SIMULAÇÃO
PACTO COMISSÓRIO
CONTRATO FIDUCIÁRIO
NEGÓCIO USURÁRIO
ANULABILIDADE
NULIDADE
BONS COSTUMES
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
AÇÃO DE DESPEJO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LEI PROCESSUAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PODERES DA RELAÇÃO
Sumário


I. — A simulação pressupõe a prova da divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, do acordo entre declarante e declaratário e do intuito de enganar terceiros.
II. — A alienação fiduciária em garantia é compatível com o princípio da proibição do pacto comissório.
III. — O art. 282.º do Código Civil associa ao preenchimento dos pressupostos ou requisitos da usura a consequência da anulabilidade do negócio jurídico.
IV. — O princípio de que o negócio usurário é, tão-só, anulável só poderá ser derrogado em casos excepcionalmente graves, em que o preenchimento dos pressupostos ou dos requisitos do art. 282.º deva representar-se como ofensa aos bons costumes, no sentido do art. 280.º do Código Civil — logo, de nulidade do negócio jurídico.
V. — Entre as causas justificativas do enriquecimento, admitidas e reconhecidas pelo sistema jurídico, está a conclusão de um contrato de compra e venda válido — ainda que o contrato em causa esteja integrado em alguma alienação em garantia.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO


1. BB instaurou a presente acção de despejo, sob a forma de processo declarativo comum contra AA, pedindo:

I. — que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento, celebrado em 21 de Setembro de 2011, correspondente a uma habitação, sita na …, concelho …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 35….…. e descrito na Conservatória do Registo Predial … com o nº 26….., da freguesia ……..;

II. — que a ré seja condenada a restituir ao autor o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação;

III. — que a ré seja condenada a pagar ao autor as rendas vencidas e não pagas, desde Setembro de 2011, as quais ascendiam à data da instauração da acção, o montante de 20.400,00€ e as rendas que se vencerem até à efectiva entrega do imóvel, à razão de 400,00€ cada uma;

IV. — que a ré seja condenada a pagar ao autor juros de mora, calculados à taxa legal sobre os valores em dívida.


2. A Ré AA contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção, e deduziu reconvenção, em que pediu que fosse declarado nulo o contrato de compra e venda celebrado entre autor e ré em 21 de Setembro de 2011.


3. Em incidente de habilitação de adquirente, foi habilitado no direito invocado pelo Autor BB a sociedade Watersuccess, S.A.


4. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença, julgando a acção totalmente procedente.


5. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:

1) Julga-se a ação totalmente procedente e, em consequência,

(i) declara-se a resolução do contrato de arrendamento, celebrado com a ré em 21 de setembro de 2011, correspondente a uma habitação, sita na ………….., concelho ……., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 35........ e descrito na Conservatória do Registo Predial ………. com o nº 26………, da freguesia ……;

(ii) condena-se a ré a restituir ao autor o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação;

(iii) condena-se a ré a pagar ao autor as rendas vencidas e não pagas, desde setembro de 2011 a dezembro de 2015, no valor de 20.400,00€ e ainda a quantia de 400€ por cada mês desde a instauração da ação até à entrega efetiva do locado, sendo aquela quantia acrescida de juros moratórios, à taxa legal das operações civis desde a citação até efectivo pagamento e relativamente às demais prestações desde a data do seu vencimento.

2) Julga-se a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se o reconvindo do pedido reconvencional.


6. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de apelação.


7. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. O presente Recurso consubstancia o mais profundo inconformismo da Recorrente face à Sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo, sem quebra do respeito sempre devido por douta opinião em contrário, que esta padece de graves erros, tanto no que tange ao julgamento de facto como de Direito.

2. Assim, o presente Recurso versa matéria de facto e de Direito, nos termos que serão infra melhor consignados, desde logo, porque a prova produzida leva a que alguns dos factos dados como provados não o devessem ter sido, impondo-se a alteração das respostas à matéria de facto em conformidade com o que resultou daquela prova. O mesmo se diga da matéria de facto dada como não provada que – como veremos infra – deveria ter sido dada como provada.

3. Analisada a matéria de facto dada como provada na douta Sentença por contraposição com a prova produzida nos autos, designadamente dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, verifica-se que ocorreu erro de julgamento notório e grave, que conduz à alteração da matéria de facto, impondo uma decisão diversa da proferida, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

4. Isto porquanto, ao contrário do entendimento vertido pelo Tribunal a quo, as partes nunca pretenderam, como o defende o Autor, transmitir a propriedade do prédio urbano destinado à habitação sito na ..........., inscrito na matriz sob o artigo 35…… e descrito na CRP ……….. sob o n.º 26…., celebrando assim um contrato de compra e venda e um contrato de promessa de compra e venda e arrendamento.

5. A verdade é que as partes, com a celebração da escritura de compra e venda não tiveram real intenção de transmitir a propriedade do imóvel, então pertencente à aqui Ré, mas sim assegurar o cumprimento do mútuo contraído e constituir uma garantia sobre os valores monetários que os Autores originários, designadamente BB e o seu Pai, CC, lhe tinham emprestado.

6. Dos vários elementos juntos aos autos, se especificamente escrutinados, resulta inequívoco que nem a Recorrente quis vender, nem o Autor originário quis adquirir a propriedade daquele imóvel.

7. Assim, foram incorrectamente dados como provados os pontos 01) a 05) da sentença recorrida, sendo notória a existência de erro de julgamento, em virtude da distorção da realidade factual tida em consideração.

8. De facto, em virtude da sua situação financeira (que comportava dois processos executivos e uma penhora à fazenda nacional) e de outros encargos que detinha – conforme documento n.ºs 6 a 16 da Contestação com Reconvenção juntos aos presentes autos e que se dão por integralmente reproduzidos –, a Ré procurou aconselhamento financeiro junto da empresa de consultadoria financeira pertencente à Testemunha FF. Consultadoria que a Testemunha confirmou em sede de audiência final, que se veio a realizar no dia 24 de Setembro de 2019 (Ficheiro áudio n.º 20190924102813_3605685_2870449 – em sede de Audiência Final datada de 24.09.2019 – ao tempo 00h:00min:54segs a 00h:01min:06segs).

9. Na consultadoria que lhe foi prestada a Recorrente, ora Ré, foi acompanhada inicialmente pela Testemunha FF e, subsequentemente, pela GG. Analisada a situação por ambos e mediante a constatação de que não era possível à Recorrente contrair crédito junto de instituição bancária, esta diligenciou no sentido de lhe encontrar um investidor, tendo indicado o Autor originário e o seu Pai, Sr. Eng. CC – conforme resulta do depoimento da Testemunha FF, prestado e gravado no dia 24 de Setembro de 2019. Conforme Ficheiro áudio n.º ………..49; em sede de Audiência Final ao tempo 00h:01min:26segs a 00h:02min:07segs.

10. Na sequência, e por intermédio da empresa do FF, a Recorrente conheceu o Autor originário, e o seu Pai, e cumprindo o plano “salvador” que lhe fora apresentado, contraiu um empréstimo de junto do Sr. BB, a 14.02.2011. Nessa data, e para efeitos de consagração do mútuo, a Ré, perturbada com a sua situação económica e querendo desvincular-se dos ónus que tinha ao seu encargo que lhe comprometiam a sua habitação, assinou documento particular no qual se confessou devedora do montante de 52.000,00 € (cinquenta e dois mil euros) que lhe foi apresentado pelos referidos investidores e nos quais plenamente confiou – conforme documento n.º 3 junto aos presentes autos, com a Contestação e que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.

11. Pese embora somente lhe tenha sido dada inicialmente a quantia de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), a verdade é que os Autores, sabendo da qualidade de proprietária da ora Ré, da sua casa de morada de família, imóvel já supra identificado e economicamente aliciante, exigiram-lhe, para salvaguarda do crédito destes, que aquela lhe fosse entregue.

12. O que foi apresentado à Recorrente como o único meio para se conseguir desvincular das hipotecas e ónus que incidiam sobre a sua habitação e, seguidamente, poder liquidar o mútuo contraído com estes, mediante o recurso ao financiamento junto de Instituição Bancária.

13. Assim, a 21.09.2011, a Ré acedeu celebrar uma escritura de compra e venda, prestando-lhe, assim, uma garantia do salutar cumprimento do mútuo que contraíra.

14. Ademais, sendo a real intenção das partes, não transmitir a propriedade do imóvel, mas somente constituir uma garantia face ao mútuo celebrado (e de cuja quantia no valor de 52.000,00 € a Ré se confessou devedora), na mesma data, por exigência do Autor foi assinado um contrato de promessa de compra e venda e arrendamento, o qual pretendia completar a real intenção das partes: que a Recorrente, AA, logo que pagasse o mútuo, voltasse a adquirir a totalidade da propriedade.

15. A Recorrente, confiando na boa-fé do Autor BB, aqui Recorrido, nunca sequer imaginou poder vir a perder a sua habitação, encontrando- se na terrível situação que hoje se encontra. Ainda que assim seja, e não obstante a escritura de compra e venda assumir a forma de documento autêntico, a articulação do material probatório junto aos presentes autos é flagrante na constatação de que o negócio declarado na escritura de compra e venda não corresponde à efectiva e real vontade das partes, tratando-se, por isso, de negócio simulado, nos termos do artigo 240.º do Código Civil – vide o ponto adstrito às considerações de direito do presente articulado.

16. Perante a prova que, nos termos do artigo 640.º do CPC acima se apontou, devem os referidos factos ser dados como não provados.

