CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
PESSOAS IDOSAS
Sumário

I - Pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, “é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.”
II - Seja em função da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, que a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender, não bastando demonstrar que a vítima tinha idade avançada, porquanto é sabido que nem sempre as pessoas idosas, só por o serem, se encontram numa situação de especial incapacidade de se defenderem ou em estado de desamparo.

Texto Integral

Processo nº 158/20.2GDSTS.P1 - 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro

*
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
1.1 Por acórdão de 04 de fevereiro de 2021, após realização da audiência de julgamento no Proc.º nº 158/20.2GDSTS, que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Juiz 5, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi decidido o seguinte:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes que compõem este Tribunal Coletivo acordam em absolver o arguido B….
Sem custas.”
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões (…)
1.3. O arguido não respondeu ao recurso.
1.4. O Senhor Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela concessão de provimento ao recurso.
1.5. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto, o que importa essencialmente apurar é se para efeitos de preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º, nº 2, al. d), é suficiente a demonstração fáctica de que a vítima é pessoa idosa ou se, além disso, é necessária ainda a demonstração, ao nível dos factos concretamente alegados e depois provados, que essa mesma vítima era, em função da sua idade, uma pessoa particularmente indefesa.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1. No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:
“1) O arguido B… é neto dos ofendidos C…, nascido em 29.10.1941 e D…, nascida em 16.07.1943, com quem residia, desde o ano de 2017, na Rua …, n.º …, em …, Santo Tirso.
2) O arguido é, pelo menos desde 2017, consumidor habitual de bebidas alcoólicas em excesso.
3) Entre 11-06-2017 e 15-09-2020, o arguido dirigiu mais do que uma vez a ambos os ofendidos, no interior da residência dos mesmos, as expressões “Velhos”, “Devias de morrer” e “Filhos da puta”, o que, por vezes sucedeu após chegar a casa pelas 03.00 horas e quando os avós se encontravam no quarto a dormir.
4) Nesse período temporal, quando os ofendidos se encontravam a dormir, durante a noite e madrugada, o arguido, mais do que uma vez, ligou a televisão e colocou música a tocar em alto som, acordando-os e perturbando o seu descanso.
5) No dia 16 de junho de 2020, pelas 08.00 horas, no interior da residência, o arguido apelidou o ofendido de “corno” e a ofendida de “puta”.
6) No dia 26 de junho de 2020, no interior do quarto do ofendido, durante uma discussão, o arguido empurrou-o, causando o seu desequilíbrio, na sequência do que C… embateu com as costas num móvel e caiu no chão.
7) Nessa ocasião, o arguido apelidou a ofendida de “puta”, “porca” e “badalhoca”.
8) Mercê destes factos ocorridos no dia 26.06.2020, C… recebeu tratamento hospitalar no Serviço de Urgência do Hospital …, onde foi submetido a raio-X, apresentando traumatismo dorsal posterior direito, escoriação local com cerca de 12 cm e dor localizada a nível da região lombar que se acentua com a mobilização da mesma.
9) Estas lesões determinaram, como consequência direta e necessária, cinco dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
10) O arguido, quando praticou os factos descritos nos pontos 3), 4), 5), 6) e 7), agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo qual era a idade dos avós, com quem vivia, que com a sua conduta descrita em 6) lesava a integridade física do avô e que, com toda elas, causava a ambos os avós sofrimento psíquico e emocional, bem como medo e inquietação, perturbando o seu bem-estar no lar.
11) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
12) O arguido foi condenado por sentença proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º 182/17.2GDSTS do Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 2, transitada em julgado em 1 de Julho de 2019, pela prática, no dia 11-06-2017, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do Código Penal, dos quais foram vítimas os aqui ofendidos, tendo-lhe sido aplicada duas penas parcelares de 2 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, uma pena única de 2 anos e 6 meses, suspensa por igual período condicionada à obrigação de o arguido se sujeitar a tratamento de desintoxicação a álcool e a droga, caso o mesmo seja considerado necessário na sequência de consulta especializada a que o arguido se deverá submeter.
