CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
PESSOA COLECTIVA
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Sumário

I - As pessoas coletivas, como centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica própria, sendo por isso entes jurídicos distintos dos seus representantes, com os quais não se confundem. Não há, por isso, que estabelecer qualquer confusão com a personalidade jurídica de cada um dos referidos sujeitos (pessoa coletiva versus pessoas singulares). A sociedade C..., SGPS, S.A. é uma entidade jurídica distinta das pessoas singulares que legalmente a representem, com manifestos reflexos no conceito de ofendido e de titular do direito de se constituir assistente.
II -No crime de denúncia caluniosa o bem jurídico mediatamente protegido pela incriminação é a honra e o bom nome dos visados pela denúncia, únicos afetados pela conduta imputada ao arguido e já não o bom nome da sociedade por eles representada (note-se que o 3º denunciado pelo aqui arguido nem sequer era representante legal da sociedade), ainda que a imagem social desta possa ter sofrido eventuais prejuízos indiretos.
E ainda que a sociedade C..., SGPS, S.A. tenha vindo a ser constituída arguida naqueles autos, como invoca a recorrente apenas em sede recursiva, o certo é que o foi por iniciativa da Polícia Judiciária (sem que o Mº Pº tenha concordado com tal constituição) - cfr. fls. 19 vº e 20, sem que a iniciativa da denúncia contra aquela sociedade tenha partido do ora arguido.
III - Tendo o ora arguido apresentado denúncia contra pessoas determinadas, com intenção de ver instaurado procedimento criminal contra as pessoas visadas na denúncia, são esses os titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, sendo por isso apenas esses que teriam legitimidade para se constituírem assistentes nos presentes autos e não a recorrente.

Texto Integral

Processo nº 167/20.1T9OVR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Inquérito que correram termos na Secção de Ovar do DIAP de Aveiro com o nº 167/20.1T9OVR, encerrado o inquérito, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos nos termos do artº 277º nº 2 do Cód. Proc. Penal, por entender "não se poder concluir pela probabilidade elevada de o arguido B… vir a ser condenado, se submetido a julgamento".
Inconformada, a queixosa C…, SGPS, SA. requereu a sua constituição como assistente e, simultaneamente, a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do arguido pela prática de um crime de denúncia caluniosa p. e p. no artº 365º nº 1 do Cód. Penal.
Por despacho proferido em 01.02.2021, não foi admitida a intervenção da queixosa na qualidade processual de assistente, por falta de legitimidade e, consequentemente foi rejeitado o requerimento para abertura de instrução.
Mais uma vez inconformada, a denunciante C…, SGPS, SA. interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A intervenção da recorrente como assistente pode ser requerida no próprio ato cuja prática pressupõe essa qualidade de sujeito processual, como sejam o requerimento de abertura de instrução e, outrossim, a própria interposição de recurso do despacho que julgou a sua falta de legitimidade e recursou a intervenção nos autos como assistente - cfr., o caso paralelo decidido pelo Ac. RG de 2.10.2006, proc. nº 834/06-2, www.dgsi.pt.
2. Nessa conformidade, a recorrente, ofendida com a faculdade de se constituir assistente, não está impedida de recorrer do despacho do TIC de Aveiro que julgou a sua ilegitimidade por falta dessa qualidade processual, uma vez que em momento imediatamente anterior ao requerimento de abertura de instrução requereu a sua constituição como assistente, tendo junto o correspondente DUC - ut arts. 68º nº 3 al. b) e 287º nº 1 al. b) do CPP.
3. A faculdade consignada pelo disposto na al. b) do nº 1 do artº 401º do CPP consiste na possibilidade de o ofendido se poder constituir assistente para interpor recurso, que não pela constatação dessa sua efetiva e já definida qualidade jurídico-processual, uma vez que o momento relevante para passar a ter as prerrogativas que o respetivo estatuto processual lhe confere é aquele em que manifesta no processo esse propósito e formaliza o pedido nesse sentido - vd. neste sentido, v. g. Borges de Pinho, Da Ação Penal, 1988, pg 167; Souto Moura, Inquérito e Instrução, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pgs. 116 e 117; Odete Maria de Oliveira, Problemática da Vítima de Crimes, Lisboa, 1994, pgs. 117-140; Ac. RC 5-12-1990, CJ ano XV, tomo 5, pg. 88; Ac. RE de 15-12-1992, CJ ano XVII, tomo 5, pg. 281; Acs. RP de 6-12-1995, CJ ano XX, tomo 5, pg. 259 e de 6-1-1999, BMJ nº 274; Ac.RG de 2-10-2006, proc. nº 834/06-2, www.dgsi.pt.