17. Atento o circunstancialismo e intenção que moldou os factos conformadores do presente processo, assim como atendendo à prova produzida, a Recorrente é firme e certa na ilação de que se encontram incorrectamente julgados alguns dos factos dados como não provados, desde logo, os factos III), IV) V), VI), VII), VIII), IX), XI), XIII), XIV), XV), XVI), XVII), XVIII, XIX), XX), XXI), XXII), XXIII), XXVI) e XXVII).

18. Se a impossibilidade de inquirição da Mandatária encarregue da feitura da confissão e dívida, Sra. Dra. KK, seria a cabal e derradeira prova da intenção das partes, é inequívoco ainda assim que se encontram nos autos outros fundamentos para asseverá-lo e prová-lo. Desde logo o depoimento da Testemunha o   FF gravado sob ficheiro áudio n.º ……49, no âmbito da Audiência Final datada de 24 de Setembro de 2019.

19. Considerou o Tribunal a quo que tal depoimento, em parte, não poderia ser valorado porquanto se tratar de depoimento “indirecto” e como tal não passível de valoração para o efeito – veja-se o ponto C da Motivação da sentença recorrida respeitante à concreta prova testemunhal. Não obstante o respeito merecido, muito choca à Recorrente tal ilação, sendo sua certeza que deveriam ter sido atendidas as explicações da Testemunha. Não só porque o seu depoimento confirma a ligação existente entre si, o Autor originário e o Pai deste, CC, ligação que teve por base a empresa do primeiro (à qual a Recorrente, ora Ré, acedeu em desespero de causa para encontrar solução para a sua situação financeira), mas mais ainda porque a Testemunha realiza um cabal e esclarecedor enquadramento da praxis inerente ao tratamento destas situações. Mas mais. A preterição da valoração do depoimento da Testemunha fundou-se, como refere a sentença recorrida, no facto de esta alegadamente não ter conhecimento directo dos factos.

20. Porém, se a Testemunha não interveio no completar do processo, não é verdade que não tenha intervindo nele. Conforme resulta do seu depoimento, interveio directamente na delineação da estratégia a seguir, bem como no iniciar do processo, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, tendo por isso, conhecimento directo desses factos que, na sequência, deveriam ter sido objecto de consideração pelo Tribunal – conforme ficheiro áudio n.º ….49, em sede de Audiência Final, ao tempo 00h:08min:30segs a 00h:10min:07segs:

FF: Ela contratou, exactamente, para solicitar, para se fazer a diligência de arranjar dinheiro porque ela precisava mesmo se não ia perder a casa, com as penhoras que tinha ia perder a casa… eh… entretanto como não se consegue crédito na… nas instituições eh… habituais eh… falei então com a GG em que GG diz, sim Senhor vamos falar com o investidor e vamos ver então se o investidor empresta dinheiro. Foi quando se apresenta o processo ao investidor…

Mandatário da Ré: Quem foi o investidor?

FF: Foi esse Engenheiro BB… eh… E ele… Eh… Apresentei a AA à GG…

Mandatário da Ré: Olhe já agora, deixe-me só esclarecer isto: foi ao Eng. BB ou foi ao Pai do BB?

FF: Um Senhor de idade. É pai, é pai.

Mandatário da Ré: O BB é o filho. O Eng. é o Pai.

FF: O Eng. é o pai. É o Pai. Entretanto esta D…. a D. GG apresenta a AA ao Eng. e combina-se fazer e… e… Aquilo que.. que… que estava preconizado fazer, era fazer um contrato de aluguer com opção de compra em que a AA alugaria… ah… fazia a venda do apartamento ao Eng. com o contrato de aluguer e sempre com a opção de compra de fazer, recomprar passado algum x tempo pagando obviamente as tranches combinadas…ah…

21. Resulta do depoimento da Testemunha que a delineação da estratégia a seguir, no caso da Recorrente (e no âmbito da qual interveio directamente) seria a realização de um contrato de compra e venda fictício!!! Pelo que o trecho acima transcrito revela, cabalmente, que mal andou o Tribunal de primeira instância ao decidir como decidiu.

22. Ainda que assim não fosse, a Testemunha, cujo depoimento foi na sua quase completude, preterido, veio aos autos trazer outra informação imprescindível à boa decisão da causa. Informação esta que tinha que relevar, pois respeitante aos usus da actividade de consultadoria financeira a que a ora Ré recorreu. Efectivamente, os usus, entendidos, como a prática habitual de uma determinada actividade/área, de um determinado actuar, não só devem, como têm que ser valorados para que se possa compreender o normal decorrer e enquadramento do decorrer de um determinado contexto.

23. Porque inserido na área da consultadoria financeira, na qual possuía empresa, e porque mais que acostumado a situações análogas à que a Recorrente lhe apresentara, a Testemunha conta ao Tribunal o que normalmente era realizado. Ainda assim, caídas completamente no esquecimento ficaram as palavras da Testemunha. Assim atente-se -Ficheiro áudio n.º …………..49 referente à Audiência Final datada de 24 de Setembro de 2019, designadamente nos seguintes tempos:

00h:11min:01segs a 00h:11min:31segs

Mandatário da Ré: No fundo em bom rigor esse investidor entre aspas não comprava absolutamente nada. Emprestava dinheiro e para garantia fazia-se a transferência do imóvel como tal…

FF: Muito bem…

Mandatário da Ré: Com o tal contrato de arrendamento com opção de compra. É isto?

FF: Exactamente.

00h:25min:55segs a 00h:26min:24segs

Mandatário da Ré: Pergunto eu também. Porque é que normalmente não se toma uma solução, por exemplo: a Sra. Era dona de um imóvel, o Sr. pagava e não fazia uma hipoteca, por exemplo? Como garantia?

FF: Nesse tipo de casos, quando existe já moras ou penhoras sobre os imóveis eh… não vale a pena fazer uma hipoteca de um imóvel que já está penhorado.

00h:26min:18segs a 00h:26min:28segs

FF: Este tipo de negócios, este tipo de investidores, só faziam pagando as penhoras e passando as casas…

Mandatário da Ré: Logo como uma garantia… FF: Sim.

00h:26min:36segs a 00h:26min:59segs

FF: Isso que o Sr. Dr. está a dizer seria prestar uma garantia neste caso os investidores não prestavam a garantia, eles ficavam com o imóvel. O facto de eles ficarem com o imóvel era um… um cem por cento da garantia. E, portanto, a hipoteca é uma garantia real, eles ficavam com o imóvel que era mais que uma garantia real. Portanto era a certeza absoluta de que eh… pronto… já tinha a garantia do lado deles.

24. A Testemunha detalhadamente explicitou o que habitualmente “este tipo de investidores” realizavam, do seu modo de actuar – investidores com quem regularmente trabalhava na área e que lhe proporcionava conhecimento directo – e ainda assim o Tribunal refere que o depoimento não pode ser considerado, pois “indirecto”?! Ainda que assim fosse e ainda que pudessem restar dúvidas, acerca da real intenção do Autor originário e do seu Pai CC; ainda que se pudesse questionar a veracidade do depoimento da Testemunha FF, isto é, que o circunstancialismo descrito fora o que acontecera no caso concreto, o cruzamento dessas palavras com aqueloutras proferidas pelo Sr. Eng., CC, Pai do Autor originário e mandatário deste na celebração do negócio, dissipa-las.

25. É que este Sr. Eng. quando questionado acerca da real intenção que tinha aquando da feitura da escritura de compra e venda (data de 21.09.2011) tentando contornar a questão – e como foi marca no seu depoimento –, fez o paralelo com tantas outras compras e vendas que tinha feito para dar oportunidade às pessoas de liquidar as suas dívidas (!) Senão vejamos o proferido pela Testemunha CC - Ficheiro áudio n.º ………….49, em sede de Audiência Final datada de 19.06.2019 ao tempo 00h:38min:37segs a 00h:42min:40segs:

CC: O sótora… Ó sotor… Nessa altura Portugal estava a atravessar uma crise, aliás era uma crise mundial. Os bancos tinham fechado a torneira e havia pessoas que era o caso da AA, por isso é que eu tinha a empresa, tinha uma empresa chamada “F.......” aí… nesses casos… nesses casos nem foi a empresa, foi o meu filho, o que fazíamos era o seguinte: a pessoa tinha moras do banco de Portugal ou tinha dividas… NÓS COMPRÁVAMOS A PROPRIEDADE E A PESSOA DÁVAMOS À PESSOA A OPORTUNIDADE DE A PESSOA LIQUIDAR AS SUAS DÍVIDAS e, ao mesmo tempo, tentar refazer a sua vida ficando em condições de poder contrair um empréstimo bancário. CONTRAÍA O EMPRÉSTIMO BANCÁRIO, PAGAVA-NOS NORMALMENTE A RENDA QUE ERA 400 EUROS, POR MÊS, TINHA SEIS MESES PARA O FAZER. NO FIM DE 3 MESES JÁ PODERIA IR AO BANCO REQUERER A… A… REQUERER O EMPRÉSTIMO. PAGÁVAMOS AQUILO QUE NÓS TÍNHAMOS … EMPRESTADO…

26. Uma nota: não será esta actividade própria de “banqueiros informais”? (ponto ix) dos factos não provados). Evidentemente que sim, pelo que, em face ao exposto, deve o presente facto ser, à semelhança dos restantes, dado como provado.

27. Como se o aduzido não bastasse para demonstrar a divergência existente, entre vontade real e a vontade declarada do Autor originário, sempre se deverá atentar ainda na prova documental existente nos autos.

Atendendo ao segundo contrato celebrado no dia 21 de Setembro de 2011, isto é, ao “contrato de promessa e compra e venda e arrendamento”, deveria ser celebrada nova escritura no prazo máximo de cento e oitenta dias (seis meses), em que a propriedade do imóvel passaria novamente para a ora Ré, aqui Recorrente. Assim, até dia 21 de Março de 2012, o Autor originário deveria ter dirigido missiva à Recorrente a convocá-la, com uma antecedência mínima de 10 (dez) dias para a realização da escritura.