13) O arguido é o mais velho de cinco descendentes de um casal de emigrantes na Alemanha.
14) Emigrou com os progenitores para aquele país, onde já nasceram os dois irmãos mais novos, com cinco anos de idade.
15) Ingressou no sistema de ensino alemão em idade própria, tendo concluído, segundo refere, o equivalente ao 9º ano de escolaridade.
16) Reporta o consumo de cannabis aos 14 anos de idade, altura em que passou a assumir um comportamento mais instável, precipitando o seu regresso a Portugal com 16 anos de idade.
17) Nessa altura, passou a integrar o agregado dos avós maternos.
18) Em Portugal ingressou no mercado de trabalho com 16/17 anos, tendo manifestado, no entanto grande instabilidade/mobilidade laboral e dificuldade em manter o posto de trabalho, com exceção de um período de cinco anos em que trabalhou numa empresa de serralharia civil.
19) Com 23 anos estabeleceu uma união de facto, da qual nasceram dois descendentes, atualmente com 9 e 5 anos de idade.
20) Em 2017, após se separar da companheira, foi novamente acolhido no agregado dos avós, mas a dinâmica familiar sofreu acentuada tensão e desgaste na sequência de comportamentos problemáticos e frequentes episódios de intoxicação alcoólica do arguido.
21) Em novembro passado, na sequência das medidas de coação estabelecidas nos presentes autos, B… passou a residir na habitação dos progenitores (que ainda se encontram emigrados na Alemanha), sita em …, Guimarães.
22) Após cerca de um ano e meio de trabalho numa empresa de metalomecânica, encontra-se desempregado e a receber subsídio de desemprego.
23) No decurso dos últimos meses o seu quotidiano tem sido circunscrito essencialmente ao espaço doméstico mantendo, contudo, um consumo problemático de álcool, não obstante as diversas tentativas de sensibilização do arguido para adesão a uma intervenção clínica especializada, tanto por parte dos familiares, como por parte de técnicos de reinserção social.
24) Após deixar a casa dos avós, não voltou a estar com os filhos com quem convivia quinzenalmente aos fins de semana, beneficiando do suporte daqueles familiares também nos cuidados aos descendentes durantes estes períodos.
25) No âmbito da medida probatória do processo 182/17.2GDSTS, B… encontra-se desde julho de 2019 a ser seguido no Centro D…, mas tem vindo a evidenciar incumprimentos do plano terapêutico delineado.
26) Em novembro passado, solicitou à sua terapeuta internamento para desabituação e posterior integração em comunidade terapêutica, encontrando-se a aguardar vaga na Unidade de Desabituação do Norte que se prevê venha a ocorrer no decurso do mês de fevereiro.
27) Para além da condenação no processo nº182/17.2GDSTS do Juízo Local Criminal de Santo Tirso - Juiz 2, já referida nos pontos 12) e 25) destes Factos Provados, o arguido possui os seguintes antecedentes criminais:
a) condenação (no processo nº267/18.8GDSTS do Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 2), por sentença proferida em 27.08.2018, transitada em julgado em 1.10.2018, pela prática em 25.08.2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292º, nº 1, do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 90 dias de multa à taxa diária de 7 € (a qual chegou a ser convertida em prisão subsidiária) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses (ambas as penas já se encontram extintas, por cumprimento);
b) condenação (no processo nº111/17.3GDSTS do Juízo Local Criminal de Santo Tirso – Juiz 2), por sentença proferida em 21.01.2019, transitada em julgado em 20.02.2019, pela prática em 7.04.2017 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292º, nº 1, do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 60 dias de multa à taxa diária de 7 € e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses (ambas as penas já se encontram extintas, por cumprimento).”