4. Nada impede, por conseguinte, que a ofendida se possa constituir assistente no prazo para a interposição de recurso, nos termos do disposto no artº 68º nº 3 al. c) do CPP, o que, de resto, por razões cautelares, resulta do requerimento de interposição de recurso que antecede estas motivações, pelo que deve ser admitida a intervir nos autos com a qualidade de assistente.
5. A legitimidade do recorrente em processo penal tem na sua génese um interesse direto na impugnação de decisão judicial contra si proferida, sendo essa a única razão justificativa do direito de a impugnar por via recursória - neste sentido, v. g., Ac. RC de 28-01-2009, proc. nº 196/07.TAVGS.C1, www.dgsi.pt; Ac. RP de 15-05-2013, proc. nº 908/07.2PBMTS.P1, www.dgsi.pt; Ac. RE de 28-04-2020, proc. nº 110/16.2PBELV-A.E1. www.dgsi.pt.
6. O crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artº 365º do CP, não abrange, apenas o interesse do Estado na administração da justiça, mas principalmente, o interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de imputações maliciosas (cfr. neste sentido, v.g. Ac. RP de 25-2-2004, proc. nº 0315575, www.dgsi.pt; Acs. STJ de 9-1-1997, CJ (STJ), Ano V, t.1, pg. 172; de 29-3-2000, CJ (STJ), VIII, pg. 234; de 23-5-2002, proc. nº 976/02-5, www.dgsi.pt e nº 8/2006, DR. Série I de 28-11-2006; Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, § 93, pg. 558), como de resto, será o entendimento do próprio tribunal a quo quando, a propósito da definição do bem jurídico protegido, afirma que não é só o da boa administração da justiça, mas também a honra e o bom-nome do visado com a denúncia.
7. Resulta inequivocamente de fls. 16 e 17 vs. da certidão judicial de 4-6-2019 que a recorrente foi constituída arguida em processo de inquérito iniciado por denúncia criminal apresentada pelo B…, cujos factos participados eram suscetíveis de integrar indiciariamente, designadamente, um crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artº 6º da L. nº 109/2009 de 15-9.
8. A formalização dessa denúncia e a instauração de processo de inquérito onde a recorrente foi constituída arguida, por factos que vieram a revelar-se falsos, afetou irremediável a liberdade de determinação, da honra, do bom nome e da consideração devidas à recorrente, mostrando-se assim violado um dos bens jurídicos tutelados pelo artº 365º nº 1 do CP - vd. Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. III, pg. 523; Ac. RP de 01-10-2014, proc. nº 4720/13.1TDPRT.P1, www.dgsi.pt.
9. Ao contrário do que se mostra erradamente expresso na decisão recorrida, as pessoas coletivas podem ser penalmente responsáveis pela prática do crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artº 6º da L. nº 109/2009 de 15-9, uma vez que o art. 9º dessa lei prevê essa possibilidade de modo expresso e de forma absolutamente inequívoca, de harmonia, de resto, com o disposto no artº 11º nº 1 do CP.
10. A recorrente tinha e tem legitimidade para se constituir assistente no processo, isso mesmo requereu ainda na fase de inquérito, tendo comprovado nos autos o pagamento da taxa de justiça devida, pelo que, nos termos do disposto nos arts. 68º nºs 1 al. a), 3 al. b) e 287º nº 1 al. b) do CPP, o requerimento de abertura de instrução por si apresentado era admissível.
11. A decisão recorrida violou as disposições legais supra citadas.

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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que lhe deve ser negado provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em sentido concordante com a resposta do Mº Pº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida é do seguinte teor: transcrição
«Da constituição como assistente:
I – C…, SGPS, S.A. veio requerer a sua constituição como assistente nos presentes autos.
Cumprido o disposto no artigo 68º nº 4 do Código de Processo Penal, o Ministério Público e o arguido nada disseram.
II - Cumpre apreciar e decidir:
O artigo 68º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal determina que, podem constituir-se assistentes os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.
Assim, para aferir da legitimidade da requerente para o pedido formulado, importa determinar se a mesma é, ou não, titular dos preditos interesses.
Ora, in casu, os presentes autos tiveram origem na queixa apresentada pela sociedade C…, SGPS, S.A. contra o arguido B…, por factos suscetíveis de integrar a prática do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º nº 1 do Código Penal, consubstanciados, em síntese, na circunstância de aquele, ciente de que tais factos não correspondiam à verdade, ter formalizado uma queixa contra os seus administradores e diretor de informática, acusando-os de terem alicerçado um processo disciplinar que lhe foi movido e que culminou no seu despedimento em transcrições de conversas que manteve via Skype e e-mail, o que poderia configurar, abstratamente, a prática de crimes de devassa da vida privada p. e p. pelo artigo 192º nº 1 al. a) do Código Penal, violação de correspondência ou de telecomunicações p. e p. pelo artigo 194º do Código Penal e acesso ilegítimo p. e p. pelo artigo 6º da Lei nº 109/2009 de 15.09, dando origem ao processo nº 95/18.0T9OVR, que correu termos no DIAP de Ovar.