28. Mas o autor originário não o realizou e quando o veio a concretizar, fê-lo perpassado um ano! A primeira missiva data de 10 de Abril de 2013, com o agendamento de escritura para o dia 30 de Abril de 2013!

ORA,

29. a Recorrente nesse dia trinta de Abril de 2013, a Recorrente dirige-se ao Cartório Notarial ……… (local acordado) e não encontrou absolutamente NINGUÉM – conforme consta de certidão que se solicitou que fosse emitida pelo Notário e junta aos presentes autos, com a Contestação da ora Ré, sob documento n.º 19.Após as suas insistências no agendamento de escritura de compra e venda, é-lhe dirigida nova missiva, agora a 07 de Maio de 2013, com agendamento para dia 15 de Maio de 2013! Sem serem cumpridos os dez dias de antecedência necessários – conforme documento n.º 20 junto com a Contestação e que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.

A Recorrente que somente foi notificada no dia da escritura, ou seja, a 15 de Maio de 2013, viu-se impossibilitada de a realizar, em virtude de compromissos prévios, conforme expressamente comunicou, ainda no próprio dia ao Autor originário – vide documento n.º 21 junto com a Contestação e que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.

30. Veja-se que o argumento dos Autores de que a Autora não estava a cumprir o contrato de promessa de compra e venda e arrendamento não colhe, pois se não existiu qualquer compra e venda, muito menos arrendamento! O que as partes assinaram a 21 de Setembro de 2011 foi um CONTRATO DE PROMESSA DE ARRENDAMENTO – conforme documento n.º 5 junto aos autos com a Contestação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais – o que resulta claríssimo da Cláusula Quinta desse contrato.

31. Em nenhum momento, a Recorrente, assinou um contrato de Arrendamento!!! O que é corroborado pelo Sr. Eng. CC no seio do seu depoimento, em sede de Audiência Final. Senão atente-se – Ficheiro áudio n.º ……49, cuja gravação se refere à Audiência Final datada de dia 19 de Junho de 2019, ao tempo 00h:14min:49segs a 00h:16min:01segs.

32. De facto, nunca recebeu qualquer valor, pois nunca teve base contratual para o receber, por dois motivos: o negócio de compra e venda celebrado não pretendia sê-lo, assim acontecendo com o segundo contrato subsequente; e não detinha base contratual para exigir rendas a outrem em virtude da não existência de qualquer contrato de arrendamento.

33. O Tribunal a quo, na sentença recorrida, relativamente à nulidade do contrato de compra e venda celebrado a 21 se Setembro 2011, em virtude da possível violação dos bons costumes, tece a argumentação de que «(…) o negócio realizado entre as partes é formalmente admissível e, face ao período de crise económica e financeira que ocorria, muitos foram os negócios em que os proprietários dos imóveis os oneraram ou alienaram, inclusive dando em pagamento (dação em pagamento / dação em cumprimento); é precisamente em períodos de crise financeira que os detentores de capital realizam negócios com uma apetência lucrativa maior, tal não significa só pro si que seja violador dos bons costumes». Argumentação que é, no mínimo contraditória com os factos dados como não provados, uma vez que admite a possibilidade de o negócio que as partes quiseram celebrar não corresponder à compra e venda declarada na escritura.

34. Mas mais: considera como factos não provados todos os factos inerentes ao mútuo celebrado entre as partes, designadamente os pontos i), iii), ix), xv), xvi), xvii) e xxvi), mas utiliza essa argumentação no seio da motivação para afastar a existência de aproveitamento do Autor, relativamente à Ré, aqui Recorrente, referindo que «In casu, aliás não se afigura poder concluir-se por ter havido qualquer “aproveitamento” por parte do adquirente do imóvel, na medida em que, além de ter concedido mútuo (s) à ré, de imediato foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda, que permitia à ré voltar a adquirir o imóvel».

35. Em suma: tece esta consideração, para afastar a nulidade por violação dos bons costumes, mas não consigna como provado o mútuo, na factualidade provada, o que é contradição flagrante da sentença recorrida!

POR FIM:

36. Em cumprimento do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil e a título de súmula a Recorrente enumera, assim, os factos que considerou incorrectamente dados como não provados (pontos III), IV) V), VI), VII), VIII), IX), XI), XIII), XIV), XV), XVI), XVII), XVIII, XIX), XX), XXI), XXII), XXIII), XXVI) e XXVII) e, consequentemente, os meios probatórios em que alicerça a sua convicção, o que fará por ponto a ponto para facilidade de intelecção de Vossas Excelências.

37. O erro de julgamento atinente ao facto iii) dos factos não provados resulta, desde logo, da concatenação da prova documental, designadamente da confissão de dívida junta aos autos, sob documento n.º 3 da Contestação apresentada pela Recorrente, do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio já se elencaram supra).

38. O erro de julgamento atinente ao facto iv) dos factos não provados resulta, resulta, por sua vez, da concatenação do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento gravado da Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º 20190924105922_3605685_2870449, em sede de audiência final datada de 24.09.2019, ao tempo 00h:07:55segs a 00h:08min:40segs).

39. Na sequência, também o facto v) considerado como não provado deveria tê-lo sido. O incorrecto julgamento deste facto resulta da concatenação do depoimento gravado do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra) e do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra).

40. O facto vi) dado como não provado impunha também ele decisão contrária. A verificação deste facto resulta da conexão do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), com o depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), com a prova documental, designadamente as sucessivas missivas trocadas entre as partes após a celebração do contrato de compra e venda e na decorrência do contrato de promessa de compra e venda e arrendamento – documentos n.ºs 20 a 23 da contestação já juntos aos autos.

41. Por outro lado, houve incorrecto julgamento relativamente ao facto vii) dos factos não provados, que deveria ter sido dado como provado. Tal ilação resulta da concatenação do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra) e ainda da prova documental, designadamente das sucessivas missivas trocadas entre as partes após a celebração do contrato de compra e venda e na decorrência do contrato de promessa de compra e venda e arrendamento – documentos n.ºs 20 a 23 da contestação já juntos aos autos.

42. Também o ponto viii) dos factos não provados deve ser objecto de decisão diversa. O incorrecto julgamento deste facto resulta da articulação tida entre o depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra).

43. Quanto ao ponto ix) dos factos dados como não provados, outra teria sido a decisão se o Tribunal a quo não tivesse preterido a descrição factual realizada pela Testemunha FF, cujas passagens se encontram descritas acima e para as quais se remete, as quais se encontram corroboradas, no caso concreto, com o depoimento da Testemunha CC.

44. Quanto ao ponto x) dos factos não provados, resulta inequívoco da prova pericial junta aos autos que o imóvel tem valor superior ao declarado em sede de escritura pública. Aliás valor bastante superior, nunca se podendo corroborar que o valor ínsito na escritura pública corresponde à realidade material.

45. O incorrecto julgamento do facto xi) dos factos dados como não provados é aferido pelo do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), pelo depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), assim como pela prova documental, existentes nos autos, consubstanciada nas sucessivas missivas trocadas entre as partes após a celebração do contrato de compra e venda e na decorrência do contrato de promessa de compra e venda e arrendamento e que demonstram que o Autor originário não cumpriu o ónus que o contrato lhe impunha – documentos n.º s 20 a 23 da contestação já juntos aos autos.

46. Quanto ao facto xiii) do conjunto que se afere, decisão diversa também se impunha, em virtude do consignado no depoimento gravado do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como da Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º ….49, em sede de audiência final datada de 24.092019, ao tempo 00h:11:03segs a 00h:11min:17segs).

47. Que a ré só veio a tomar verdadeiro conhecimento e apreender as consequências, contornos e conteúdo de tal documentação, quando a “pressão” do autor originário e seu pai sobre si começou a ser insuportável, em abril de 2013, facto xiv) dos factos dados como não provados, resulta facilmente comprovado por prova documental, designadamente pelo documento n.º 7 junto com a petição inicial apresentada nos autos, bem como com o documento n.º 23 da Contestação da Recorrente.

48. O facto xv) dado como não provado, relativo ao facto de aderir ao “esquema/estratagema do mútuo /financiamento) por recomendação de um colega de ofício, teria sido dado como provado se o Tribunal, ao contrário do que realizou, tivesse valorado o depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra).

49. Quanto ao facto xvi) não provado «E porque esse “esquema”, segundo o autor originário permitiria “limpar a ficha bancária da ré” – assim lhe foi dito – para que seguida fosse possível alcançar um crédito hipotecário junto da Banca, que por sua vez permitisse o reembolso do financiador (autor originário).» a certeza do incorrecto julgamento deste facto resulta da concatenação do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens dagravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento gravado da Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º ….49, em sede de audiência final datada de 24.09.2019, ao tempo ao tempo 00h:07:55segs a 00h:08min:40segs).

50. O facto xvii) segundo o qual «A ré aceitou o “plano” de financiamento do autor originário e do seu pai, em função do medo/receio que à data possuía de “ficar sem a sua habitação” e sem local para viver, face aos processos executivos pendente e penhoras sobre ele.» também deveria ter sido objecto de decisão diversa se articulado o depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), com o depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), assim com o depoimento da Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º …49, em sede de audiência final datada de 24.09.2019, ao tempo 00h:03min:50segs e ao tempo 00h:07:40segs a 00h:08min:40segs).

51. O facto de à data, a ré não possuir ordenado fixo ou rendimento estável, o que impedia de se socorrer de crédito bancário, tal facto xviii), dado como não provado – que poderia ser facilmente comprovado se o Tribunal, ao abrigo do princípio do inquisitória tivesse solicitado à parte a junção do seu IRS ou qualquer outro comprovativo – é comprovado ainda pelo depoimento da Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º …49, em sede de audiência final datada de 24.09.2019,  ao tempo 00h:08min:00segs a 00h:08min:12segs).

