passando a poder abrir as janelas e a através delas debruçar-se sobre o logradouro do prédio dos autores;

Abriram um buraco na parede e colocaram um tubo com cerca de 20 cm de diâmetro, proveniente do interior da casa, tubo este que está no prédio dos autores e através do qual lançam vapores e fumos sobre o prédio dos autores;

Na mesma altura colocaram um plástico rígido canelado fixo à parede por pregos, que ocupa o espaço aéreo do prédio dos autores e que se pode desprender a qualquer instante, colocando em perigo os autores;

Levantaram, ainda, uma parede em tijolos, no lado nascente, ocupando parte do muro que divide os quintais de ambos os prédios, procedendo a mais uma abertura com cerca de 70 cm de altura por 45 cm de largura, que deita directamente sobre o logradouro do prédio dos autores.


2. Os réus contestaram, com excepção dos identificados em 3.º lugar.

Além de excepcionarem a sua ilegitimidade, pugnando pela absolvição da instância ou a improcedência da acção, impugnando os factos alegados pelos autores, deduziram reconvenção, na qual peticionaram a condenação daqueles a:

A) Relativamente à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de OO, representada pelas primeiras rés CC, EE e marido PP DD:

a) A reconhecerem a herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de OO (…) representada pelos RR, como dona e legitima possuidora da casa descrita no artigo 15º da contestação (artigo matricial 2260º);

b) A reconhecerem a mesma herança como comproprietária em igual proporção da serventia comum existente entre a casa dos autores e as casas das 1ªs e rés e respetivas heranças ora chamadas;

c) A absterem-se de oporem qualquer obstáculo ao livre exercício da mesma serventia em igual proporção com respeito pelos direitos e deveres de cada consorte nos termos dos artigos 1404º e 1405º do Código Civil;

d) A reconhecerem a existência de quatro servidões de vistas, ar e luz, situadas na parede norte da mesma casa identificada no artigo 15º da contestação correspondente a 4 janelas, tendo como dominante o prédio destes réus e reconvintes e serviente a serventia comum, ou cumulativamente o prédio dos autores;

e) A reconhecerem a existência de uma servidão de estilicídio da água das chuvas do telhado que deitou para a serventia comum através de um beirado com 40 cm de largura a contar da parede da casa;

f) A procederem à tapagem da janela que criaram em substituição das frestas como se alega e se documenta no artigo 46º da contestação/reconvenção;

g) A retirarem a chaminé que os autores implantaram na serventia comum junta à sua casa e referida nos artigos 44º e 45º da contestação/reconvenção;

h) A indemnizarem as 1ªs rés reconvintes e respetiva herança por prejuízos patrimoniais e danos não patrimoniais a liquidar nos termos do n.º 3 do artigo 543º do Código de Processo Civil;

i) A pagarem à mesma herança uma sanção pecuniária compulsória no valor de 100,00 euros por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação ou por cada infração;

B) Relativamente à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de QQ, representada pela 2.ª ré FF e pelos chamados (…):

a) A reconhecerem a herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de QQ, (…) como donos e legítimos possuidores da casa descrita no artigo 16º da contestação/reconvenção (omissa na matriz e não descrita na Conservatória);

b) A reconhecerem a existência de 3 servidões de vista luz e ar (janelas sitas no primeiro e único piso da sua casa identificada no artigo 16º da contestação/reconvenção em que o prédio desta herança é dominante e a referida serventia comum, cumulativamente com a casa dos autores, são o prédio serviente;

c) A retirarem os dois muros que os autores colocaram na serventia comum sem autorização dos restantes consortes, designadamente destes réus (Herança por morte de QQ) com o fim único de tapar as janelas da FF e filhas;

d) A retirarem a chaminé que implantaram na serventia comum da qual a presente Herança é consorte na mesma proporção dos autores e das primeiras rés CC e filhas;

e) A reconhecer a existência de servidão de estilicídio a norte da casa da referente à água caída no telhado da casa e que desagua na serventia comum através de um beirado com 40 centímetros;

f) 3.2.6. A reconhecer a herança representada pela e herdeiros chamados como consorte da serventia alegada no artigo 18º da contestação/reconvenção em igual proporção com os autores e a herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de OO em que a primeira é herdeira e cabeça de casal e a abster-se de pôr qualquer obstáculo ou impedimento ao uso normal da serventia nos termos dos artigo 1404º e 1405º do Código Civil;

g) A indemnizarem a segunda e os restantes herdeiros da herança por morte de QQ por prejuízos sofridos no seu património e danos não patrimoniais em quantia a liquidar nos termos do n.º 3 do artigo 543º do Código de Processo Civil;

h) A pagarem à mesma herança a quantia de 100,00€ a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação ou por cada infração;

C) Relativamente à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de NN (representada pelos 4ºs réus e respetiva chamada):

A reconhecerem a herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de NN (…) como dona e legitima possuidora da casa descrita no artigo 17º da contestação/reconvenção (omissa na matriz e não descrita na Conservatória)”.

Em resumo, alegaram que as casas que hoje lhes pertencem, foram autonomizadas há mais de 70 anos, do artigo matricial urbano n.º 262, por acordo dos então proprietários, tendo cada um começado a usar as quatro casas como habitações independentes, como coisa própria, de forma pública e pacífica, tendo pois cada uma das heranças adquirido por usucapião a casa respectiva, tendo igualmente adquirido por usucapião os direitos de servidão de vistas, ar, luz e de estilicídio, por as situações de facto existirem desde o princípio da construção da casa, e não como alegam os autores, só agora, com as obras recentes.


3. Foi admitida a intervenção provocada, de forma a assegurar a legitimidade das partes relativamente à reconvenção de:

a) A herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de OO, casado que foi com a 1.ª ré;

b) PP, marido da ré EE;

c) A herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de QQ, falecido no dia 8 de Junho de 2001, marido que foi da 2.ª ré, e suas filhas e genro, RR e marido SS, TT, viúva;

d) A herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de NN, falecido no dia 7 de Dezembro.