O artigo 365º nº 1 do Código Penal preceitua que Quem, por qualquer meio perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Assim, são elementos constitutivos do tipo legal do crime de denúncia caluniosa: fazer, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, denúncia ou lançamento sobre determinada pessoa de suspeita de cometimento de crime, contraordenação ou ilícito disciplinar.
No âmbito deste ilícito, para o preenchimento do elemento objetivo, é necessário que a denúncia seja, no seu conteúdo essencial, falsa, sendo que o tipo objetivo só estará preenchido quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto por que o agente a pretende ver perseguida - cf. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, página 536.
Além disso, o bem jurídico que se visa proteger com esta incriminação é não só a boa administração da justiça, mas também a honra e o bom nome do visado pela denúncia, visando-se prevenir a atividade inútil e infundada das instâncias formais contra as pessoas inocentes. O que resulta em tutela tanto do indivíduo como da realização da justiça - cf. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, página 523.
Desta feita, as pessoas titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação seriam, in casu, os denunciados pelo arguido no referido processo nº 95/18.0T9OVR, ou seja, os administradores e diretor de informática da C…, SGPS, S.A., e não esta.
Repare-se que, como dissemos, os factos investigados naqueles autos poderiam configurar abstratamente, a prática de crimes de devassa da vida privada p. e p. pelo artigo 192º nº 1 al. a) do Código Penal, violação de correspondência ou de telecomunicações p. e p. pelo artigo 194º do Código Penal e acesso ilegítimo p. e p. pelo artigo 6º da Lei nº 109/2009 de 15.09 - ou seja, crimes pelos quais a sociedade comercial não poderia ser criminalmente responsabilizada, porquanto não se inserem no catálogo do artigo 11º nº 2 do Código Penal.
Assim sendo, é forçoso concluir que a C…, SGPS, S.A. não tem legitimidade para intervir nos autos como assistente.
III - Em face dos exposto, não admito a constituição como assistente da C…, SGPS, S.A., por falta de legitimidade.
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Da (in)admissibilidade de abertura de instrução:
I - Inconformada com o arquivamento do processo pelo Ministério Público (cf. fls. 79 a 84), a denunciante C…, SGPS, S.A. veio requerer a sua constituição como assistente a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do arguido - cf. fls. 92 a 99/verso.
II - Cumpre apreciar e decidir:
O artigo 287º nº 1, Código de Processo Penal determina que a abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Já o seu nº 3 estabelece que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Ora, no fundamento de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução cabe, além do mais, as situações de falta de legitimidade para requerer a instrução (interpretação, a contrario, do disposto no artigo 287º nº 1 alíneas a) e b) do CPP - neste sentido, vide, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 28-02-2018, disponível em www.dgsi.pt).
Vejamos, então o caso vertente.
In casu, pelos motivos acima expendidos, não foi admitida a constituição como assistente da denunciante C…., SGPS, S.A.
Nessa medida, atenta a circunstância de a denunciante não ter legitimidade para requerer a sua abertura, importa concluir que é inadmissível a instrução, o que determina a sua rejeição.
III - Pelo exposto, decido rejeitar, por ser legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pela denunciante C…, SGPS, S.A.
(...)»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Como resulta das motivações do recurso e das respetivas conclusões, a recorrente delimita o objeto do recurso à questão de saber se tem legitimidade para requerer a sua intervenção nos autos na qualidade processual de assistente, a fim de requerer a abertura de instrução.
Dispõe o artº 68º nº 1 al. a) do C.P.Penal que «podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos».
A questão da legitimidade para a constituição de assistente em alguns crimes, nomeadamente de natureza pública, tem-se colocado na doutrina e na jurisprudência por referência ao conceito de ofendido acolhido no citado preceito legal.
Começando por distinguir entre um conceito restrito, ou estrito, de ofendido por oposição ao conceito alargado da mesma noção legal, pode afirmar-se, por todos, com o acórdão para fixação de jurisprudência (doravante AFJ) nº 10/2010 de 17.11.2010, que, conforme é entendimento tradicional “…a lei processual penal consagra um conceito estrito (ou restrito) de ofendido, com isso se querendo significar que nem todo o lesado, afetado ou prejudicado com a prática do crime, é reconhecido como «ofendido», mas apenas o titular dos interesses especialmente protegidos com a incriminação, cabendo unicamente a este, assim, o acesso à condição de assistente.”