52. O facto xix) dos factos dados como não provados, incorrectamente julgado como não provado, não deveria ter sido objecto desse julgamento, mas do inverso, em face do que a Testemunha JJ (Ficheiro áudio n.º …49, em sede de audiência final datada de 24.09.2019, ao tempo 00h:07:55segs a 00h:08min:40segs).

53. Quanto ao concreto facto xx) que consigna que «O autor originário e o seu pai eram pessoas sagazes, habituados às situações similares à ré e estavam cientes das fragilidades evidenciadas pela ré e do momento de grande tensão e desespero por esta vivenciado, pretendendo dela tirar imediato proveito.», o depoimento do Sr. CC é extremamente elucidativo deste facto, principalmente o seu final (conforme Ficheiro áudio n.º ……49, ao tempo 01h:31min:40segs a 01h:32min:30segs), bem como da Testemunha FF (conforme Ficheiro áudio n.º ……49, ao tempo 00h:05min:40 segs).

54. Na sequência, o facto xxi) deve ser objecto também ele de decisão diversa: deve prevalecer, para a sua prova, o depoimento das Testemunhas FF e JJ (cujos ficheiros de gravação e passagens concretas já se encontram identificadas).

55. Quanto ao erro de julgamento, quanto ao concreto facto xxii) dado como não provado, saliente-se o depoimento do Sr. CC que sempre referiu no seu decurso que só emprestaria o dinheiro à Ré, mediante a celebração do contrato de compra e venda para sua salvaguarda (conforme passagens já supra transpostas), bem como da Testemunha FF que, debruçando-se sobre a praxis dos investidores várias vezes referiu o seu modo de actuar.

56. Quanto ao facto xxiii) “O autor originário passou, em 2012, a fazer constantes ameaças de despejo à ré, a que se somaram os pedidos de renda e onde se afirmava “tenha cuidado porque o empréstimo que terá que fazer para recuperar a casa terá de ser pelo menos de 100.000,00 €”, este facto encontra-se provado com recurso às múltiplas missivas trocadas entre as partes e já especificadas supra, juntas aos presentes autos.

57. Quanto ao ponto xxvi) dos factos dados como não provados, o incorrecto julgamento deste facto resulta da concatenação da           prova documental, designadamente da confissão de dívida junta aos autos, sob documento n.º 3 da Contestação apresentada pela Recorrente, do depoimento gravado do Pai do Autor Originário CC (cujas passagens da gravação áudio se encontram especificadas supra), bem como do depoimento da Testemunha FF (cujas passagens da gravação áudio já se elencaram supra).

58. Por último, quanto ao facto xxvii) “O autor originário valeu-se da inferioridade da ré, explorando a sua situação de inexperiência, dependência psicológica e estado mental da ré, pretendendo desse modo obter para si um “benefício excessivo e injustificado”, o depoimento do Sr. CC é extremamente elucidativo deste facto, principalmente o seu final (conforme Ficheiro áudio n.º …49, ao tempo 01h:31min:40segs a 01h:32min:30segs), bem como da Testemunha FF (conforme Ficheiro áudio n.º …49, ao tempo 00h:05min:40 segs).

VEJA-SE AINDA QUE,

59. Jamais pode a aqui Recorrente, ora Ré, concordar com o facto de não terem sido dados como provados os pontos x) e xii) da sentença recorrida que, à semelhança do que se realizou anteriormente, novamente se transcrevem para mais imediata apreensão por V. Exas.

60. Quanto ponto x), designadamente respeitante ao valor aposto na escritura de compra e venda, decorre inequívoco do resultado encontrado com a prova pericial junta aos presentes autos que o valor aposto naquela foi irrisório. Ainda que não se tenha apurado como valor do imóvel os 200.000,00 € (duzentos mil euros) apontados, o Perito indicou como valor de mercado do prédio urbano, por referência ao ano de 2011 o valor de 158.000,00 € (cento e cinquenta e oito mil euros)! Assim, deve o presente ponto ser parcialmente alterado e, como tal, dar-se como provado que o valor aposto na escritura não corresponde à realidade, sempre, nessa medida, absolutamente FALSO o declarado na escritura de compra e venda! Falsidade que, desde já, demonstra a falsidade do documento autêntico em que se baseou a alegada compra e venda, nos termos do artigo 372.º do Código Civil.

61. Igual conclusão pode ser extraída quanto ao ponto xii) dos factos não provados. 62. Conforme resulta dos autos, o Autor originário e o seu Pai venderam à Habilitada “Watersucess S. A.” o imóvel anteriormente propriedade da Ré, recebendo dinheiro com a celebração do contrato – conforme resulta da gravação áudio sob Ficheiro áudio n.º …49), no tempo 00:11:26 min a 00:12:28 min. O normal suceder quando de um contrato oneroso se trata. Mas é que tal não se passou, de igual forma, quanto ao primeiro contrato celebrado pelos Autores originários e a aqui Recorrente, conforme resulta do Ficheiro áudio n.º …49, em sede de Audiência Final datada de 19.06.2019, ao tempo 00h:12min:32segs a 00h:13min:41segs.

63. Ou seja, não só a Testemunha que – reitera-se: foi quem esteve presente na celebração da escritura – diz que NÃO PAGOU QUALQUER PREÇO, como ainda refere que NÃO O FEZ EM VIRTUDE DE ANTERIORMENTE TER CONCEDIDO CRÉDITO À RECORRENTE.

MAS MAIS:

64. Refere a motivação da sentença recorrida, na sua página 20.ª que «(…) não pode deixar de considerar-se que o prédio estava onerado com três penhoras e uma hipoteca». É que a considerar-se válida o negócio celebrado, como o foi pelo Tribunal (o que somente se coloca por mero dever de patrocínio) então deveria relevar o facto de a Recorrente, na escritura de compra e venda de 21.09.2019, ter declarado que o pagamento já se encontrava assegurado.

65. Consequentemente, por a Recorrente arcar com os ónus, não os transmitindo é que o valor do imóvel deveria ser o valor de mercado e não como o Tribunal a quo o fez!!! Somente se assim não estivesse expresso (e sempre na lógica da validade do negócio, considerada pelo Tribunal que não se admite) é que se poderia justificar um valor muito inferior ao de mercado.

66. Ademais, ainda que se aceitasse a contrapartida monetária, o que não se concede, e ao contrário do que a sentença recorrida refere na sua motivação, nunca a aqui Recorrente recebeu qualquer montante no momento da celebração do contrato.

67. Explicite-se: efectivamente a escritura de compra e venda do imóvel celebrada, em 2011, entre a Ré e o Autor BB, por intermédio do seu Pai, CC consigna que «(…) pelo preço de SETENTA MIL EUROS, que já recebeu, vende ao representado do Segundo Outorgante(…)» o que, sem uma análise detalhada ao processo poderia aceitar-se como a quitação da Ré relativamente à contrapartida do contrato de compra e venda. Assim, a sentença recorrida, na sua motivação mencionou que “(…) não resulta do contexto da escritura pública qualquer inexatidão, não há qualquer confissão dos compradores nesse sentido e a ré não logrou fazer qualquer prova da falsidade do recebimento dessa quantia, razão por que o facto foi julgado como não provado”. (destaque nosso)

68. Chama-se à colação então o escrito pelo Tribunal a quo, na mesma sentença recorrida quanto ao depoimento do Sr. Eng., Pai do Autor originário quanto ao pagamento do preço «(…) explicitou que quando o prédio foi adquirido à ré, não houve entrega de dinheiro a esta, porque tinha anteriormente feito empréstimos à ré no valor de cerca de 72.000,00 € (…)» (destaque nosso) — Vide página 16, último parágrafo da sua motivação.

69. Ainda que se trate de testemunha – não assumindo a qualidade de parte e, portanto, não passível de confissão nos termos legais – não olvidemos que o Sr. Eng. foi outorgante da escritura de compra e venda. Mais do que os Autores do processo, foi a Testemunha quem esteve presente na celebração da simulada escritura, sendo quem teve CONHECIMENTO IMEDIATO E DIRECTO dos factos! Praticamente nunca poderiam os compradores confessar factos que não presenciaram, empiricamente! Mas quem esteve presente mencionou-o e a sentença expressamente o postulou!

70. Quanto aos pontos x) e xiii) devem os mesmos ser dados como provados em virtude da articulação da prova pericial, bem como do depoimento do Pai do Autor originário, Sr. Eng. CC (gravado sob Ficheiro áudio n.º ……..49, no seio da Audiência Final de 19 de Junho de 2019) que expressamente afirmou que a Recorrente nunca pagou qualquer valor a título de contrapartida do contrato de compra e venda.

ADEMAIS,

71. Saliente-se que não poderia a “Watersucess, S. A.” ter adquirido o imóvel pertencente formalmente ao Autor BB, sem que soubesse, pelo menos, da existência do presente processo judicial e, consequentemente, que a sua propriedade estaria a ser colocada em causa.

72. Neste ponto, clarividente foi a Testemunha CC ao explicitar que a contratualização tinha sido arquitectada quase na sua íntegra pela “agência”, designadamente pela também Testemunha HH, ouvida nos presentes autos em sede de Audiência Final, no dia 19 de Junho de 2019.  Senão atente-se no Ficheiro áudio n.º ………..49, em Audiência datada de 19.06.2019, ao tempo 00h:07min:48segs a 00h:08min:59segs.