4. O processo seguiu os seus regulares termos, com a realização da audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, nos termos seguintes:

a) Condena os réus e intervenientes a reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do imóvel urbano melhor descrito nos pontos e da petição inicial (e constante do facto provado n.º 1), se incluindo o logradouro anexo na confinância sul do prédio, inscrito na matriz predial urbana de .......... sob o artigo …..01 e descrito na Conservatória do Registo Predial....... sob o n.º .....516);

b) Condena a ré FF e demais herdeiros da herança ilíquida e Indivisa deixada por óbito de QQ, representada pela FF e pelos chamados RR e marido SS e TT, a removerem o plástico rígido colocado na parede poente do prédio e a fecharem a janela aberta no muro que levantaram na parede poente do mesmo prédio;

c) Condena os autores a reconhecerem a herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de OO, representada pelas primeiras rés CC, EE e marido PP, e DD, como dona e legitima possuidora do prédio identificado no facto provado n.º 26 (artigo matricial 2260º);

d) Condena os autores a reconhecerem a existência de um direito de servidão de vistas, ar e luz, do prédio referido em c) sobre o prédio referido em a), situadas na parede norte da casa identificada no artigo 15º da contestação, relativamente às 4 janelas abertas;

e) Condena os autores a reconhecerem a existência de uma servidão de estilicídio da água das chuvas do telhado da mesma casa que deitam para o logradouro do prédio referido em a), através de um beirado com 30 cm de largura a contar da parede norte da casa;

f) Condena os autores a reconhecerem a herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de QQ, representada pela ré FF e pelos chamados RR, e marido SS, e TT, como donos e legítimos possuidores do prédio identificado no facto provado n.º 27 (omisso na matriz e não descrito na Conservatória);

g) Condena os autores a reconhecerem a existência de um direito de servidão de vistas relativamente às três janelas existentes na parede norte do prédio referido em f), sobre o prédio referido em a);

h) Condena os autores a retirarem os dois muros que construíram no limite sul do logradouro do seu prédio, encostados à parede norte e poente da casa referida em f), permitindo aos donos do mesmo prédio o exercício do direito de servidão reconhecido em g);

i) Condena os autores a reconhecerem a existência de uma servidão de estilicídio da água das chuvas do telhado da mesma casa que deitam para o logradouro do prédio referido em a), através de um beirado com 30 cm de largura a contar da parede norte da casa;

j) Condena os autores a reconhecerem a herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de NN (representada pelos 4ºs réus e pela chamada UU) como dona e legitima possuidora do prédio identificado no facto provado n.º 28 (omisso na matriz e não descrito na Conservatória);

k) Condena as partes (autores e réus/chamados e reconvintes e reconvindos) nas custas da ação e da reconvenção e na proporção do decaimento, que se fixam em 50% para os autores e 50% para os réus/chamados (relativamente às da ação) e em igual proporção para os reconvintes e reconvindos (relativamente à reconvenção) - com aplicação da Tabela I-A anexa ao Regulamento das Custas Processuais (cfr. artigos 527º/1 e 2 e 607º/6 do Código de processo Civil e 6º/1 do Regulamento das Custas Processuais)”.


5. Inconformados, apelaram os autores, na sequência do que, em 11.04.2020, veio o Tribunal da Relação ….. a proferir um Acórdão em que se decidiu:

Em face do exposto, decide-se:

- Ordenar o desentranhamento dos documentos juntos a fls. 487 a 491;

A - Conceder parcial provimento à apelação e, em consequência, revogar a sentença na parte em condenou os AA:

i) a reconhecerem a existência de uma servidão de vistas sobre o prédio dos AA, em benefício das casas sitas nos nºs .. e ../.. da Rua …..;

ii) a reconhecerem a existência de uma servidão de estilicídio a favor da casa sito nos nºs ../.. da Rua …….;

iii) a reconhecerem as heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de OO, representada pela 1ª Ré; de QQ representada pela Ré FF e pelos chamados; de NN, representada pelos 4ºs RR e UU, como donos dos prédios identificados nos números, 26, 27 e 28, respectivamente, da matéria de facto;

B – Na parcial procedência da acção, condenam-se os RR a fecharem as janelas que, situadas na parede norte do seu prédio, deitam directamente sobre o logradouro dos AA.

C - No mais, confirma-se a sentença.

As custas devidas na 1ª instância e do recurso, ficam a cargo de AA e RR na proporção de 35% para os 1ºs e 65% para os Réus”.


6. Continuando inconformados, vêm os autores recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça.

Concluem a sua alegação nos seguintes termos:

I. Ao abrigo do disposto no art.º 674.º, n.º 1, al. a) do C.P.Civil, o Tribunal recorrido fez errada interpretação do conceito de servidão de estilicídio previsto no art.º 1365.º do C.Civil, que prevê o ““gotejar” sobre o prédio vizinho, isto é, o acto de cair água de um telhado gota a gota, e de cada uma das “canas” formadas pelas telhas.” (Acórdão da Relação Coimbra de 11.02.2014, in www.dgsi.pt), factualidade esta que não se reconduz ao direito de “desaguar” e ao “direito de condução e escoamento das águas dos telhados”, invocado pelas as 1.ª RR., nos arts.º 28.º e 29.º da contestação. Pelo que,

II. mal andou o Tribunal recorrido ao entender que “no que tange à servidão de estilicídio a favor do prédio das 1ªs RR, (…) nesta parte foram alegados os factos que a integram (cf. arts. 28º e 29 da contestação/reconvenção), devendo, como consequência necessária do que vem de se dizer, a factualidade dada como provada nos pontos 8, 9, 35 e 36 ser dada como não provada. Assim,

III. devendo o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a revogue a sentença de 1.ª Instância na parte em que condena os AA. a reconhecerem a existência de servidão de vistas a favor do prédio das 1.ª RR. sobre o logradouro do prédio dos AA..

IV. O Tribunal da Relação não conheceu nem apreciou a matéria vertida nas conclusões IV e V das alegações de recurso dos AA./recorrentes, sendo, por isso, nulo por falta de pronuncia de questão de que devia conhecer, porque submetida à sua apreciação e não prejudicada pelo conhecimento de qualquer outra, ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al d) e no art.º 674.º, n.º 1, al. c).

V. Da mesma forma, só por mero lapso se entende que o Tribunal da Relação, após ter mandado revogar a sentença de 1.ª Instância na parte em que condenou os AA. a reconhecerem a existência de uma servidão de vistas sobre o prédio dos AA. em benefício das casas sitas nos n.º .. e ../.. da Rua ........ e após ter condenado os RR. a fecharem as janelas situadas na parede norte do seu prédio, que deitam directamente sobre o logradouro dos AA., não tenha mandado revogar a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância na parte em que “Condenou os autores a retirarem os dois muros que construíram no limite sul do logradouro do seu prédio, encostados à parede norte e poente da casa referida em f), permitindo aos donos do mesmo prédio o exercício do direito de servidão reconhecido em g);” Pelo que,

VI. deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a revogação da sentença proferida em 1.ª Instância na parte em que “Condenou os autores a retirarem os dois muros que construíram no limite sul do logradouro do seu prédio, encostados à parede norte e poente da casa referida em f), permitindo aos donos do mesmo prédio o exercício do direito de servidão reconhecido em g);”. Sendo certo que,

VII. sem prescindir do que se disse, e como já referido pelos AA. na conclusão VII da suas alegações de recurso, no em concreto diz respeito ao muro que os AA. edificaram encostado à parede poente da casa da 2.ª Ré, nunca o Tribunal de 1.ª Instância poderia ter ordenado a sua demolição – já que as janelas da casa da 2.ª Ré que o Tribunal de 1.ª Instância entendeu estarem beneficiadas por servidão de vistas, se situam na parede norte e poente”.


7. Não se resignando, tão-pouco, com o Acórdão, vêm os réus CC e Outros interpor também recurso de revista.

Formulam, a final, as seguintes conclusões:

I – A propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião ou decisão judicial desde que se verifiquem os requisitos do Artigo 1415º do Código Civil.

