SEGUNDA PERÍCIA
FUNDAMENTO LEGAL
RESPOSTAS AOS QUESITOS
Sumário

I - O n.º 1 do artigo 487.º do novo Código de Processo Civil exige do requerente da segunda perícia que alegue fundadamente as razões da sua discordância com o relatório da primeira perícia, isto é que exponha os motivos pelos quais discorda das conclusões do relatório e pelos quais entende que as respostas deverão ser diferentes.
II - Mas o requerente não tem de convencer o tribunal que novos peritos chegarão a outra resposta ou que é provável que isso suceda, nem o tribunal poderá rejeitar o pedido apenas por considerar que o relatório da primeira perícia está bem elaborado e dá uma resposta concreta às questões colocadas.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:3590.18.8T8PNF.A.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Na acção de reivindicação que instauraram contra B… e mulher C…, residentes em Genebra, Suíça, e D… e mulher E…, residentes em …, Penafiel, os autores F… e mulher G…, residentes em Penafiel requereram a realização de prova pericial com o seguinte objecto:
«a. Que se procede a uma perícia aos prédios com base nos títulos de aquisição de cada uma das partes, e que se indica as diferencias de superfície constatado:
a.1. Prédio rústico, denominado de “H…”, freguesia …, concelho de Penafiel, inscrito na matriz predial rústica da freguesia … do concelho de Penafiel sob o artigo 2576 e descrito na Conservatório do Registo Predial de Penafiel sob o nº 1336 da freguesia …. – vide escritura pública de doação lavrado no Cartório Notarial do Dr. I… em Marcos de Canaveses, no dia 22 de Dezembro de 2014, exarada de folhas trinta a folhas trinta e um, do livro de notas para escrituras diversas - número cento e setenta e oito – A. (vide doc. nº 3)
a.2. o prédio urbano, composto por terreno destinado a construção urbana, sito no …, na freguesia …, no Concelho de Penafiel, descrito na Conservatória do Registo de Penafiel sob o número sete, da mencionada freguesia …, onde se encontram registadas, a aquisição a seu favor pela inscrição G – dois, e a autorização do loteamento pela inscrição F-um, inscrito na matriz sob o artigo urbano 331, da mesma freguesia - escritura pública de doação lavrado no Cartório Notarial da Dra. J… em Penafiel, no dia 21 de Julho de 2008 exarada de folhas 6 a 7 do livro de notas para escrituras diversas - número trinta e nove – F (vide doc . nº 7).
a.3. Prédio rústico, eucaliptal e mato, sito no …, da mencionada freguesia …, descrito na Conservatória do registo predial de Penafiel sob o número duzentos e quarenta e nove – …, aí registado a seu favor pela inscrição G-Um e inscrito na matriz sob o artigo 869 – escritura de doação doação lavrada no Cartório Notarial de Penafiel, no dia 14 de Abril de 1993 exarada de folhas 47 a 48 do livro de notas para escrituras diversas do extinto cartório notarial público de Penafiel, cujo acervo a Notária J… sucedeu na titularidade com o nº 21-E (vide doc. nº 15).
b. Que se esclarece da existência do prédio descrito no artigo 1 da petição inicial, composto por quatro leiras e um roço, conforme descrito da escritura de doação lavrada a 22 de Dezembro de 2014 no Cartório Notarial de Marco de Canaveses junta sob o documento 3, e com base no extracto de levantamento aerofotogramétrico da divisão de gestão urbanística da Câmara Municipal … junta sob o documento 17.
c. Que se esclarece da existência no prédio do Réu B… de um caminho, com base à Requisição de registo na Conservatória do Registo Predial de Penafiel sob a apresentação nº 2083 data de 13/09/2010 (doc 18) e com base no extracto de levantamento aerofotogramétrico da divisão de gestão urbanística da Câmara Municipal … junta sob o documento 17.
d. Se o prédio do Réu B… ultrapassou a confrontação a sul com o caminho conforme descrições nº 249/050293 da freguesia … na Conservatória do Registo Predial de Penafiel junto sob o doc nº 16, e com base no extracto de levantamento aerofotogramétrico da divisão de gestão urbanística da Câmara Municipal … junta sob o documento 17.
e. Que se esclarece se o prédio do Réu D… corresponde á área do terreno referido no projecto de loteamento apresentado pelo Senhor K… (antepossuidores do dito prédio antes do mesmo ter sido vendido a L… e mulher M… os avós paterno do Réu D…) após a desanexação do único lote a construir de 620 m2, conforme Alvará de Licenciamento de loteamento Urbano da Câmara Municipal …, processo nº 7 /1986. (doc 12).»