73. Ora, essa Testemunha consta do processo desde a entrada da acção, a 14 de Dezembro de 2015, tendo estado presente nas várias datas agendadas para a realização de audiência final. Tendo a compra e venda entre a ora Habilitada, na pessoa do II, e o Autor originário sido realizada por intermédio da Imobiliária da Testemunha HH – como a própria Testemunha admitiu (Ficheiro áudio n.º ........49, 00:03:20) –, a qual esteve inclusivamente presente na data da escritura, era impossível que a mesma, no exercício da sua actividade profissional não soubesse e tivesse informado o primeiro acerca de eventuais ónus incidentes sobre o bem. A própria testemunha refere que o II, representante da Watersucess S.A. é alguém “acostumado” a comprar imóveis provenientes de insolvências e leilões – imóveis, já por si, de algum risco.

74. Nessa medida jamais se pode considerar que, com a compra realizada, a ora Habilitada e Recorrida se encontrava de boa-fé, não tendo qualquer conhecimento acerca do litígio presente que sobre o imóvel sempre incidiu e, consequentemente, da possível não qualidade de proprietário daquele que consigo celebrou negócio. ORA,

75. No presente caso, tendo sido celebrado um contrato de compra e venda quando a real intenção das partes era garantir o cumprimento de um mútuo celebrado, a simulação, além de fraudulenta, será relativa e objectiva, verificando-se ainda ambas as modalidades: trata-se de uma simulação sobre a natureza do negócio, assim como sobre o valor convencionado.

76. Não obstante o negócio jurídico ter obedecido à celebração de uma escritura pública, perante notário, sendo, por isso, o contrato titulado por um documento autêntico, a factualidade e prova constante dos autos (toda a documental concatenada com a prova testemunhal) indicam inequivocamente que a vontade das partes não foi aquela que ficou consignada no documento.

77. Ademais, sempre o fizeram para poder contornar as Instituições de Crédito, em claro detrimento da legislação em vigor e assim permitir à Recorrente o acesso ao crédito – o que nunca conseguiria pelos meios comuns.

78. Ora, tendo os presentes autos uma confissão de dívida da Recorrente que comprova a existência de um mútuo prévio, sendo inequívoca prova testemunhal a mencionar que nunca foi pago preço, que era praxis a realização destes negócios, não para se comprar e vender, mas para o credor salvaguardar o crédito, encontram-se verificadas as circunstâncias exigidas por lei para que o contrato de compra e venda seja declarado nulo, em virtude da simulação intrínseca.

79. Ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que ad substanciam nada se verificasse, o documento que sustenta o negócio jurídico é falso, por conter declarações não coincidentes com a realidade material. Ao contrário do que refere a sentença recorrida, a Recorrente realizou prova – havendo o depoimento do comprador nesse sentido, a única pessoa que o poderia atestar – da falsidade de recebimento da quantia em que foi fixada a contrapartida do contrato de compra e venda!

80. Por isso, é mais que defensável a consideração que existem nos autos provas sólidas que permitam o afastamento e demonstração da falsidade do vertido pelas partes na escritura pública, consagradora da celebração do alegado contrato de compra e venda.

ASSIM,

81. sempre deveriam o contrato de compra e venda, bem como o contrato de promessa de compra e venda e arrendamento, celebrados a 21 de Setembro de 2019, ter sido declarados nulos, por corresponderem a contratos simulados, em virtude da notória divergência das partes na vontade declarada e na sua real vontade, com todos as cominações legais atinentes e, consequentemente, com a processual de ser a Recorrente absolvida do pedido feito pelo Autor de resolução de um contrato que nunca existiu, bem como de pagamento das rendas atinentes.

POR ÚLTIMO,

82. ainda que a Recorrente, no caso de o contrato vir a ser declarado nulo, encontre na própria declaração de nulidade o restituir dos valores ilegitimamente locupletados pelos Autores; a Recorrente invocou o instituto do enriquecimento sem causa para o caso de tal não suceder (o que ainda assim jamais admite!).

83. É que, tendo sido manietada à celebração do contrato de compra e venda, dado o seu estado de debilidade psicológica, o que não fez em consciência, sofreu um prejuízo patrimonial de, pelo menos, oitenta mil euros (diferença entre o valor de mercado da casa em 2011 e o preço pelo qual ela foi efectivamente vendida). O que ainda assim peca deveras por defeito, uma vez que o imóvel foi vendido ao aqui Autor Habilitado por um preço consideravelmente superior – conforme resulta de contrato de compra e venda celebrado entre as partes e constante dos presentes autos.

84. Efectivamente, o Autor originário obteve um incremento patrimonial às totais expensas da Recorrente que, vendo-se sem casa de habitação, viu- se ainda ficar sem o valor justo que o mercado, noutras circunstâncias lhe teria entregue.

85. Veja-se ainda que, neste caso, se encontra verificado o carácter subsidiário da obrigação de restituir. Não encontra a Recorrente, para o empobrecimento que sofreu na sua esfera jurídica, qualquer outro meio de ser ressarcida, pelo que a vantagem tida pelos Recorridos sempre lhe deve ser devolvida.

EM FACE A TUDO QUANTO FICA EXPOSTO,

86. Deve o presente recurso ser julgado procedente e ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, declarando nulos ambos os contratos celebrados entre o Autor BB, ora Recorrido, e a Recorrente, no dia 21 de Setembro de 2011, por simulados, nos termos do artigo 240.º do Código Civil.

87. Atendendo aos elementos juntos aos autos e tendo sido escrutinada a prova produzida nos termos em que o foi, impõe-se decisão diversa, nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

88. Ademais, e ainda ao abrigo do n.º 2 do referido artigo, somente no caso de persistir, em Vossas Excelências, dúvida acerca da real intenção das partes, o que ainda assim não se admite, desde já se requer, mui respeitosamente, que se digne ordenar a seguinte produção de prova:

- notificação do Tribunal da área de residência do Autor originário, BB e aqui Recorrido, cuja residência se encontra identificada nos presentes autos, bem como deste, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados;

- notificação do Tribunal da área de residência da Testemunha CC, residente em …, bem como da Testemunha, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados.

Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores, Em procedência do presente recurso deverá a sentença recorrida ser alterada, no sentido de serem os contratos de compra e venda e contrato de promessa de compra e venda e arrendamento celebrados no dia 21 de Setembro de 2011 declarados nulos, por existência de divergência entre a vontade real e declarada das partes, com o intuito de enganar terceiros, bem como de ser declarada a falsidade do documento autêntico em que o negócio se alicerçou, com todos os respectivos efeitos legais e consequentemente ser a Recorrente absolvida do pedido,

Com o que Vossas Excelências farão, como habitualmente, devida aplicação da Lei e realizarão a sã e costumeira JUSTIÇA!

REQUERIMENTO PROBATÓRIO:

Ao abrigo do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, desde já se requer, mui respeitosamente, que Vossas Excelências se dignem ordenar a seguinte produção de prova:

- notificação do Tribunal da área de residência do Autor originário, BB e aqui Recorrido, cuja residência se encontra identificada nos presentes autos, bem como deste, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados;

- notificação do Tribunal da área de residência da Testemunha CC, residente em …, bem como da Testemunha, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados;


8. A Autora / Habilitada Watersucess, S.A, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.


9. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso foi interposto por AA (“Recorrente”) da douta Sentença datada de 27 de dezembro de 2019, que julgou a ação totalmente procedente e, em consequência, (i) declarou a resolução do contrato de arrendamento, celebrado com a ré em 21 de setembro de 2011, correspondente a uma habitação, sita na ……, concelho ……., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº 35 …… e descrito na Conservatória do Registo Predial …….. com o nº 26……, da freguesia …….; (ii) condenou a ré a restituir ao autor o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação; (iii) condenou a ré a pagar ao autor as rendas vencidas e não pagas, desde setembro de 2011 a dezembro de 2015, no valor de 20.400,00€ e ainda a quantia de 400€ por cada mês desde a instauração da ação até à entrega efetiva do locado, sendo aquela quantia acrescida de juros moratórios, à taxa legal das operações civis desde a citação até efetivo pagamento e relativamente às demais prestações desde a data do seu vencimento.

2. Tendo ainda julgado o pedido reconvencional totalmente improcedente, ou seja, julgou improcedente as exceções invocadas pela Ré.

3. Em sede de recurso a Recorrente alega, em suma, que a decisão proferida deve ser revogada, uma vez que – sendo aqui que assenta a tese da Recorrente – os negócios celebrados (contrato de compra e venda, contrato promessa de compra e venda e arrendamento celebrados em 21 de Setembro de 2011, devem ser declarados nulos por simulação, tendo em conta que a existência de divergência entre a vontade real e a declarada pelas partes, com o intuito de enganar terceiros.

4. O recurso não merece – com o devido respeito – o menor provimento.

5. Com efeito, a decisão do Mmo. Juiz a quo – aqui posta em crise – é inteiramente acertada e bem fundada, como se passa a demonstrar.

6. A Recorrente não se conformando com a douta Sentença proferida, vem, por um lado, impugnar a matéria de factos considerando que as respostas dadas aos factos não provados III), IV) V), VI), VII), VIII), IX), XI), XIII), XIV), XV), XVI), XVII), XVIII, XIX), XX), XXI), XXII),XXIII), XXVI) e XXVII); i), iii), ix), xv), xvi), xvii) e xxvi) não foram as corretas, por outro lado, já no que respeita à matéria de Direito alega a simulação do contrato promessa de compra e venda e de arrendamento datado de 21/09/2011 e ainda o enriquecimento sem causa do autor originário, considerando que se encontram preenchidos os requisitos dessas figuras jurídicas.