II – A constituição da propriedade horizontal pode ser declarada em Acção declarativa de aquisição.

III – A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial em Acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário não tem carácter taxativo mas exemplificativo.

IV - A decisão judicial pode resultar da iniciativa do Juiz quando conheça do mérito da causa, mesmo oficiosamente, uma vez que o Tribunal não está sujeito ao princípio do pedido, salvaguardando-se sempre os requisitos exigidos pelo Artigo 1415º, nomeadamente constituição de unidades autónomas distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum ou para a via pública, o que é o caso dos Autos.

V – Aliás, a presente Reconvenção tem como fundamento um acordo verbal de divisão de coisa comum celebrado há mais de 50 anos com todos os requisitos para a usucapião (corpus, animus e tempo ) como resulta dos números 21 a 25 dos factos provados.

VI – Os R.R. e Intervenientes têm a seu favor a presunção da titularidade do direito de propriedade reconhecida na Douta Sentença da 1.ª Instância que os A.A. não ilidiram e os Senhores Desembargadores não se pronunciaram nem constava das Conclusões do recurso pelo que transitou em julgado e constitui caso julgado.

VII – As 3 ( três ) casas dos ora recorrentes estão registadas a seu favor como consta do facto 7 da matéria de facto provada.

VIII – O registo predial constitui presunção da titularidade, que também não foi ilidida e tal registo não deixa de incorporar a presunção do Art.º 7º do Código do Registo Predial.

IX – Não ficou minimamente provado que as aberturas do primeiro andar e existentes antes das obras de reconstrução fossem frestas e o mesmo se diga das aberturas dorés-do-chão,             não tendo os Senhores Desembargadores fundamento para as classificarem como frestas.

X – Só a citação interrompe o prazo de usucapião.

XI – As referidas obras na casa n.º 10 foram realizadas a coberto da licença de construção com validade de 26/10/1999 a 24/04/2000 e na pior das hipóteses o prazo legal de constituição das indicadas servidões de vistas, ar e luz, tendo em conta as obras de reconstrução decorrido a coberto da Licença de Construção Camarária, deve basilar-se entre 24/04/2000 e 22/04/2016, data de citação da Ré e Interveniente Herança Iliquida e Indivisa Deixada por Óbito de OO, ou seja, decorreram 15 anos, 11 meses e 29 dias, prazo superior a 15 anos, aplicável no caso dos Autos à aquisição prescritiva por usucapião.

XII – Relativamente ao prazo prescricional aquisitivo do direito às servidões de vistas, ar e luz a favor da casa ( n.º 6/8 ) da Ré e Interveniente Herança liquida e Indivisa Deixada por Óbito de QQ, o prazo prescricional começa senão antes, como é razoável, em Dezembro de 2001, tendo decorrido até 26/04/2016, data da citação da Ré Herança, 14 anos 3 meses e 25 dias.

XIII – E no caso de dúvida entre 2000 e 2002 deve aplicar-se o disposto no n.º 3 do Artigo 342º do Código Civil, considerando-se constituído o direito, isto é, que decorreu o prazo de 15 anos.

XIV – Ficou provada a prática reiterada de factos materiais de gozo pelas primeira e segunda Rés Heranças das utilidades de vistas, luz e arejamento pelo que têm estas heranças a presunção da titularidade dos direito ás servidões de vistas, ar e luz e estilicídio nos termos dos Artigos 1263º, alínea a) e 1.268º, n.º 1 do Código Civil, presunção que não foi ilidida pelos A.A..

XV – tratando-se de uma Acção Declarativa de Reivindicação incumbia aos A.A. peticionar o reconhecimento da propriedade do indicado espaço e só depois pedir a demolição do beiral e o fechamento das aberturas (janelas ).

XVI – Não o tendo feito, a Petição é inepta nos termos e com as consequências de ineptidão da Petição Inicial, de conhecimento oficioso e de nulidade prevista no Artigo 186º, n.ºs 1 e 2 do C. P. Civil.

XVII – As obras em causa foram autorizadas e consentidas pelos anteriores proprietários da casa dos A.A., os quais tiveram conhecimento da realização das obras e não fizeram qualquer oposição, antes sempre houve óptimas relações de vizinhança.

XVIII – Deve ser revogada a decisão do Tribunal da Relação de ….. sobre a questão do Abuso de Direito , confirmando-se a decisão da 1.ª Instância com consideração de factos provados agora trazidos para melhor fundamentação e aplicação do Direito.

XIX – Os R.R. não praticaram nenhuma ilegalidade e o Tribunal da Relação de ….. violou o disposto no Artigo 334º do Código Civil.

XX – Nos termos expostos deve ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que confirme a Sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

XXI – O Venerando Tribunal da Relação de ….. violou ou interpretou erradamente o disposto nos Artigos 1415º, 1316º, 1296º, 1267º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, 1363º, n.ºs 1 e 2, 323º, n.º 1, 342º, n.º 3 e 334º do Código Civil, 186º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil e art.º 7.º do Código do Registo Predial, devendo tais normas legais serem aplicadas e interpretadas com acima se deixa exposto”.


8. Contra-alegaram tanto autores como réus.


9. Em 24.09.2019 proferiu o Exmo. Desembargador da Relação de ….. o seguinte despacho:

Pelos requerimentos de fls. 535 e 547, considero interpostos os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça.

Os mesmos são de revista e tem efeito meramente devolutivo.

Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.


10. Já neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Conselheiro Relator a quem o processo foi inicialmente distribuído proferiu, em 15.06.2020, decisão sumária da qual resultou, por um lado, a admissibilidade do recurso dos autores e, por outro lado, a inadmissibilidade do recurso dos réus[1] – por falta de preenchimento do requisito de recorribilidade respeitante à alçada do tribunal (o valor da reconvenção havia sido definitivamente fixado em € 24.420,00).


11. Tendo sido ordenada, na mesma decisão, a baixa dos autos atendendo a que “os AA. vieram arguir várias nulidades da decisão e o tribunal da Relação remeteu os autos ao STJ sem as apreciar, como era seu dever”, foram estes remetidos à 1.ª instância, onde foi proferido, em 13.07.2020, o despacho seguinte:

Não obstante a remessa dos autos a esta instância (pelo STJ) e sem prejuízo do que vier a ser decidido pelo Tribunal da Relação, parece-me resultar da decisão sumária proferida pelo STJ que se impunha a remessa dos autos do STJ para o Tribunal da Relação, para apreciação de nulidades suscitadas pelos autores, com possível remessa à posteriori do recurso interposto pelos autores para o STJ.

Assim, tendo os autos sido devolvidos diretamente a esta instância pelo STJ, remeta os autos ao Tribunal da Relação para as finalidades que nos parece resultarem da decisão do STJ.

Notifique”.