Ou, na expressão de F. Dias e Anabela Miranda Rodrigues, o conceito estrito ou típico de ofendido abrange “…apenas aquelas pessoas (naturalmente: singulares ou coletivas) que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, se apresentam como titulares do bem jurídico por aquele violado ou posto em perigo”[2].
A mesma noção transparece claramente no artigo 113º do Código Penal, ao definir os titulares do direito de queixa, quando no seu n.º1 estatui: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
Já em 1955 Cavaleiro Ferreira[3] sublinhava que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infração; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato da infração (…) Nem todos os crimes têm, por isso, ‘ofendido’ particular. Só o têm aqueles em que o objeto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular”.
Também Germano Marques da Silva[4], citando Cavaleiro Ferreira, salienta que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime: ofendido é somente o titular do interesse que constitui objeto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afeta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objeto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular".
Ficarão, pois, fora do conceito de ofendido legalmente desenhado, aqueles que devam considerar-se meros lesados ou prejudicados com a prática do crime, no sentido de terem sofrido danos por este produzidos e jurídico-civilmente avaliáveis, sem que possam considerar-se titulares do bem jurídico protegido com a incriminação.
Desenhada a noção legal de ofendido por sobre o bem jurídico protegido e o tipo legal de crime, a pergunta decisiva para aferir da qualidade de ofendido passa a ser, pois, a de saber quem deve reputar-se titular do bem jurídico protegido, no sentido da lei.[5]
Durante muito tempo a doutrina e a jurisprudência tenderam a fazer depender a possibilidade de um particular ser titular do bem jurídico protegido, do seu caráter individual, de tal modo que perante incriminações teleologicamente fundadas na tutela de bens jurídicos supraindividuais ou coletivos não se reconhecia ser o particular titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
O interesse especialmente protegido com a incriminação era entendido com o sentido de titular do interesse «direta», «imediata» e «predominantemente» protegido pela incriminação. Entendia-se, assim, que «Pode um tipo incriminador tutelar também um interesse ou bem jurídico pessoal, mas se este não ocupar o plano central da tutela, o seu titular não deve ser considerado ofendido e portanto não deve ser admitida a sua constituição como assistente»[6].
Conforme refere Augusto Silva Dias, a jurisprudência que adotava este critério, rejeitava a possibilidade de constituição como assistente nos crimes de desobediência, de falsificação de documento, de manipulação de mercado, de violação do segredo de justiça, de prevaricação e de denegação de justiça, não só com fundamento no argumento literal baseado na expressão “interesse que a lei quis especialmente proteger” da al. a) do nº1 do art. 68º, mas também por se entender que daquele modo se observava melhor a natureza pública do processo penal e a regra, a ela conforme, de que a titularidade da ação penal cabe ao MP, para além de outros argumentos referidos no texto ora citado.
Todavia, como se refere no citado AFJ nº 10/2010, a jurisprudência evoluiu e decisões dos tribunais superiores, designadamente do STJ, vieram a reconhecer a particulares o estatuto de ofendido, nos termos e para efeitos da al. a) do nº1 do art. 68º do CPP, em processos por alguns daqueles crimes. Assim sucedeu com o AFJ nº 1/2003 que decidiu que, em processo por crime de falsificação previsto e punível pelo art. 256º nº1 al. a) do C.Penal, tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente do crime.
Já anteriormente, o Ac. do STJ de 29.03.2000, decidira a favor da intervenção de um particular como assistente em processo por crime de denúncia caluniosa, com o argumento de que a pessoa visada pela denúncia é portadora de um interesse especialmente protegido pela incriminação a par do interesse público mediato, o mesmo sucedendo com o AFJ nº 8/2006 que fixou a seguinte jurisprudência: «No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador».

No caso presente, porém, a situação não corresponde à versada no AFJ nº 8/2006 nem a argumentação da recorrente nos convence do desacerto da decisão recorrida que não lhe reconheceu legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.
Atenta a pretensão que a recorrente pretende fazer valer e o fundamento da respetiva alegação, há que reconhecer-lhe legitimidade e interesse em agir na interposição do presente recurso, por ter sido afetada pela decisão recorrida que indeferiu o seu requerimento de constituição de assistente e de abertura de instrução, decisão essa que a recorrente pretende ver revogada.