7. As questões que a Recorrente coloca à apreciação deste Venerando Tribunal – tendo por base a limitação do presente recurso – são as exceções invocadas pela Ré (nulidade por simulação, por violação dos bons costumes e o enriquecimento sem causa por parte do Autor originário), uma vez que, no que respeita ao arrendamento e ao peticionado despejo dúvidas não existem quanto ao não pagamento de qualquer renda devida por tal contrato de arrendamento, desde 11 setembro de 2011, pelo que os requisitos para a resolução contratual do arrendamento verificavam-se e, por conseguinte, verifica-se o direito ao despejo, tal como foi julgado na douta Sentença proferida.

8. A Autora habilitada nos autos, adquiriu o imóvel objeto destes autos, tendo pago o preço acordado, tendo na sequência da compra efetuada instaurado o incidente de habilitação do adquirente/cessionário, o qual foi julgado procedente, sem qualquer oposição da então Ré, por sentença transitada em julgado.

9. Ouvidos os depoimentos das testemunhas FF e de CC, nem com muita boa vontade se retira aquilo que a Recorrente pretende retirar de tais depoimentos.

10. Quanto à testemunha FF diga-se, desde logo, que a mesma apenas faz observações genéricas com base na sua experiência pessoal, mas sem qualquer conhecimento direto da matéria dos autos. Estamos perante um depoimento indireto que não deve – tal como decidido em primeira instância – ser valorado.

11. A testemunha nada sabe, pois não esteve lá, conforme a própria refere limitou-se a apresentar a aqui Recorrente à GG.

12. O depoimento prestado pela testemunha CC é prestado com base em conhecimento direto dos factos uma vez que foi quem esteve presente na celebração da escritura pública e como resulta claríssimo do depoimento prestado existiu uma total correspondência entre o que se pretendia e o que foi realizado.

13. Não há qualquer simulação.

14. A Ré Recorrente recorre ao Autor originário já depois de ter sido aconselhada pela testemunha FF e pela GG, tendo recorrido entre 14 de fevereiro de 2011 (data da confissão de dívida) e 21 de setembro de 2011(da escritura) mais de 6 meses, pelo que nem podemos dizer que a Ré estaria de tal modo pressionada que nem conseguiu alcançar aquilo que estava a fazer.

15. A Ré teve seis messes para tratar da sua vida e pensar no que fazer, bem sabendo o que estava a celebrar até porque trabalha no ramo imobiliário e como tal a terminologia e a lógica destes negócios não lhe são de todo estranhos.

16. A Recorrente invocou a simulação da escritura pública de compra e venda celebrada com o Autor originário, alegando que o negócio pretendido celebrar entre as partes consistia apenas na formalização de um mútuo - simulação relativa.

17. Não se verifica no caso dos autos nenhum dos requisitos da simulação: i) divergência intencional entre a vontade real e vontade declarada; (ii) acordo entre declarante e declaratário; (iii) – intenção, intuito ou propósito de enganar ou prejudicar terceiros.

18. Conforme resulta claro da prova produzida conforme acima de referiu não resulta nem sequer qualquer indício de as partes terem pretendido celebrar qualquer negócio distinto, bem pelo contrário, as partes quiseram celebrar a compra e venda, quiseram celebrar o arrendamento e quiseram permitir que a Ré tivesse a possibilidade de readquirir o imóvel, assim tivesse refeito a sua vida financeira.

19. Não tendo existido qualquer divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, não pode ter existido acordo entre o declarante e o declaratário.

20. Sendo certo que, não houve qualquer intenção de enganar terceiros, nem nenhum terceiro foi enganado.

21. Bem andou a Sentença recorrida ao julgar improcedente a exceção invocada, uma vez que os requisitos para que a simulação relativa se verificasse não se encontram preenchidos.

22. Sem prejuízo do já mencionado quanto à impugnação da matéria de facto e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, é ainda de referir que se tivesse havido um plano do Autor para se apropriar do imóvel, não teria sido dado a possibilidade da Ré aqui Recorrente recomprar o imóvel.

23. Sendo certo que, a Ré/Recorrente não logrou fazer prova de qualquer dos factos alegados.

24. No caso, aliás, não se afigura poder concluir-se por ter qualquer “aproveitamento” por parte do autor do originário, uma vez que foi permitido que a Ré voltasse a adquirir o imóvel, num período temporal razoável e sem qualquer capitalização excessiva, bem pelo contrário.

25. No que respeita ao alegado enriquecimento sem causa por parte do autor originário, não foi provado o âmbito e extensão de um eventual enriquecimento, nem se afigura que o negócio jurídico realizado entre as partes tenha originado um enriquecimento sem causa.

26. Como ficou demonstrado à saciedade o negócio que as partes celebraram e pretenderam celebrar não levou a qualquer enriquecimento sem causa do Autor.

27. Por todo o exposto, entende a Recorrida que a douta Sentença recorrida não violou nenhum preceito legal, seja de natureza substantiva ou adjetiva, Sendo, pelo contrário, inteiramente justa e acertada, devendo, por isso, ser confirmada.

QUANTO AO REQUERIMENTO PROBATÓRIO

A Recorrente veio requerer que a o Tribunal notificasse os tribunais da área do Autor originário, BB e da Testemunha CC, para vir aos presentes autos informar se detém outras ações pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objeto de contratos por si celebrados.

Ora tais diligências em nada contribuem para o desfecho da presente ação e são absolutamente extemporâneas, uma vez que a prova deverá ser apresentada com os articulados, sendo que no caso nada impedia que a então Ré o tivesse feito em tempo útil. Agora servirá apenas para atrasar a tramitação processual.

Por outro lado, a prova que foi produzida foi clara não existindo dúvidas sobre a mesma, nem sobre a credibilidade das testemunhas (o que nunca foi levantado). Face ao exposto, deverão, o que desde já, se requer, V. Exas. indeferir por falta de fundamento e por extemporaneidade o requerimento probatório apresentado pela Recorrente.


10. O Tribunal da Relação ……. julgou o recurso totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida.


11. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de revista.


12. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A – DA AUSÊNCIA DE DUPLA CONFORME

1. O presente capítulo integra-se na problemática da admissibilidade do presente Recurso. Servindo-nos, proficuamente, da lei processual civil, veja-se o que resulta do artigo 671.º:

1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

3 - Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Ora,

2. no que aqui nos interessa, importa reter que, in casu, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação apresenta uma fundamentação ESSENCIALMENTE diferente daquela que resultava do Tribunal de primeira instância.

3. Se dúvidas houvessem, veja-se o que resulta, cristalinamente, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação … . Nunca, em momento algum da Sentença da primeira instância se abordou a alienação em garantia o que foi aflorado pelo douto Tribunal da Relação …. .

4. Ao mesmo tempo, nos presentes autos, estão preenchidos os requisitos da alçada e da sucumbência.

5. Destarte, tendo isso em consideração, e não se conformando a Recorrente com a decisão proferida, requer-se desde já a V. Exa. a admissão do presente Recurso.

Ad cautelam, mesmo que assim não fosse,

6. nos termos do artigo 671. º n.º 3 do Código de Processo Civil, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

7. Por sua vez, o artigo 672.º n.º 1 do mesmo diploma legal, prescreve que:

1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

8. Verifica-se, desta forma, que o Código de Processo Civil consagra, quanto à admissibilidade de Recurso, um regime que o faz depender, cumulativamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência.

9. nos presentes autos, como supra se aduziu, estão preenchidos os dois mencionados requisitos, ou seja, o processo tem valor superior à alçada da Relação e a sucumbência da Recorrente foi total.

Sucede que,

10. a incerteza da interpretação legislativa e consequentemente jurisprudencial que a decisão proferida nos presentes autos acarreta, preenche, por si só, o pressuposto de admissibilidade da Revista como recurso ordinário ou subsidiariamente como revista excepcional, nos termos previstos na alínea a) do n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

11. Uma tal decisão judicial cria no conhecimento jurídico uma profunda incerteza sobre a figura da alienação em garantia e sobre os seus limites.

Deste modo,

12. é manifesto que a admissão do presente recurso de revista é absolutamente essencial para que seja proferida decisão uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é absolutamente necessária para uma melhor aplicação do direito, pois está em causa, averiguar em que medida a alienação em garantia é permitida e quais as suas consequências.

13. Recorrendo às palavras de Beatriz Queirós Ribeiro, a propósito da referida figura “o Direito, enquanto facto social, não poderá deixar de ter em consideração as aspirações dos sujeitos e as práticas a que estes comumente recorrem em vista da satisfação das suas necessidades. Uma vez que o recurso à alienação fiduciária em garantia é, indiscutivelmente, cada vez mais frequente no comércio jurídico e na medida em que estão reunidas as condições para tal de iure constituto, urge a sua consagração normativa”.

14. E não existe qualquer decisão deste Supremo Tribunal que já se tenha pronunciado ou decidido sobre esta questão.

15. Além disso, se assim não se entender, ou seja, que existe alguma decisão nesse sentido, pelos mesmos motivos, revela-se desde logo que estão em causa interesses de particular relevância social, pela necessidade de conhecimento, de quem recorre aos tribunais (direito esse constitucionalmente consagrado) saber, de antemão, qual o entendimento dos Tribunais sobre o âmbito da figura daAlienação em Garantia.

16. Estão assim preenchidos todos os requisitos da admissibilidade do presente recurso de revista, como recurso ordinário, nos termos da aplicação conjunta dos artigos 671.º n.º 3 na parte em que remete para o artigo 672.º. n.º 1, als. a) e b), ambas as normas do CPC.

17. Todavia, caso se não entenda que o recurso não pode ser admitido como revista, enquanto recurso comum deve o presente recurso de revista ser admitido como recurso de revista excecional.

Pelo exposto, deve ser admitido o presente   recurso  de    revista,   nos termos que se deixam expostos.