No despacho saneador foi admitida a realização da requerida prova pericial e determinado que os autos aguardassem que os réus se pronunciassem sobre o objecto da perícia, pronúncia que não ocorreu, tendo-se de seguida nomeado perito único para a realização da perícia sem especificação do respectivo objecto.
O perito apresentou o seu relatório. Os autores reclamaram do relatório com fundamento na existência de deficiências e insuficiências do mesmo. O perito apresentou resposta a essa reclamação.
Os autores, notificados da resposta, vieram de novo reclamar a existência de deficiências da resposta «bem como requerer nos termos e para os efeitos do art.º 487º do CPC a realização de segunda perícia porquanto os esclarecimentos prestados não suprem as deficiências do relatório apresentado».
Oportunamente, após a junção de documentos pelo perito e a insistência dos autores quanto às insuficiências do relatório, foi proferido o seguinte despacho:
«Após a junção aos autos do relatório pericial os autores vieram reclamar quanto ao mesmo porquanto o senhor perito não respondeu aos quesitos colocados mas sim aos temas da prova; além disso, a sua resposta é deficiente porquanto não refere qual a concreta configuração dos prédios dos autores e dos réus; alegaram ainda não ter acesso às imagens aéreas pelo que não é possível pronunciarem-se quanto às mesmas e que as fotografias captadas aquando da realização da perícia não contêm legenda pelo que não é possível perceber a que prédio dizem respeito. Também os apontamentos manuscritos não são esclarecedores.
O senhor perito respondeu a essa reclamação, quer respondendo aos quesitos formulados pela autora, quer explicando a que se reportam as fotografias anexas bem como as notas manuscritas.
Na sua resposta, os autores sustentam que o senhor perito não tinha acompanhado o relatório de qualquer planta ou relatório fotográfico. De resto, alegam que: - a resposta ao ponto I a1 está deficiente pois o senhor perito afirma que o prédio é autónomo e não o identifica em nenhum documento; - também não identifica em nenhum documento o prédio referido em a 2 tal como descrito na escritura de doação de 21.07.2008; - também para o prédio identificado em a3 não o identifica em nenhum documento tal como descrito na escritura de doação de 14.04.1993; - no ponto II a resposta também está obscura porquanto não esclarece a representação do prédio composto por quatro leiras e um roço; - o senhor perito nada disse quanto à existência do caminho; - quanto a saber se o réu ultrapassou a confrontação a sul com o caminho, o senhor perito respondeu “Sim, como se pode verificar nos documentos anexos e planta documento 18”. Contudo, os autores alegam desconhecer a que documento faz o senhor perito referência.
Apreciando.
Decorre do disposto no n° 1 do artigo 487º do CPC que “Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”, decorrendo do disposto no nº 3 dessa disposição legal que “A segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta.”
Ora, nos requerimentos apresentados, a autora não alega qualquer facto que sustente a necessidade de realização de uma segunda perícia, limitando-se referir que o senhor perito não indicou em documentos os prédios em causa (o que não é verdade pois identificou as descrições e inscrições do prédio), explicando ainda que a parcela que se discute nos autos é também um prédio autónomo. Fê-lo por referência a plantas que juntou, identificando-as. A autora começou por invocar que não tinha acesso aos documentos sendo que, após lhe ser dado a conhecer o teor dos documentos, limitou-se a dizer que mantém o alegado. Ora, ainda que a autora possa concluir pela incompletude das respostas dadas, é certo que em momento algum referem a razão pela qual discorda do relatório. Parece-nos que o senhor perito poderá completar/esclarecer as respostas em sede de audiência, prestando os esclarecimentos que as partes entendam ser convenientes.
Termos em que se indefere a realização da segunda perícia.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
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O recorrido não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se no caso está devidamente fundamentado o pedido de realização de uma segunda perícia.

III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório.