2.1.2. No mesmo acórdão foi considerada não provada a seguinte factualidade:
“a) sempre foram os avós C… e D… que, desde o nascimento do arguido, criaram este como se seu filho fosse.
b) C… padece de diabetes Mellitus tipo II.
c) O arguido é consumidor habitual de substâncias estupefacientes em excesso.
d) Os acontecimentos referidos na última parte do ponto 3) dos Factos Provados ocorriam quase diariamente e, aquando dos mesmos, o arguido permanecia no quarto dos avós durante aproximadamente duas horas.
e) O arguido dirigia diariamente aos avós maternos a expressão “Filhos da puta”.
f) Entre 11-06-2017 e 22-09-2020 (data da acusação), o arguido, para além do referido nos pontos 3), 5) e 7) dos Factos Provados, dirigiu à avó D… as expressões “Sua velha”, “Sua puta”, “Sua porca”, “Sua vaca”, “Havias de morrer” e “Já estás na idade de morrer”.
g) Mercê dos factos ocorridos no dia 26.06.2020, C… apresentava traumatismo da grade costal esquerda e escoriação no lábio inferior.
h) Mercê dos factos ocorridos no dia 26.06.2020, D… apresentava labilidade emocional e preocupação, “medo”.
i) As condutas do arguido fizeram com que C… e D… temessem pela sua vida.”
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
A questão fundamental a resolver, como referimos supra, consiste em saber se a factualidade dada como provada permite ou não concluir pela verificação do concreto preenchimento do elemento típico objetivo previsto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, ou seja, se é suficiente a demonstração fáctica de que a vítima é pessoa idosa ou se, além disso, é necessário ainda demonstrar, ao nível dos factos concretamente alegados e depois provados, que essa mesma vítima era também uma “pessoa particularmente indefesa”.
Diz o art.º 152º do CP o seguinte:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O uso do conceito indeterminado (“pessoa particularmente indefesa”), cujo preenchimento através de factos concretamente determinados é imperioso realizar, enquanto pressuposto típico objetivo do crime de violência doméstica, exigido na al. d) do art.º 152º, nº 2, do CP, era já conhecido do direito penal, muito antes de o mesmo ter sido adotado pelo legislador neste tipo-de-ilícito[1], designadamente no crime de homicídio qualificado, por via do exemplo-padrão da al. c) do nº 2 do art.º 132º (o agente “Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”)[2], sendo que sobre ele se pronunciou já a doutrina, nomeadamente o Professor Paulo Pinto de Albuquerque, dizendo que pessoa particularmente indefesa é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, dando-lhe este autor uma exata similitude de definição conceitual, a par, aliás, da que já resulta do próprio texto da lei, ao conceito assim também previsto para o crime de violência doméstica[3].
E no mesmo sentido, do que seja “pessoa particularmente indefesa”, foi também o Supremo Tribunal de justiça, ao estabelecer que “Pessoa particularmente indefesa, no contexto da al. c) do n.º 2 do art.º 132.º do CPP, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.”[4]
Podendo assim concluir-se que, seja em função da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, o que importa determinar para efeitos do preenchimento da norma penal, e para desse modo se respeitar o princípio da legalidade e da tipicidade, é, antes de mais, que a vítima se encontrava, face aos factos concretamente dados como provados, numa situação de particular ou especial incapacidade de se defender. Não basta por isso que se demonstre que a vítima tinha idade avançada, porquanto é sabido que nem sempre as pessoas idosas, só por o serem, se encontram numa situação de especial incapacidade de se defenderem ou em estado de desamparo[5], sendo aliás do conhecimento geral a existência de pessoas, e algumas delas pessoas públicas, que pese embora sejam idosas, por vezes com idades bastante superiores a 70 anos, estão longe de poderem ser consideradas nessa situação, porquanto o seu vigor intelectual, físico e psicológico, e desde logo também pela sua elevada capacidade de trabalho, o desmentem.
Ou seja, não é possível fazer equiparar o conceito de pessoa idosa ao de pessoa particularmente indefesa, ademais com o risco de uma tal equiparação poder trazer consigo a associação à idade de uma capitis diminutio (com um sentido de diminuição da pessoa que poderia ser humilhante), ainda por cima desse jaez (especial, extraordinário, que o advérbio “particularmente” incute), e desse modo também não se nos vislumbra possível considerar, sob pena de violação do princípio da legalidade penal, que para o preenchimento do tipo de crime previsto no art.º 152º, nº 2, al. d), do CP seria bastante dar-se como provada a avançada idade das vítimas, como pretende o recorrente. Se assim fosse, o legislador, aliás em sintonia com os ensinamentos que a própria realidade nos dá, não teria necessidade de incluir na norma o requisito de a pessoa ser “particularmente indefesa”, bastando que nela fizesse referência a “pessoa idosa”. É essa mesma ilação que de uma forma mais esclarecedora se pode extrair do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça já citado, ainda que no âmbito do homicídio qualificado, quando a dada altura aí se afirma: “Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa” (sublinhado nosso).