OBJECTO DO RECURSO:

18. O presente Recurso de Revista consubstancia o mais profundo inconformismo da Recorrente face ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ……, entendendo que não realizou boa aplicação da Justiça pois encerrando um conjunto de destacáveis erros de interpretação e da aplicação das normas legais, bem como erros de determinação das normas aplicáveis.

Por conseguinte,

19. o presente Recurso versa matéria de Direito, nos termos que serão infra melhor consignados, não merecendo outra apreciação que não seja a sua revogação, com a consequente procedência do presente Recurso.

Nesta óptica,

20. com relevância para a boa decisão da causa, resultaram PROVADOS os seguintes factos:

01. Por escritura pública outorgada em 20-09-2011, realizada no Cartório da Notária DD, a ré AA declarou vender e BB e este declarou comprar, pelo preço de 70.000,00€, que a ré declarou que “já recebeu”, o prédio urbano destinado à habitação, com varanda e lugar de garagem na cave, designado pela letra “X”, correspondente ao segundo andar esquerdo poente, de tipologia T3, com entrada pela ……….., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 35…..,,,, freguesia ……, concelho , ………. e descrita e descrito na Conservatória do Registo Predial ,……… sob o número 26….……., conforme doc. 3, junto com a petição inicial e cujo teor se considera reproduzido.

02. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que, sobre a referida fração, incidem três penhoras, registadas uma a favor do Finibanco S.A. (), outra a favor da Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Credito S.A. () e outra a favor da Fazenda Nacional () cujo pagamento já se encontra assegurado, conforme declarou a Primeira Outorgante, sob a sua inteira responsabilidade”.

03. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que sobre a referida fração autónoma, incide uma hipoteca registada a favor de BB (), cujo pagamento já se encontra assegurado, renunciando, desde já, o Segundo Outorgante, na qualidade em que outorga, à garantia, autorizando o seu cancelamento”.

04. Na mesma data e após a outorga da escritura pública referida em 01), BB e a ré AA celebraram o contrato cuja foi junta sob doc. 4 com a petição e cujo teor se considera reproduzido, designado de “contrato promessa de compra e venda e arrendamento”, do mesmo constando, designadamente que:

04.1. BB promete vender a AA e esta promete comprar, o prédio id. em 01), sendo a escritura pública definitiva outorgada no prazo de 180 dias da assinatura do contrato promessa (21-03-2012);

04.2. BB dá de arrendamento a AA o mesmo prédio, pelo período entre a assinatura do contrato promessa (21-09-2011) e até à data da escritura pública de compra e venda (cláusula 6.ª), sendo o local arrendado destinado exclusivamente à habitação da ré pelo referido período de 180 dias, com início em 21-09-2011 e termo a 21-03- 2012, mediante o pagamento da renda mensal no valor de 400,00€ vencendo-se a primeira no primeiro dia útil do calendário gregoriano após a assinatura do contrato de arrendamento (cláusula 7.ª)

05. BB interpelou a ré para a realização da escritura pública de compra e venda), conforme doc. 5, 6, 7 e 8 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera reproduzido.

06. O contrato referido em 04.2 manteve-se após o período de 180 dias inicialmente acordado, sem que, contudo, a ré tenha pago qualquer renda, quer durante o período inicial estabelecido para a duração do contrato de arrendamento quer posteriormente.

07. A ré continua a ocupar, usar e fruir da habitação do prédio id. em 01).

08. À data da instauração da ação, encontravam-se por pagar as rendas desde a data do início do contrato id. em 04), no valor total de 20.400,00€.

09. Em 14-02-2011, a ré AA assinou o doc. 3 junto com a contestação, designado de “confissão e pagamento prestacional de dívida”, celebrado entre a ré, o autor originário BB e o pai deste, CC, pelo qual a ré declarou que “confessa-se devedora ao Segundo Outorgante da quantia de 52.000,00€”, que “tal quantia será paga em 11 prestações no valor de 1.000,00€ cada, vencendo-se a primeira a partir do próximo dia 15 de março e as restantes 11 de igual valor, em igual dia dos meses subsequentes.

Quanto ao remanescente, no valor de 41.000,00€ vencer-se-á e será paga na totalidade ao 12.º mês (15 de fevereiro de 2012)”, que “o referido capital ficam a vencer-se juros” e que “o presente contrato feito em duplicado, por estar conforme à vontade dos Outorgantes vai por ambos assinado”.

10. As penhoras (ónus) identificadas em 02) dos factos provados somavam a quantia de 21.539,00€.

11. A ré AA compareceu em 30-04-2013, pelas 14:00 hr., no Cartório Notarial ……, do Lic. EE, “para realização de escritura de compra e venda, marcada para aquele dia e hora, em que teria como vendedor BB”, a qual “não se realizou por falta de comparência da parte vendedora, BB, à hora marcada”, conforme certificado junto sob doc. 19 com a contestação, cujo teor se considera reproduzido.

12. À data da escritura pública referida em 01), o prédio aí declarado vender tinha o valor de mercado de 158.000,00€.

Neste conspecto,

21. a Recorrente não se conforma com o Acórdão proferido.

Na verdade,

22. mesmo mantendo-se as respostas à matéria de facto enunciadas pela primeira instância, a correcta consideração dos elementos de facto e de Direito deveria ter levado o Tribunal da Relação a alcançar, in casu, inexoravelmente, conclusão diversa.

Aqui chegados,

23. e em jeito sinóptico, alinha-se desde já o âmbito do presente Recurso, enunciando, por ordem lógica, os temas que agora se colocam à superior consideração do Supremo Tribunal de Justiça.

3. DO DIREITO:

1.1.DA SIMULAÇÃO DO CONTRATO A QUE SE REFERE O FACTO PROVADO EM 01):

1.2. NULIDADE POR VIOLAÇÃO DOS BONS COSTUMES:

1.3. QUANTO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DO AUTOR ORIGINÁRIO:

01 - DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA

24. O douto Acórdão do Tribunal da Relação aqui em sindicância não se pronunciou sobre a impugnação da matéria de facto.

25. Não se pronunciou, mas deveria tê-lo feito.

26. Não o tendo feito, cometeu uma nulidade de Sentença/Acórdão, o que hic et nunc se invoca para todos os efeitos legais.

02 – DA PREJUDICADA PRODUÇÃO DE NOVOS MEIOS DE PROVA NOS TERMOS DO ART. 662.º N.º 2 DO CPC – nulidade por omissão de pronúncia

27. Entendeu o Acórdão que “Tudo assim escrutinado prejudicada fica a requerida produção de novos meios de prova nos termos do disposto no artigo 662º, nº 2 do CPC.”

28. A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa, comunicada ao despacho/acórdão proferido constitui uma Nulidade de Sentença/Acórdão.

29. Em matéria de prova, mesmo junto da Relação, seja pelo despoletar da inquisitoriedade seja com recurso à adequação formal e ao dever de gestão processual, sempre o superior interesse na descoberta da verdade e na justa decisão da causa se conseguem alcançar, não podendo o Mmo. Julgador ficar na mera passividade da interpretação literal da norma diretamente aplicável, tendo de ir mais longe e atender aos princípios e interesses que regem o processo para, abraçando o espírito do sistema, alcançar os superiores interesses que o processo serve.

Pelos fundamentos expostos,

30. deveriam os Senhores Juízes do Tribunal da Relação …… dado cumprimento ao requerido pela Recorrente no que concerne à produção de meios de prova.

31. Aliás, dúvidas não existem de que a produção de meios de prova e a impugnação da matéria de facto seriam essenciais para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio.

32. Impedir esse acto, constitui uma grave violação do direito processual civil, porquanto, dessa forma, fica a Recorrente sem a possibilidade de impugnar a matéria de facto, o que deverá merecer a censura do Digníssimo STJ.

Destarte,

33. pelas razões acima aduzidas, deve a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia ser julgada procedente,

34. o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

3. DO DIREITO:

1.1. DA SIMULAÇÃO DO CONTRATO A QUE SE REFERE O FACTO PROVADO EM 01):

35. Segundo o Acórdão aqui colocado em crise:

“Da análise aqui extraída, se conclui que os negócios celebrados correspondem perfeitamente à vontade real das partes, inexistindo qualquer locupletamento sem causa.”

36. Jamais pode a Recorrente concordar com a conclusão transcrita, atenta não só a factualidade trazida aqui ao processo, como ainda tendo em consideração a prova produzida nos presentes autos. Isto porquanto, nenhuma das partes patenteou vontade de celebração de um negócio jurídico de compra e venda, o que ficou demonstrado, da parte do Autor, com o não recebimento do preço.

37. Considerou o Tribunal de que não se verificaram, além dos fundamentos de facto, também os de direito – posição que se refuta e não se aceita.

38. Analisados que foram os fundamentos de facto pelo Tribunal da Relação, debrucemo-nos agora nas ilações de Direito.

Ora,

39. a simulação trata-se de uma divergência intencional entre a vontade (o que se quer) e a declaração (o que se diz), decorrente de um acordo entre declarante e declaratório com o intuito de enganar terceiros.

40. Assim sendo, para que se possa considerar um determinado negócio como simulado sempre se terão que verificar os seguintes requisitos:

- a existência ou aparência de um negócio cuja nulidade se pretende que seja declarada;

- a intencionalidade da divergência entre a vontade real e a vontade declarada, ou seja, a consciência de que se emite uma declaração que não corresponde à vontade;

- acordo entre declarante e declaratário («pactum simulationis»);

- intuito de enganar terceiros.

41. Neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão datado de 03 de Dezembro de 2015, concluindo que “Estando comprovada a existência de uma divergência intencional, enganosa e bilateral entre a vontade real e a vontade declarada e a interposição fictícia da ré no negócio que deu origem a uma falsidade ideológica ou intelectual na escritura, é o suficiente para  se afirmar que ocorreu uma simulação subjectiva        e fraudulenta.” (destaque nosso).