IV. O mérito do recurso:
Segundo o artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.
Atenta essa relação forçosa entre o modo como a acção é configurada e as necessidades que o objectivo do reconhecimento do direito coloca, num qualquer processo cível só podem existir dois fundamentos para recusar à parte a produção de um meio de prova pretendido pela mesma: a manifesta falta de interesse do meio de prova para a demonstração dos factos relevantes (porque o facto que o meio de prova visa demonstrar já se encontra provado por outro meio de prova produzido ou porque o facto nenhum interesse tem para a decisão do litígio); a violação das regras de direito probatório formal que regulam a admissão e produção desse meio de prova.
A partir do momento em que ao juiz não é consentido que se abstenha de decidir quando não se sinta suficientemente elucidado sobre os factos relevantes e que existem regras relativas ao ónus da prova que definem contra qual das partes o tribunal deve decidir em caso de dúvida sobre a realidade de um facto relevante, é conatural à natureza equitativa que todo o processo deve assumir a atribuição às partes do mais amplo direito à produção da prova, balizado apenas pela necessidade de proteger direitos legítimos (v.g. proibições de prova, direito ao sigilo) ou pela absoluta falta de interesse da diligência probatória pretendida.
É essencial a essa natureza equitativa do processo que não sejam colocados às partes obstáculos excessivos ao livre exercício do esforço probatório, como sucede se discordando a parte dos resultados de um determinado meio de prova, lhe for vedado, sem mais, produzir um novo meio de prova apesar de nada permitir concluir antecipadamente pela irrelevância desse novo meio de prova.
Por outro lado, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, designadamente decidir questões de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No caso da decisão relativa a questões de facto, a actividade decisória do juiz é antecedida da actividade instrutória: o juiz decide em função da prova produzida e depois da prova produzida. Nessa medida, ao contrário da decisão relativa às questões de direito, a observância material do principio do contraditório antes da decisão das questões de facto não se basta com o permitir às partes tomar posição sobre os factos, oralmente ou por escrito, mas exige, em acréscimo, o permitir às partes actuar e interferir com a própria actividade probatória. Por outras palavras, o contraditório exige que o tribunal admita a parte a produzir prova para demonstrar ou tornar duvidoso o facto que o tribunal irá decidir ou sobre o qual se irá formar a sua convicção (facto instrumental).
Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª edição, pág. 124 e seguintes, ensina que “por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que: a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes (3). A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gebõr germânico (4), entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igual influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
Mais à frente (folhas 128) este autor acrescenta que “no plano da prova, o princípio do contraditório exige: a) que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa; b) que lhes seja consentido faze-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, tidas em conta, porém, as necessidades de andamento do processo; c) que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes; d) que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal. A primeira derivação deste direito à prova compadece-se com a limitação razoável do número de testemunhas a ouvir por cada parte, que a exigência de economia processual justifica; mas é mais dificilmente conciliável com a atribuição à discricionariedade judicial da admissão de certo tipo de meio de prova, como acontece com a inspecção judicial (art. 612-1), ou com a limitação a um pequeno número das testemunhas a inquirir por cada facto.”
A folhas 129, na nota 12, este autor informa que “no tribunal constitucional federal alemão fixou-se a jurisprudência no sentido de só a admissão de provas manifestamente irrelevantes poder ser recusada, pois se entende que as partes têm o direito, não só à proposição, mas também à admissão das provas relevantes para o objecto da causa (…). Nesse juízo de manifesta irrelevância não devem entrar considerações derivadas duma valoração da prova (ainda não produzida) apressadamente feita à priori (…). O Supremo Tribunal Federal (…) admitiu-o quando o juiz já estivesse convencido da realidade do facto que a parte pretende provar com o meio de prova, recusando-o apenas na hipótese inversa de convicção de que o facto não se verificou (…); mas, em decisão mais recente (de 2002), negou em qualquer caso, a admissibilidade desse juízo prematuro (…)”. É esse igualmente o nosso entendimento.