Ou seja, para que se pudesse considerar preenchido o elemento típico objetivo do crime de violência doméstica, determinável a partir ou em função da idade da vítima, nos termos previstos no art.º 152º, nº 2, al. d), do CP, necessário seria que, por causa da sua idade, a mesma se encontrasse numa situação de incapacidade de defesa especialmente relevante, em virtude de não ser minimamente capaz de reagir ou de se defender das agressões a si dirigidas, nem contemporânea nem posteriormente a elas, designadamente por apresentar dificuldades de compreensão intelectual ou emocional do desvalor das mesmas, ou não ter a destreza ou o vigor físico ou psicológico necessários para a elas reagir, defendendo-se ou queixando-se a quem lhe pudesse dar proteção, por dificuldades, face também às características físicas e psicológicas do agressor, em se opor ou responder, nomeadamente por um particular défice na sua locomoção ou evidentes dificuldades psicomotoras, dos quais o agressor se aproveitasse para a agredir ou maltratar, mas tudo necessariamente baseado em factos concretos e não, como bem considerou o Tribunal a quo no acórdão recorrido, em afirmações de caráter “manifestamente conclusivo, genérico e/ou normativo”, sem qualquer correspondência prática na concreta realidade da vida carreada ao processo.
Nenhum facto desponta, tivesse sido ele alegado na própria acusação ou vislumbrado no decurso do processo (fundamentalmente durante a audiência de julgamento), que pudesse obrigar o Tribunal a quo a conhecê-lo, ou para que se pudesse considerar que, não o tendo oficiosamente conhecido, como também devia, que havia dado causa ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP[6]. Sendo que a inexistência de outros factos suscetíveis de integrar o conceito de pessoa particularmente indefesa, inviabiliza, por outro lado, a possibilidade de fundadamente se vir agora dizer que não foram produzidos, em relação a eles ou aos factos dados como não provados no acórdão recorrido, os meios de prova necessários à descoberta da verdade material, nos termos previstos no art.º 340º do CPP. E inviabiliza uma tal possibilidade, porquanto, em relação aos primeiros, não foram alegados nem oficiosamente vislumbrados factos que nesse sentido justificassem a produção de novos meios de prova, e relativamente aos segundos, tal como também relativamente aos primeiros, caso existissem, para tal deveria o recorrente ter requerido em tempo útil a produção dos meios prova que julgasse necessários, ou então reagido à omissão do dever legalmente imposto ao Tribunal, de oficiosamente determinar a sua produção, arguindo a respetiva nulidade, a qual, porque enquadrável no art.º 120º, nº 2, al. d), do CPP, deveria ter sido suscitada pelos respetivos interessados até ao encerramento da audiência de julgamento, nos termos previstos no art.º 120º, nº 3, al. a), do CPP, e nunca em sede de recurso, no âmbito do qual a mesma deve, por isso, ser considerada sanada[7].
Daí se nos afigurar ter sido correta a absolvição do arguido pela autoria dos crimes de violência doméstica por que vinha acusado nos termos em que o decidiu o Tribunal a quo, nomeadamente quando deixou expresso no acórdão recorrido:
“Assim, no caso dos autos, entende-se ser manifesta a inexistência de prova dos factos necessários para que se conclua que, aquando dos acontecimentos, os avós maternos do arguido, C… e D…, se tratavam de pessoas particularmente indefesas, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica.
Consequentemente, por não se encontrar preenchido o pressuposto típico da alínea d) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal (nem de qualquer uma das demais alíneas deste preceito legal), impõe-se absolver o arguido da acusação de ter praticado crimes de violência doméstica.”