Contudo, o reconhecimento de legitimidade para a interposição de recurso não se estende à sua intervenção como assistente, em virtude de não ser a recorrente a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Com efeito, dispõe o artº 365º do Cód. Penal que «quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento ...»
Constituem assim elementos (objetivos e subjetivos) do crime de denúncia caluniosa imputado ao arguido:
a) Denunciar ou lançar suspeita da prática de crime [ou falta disciplinar] sobre pessoa determinada;
b) Denúncia perante autoridade ou publicamente;
c) A falsidade da denúncia ou suspeita.
d) Ter o agente consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia;
e) A intenção de ver instaurado procedimento [criminal ou disciplinar] contra a pessoa visada na denúncia.
Assim, o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e a quem o AFJ nº 8/2006 reconhece legitimidade para se constituir como assistente é "o caluniado", aquele sobre quem o agente lançou a suspeita ou denunciou perante autoridade ou publicamente.
Ora, como resulta da certidão de fls. 8 a 36, o aqui arguido B… apresentou no DIAP de Ovar queixa contra D…, E… e F…, pretendendo que contra os mesmos fosse instaurado procedimento criminal, imputando-lhes factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de devassa da vida privada p. e p. no artº 192º nº 1 do C. Penal, um crime de violação de correspondência ou de telecomunicações p. e p. no artº 194º do Cód. Penal e um crime de acesso ilegítimo p. e p. no artº 6º da Lei 109/2009 de 15.09.
Se é certo que o ali denunciante identificou os denunciados como administradores (os dois primeiros) e diretor de informática (o terceiro) da empresa C…, SGPS, S.A. (empresa onde ele próprio exercera funções de técnico superior financeiro), o certo é que não era a pessoa coletiva a visada na denúncia, mas antes os arguidos acima identificados, pessoas singulares e autores da prática dos factos imputados pelo ali denunciante, designadamente no artº 11 da denúncia de fls. 10 e 11 - «tendo os 2 denunciados administradores mandado proceder e o denunciado diretor procedido à gravação das comunicações do queixoso, sem o seu conhecimento e consentimento, a elas tendo acedido, procedido à respetiva transcrição e espiado o queixoso no exercício das suas funções, ao longo de um período de tempo alargado, num procedimento de devassa e de intrusão inadmissível».
As pessoas coletivas, como centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica própria, sendo por isso entes jurídicos distintos dos seus representantes, com os quais não se confundem. Não há, por isso, que estabelecer qualquer confusão com a personalidade jurídica de cada um dos referidos sujeitos (pessoa coletiva versus pessoas singulares). A sociedade C…, SGPS, S.A. é uma entidade jurídica distinta das pessoas singulares que legalmente a representem, com manifestos reflexos no conceito de ofendido e de titular do direito de se constituir assistente.
No crime de denúncia caluniosa o bem jurídico mediatamente protegido pela incriminação é a honra e o bom nome dos visados pela denúncia, únicos afetados pela conduta imputada ao arguido e já não o bom nome da sociedade por eles representada (note-se que o 3º denunciado pelo aqui arguido nem sequer era representante legal da sociedade), ainda que a imagem social desta possa ter sofrido eventuais prejuízos indiretos.
E ainda que a sociedade C…, SGPS, S.A. tenha vindo a ser constituída arguida naqueles autos, como invoca a recorrente apenas em sede recursiva, o certo é que o foi por iniciativa da Polícia Judiciária (sem que o Mº Pº tenha concordado com tal constituição) - cfr. fls. 19 vº e 20, sem que a iniciativa da denúncia contra aquela sociedade tenha partido do ora arguido.
Tendo o ora arguido apresentado denúncia contra pessoas determinadas (D…, E… e F…), com intenção de ver instaurado procedimento criminal contra as pessoas visadas na denúncia, são esses os titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, sendo por isso apenas esses que teriam legitimidade para se constituírem assistentes nos presentes autos e não a recorrente.
Impõe-se, assim, a improcedência do recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por C…, SGPS, S.A., confirmando consequentemente a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 U'sC - artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 07 de julho de 2021
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Cfr. "A legitimidade da sociedade portuguesa de autores em processo criminal" (Parecer) in Direito de autor: gestão e prática judiciária. Temas de direito de autor SPA-3, 1989, p. 109.
[3] In Curso de Processo Penal, Lisboa, 1955, vol. I, págs. 129-130
[4] In Curso de Processo Penal, vol. I, 5ª ed., 2008, pág. 263.
[5] Cfr F. Dias e Anabela Rodrigues, est. cit. p. 112.
[6] Cfr, criticamente, Augusto Silva Dias, "A tutela do ofendido e a posição do assistente" in Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais, Almedina - 2004, pp. 56 e 57.