12. Devolvidos os autos ao Tribunal da Relação ….., proferiram os Exmos. Desembargadores, em 6.10.2020, um Acórdão em Conferência decidindo deferir parcialmente o requerimento de arguição de nulidades.

Pelo exposto, deferindo parcialmente a reclamação, altera-se o acórdão reclamado de modo a dele constar que também é revogado o segmento h) sentença recorrida – segmento no qual se mandavam retirar os dois muros construídos no limite sul do logradouro do prédio dos AA. encostados às paredes norte e poente da casa aludida em f) (casa que essa que está identificada em 27 dos factos provados) – de modo que os AA. vão também absolvidos dessa parte do pedido.

No mais vai a reclamação indeferida.

Custas na proporção de ½ pelos AA. e ½ pelos 2ºs RR.”.


13. Notificados deste Acórdão, vêm ainda os autores alegar o seguinte:

I. Invocaram os AA. a nulidade do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ….. que omissão de pronuncia por parte do Tribunal da Relação que não conheceu nem apreciou a matéria vertida nas conclusões IV e V das alegações de recurso dos AA./recorrentes, , ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al d) e no art.º 674.º, n.º 1, al. c).” Sucede que,

II. conhecendo da questão suscitada, o Tribunal da Relação não sanou a nulidade invocada, pois que, não demonstrou que a questão cuja falta de pronuncia os AA. invocaram tivesse efectivamente sido conhecida e apreciada por esse mesmo Tribunal no acórdão recorrido e, portanto, que não se verifica a alegada falta de pronuncia. De facto,

III. o que o Tribunal da Relação faz é não se pronunciar novamente sobre a questão cuja falta de pronuncia os AA. suscitaram, dizendo que o que os AA/recorrentes pretendem “é verdadeiramente um novo e diverso julgamento sobre os requisitos da servidão de estilicídio em causa.” Pelo que,

IV. deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que aprecie as conclusões IV e V da apelação interposta da sentença de primeira instância, transcritas supra no art.º 8.º”.


14. Vêm os réus responder a estas alegações, pugnando pela não admissão do recurso.


15. Após algumas vicissitudes dos autos, é ordenada, em 26.03.2021, a redistribuição, na sequência do que passa a ser a titular do processo a presente Relatora.


*


Tudo visto, e tendo presente que a questão da admissibilidade dos recursos está decidida por decisão do Exmo. Conselheiro Relator antecessor, há muito transitada em julgado (admissão do recurso interposto pelos autores e não admissão do recurso interposto pelos réus), cabe conhecer do recurso interposto pelos autores.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) se existe nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia; e

2.ª) se os autores devem ser condenados a reconhecer a servidão de estilicídio a favor do prédio dos 1.ºs réus.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. Os autores adquiriram, no ano de 2012, em processo de execução fiscal, o prédio urbano sito na ........, n.º .., em ..........., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ....... sob o artigo …01 (outrora artigo …61) e descrito na Conservatória do Registo Predial da mesma freguesia sob o n.º ........516;

2. Tendo registado a aquisição do direito de propriedade mediante a ap. 1059 de 17/09/2012;

3. Tal imóvel é composto por casa com dois pisos e logradouro e confronta de poente com a ....... e de sul com os prédios urbanos n.ºs .. e ../.. da Rua ......;

4. Os autores, por si e pelos seus antecessores no direito (antecessores estes que foram VV, que faleceu por alturas do ano de 2008, e os seus herdeiros), utilizam tal imóvel, logradouro e todos os seus componentes há mais de 20 e 30 anos, habitando-o, primeiro o inditoso VV e família, até à data do falecimento daquele, e ultimamente, depois da aquisição de finais de 2012, os autores;

5. Nele recebendo os familiares e amigos; cuidando e conservando o logradouro e a casa; neles fazendo obras de conservação e manutenção; entrando e saindo do logradouro e da casa;

6. Tudo isto fazendo de dia, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos réus, agindo como se coisa própria deles se tratasse;

7. Os réus e intervenientes têm registada a aquisição do direito de propriedade, em comum e com discriminação das quotas-partes do direito, sobre o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana de ......... sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ....... sob o n.º .../....0306;

8. [2] O beiral do telhado da casa nº .. da Rua ......, na sua confinância norte, ocupa o espaço aéreo do logradouro do prédio adquirido pelos AA em cerca de 30 cm;

9. E, tendo a mesma configuração há mais de 50 anos, goteja directamente sobre o mesmo logradouro;

10. A casa n.º .. da Rua ......, na parede da fachada norte, tem ao nível do piso superior 2 janelas com cerca de 97 cm de altura, por cerca de 74 cm de largura, que abrem para o interior da casa;

11. [3] Onde estão agora as janelas, existiam aberturas, com ripas em cimento, mediante aplicação na parte exterior e desde o peitoril até à torça, que foram retiradas aquando das obras efectuadas a coberto da licença de construção com validade de 26/10/1999 a 24/04/2000;

12. Após a retirada das ripas em cimento, OO e a sua família, passaram a poder debruçar-se nas referidas janelas sobre o logradouro do prédio adquirido pelos autores;

13. E a ter vistas mais amplas sobre o mesmo;

14. A mesma parede tem um buraco circular com o diâmetro de 80 mm, no qual se encontra colocado um tubo proveniente do interior da parede (não comunicando com o interior da casa) e que se prolonga até ao logradouro do prédio adquirido pelos autores;

15. Em Julho de 2014, a ré FF e outros herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de QQ, colocaram um plástico rígido canelado, fixo, por pregos, à parede poente do prédio urbano sito na Rua ....., n.ºs ../..;

16. Plástico que ocupa, em alguns centímetros, o espaço aéreo, a nascente, do prédio adquirido pelos autores;

17. Cuja fixação, por ser feita com pregos, pode soltar-se da parede a qualquer instante, colocando, assim, em perigo os autores no seu logradouro;

18. Na mesma altura, os mesmos réus levantaram uma parede em tijolos sobre o muro que divide o lado nascente do logradouro do prédio adquirido pelos autores do lado poente do logradouro do prédio da Rua ...... n.ºs ../.., ocupando parte do muro que divide os quintais;

19. E, nessa parede, procederam uma abertura com 63 cm de altura por 48cm de largura;

20. Abertura que deita directamente sobre a parte do logradouro do prédio adquirido pelos autores;

21. Os réus (todos) durante mais de 50 anos viveram em boa vizinhança uns com os outros e com o anterior dono, Sr. VV e seus herdeiros, com respeito pelos direitos de cada um e autorizando, consentindo conjuntamente, todas as obras de beneficiação, reconstrução e manutenção de cada uma das habitações em causa;

22. O artigo matricial n.º 262 menciona como ano de inscrição na matriz o ano de 1937;

23. Embora mantendo o mesmo artigo matricial, foram construídos 4 prédios urbanos independentes;

24. Por acordo verbal entre os então donos destes prédios, há mais de 50 anos, cada um começou a habitar uma casa que consideraram como sua e como tal foi transmitido por compra e venda ou por herança, de tal forma que cada um dos réus ou respectivos herdeiros, por si e antecessoras, utilizou uma casa devidamente individualizada, independente e autónoma, com entradas independentes directamente viradas para a rua (Rua .....), tendo apenas como partes comuns as paredes nascente e poente, para sua habitação e da família;