A circunstância de as vítimas das agressões serem pessoas idosas, ou seja, de 76 e 78 anos de idade, só por si, sem mais, poderia quando muito ter relevo para a determinação da medida concreta da pena, face aos tipos de crime que a condutas agressoras pudessem ter preenchido, e que no caso o Tribunal a quo considerou ser os de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, e o de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do mesmo diploma, crimes estes cuja natureza particular e semipública impediu, com base neles, a continuação do procedimento criminal contra o arguido, nos termos e fundamentos constantes do acórdão recorrido, cuja decisão se nos afigura correta e, ademais, na disponibilidade que a lei lhes confere, correspondente à vontade manifestada pelos ofendidos no processo, vontade esta que, assente que esteve na sua liberdade de decisão e de ação, nos termos expressos na decisão recorrida, ademais porque manifestada perante o próprio Tribunal, fosse para exercerem a faculdade de se recusarem a depor, prevista no art.º 134º, nº 1, al. a), do CPP, fosse para manifestarem que não desejavam procedimento criminal contra o arguido, e mesmo até para se oporem, nos termos previstos no art.º 21º, nº 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, a que fosse oficiosamente fixada qualquer indemnização, ao abrigo do art.º 82º-A do CPP (tal como se consignou no acórdão recorrido: “instados para se pronunciarem quanto ao eventual arbitramento de quantias indemnizatórias para reparação de prejuízos sofridos, declararam expressamente não pretenderem beneficiar de qualquer indemnização”), nada também permitem no sentido de se poder concluir que, ao menos aí, tivessem revelado qualquer sinal de se encontrarem numa situação de particular indefesa.
Face ao que fica exposto, no âmbito do direito penal substantivo, em termos interpretativos, tendo em vista a descoberta do sentido normativo do que possa ser uma pessoa particularmente indefesa, nos termos exigidos pelo art.º 152º, nº 1, al. d), do CP, parece-nos também ser de considerar inoperante a invocação ou, por maioria de razão, a trasladação do conceito de “vítima especialmente vulnerável”, contido no art.º 67º-A, nº 1, al. b), do CPP, que tem aí uma natureza e relevo essencialmente processual penal, sendo que a dimensão funcional para esse efeito concedido à “idade da vítima” também não prescinde de uma concreta e material determinação, tendo por base agora uma “especial fragilidade” daquela, só se prescindindo de uma tal concreta determinação nos casos especialmente previstos, ou seja nas hipóteses descritas no nº 3 do citado art.º 67º-A, quando aí se diz que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas ‘vítimas especialmente vulneráveis’”, porém e ainda assim, sublinhe-se, como aí se diz, apenas “para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1”, desse mesmo artigo.
Razão por que irá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.
3. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.
Sem custas

Porto, 14 de julho de 2021
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
_____________
[1] Inserido no corpo do nº 1 do art.º 152º do CP com a alteração operada ao Código Penal pela Lei n.º 7/2000, de 27/05, que então previa e punia o crime de maus tratos e infração de regras de segurança, sendo que a partir das alterações ocorridas com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04/09, passou a integrar a al. d) do nº 1 do art.º 152º, com um conjunto de disposições normativas que passaram a prever o crime de violência doméstica, enquanto o crime de maus tratos transitou para o novo Artigo 152.º-A, com a conformação típica atualmente existente.
[2] Passando a integrar o art.º 132º, nº 2, do CP após a revisão levada a cabo pele DL nº 48/95, de 15/03.
[3] Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 401 e 465.
[4] Ac. do STJ, de 26/11/2015, Proc.º nº 119/14.0JAPRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[5] O mesmo se podendo dizer relativamente a uma pessoa doente, deficiente, grávida, ou economicamente dependente, porque tudo irá depender da situação concreta e do grau de afetação que para a vítima cada um desses estados representará, para em função deles se poder defender do agressor, assim como da relação de poder ou de ascendência física ou psicológica que este possa em concreto manifestar ou gozar sobre aquela, em função desse mesmo estado.
[6] Que diz:
2- Mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;”
[7] Neste sentido, Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão da edição de Fevereiro de 2014, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1090.