Refira-se ainda que segundo o disposto no artigo 411.º, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Esta norma impõe ao juiz aquilo que hodiernamente se pode chamar de posição proactiva na condução da produção de prova, com vista à realização de todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade, no que goza mesmo de poderes de actuação oficiosa que acentuam a necessidade de só muito residualmente indeferir o requerido pelas partes com esse objectivo. Se o juiz tem esse poder-dever, naturalmente que a decisão sobre os requerimentos das partes de realização de diligências probatórias se deve guiar pelo mesmo critério da necessidade para o apuramento da verdade.
Estes são os princípios básicos que devem orientar as tarefas de interpretação e aplicação das normas relativas ao direito probatório formal. Vejamos o que elas nos dizem quanto à segunda perícia.
Nos termos do n.º 1 do artigo 487.º do Código de Processo Civil “qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”. O n.º 2 acrescenta que “o tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade”. E o n.º 3 estabelece que “a segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta”.
Esta norma corresponde ao artigo 589.º do antigo Código cuja redacção provinha, como sabemos, da reforma do Código de Processo Civil de 1995 operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, já que até aí o requerimento para a realização da segunda perícia1 não necessitava de ser fundamentado, permitindo o n.º 1 do então artigo 609.º a qualquer das partes “requerer segundo exame, vistoria ou avaliação, dentro do prazo de oito dias depois de efectuado o primeiro, e ao tribunal ordená-lo oficiosamente, a todo o tempo, desde que o julgue necessário”. A justificação então apresentada pelo legislador para a alteração é escassa, constando somente do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 que a segunda perícia “só terá lugar sob indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira”.
Se foi deferida a realização da primeira perícia, entendeu-se que a mesma não era impertinente nem dilatória, ou seja, que tinha interesse para o apuramento da verdade, motivo pelo qual é insofismável que também a segunda perícia possuirá idêntico interesse. Esse interesse não é afastado ainda que a primeira perícia tenha gerado respostas unânimes dos peritos, pois não é aos peritos que incumbe julgar e decidir a matéria de facto, o seu relatório está sujeito à livre apreciação do tribunal (artigo 389.º do Código Civil) e a existência de um relatório unânime, mesmo que de forma fundamentada, não garante que qualquer novo relatório produzirá o mesmo resultado, que quaisquer outros peritos entenderão o mesmo.
A segunda perícia tem o mesmo objecto da primeira e visa fornecer ao Tribunal novo elemento de prova, através da indagação e apreciação técnica dos factos por outros peritos que possam contribuir para o esclarecimento da convicção do Tribunal.
Por outro lado, exactamente por se tratar de uma prova pericial é pressuposto da sua realização que o seu objecto seja constituído por factos cuja percepção ou apreciação exija conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (artigo 388.º do Código Civil). Esta circunstância representa um aumento exponencial do risco da decisão. Quanto menor for a capacidade do juiz de apreender directamente os factos e compreendê-los ao ponto de os poder julgar (julgar é antes de mais compreender a realidade sob julgamento), maior se torna o risco de a sua decisão vir a ser menos feliz, porventura mesmo incorrecta.
Quando, como aqui sucedeu, o meio de prova é produzido praticamente sem intervenção orientadora e sensibilizadora do juiz (que desconhece de todo o perito e nem sequer o recebeu para colher o juramento e elucidar na natureza, importância e objectivo da função de perito e do relatório pericial) e sem que este haja presidido ao início da diligência (o que lhe teria permitido de imediato, no local, com a presença das partes e dos seus mandatários, começar a apreender e conhecer os aspectos materiais do terreno que vai ter de compreender para poder julgar), esse risco sobe para níveis que o tribunal não deve, não pode, descurar.
Nesse contexto, se uma das partes se mostra convicta de que é possível alcançar um resultado pericial divergente do apresentado, o tribunal não pode deixar-se impressionar pela resposta do primeiro perito e pela respectiva fundamentação já que olhando só para o relatório (e nada mais o juiz sabe sobre a forma como decorreu a peritagem e foi elaborado o relatório), nada garante que essa resposta seja fruto de uma correcta avaliação dos dados analisados e/ou de uma competência técnica inquestionável para a fazer.