25. Nela dormindo, fazendo as refeições, recebendo os amigos visitas e familiares, conservando, reparando e fazendo a manutenção da sua casa com ligações de água e luz, individualmente para cada casa, de forma pública, pacífica e ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, designadamente dos moradores de cada uma das quatro casas, na convicção de exercerem cada um o direito de propriedade de cada casa e de não lesarem direitos alheios;

26. A herança ilíquida e indivisa deixada por óbito OO, falecido no dia 6 de Fevereiro de 2013, adquiriu, assim, o prédio urbano situado na Rua ......., n.º .., freguesia........, concelho......., com 2 pisos, a confrontar de norte com logradouro do prédio adquirido pelos autores, para onde têm escorrido as águas do beirado da casa, de sul com a Rua ......, de nascente com FF e de poente com a ........, que os herdeiros de OO inscreveram na matriz no ano de 2013, com o artigo matricial ….;

27. A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito QQ, marido da 2ª ré FF, adquiriu o prédio urbano de rés-do-chão sito na Rua ..........., n.ºs .. e .., freguesia de ........, concelho ......., a confrontar do norte com o logradouro do prédio adquirido pelos autores, de sul com a Rua ........, de nascente com herdeiros de NN e de poente com herdeiros de OO, omisso na respetiva matriz predial e não descrito na Conservatória do Registo Predial;

28. A herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de NN adquiriu o prédio urbano de rés-do-chão, sito na Rua ......., n.º .., freguesia .........., concelho de ......., a confrontar de sul com a Rua ........., n.º .., de nascente com herdeiros de WW (3ºs réus) e de poente com herdeiros de QQ, omisso na matriz predial da freguesia de ..........., concelho ......., e não descrito na Conservatória do Registo Predial do Concelho .......;

29. A casa do n.º .. da Rua ........ tem, na parede norte, 2 janelas abertas para o logradouro do prédio adquirido pelos autores a nível do r/c e 2 outras janelas no piso superior;

30.[4] Antes das obras de reparação, no local onde estão agora as janelas, existiam aberturas, de dimensões não apuradas, que não abriam, com pilaretes verticais em cimento;

30-A. [5] As referidas obras, efectuadas a coberto da licença supra referida, ocorreram ainda em vida do marido e pai das primeiras rés, com conhecimento e sem oposição do anterior proprietário da casa que é hoje dos AA;

31. Nesta reconstrução as paredes exteriores foram mantidas, e colocadas as actuais janelas de alumínio, com persianas;

32. As janelas do r/c têm as dimensões de 30 cm por 70 cm e estão situadas a 1,52 metros e 2,11 metros do piso, medidos pelo interior do imóvel (possuindo vidro martelado armado, tendo a parte inferior fixa, abrindo a parte superior parcialmente, em forma de báscula – distando a parte superior de casa uma das janelas, respectivamente, 1,94 metros e 2,39 metros do piso); as janelas do piso superior estão construídas a cerca de 1 metro de altura do respectivo piso, medido pelo interior do imóvel, e abrem em duas folhas;

33. Desde que existem, estas janelas servem para arejar e dar luz à casa, permitindo as do piso superior ter vista sobre o logradouro do prédio adquirido pelos autores;

34. Estas 4 janelas foram abertas com conhecimento dos antecessores dos autores, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, sem interrupções, na convicção de os atuais e anteriores donos exercerem um direito a vistas, ar e luz;

35. Ainda nesta mesma casa, desde há mais de 50 anos, as águas do telhado na parte norte desaguavam para o logradouro do prédio adquirido pelos autores, com beirado, que se manteve nas mesmas dimensões após as obras de reconstrução licenciadas em 1999;

36. [6] Tal beirado foi construído no início da construção do prédio, com conhecimento e consentimento dos anteriores donos da casa adquirida pelos autores, Sr. VV, e assim permaneceu, há mais de 50 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, continuadamente, na convicção de que as primeira rés e a respectiva herança e ante possuidores exerceram um direito de condução e escoamento das águas do telhado da respectiva casa;

37. Na casa das primeiras rés e respectiva herança sempre existiu um tubo (buraco) de arejamento, para evitar humidades da própria parede, que tinha 80 milímetros de diâmetro;

38. Tal tubo não entrava no interior da casa, pelo que não permitia a passagem de vapores, fumos, cheiros para o exterior;

39. Com obras de impermeabilização da parede, tal tubo ou buraco está desativado e não tem qualquer interesse para as primeiras rés;

40. A ré FF e seu marido fizeram obras interiores de manutenção, beneficiação e impermeabilização da casa;

41. A ré FF, para beneficiação do curral existente no prédio, levantou uma parede sobre parte da parede comum ao prédio adquirido pelos autores, deixando livre a metade da parede do lado destes;

42. Tal obra ainda não está acabada;

43. A casa adquirida pela ré FF tem, na parede norte, três janelas abertas a nível do primeiro piso, viradas para o logradouro do prédio adquirido pelos autores, com as seguintes medidas, medidas pelo interior da casa e a partir do piso:

a) Uma com 0,81 m de altura e 0,62 m de largura;

b) outra com 0,86 m de altura e 0,74 m de largura; e

c) outra com 0,40 m de Altura e 0,81 m de largura;

estando as identificadas em a) e b) a 1,05 m de altura a contar do piso e a identificada na alínea c) a 1,48 m a contar do piso;

44.[7] Estas janelas foram abertas em data imprecisa, entre 2000 e 2002, com conhecimento e sem oposição dos anteriores donos da casa adquirida pelos autores, assim se mantêm desde a sua abertura, ininterruptamente, agindo os donos da casa na convicção de não estarem a lesar direitos alheios;

45.[8]

46. No verão de 2014 os autores colocaram um muro de blocos de cimento à frente dessas três janelas, retirando a vista, o arejamento e a luz à casa adquirida pela ré FF e referida herança;

47. A casa adquirida pelos autores tem uma chaminé de saída de fumos e de gases no logradouro situado no lado sul da casa, ligada à sua parede sul, desde o 1º piso até ao telhado, que foi aí colocada pelos autores em data não apurada ocorrida depois da data da aquisição da casa;

48. Na mesma altura, transformaram uma janela com frestas (4 colunas) na parede sul da casa, tendo-lhe retirado as 4 colunas em cimento;

49. A actuação dos autores causou às rés CC e FF aborrecimentos, desgosto, apreensão e tristeza.


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1. O imóvel adquirido pelos autores confronta de norte com herdeiros de VV, de sul com herdeiros de XX, de nascente com herdeiros de VV;

2. Os réus sejam donos e possuidores, sem determinação de parte ou de direito, do imóvel urbano inscrito na matriz predial da freguesia....... sob o artigo …62, composto por uma casa térrea que serve de habitação com 28 divisões, com 256m² de superfície tendo anexo 1 curral com 176m², que confronta de Norte com YY, de Sul com ZZ, de Nascente AAA e de Poente Rua;