Como vimos, o n.º 1 do artigo 487.º do novo Código de Processo Civil exige da parte requerente da segunda perícia que alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. A exigência legal consiste, pois, no dever de a parte fundamentar o seu requerimento, não lhe basta pretender a realização e requerer este novo meio de prova, para obter a sua realização é necessário que exponha os motivos pelos quais discorda das conclusões do relatório da primeira perícia, não somente que manifeste a sua discordância mas ainda que esclareça o tribunal dos motivos pelos quais não concorda com aquelas conclusões, das razões pelas quais entende que as respostas deverão ser diferentes.
Nessa fase, o requerente não tem de convencer o tribunal de que novos peritos chegarão à resposta que ambiciona ou que é provável que isso suceda. Em qualquer circunstância serão os peritos a produzir o relatório pericial e a confirmar ou infirmar o que o requerente pretende. Ao requerente basta que exponha com objectividade as razões (os fundamentos) pelas quais entende que o resultado da peritagem pode ou deve ser diferente.
A avaliação que cabe ao tribunal fazer não é sobre a viabilidade ou probabilidade de se alcançar o resultado desejado pelo requerente, mas somente sobre se o requerente expôs razões bastantes para, no pressuposto de que as mesmas poderão vir a ser acolhidas por peritos, se alcançar um resultado diferente. O que significa que para decidir sobre o requerimento não cabe ao tribunal analisar se existem fundadas razões para o resultado da perícia ser diferente, mas apenas se a parte expôs, de forma fundamentada (circunstanciada, explicada), as razões para entender que isso pode acontecer.
Na apreciação do requerimento de realização de segunda perícia o juiz não deverá apreciar o mérito da argumentação técnica do requerente, confrontando-o com o relatório pericial apresentado, e decidindo pela admissão ou rejeição em função do resultado dessa apreciação; ao invés, sempre que conclua que não se verifica a impertinência ou a dilatoriedade do requerimento, deverá permitir que novos peritos apreciem a argumentação técnica do requerente, no confronto com o relatório contestado e a elaborem um segundo relatório pericial, que poderá, ou não, acolher a argumentação divergente.
É certo que o n.º 3 da norma estabelece que a nova perícia se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira, parecendo querer dizer com isso que a segunda perícia pressupõe que a primeira esteja inexacta. Todavia, como anotam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista, pág. 599, nota 1, “afirmando que o segundo arbitramento se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados a que conduziu o primeiro, o artigo 609.º, 2, limita-se a apontar a principal razão justificativa do pedido ou da determinação do segundo arbitramento, sem pretender, de modo nenhum, significar que se trate da sua única e exclusiva finalidade”. No texto, estes autores assinalam que “a finalidade do segundo arbitramento abrange a possibilidade, não só de corrigir a eventual inexactidão (ou deficiência) das percepções dos peritos ou das conclusões baseadas nos seus conhecimentos especializados, mas também de obter uma apreciação ou justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia anterior. A parte interessada no segundo arbitramento pode discordar do resultado da perícia efectuada, como pode apenas considerar insuficiente a fundamentação ou justificação do laudo emitido, receando que ele não seja capaz de persuadir o tribunal”.
A ser assim, como parece ser, a alteração legislativa posterior ao comentário destes autores tem um significado claro: agora as partes já não podem requerer a segunda perícia apenas por considerarem insuficiente a fundamentação ou justificação do laudo emitido, caso em que poderão sim pedir esclarecimentos aos peritos ou que estes complementem o seu relatório em dado aspecto, apenas podem requerê-la com fundamento da discordância do resultado da perícia efectuada. Como quer que seja, uma vez que somente se forem outros peritos a pronunciarem-se sobre a matéria será possível concluir se o primeiro relatório é exacto ou não, o tribunal não pode recusar o requerimento com base em estar indemonstrado que este relatório padeça de inexactidão.
Como se afirma no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2010, Teles Pereira, in www.dgsi.pt, “II – Constitui uma alegação fundada das razões da discordância com o resultado dessa primeira perícia (…) a crítica dirigida à fundamentação das asserções presentes na primeira perícia; III – Tal crítica pode traduzir-se numa imputação de falta, insuficiência, ou mesmo de pouca clareza ou de inconsistência, dirigida à fundamentação do juízo pericial expresso na primeira perícia, sendo que em qualquer destes casos, existindo uma alegação fundamentada de razões de discordância com a primeira perícia, haverá que realizar a segunda perícia.”.