3. Os RR efectuaram obras no seu imóvel “recentemente”;

4. Tais obras consistiram no levantamento das paredes da casa térrea; 5. Construíram um novo piso habitacional e um sótão;

6. E colocaram um novo telhado;

7. Aquando da realização destas obras, colocaram o beiral do telhado a ocupar o espaço aéreo do logradouro dos autores em cerca de 30cm;

8. E a gotejar sobre o logradouro dos autores;

9. Na nova parede da fachada norte (nessa data: “recentemente”) abriram duas janelas com cerca de 1,5m de altura e 80cm de largura que deitam diretamente sobre o logradouro dos AA;

10. Nestas aberturas colocaram frestas, mediante aplicação na parte exterior e desde o peitoril até à torça, de ripas em cimento;

11. Ripas de cimento estas que pintaram à cor da casa (branco);

12. Cerca do mês de julho de 2014, sem autorização e contra a vontade dos AA, retiraram as ditas ripas de cimento;

13. Assim eliminando as frestas das janelas;

14. Janelas estas que (“recentemente”) passaram a poder abrir;

15. Através delas (“recentemente”) debruçar-se sobre o logradouro dos AA; 16. E assim (“recentemente”), a ter vistas sobre ele;

17. De modo idêntico, abriram um buraco na parede, e nele colocaram um tubo cinzento com um diâmetro de cerca de 20cm;

18. Tubo este que vem do interior da casa dos RR. até ao logradouro da casa dos AA; 19. E por ele os réus lançam vapores e fumos sobre o imóvel dos AA;

20. Os factos provados relativos à colocação do plástico e ao levantamento da parede em tijolos, do lado nascente, tenham sido praticados por outros réus que não a ré FF e os demais herdeiros da herança de QQ;

21. Os factos provados relativos às obras efectuadas sobre as casas n.ºs ../.. e .. da Rua ........... tivessem sido efectuado por outros réus que não os réus herdeiros da herança de QQ e os réus herdeiros da herança de OO;

22. Tal prédio ou os prédios das heranças de OO e QQ confrontem de sul com “serventia comum”;

23. O prédio adquirido pela herança ilíquida e indivisa deixada por óbito OO tenha 4 divisões, confronte de norte com serventia comum e tenha a área de 74 m2;

24. O prédio adquirido pela herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de NN confronte de norte com herdeiros de AAA e outro;

25. As casas referidas no artigos 15.º e 16.º da contestação confrontam a norte com serventia comum (dos A. A., das primeiras e segunda rés ou respetivas heranças), com entrada com portão pela ......., com 12 m de comprimento e cerca de 1,20 metros de largura, utilizada desde a construção das casas, há cerca de 70 ou 80 anos, e pelas primeiras e segunda R.R. e respetivas heranças, de forma pacífica e pública, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, designadamente dos donos das casas referidas nos artigos 15º e 16.º da contestação e dos anteriores donos da casa dos A.A. (VV e herdeiros), na convicção de exercerem um direito de compropriedade;

26. As janelas (do piso superior da casa do n.º 10) nunca tiveram frestas de cimento ou outro qualquer material;

27. [9]                                                                 

28. Desde a construção do imóvel e até que ruiu as águas pluviais do telhado eram recolhidas por caleiras, com descarga ao solo;

29. Aquando da colocação do telhado recente, que hoje tem, os réus propuseram-se e obrigaram-se, a recolher as águas do telhado em caleira com descarga ao solo;

30. O município licenciou ou autorizou a construção do muro efectuada pelos autores;

31. As obras/construções alegadas nos articulados tenham dimensões diversas das que foram levadas aos factos provados;

32. A actuação dos autores causou aos demais réus alegados aborrecimentos, desgosto, apreensão e tristeza.


O DIREITO


Da nulidade por omissão de pronúncia

A primeira questão a apreciar prende-se com a alegada existência / persistência de nulidade por omissão de pronúncia no Acórdão do Tribunal da Relação.

Alegam, precisamente, os autores / recorrentes que “o Tribunal da Relação não conheceu nem apreciou a matéria vertida nas conclusões IV e V das alegações de recurso dos AA./recorrentes, sendo, por isso, nulo por falta de pronuncia de questão de que devia conhecer, porque submetida à sua apreciação e não prejudicada pelo conhecimento de qualquer outra, ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al d) e no art.º 674.º, n.º 1, al. c) (cfr. conclusão VI das alegações de revista).

Recorde-se que, na sequência da arguição de nulidade do Acórdão, o Tribunal recorrido já procedeu a uma alteração no Acórdão que proferiu, determinando que a sentença é também revogada quanto ao segmento h) do dispositivo e, consequentemente, que os autores também são absolvidos do pedido na parte em que se peticiona que sejam condenados a retirar os dois muros construídos no limite sul do logradouro do seu prédio encostados às paredes norte e poente da casa aludida em f) (casa que essa que está identificada em 27 dos factos provados). Mesmo assim, os autores entendem que subsiste uma nulidade dado que não foi – continua a ser – conhecida nem apreciada a matéria vertida nas conclusões IV e V das alegações de apelação.

No seu Acórdão de 6.10.2020, o Tribunal a quo distinguiu, de facto, entre duas nulidades: uma, resultante da conclusão VII da apelação e respeitante à omissão de pronúncia sobre questão da retirada dos muros construídos no limite sul do logradouro do prédio dos autores – que reconheceu existir e supriu nos termos atrás vistos –; e outra, resultante das conclusões IV e V da apelação e respeitante à omissão de pronúncia sobre a questão da servidão de estilicídio a favor do prédio dos 1.ºs réus sobre o prédio dos autores – que recusou existir nos seguintes termos:

Trata-se aqui segundo os AA. de uma omissão atinente à não apreciação correcta dos requisitos da servidão de estilicídio a favor do prédio das 1ªs RR. por não se encontrar provada a boa-fé destas nem o decurso do prazo de prescrição exigido – de 20 anos – por referência à data da propositura da acção.

Salvo o respeito devido, o que os AA. pretendem não é o suprimento de um qualquer vazio de julgamento sobre uma certa questão: é verdadeiramente um novo e diverso julgamento sobre os requisitos da servidão de estilicídio em causa.

De sorte que não se verifica a apontada omissão de pronúncia”.

Veja-se se se pode confirmar esta decisão do Tribunal recorrido – se a questão foi apreciada e decidida, constituindo a arguição de nulidade por parte dos autores meramente uma tentativa de conseguir que a questão seja reapreciada e decidida em sentido que lhes seja mais favorável.

As conclusões IV e V da apelação são do seguinte teor:

IV. O Tribunal deveria ter julgado improcedente o pedido deduzido pelas 1." RR. de reconhecimento de servidão de estilicídio por falta de requisitos legais, pois que em parte alguma dos autos resultou demonstrado e provado que há mais de 50 anos que o telhado do prédio das l.a RR. goteja sobre o prédio dos AA. com a mesma configuração. De facto, o que fi­cou demonstrado, mormente através da perícia, é que, a partir de 1999/2000, quando o imóvel foi objecto de obras de reconstrução, o beirado do telhado ficou prolongado em 30 centímetros sobre o prédio dos AA., sem caleira, nada se referindo sobre as anteriores condições em que o telhado se encontrava. Acresce que,

V. o projecto de obras foi aprovado sob condição de as águas pluviais do telhado da casa das 1 .a RR. serem recebidas em caleiras de zinco, pintadas a cor "verde garrafa", e depois con­duzidas ao solo, pelo que, as 1 .a RR. sabiam da obrigação, a que estavam vinculadas, de dar cumprimento ao projecto de arquitectura, com a colocação das referidas caleiras no beirado do telhado, por forma a recolher as águas das chuvas e a serem canalizadas para o solo e, ainda assim, não o fizeram pelo que não se pode dizer que tenham ou venham actuando de boa-fé, ou seja, que não ignoravam, nem ignoram, a intromissão que, com a não colocação das caleiras, têm perpetrado no prédio dos AA. Assim, e porque a posse não titulada presume-se de má-fé, o prazo de prescrição aquisitiva é de 20 anos e tendo os RR. executado obras no telhado a coberto da licença de construção com a validade entre 26.10.1999 e 24.04.2000, e tendo a acção dado entrada em juízo em 25.03.2015, não estava decorrido, à data da propositura, o prazo de prescrição de 20 anos. Pelo que, não se encontra constituída qualquer servidão de estilicídio a favor do prédio das 1a RR.”.

Imediatamente se verifica que não assiste razão aos autores, sendo totalmente improcedente a sua arguição de nulidade.

É sobejamente conhecido o teor do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, sendo indiscutível, com apoio nesta disposição, que o Tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões – questões e não argumentos – que sejam suscitadas no recurso.

A verdade é que a única questão suscitada nas conclusões IV e V da apelação é a de saber se deveria ter-se julgado improcedente o pedido deduzido pelos 1.ºs réus de reconhecimento de servidão de estilicídio, por falta de requisitos legais.

Ora, sobre tal questão não há dúvidas que existe pronúncia do Tribunal, tendo ela ficado claramente decidida nos termos que se verão já de seguida.

Assim sendo, não há como não subscrever a conclusão do Tribunal recorrido.

Rejeita-se, pois, a arguição de nulidade.


Da servidão de estilicídio a favor do prédio dos 1.ºs réus

Alegam os autores que o Acórdão recorrido deve ser revogado na parte em que reconhece a constituição de uma servidão de estilicídio a favor do prédio sito no n.º 10 da Rua ....., que pertence aos 1.ºs réus (cfr. facto provado 26.).

Entendem, no essencial, que o Tribunal a quo fez errada interpretação do conceito de servidão de estilicídio previsto no art.º 1365.º do C.Civil, que prevê o 'gotejar' sobre o prédio vizinho, isto é, o acto de cair água de um telhado gota a gota, e de cada uma das 'canas' formadas pelas telhas.' (Acórdão da Relação Coimbra de 11.02.2014, in www.dgsi.pt), factualidade esta que não se reconduz ao direito de 'desaguar' e ao 'direito de condução e escoamento das águas dos telhados', invocado pelas as 1.ª RR., nos arts.º 28.º e 29.º da contestação” (cfr. conclusão I das alegações de revista mas cfr. ainda conclusões II e III[10]).

Veja-se como fundamentou o Tribunal recorrido a sua decisão quanto a esta questão:

Se estão reunidos os requisitos da servidão de estilicídio.

A sentença condenou os AA a reconhecerem a existência de duas servidões de estilicídio da água das chuvas dos telhados das casas das 1ª e 2ª RR (CC e FF), que deitam para o logradouro do prédio dos AA, através de um beirado com 30 cm a contar da parede norte da casa (cf. alíneas e) e i) do dispositivo).

Alegam os Recorrentes que o tribunal deveria ter julgado improcedentes estes pedidos reconvencionais por não terem sido alegados factos integradores do alegado direito de servidão de estilicídio, “e que não podia ter dado como provada a matéria dos pontos 8, 9, 35 e 36” por não ter sido alegada.

Vejamos.

Estatui o art. 1365º do CCivil, sob a epígrafe Estilicídio:

1. O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo.

2. Constituída por qualquer título servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante.

Esta figura jurídica visa atender às situações criadas pelos proprietários que deixam ficar os beirados dos telhados dos seus prédios urbanos a gotejar sobre prédios vizinhos, isto é, a situações em que alguma parede de um edifício urbano define o limite da propriedade e uma vez que o beirado fica dela saliente, já sobre o prédio vizinho, face ao que está prevista a servidão (estilicídio) – art. 1365º do CCivil.

Prevendo a lei apenas o “gotejar” sobre o prédio vizinho, a obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só existe quando elas caem gota a gota nos prédios ditos servientes (H. Mesquita, in Direitos Reais, pag. 157).

No caso dos autos, como vimos, não foram alegados os factos necessários para que se possa ter por constituída uma servidão de estilicídio a favor do prédio da 2ª Ré, FF, a saber, que há mais de 20, 30, 50 anos, a água escoa, gota a gota, do telhado da casa daquela, sobre o prédio hoje dos AA, o prédio serviente, além dos restantes requisitos da usucapião.

Não o tendo sido alegados, não provados os factos integradores da causa de pedir, não podia o tribunal julgar a acção procedente nesta parte, como bem referem os Recorrentes.

Não assim no que tange à servidão de estilicídio a favor do prédio das 1ªs RR, pois que nesta parte foram alegados os factos que a integram (cf. arts. 28º e 29 da contestação/reconvenção).

Tendo resultado provado que há mais de 50 anos, as águas do beiral do telhado do prédio do nº.. da Rua ........, gotejam directamente para o logradouro do prédio dos AA, de forma ininterrupta, de forma pública e pacífica, estando os donos daquele prédio convictos de exercerem um direito próprio, mostra-se constituída a servidão de estilicídio por usucapião (art. 1287º do CCivil), como decidiu a sentença”.

Por outras palavras, tendo presente a decisão sobre a matéria de facto (cfr., em particular os factos provados sob os números 8 e 9, 35 e 36), o Tribunal recorrido concluiu que estavam preenchidos os requisitos da constituição de uma servidão de estilicídio por usucapião, nos termos do artigo 1287.º do CC, a favor do prédio sito no n.º .. da Rua ...... pertencente à herança ilíquida e indivisa de OO, em suma, pertencente aos 1.ºs réus.

Tendo concluído que estava constituída uma servidão de estilicídio a favor dos 1.ºs réus, o Tribunal recorrido não só podia como devia retirar as devidas consequências, condenando os autores a reconhecerem a servidão de estilicídio constituída a favor do prédio dos 1.ºs réus[11].