Na fundamentação deste Acórdão afirma-se com inteiro acerto o seguinte: «Importará ainda ponderar, constituindo um elemento interpretativo particularmente relevante, o sentido significativo primordial da prova pericial. Esta, com efeito, “[…] tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem […]” [artigo 388º do Código Civil (CC)], sendo que a respectiva força probatória é fixada e apreciada livremente pelo tribunal (artigos 389º do CC e 591º do CPC). Ora, este elemento – livre apreciação – deve ser entendido, colocando um particular ênfase no elemento fundamentação das asserções fornecidas ao tribunal por quem é técnico de um determinado ramo do saber e, por isso, efectua (funciona como) a “ponte” entre o tribunal (o juiz) e esse saber. Neste caso, dizíamos, o elemento “livre apreciação” deve ser entendido por referência à ideia de motivação técnica e racional (a fundamentação de que aqui se fala), sendo que neste sentido, como refere Jordi Ferrer Beltrán, “[…] a livre valoração da prova é livre só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração”, já que “[a] operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a uma hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade”. E pode dizer-se a este respeito – e continuamos a citar o mesmo Autor –, que “[…] esse apoio empírico propiciará um grau de corroboração que, como assinalava Popper, nunca será absolutamente conclusivo, mas, como também advertia [Popper], «embora não possamos justificar uma teoria […], podemos, por vezes, justificar a nossa preferência por uma determinada teoria sobre outra; por exemplo, se o seu grau de corroboração for maior»”[..].»
Dito isto, vejamos se no caso se pode considerar que os autores, no requerimento para realização da segunda perícia, alegaram fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
A nossa resposta é absolutamente afirmativa.
Em primeiro lugar porque a questão colocada ao tribunal e que este terá de decidir possui antecipa uma enorme dificuldade de decisão por se tratar de uma acção de reivindicação na qual haverá que determinar as áreas e o espaço de implantação de imóveis que não apenas foram objecto de títulos de transmissão diferentes como de operações de destaque que modificaram a sua configuração e área.
Tal dificuldade dificilmente poderá ser deixada confiado ao juízo (que em rigor no caso até terá pouco conteúdo técnico e será muitas vezes influenciado por interpretações particulares e subjectivas do perito) de um único perito cujo trabalho foi inclusivamente produzido sem qualquer participação e acompanhamento do tribunal que à posterior se limitará a interagir com o texto do relatório.
Acresce que nem o requerimento de realização da perícia nem o despacho que designou o perito elencam devidamente as questões a que verdadeiramente o perito deverá responder e que não são nem os temas de prova do processo, nem a localização dos prédios a partir apenas do respectivos títulos de aquisição porque um prédio é sempre um espaço físico e o título um mero documento descritivo que pode padecer de deficiências, obscuridades ou mesmo erros.
É indispensável que as partes possam esclarecer o perito no local daquilo que consideram ser a localização e configuração do respectivo prédio em função dos sinais distintivos que eles possuíam e que possam estar reflectidos nos títulos, para que posteriormente o perito possa fazer um estudo topográfico do espaço e estudar as possibilidade de implantação dos prédios, verificando se elas são compatíveis ou não e como se relacionam, utilizando para o efeito, designadamente, o percurso histórico dos vários documentos relativos aos imóveis e procurando aferir se por exemplo as alterações de áreas promovidas pelos interessados são coerentes e merecem ser aceites como verdadeiras ou não é possível fazer esse juízo.
A nosso ver, portanto, os recorrentes não apenas invocaram fundadamente razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, como se justifica em absoluto a realização de uma segunda perícia com um acompanhamento e um pormenor que de todo não houve até ao momento, comprometendo decisivamente o apuramento da verdade. Estando reunidos os requisitos exigidos pelo artigo 487º, nº 1 do Código de Processo Civil, a segunda perícia, devia ter sido admitida.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida e ordenam a realização da segunda perícia com os cuidados e a atenção a que se fizeram referência.
Custas do recurso pelos recorrentes por terem obtido vencimento e a parte contrária não ter respondido ao recurso, sendo certo que não há lugar ao pagamento de custas para além da taxa de justiça já paga.
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Porto, 14 de Junho de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 629)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos, com a antiga ortografia, e tem assinaturas electrónicas qualificadas]