Quanto ao artigo 1365.º do CC, e contrariamente àquilo que pretendem os autores, não se vê erro de interpretação ou de aplicação de lei substantiva que o Tribunal da Relação haja cometido. Em perfeita harmonia com esta norma, foi apurado e consta da decisão sobre a matéria de facto que o beiral do telhado da casa n.º .. da Rua .... goteja directamente sobre o logradouro do prédio adquirido pelos autores e que as águas do telhado escoam, desaguam ou são conduzidas para o mesmo logradouro em circunstâncias (temporais e outras) que permitem / reclamam que se dê a situação por consolidada e se retirem as devidas consequências, concluindo que se constituiu uma servidão de estilicídio a favor do prédio dos 1.ºs réus – a reconhecer nos termos em que é legalmente configurada.

Diga-se, claramente, que a distinção entre gotejamento e escoamento, entre gotejamento e desaguamento ou entre gotejamento e condução das águas pelos autores é uma distinção artificial e que em momento algum poderia funcionar como argumento para sustentar a desaplicação do artigo 1365.º do CC[12].

Para que fique definitivamente esclarecido, recorde-se que o artigo 1365.º do CC, com a epígrafe “estilicídio”, regula, nas palavras de Manuel Henrique Mesquita, “o escoamento das águas pluviais que caiam sobre as construções erigidas num terreno[13].

É o seguinte o teor do preceito:

1. O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo.

2. Constituída por qualquer título a servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante”.

Sobre esta norma dizem Pires de Lima e Antunes Varela que ele “é consequência, por um lado, da regra proibitiva das emissões (art. 1346.º) e, por outro lado, do princípio segundo o qual os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores (art. 1351.º)”. Acrescentam, porém, os autores a propósito do disposto no n.º 2, ou seja, da hipótese em que exista uma servidão de estilicídio, que “[p]elo que respeita à situação do proprietário do prédio serviente, “pode[] [ele] construir desde que a construção seja acompanhada das obras necessárias para que se mantenha o escoamento das águas sobre o seu prédio”, o que “[se] integra[] na regra geral que permite ao proprietário serviente fazer no seu prédio todas as obras que não estorvem o uso da servidão, e [se] coaduna[] ainda com a faculdade de exigir a mudança dela, se a alteração lhe for conveniente e não prejudiciar os interesses do proprietário dominante (cfr. art. 1568.º)[14].

Explica, sinteticamente, Rui Pinto Duarte que existe uma obrigação geral de evitar o gotejamento da cobertura para o prédio vizinho[15], “nomeadamente pelo respeito de um intervalo de meio metro – se não houver alternativa (…)” mas que “se pode consolidar uma situação de violação da regra legal por meio da constituição de uma 'servidão de estilicídio', sempre que a situação em causa se prolongue pelo prazo de usucapião [16].

Quer dizer, em poucas palavras: sendo a solução desejada ou preferida pela lei a de evitar que a água da chuva de um prédio goteje ou escoe para o prédio vizinho, a verdade é que isso pode acontecer e de tal forma (duradoura, ininterrupta, pública, pacífica…) que cumpre dar por constituída uma servidão de estilicídio nos termos admitidos na lei.

Nada há, em conclusão, a censurar ao Acórdão recorrido.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos autores / recorrentes.



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Catarina Serra (relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] As passagens relevantes desta decisão sumária são, respectivamente, “[i]mpõe-se conhecer da verificação dos pressupostos processuais, no tocante à revista dos RR., já que quanto à dos AA., é manifesto que tais pressupostos se verificam” e “[p]elo exposto, decide-se não admitir o recurso de revista interposto pelos réus”.
[2] Nova redacção atribuída pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[3] Nova redacção atribuída pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[4] Nova redacção atribuída pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[5] Aditado ao elenco de factos provados pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[6] Nova redacção atribuída pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[7] Nova redacção atribuída pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[8] Eliminado do elenco de factos provados pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[9] Eliminado do elenco de factos não provados pelo Tribunal recorrido na sequência da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
[10] Na conclusão III haverá, tanto quanto é possível perceber, um lapsus calami: fala-se em “servidão de vistas” quando deveria falar-se em “servidão de estilicídio”. Qualifica-se o facto como lapso não só porque se trata de uma consideração conclusiva, que deve estar em coerência lógica com as alegações precedentes, mas também, e sobretudo, porque o Acórdão recorrido revogou a parte da sentença respeitante às duas servidões de vistas que haviam sido reconhecidas (cfr. A – i) do dispositivo).
[11] Segundo Henrique Sousa Antunes (Direitos Reais, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2017, p. 480), a servidão de estilicídio é uma servidão “desvinculativa” (produz a desoneração do prédio dominante de uma restrição legal). Explica o autor que, constituída a servidão , “o proprietário onerado liberta-se das vinculações legais, e converte-se em sujeito passivo da relação jurídica real o proprietário do prédio beneficiário da limitação, obrigado, agora, a consentir (…) no gotejamento”.
[12] Veja-se, com particular interesse, para a refutação desta distinção e a defesa do maior alcance do artigo 1365.º do CC, o Acórdão do Tribunal de Évora de 2.06.2016, Proc. 1573/10.5TBLGS.E1. Explica-se aí: “[é] certo que tendo em conta o teor literal da norma é de entender estilicídio como a situação em que a beira do telhado ou de outra cobertura gotejam sobre o prédio vizinho o que prossuporia que existisse uma queda de água de um ponto superior, para um ponto inferior, queda essa desprendida e proveniente dos beirais de telhado ou canadas de cobertura. Mas no caso em apreço, quanto a nós, embora a situação não seja de uma verdadeira “queda” de água, mas sim de uma circulação de águas em continuidade, provenientes de um telhado situado num ponto superior (pertencente à autora) para um telhado situado num ponto inferior (pertencente à ré), tal realidade deve ser integrada na norma que a lei prevê para o estilicídio, não devendo ser autonomizada, como parece defender a ré, para uma situação de “escoamento de águas”, sujeito a servidão uma vez que a realidade “escoamento” tal como é previsto na lei (artº 1351º do CC) está direcionada para prédios rústicos e não para os prédios urbanos. Como salienta Guilherme Moreira (As Águas, II, n.º 50) citado por Pires de Lima e A. Varela (CC Anotado, vol. III, 191), no âmbito duma situação de escoamento águas, que os prédios inferiores têm de receber, são “as águas pluviais que caiem diretamente no prédio superior, ou que para este decorrem de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefação das neves e gelos; as que se infiltram no terreno, e as da nascentes que brotam naturalmente de um prédio”, pelo que a servidão de escoamento está excluída em relação a prédios urbanos”.
[13] Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais – Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967, p. 156.
[14] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III (Artigos 1251.º a 1575.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 228-229 (interpolação nossa).
[15] O estilicídio é, com efeito, uma restrição ao direito de propriedade sobre prédios resultante das relações de vizinhança.
[16] Cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Lisboa, Principia, 2020 (4.ª edição), p. 100.