42. Podendo assumir diferentes modalidades consoante o intuito e as partes envolvidas, a simulação sempre será fraudulenta se existir intuito de prejudicar terceiros ou de contornar qualquer norma legal. A título de exemplo, será fraudulenta a compra e venda que pretender dissimular uma doação, para prejudicar herdeiros legitimários (caso de que se ocupou o STJ no Acórdão transcrito).

43. Ademais, a simulação será absoluta se as partes fingirem celebrar um negócio jurídico, quando, em bom rigor, não pretendiam celebrar absolutamente nenhum outro; pelo que o negócio jurídico será nulo.

44. Já se tratará de uma simulação relativa, por sua vez, se as partes, fingindo celebrar um certo negócio jurídico, pretenderem, na realidade, celebrar um outro, ou então outro com conteúdo diverso. Esta segunda modalidade coloca algumas considerações de maior relevo, desde logo porquanto é necessário conhecer qual o tratamento a dar ao negócio dissimulado ou real que fica descoberto com a nulidade do negócio simulado. Estatui o Código Civil no n.º 2 do seu artigo 241.º que este segundo somente será válido caso os requisitos formais exigidos pelo contrato, em especial.

45. A verificação da existência de um negócio simulado sempre terá como consequência a nulidade do negócio simulado, nos termos do artigo 240.º do Código Civil, podendo qualquer interessado invocá-la, a todo o tempo, e o Tribunal conhecê-la oficiosamente – conforme artigo 286.º e artigo 242.º do Código Civil.

46. No caso da Simulação Relativa, e dado a existência de um outro negócio, haverá que conhecer se a simulação se pauta por ser subjectiva, quando há um conluio entre os dois sujeitos reais da operação e o interposto, ou objectiva. Neste caso, poder-se-á verificar uma simulação sobre a natureza do negócio, se o negócio ostensivo ou simulado resulta de uma alteração do tipo negocial correspondente ao negócio dissimulado e/ou uma simulação do valor que incide sobre o quantum de prestações estipulado entre as partes.

No presente caso,

47. tendo sido celebrado um contrato de compra e venda quando a real intenção das partes era garantir o cumprimento de um mútuo celebrado, a simulação, além de fraudulenta, será relativa e objectiva, verificando-se ainda ambas as modalidades: trata-se de uma simulação sobre a natureza do negócio, assim como sobre o valor convencionado.

48. Ora, nos termos do artigo 242.º do Código Civil, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta e, pese embora, se deva destacar a ressalva do artigo 394.º n.º 2 do Código Civil, a verdade é que a doutrina tem vindo a entender que é possível provar a simulação por outros meios, concatenados com essa prova testemunhal. Neste sentido se encaminhou a Relação de Lisboa, em Acórdão datado de 15 de Dezembro de 2016:

«O negócio simulado é sempre nulo, nos termos do art. 240º, nº 2 do CC, independentemente de se tratar de simulação absoluta ou relativa.

- Predominante, na doutrina e na jurisprudência, há o entendimento de que o art. 394.°, n.º 2, do Código Civil não impede os simuladores de provarem o acordo simulatório e o negócio dissimulado com base num princípio de prova escrita, contextualizada ou complementada por prova testemunhal ou por presunção judicial.»

49. Descendo ao caso concreto é de salientar que, não obstante o negócio jurídico ter obedecido à celebração de uma escritura pública, perante Notário, sendo, por isso, o contrato titulado por um documento autêntico, a factualidade e prova constante dos autos (toda a documental concatenada com a prova testemunhal) indicam inequivocamente que a vontade das partes não foi aquela que ficou consignada no documento.

Ademais,

50. sempre o fizeram para poder contornar as Instituições de Crédito, em claro detrimento da legislação em vigor e assim permitir à Recorrente o acesso ao crédito – o que nunca conseguiria pelos meios comuns.

51. Neste ponto, sempre será de realizar a seguinte ressalva: de facto, conforme expressamente prevê o artigo 371.º do Código Civil, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. Por outro lado, a força probatória dos documentos autênticos, nos termos do artigo 372.º do Código Civil, só pode ser ilidida com base na sua falsidade, sendo o documento falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi.

52. Ora, ainda que a prova testemunhal não seja admitida para contrariar o postulado em documentoque faça prova plena – o que sucede no primeirocaso – a jurisprudência, alicerçada na doutrina maioritária, tem entendido que nada impede que se prove essa falsidade (ou, no caso da simulação, o acordo simulatório) com base em princípio de prova escrita, coadunada com outras provas, entre as quais a prova testemunhal.

53. Além do Acórdão transcrito supra, atente-se ainda em entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, no seu libelo de 07 de Fevereiro de 2017:

«6 - O n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil veda a prova testemunhal para demonstração de convenções que contrariem ou ampliem o conteúdo de documentos autênticos ou particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, independentemente da data dessas convenções.

7 - O n.º 2 do mesmo artigo 394.º manda aplicar essa proibição de meio de prova ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocados pelos simuladores.

8 - Muito embora tal tenha sido proposto nos trabalhos preparatórios do Código Civil, a letra da redacção final do preceito não autoriza, ainda que por via indirecta, o recurso a prova testemunhal e consequentemente (artigo 351.º CC) a prova por presunção judicial.

9- Porém, a doutrina e a jurisprudência, inspiradas nos argumentos do Autor da 1.ª proposta (por sua vez seguindo os coevos Códigos Civis Italiano e Francês) e receando a rigidez do preceito, admitem que se utilize prova testemunhal desde que, a montante, surja um princípio (ou começo) de prova que crie uma convicção que as testemunhas podem sedimentar.

10- Essa tese pode aceitar-se com três condições: o princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade; o documento não ser usado como facto-base de presunção judicial; reconhecer-se que se trata de uma laboração da doutrina e da jurisprudência oportunamente arredada do ‘jure constituto’ e, em consequência, a ser tida em consonância com os artigos 9.º e 10.º do Código Civil.

11- A prova testemunhal será sempre, nestes casos, complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de ‘fumus bonni juris’.

12- São elementos da simulação a divergência entre a vontade real e a vontade declarada; o propósito de enganar (simulação inocente) ou prejudicar (simulação fraudulenta) terceiros.»

54. Assim, tendo os presentes autos uma confissão de dívida da Recorrente que comprova a existência de um mútuo prévio, sendo inequívoca prova testemunhal a mencionar que nunca foi pago preço, que era praxis a realização destes negócios, não para se comprar e vender, mas para o credor salvaguardar o crédito, encontram-se verificadas as circunstâncias exigidas por lei para que o contrato de compra e venda seja declarado nulo, em virtude da simulação intrínseca.

55. Ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que ad substanciam nada se verificasse, o documento que sustenta o negócio jurídico é falso, por conter declarações não coincidentes com a realidade material.

56. Ao contrário do que refere a sentença da primeira instância, a Recorrente realizou prova – havendo o depoimento do comprador nesse sentido, a única pessoa que o poderia atestar – da falsidade de recebimento da quantia em que foi fixada a contrapartida do contrato de compra e venda.

57. Mas mais: é de destacar o proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão datado de 25 de Outubro de 2012:

I. A força probatória material dos documentos autênticos cinge-se aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, não abrangendo a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade ou oficial público, já que esse circunstancialismo não é percepcionado por aqueles.

II. Tal força probatória não se estende, pois, à veracidade ou verosimilhança, ou seja a correspondência com a realidade dos factos constantes da declaração.

III. O conteúdo e interpretação da declaração emitida pelo vendedor, quanto ao recebimento do preço, através de escritura pública, é passível de impugnação e demonstração por qualquer meio de prova, designadamente testemunhal, podendo ser impugnada nos termos gerais, sem necessidade de arguição da falsidade do documento, desde que haja um princípio de prova escrita relacionada intrinsecamente com esse facto. (destaques nossos).

58. Por isso, é mais que defensável a consideração que existem nos autos provas sólidas que permitam o afastamento e demonstração da falsidade do vertido pelas partes na escritura pública, consagradora da celebração do alegado contrato de compra e venda. Neste sentido, e orientador, é bastante elucidativo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09-01-2018, que o próprio Tribunal a quo transcreve e que, novamente aqui se deixa:

«I– Um documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art. 371º, nº 1, 1ª parte, do C.Civ.).

II - Uma escritura pública de compra e venda pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art. 369º, nºs 1 e 2 do CCiv) e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora (art. 371º, nº 1 do CCiv.).

III - Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art. 371º, nº 1, 2ª parte, do CCiv.).

IV - Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.

V - Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

VI - Se na realidade não faz a mesma prova plena do pagamento do preço à vendedora/recorrente, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já haver recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, beneficia a autora, e que o artigo 352º do CCiv. qualifica como confissão.

VII - Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2 do CCiv.

VIII - Lembre-se que o nº 2 do artº 358º do CCiv. dispõe que “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.

IX - Em resultado dessa força probatória plena, o facto confessado ter-se-ia, em princípio, de considerar como provado, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - artº 393º, nº 2 - e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - artº 351º, nº 1, do CCiv), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração “confessória” (artºs 372º, nº 1 e 359º do CCiv.).

X - A jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, tem entendido, maioritariamente, que, fora dos casos acima referidos, quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço.

XI - Na verdade, se o facto a provar está já tornado verosímil por um começo de prova por escrito, a prova testemunhal é de admitir, pois não oferece os perigos que teria se desacompanhada de tal começo de prova: em tal caso, a convicção do tribunal acha-se já formada parcialmente com base num documento, não sendo a prova testemunhal o único meio de prova do facto.

XII - - Tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, que se encontra fixada no art. 376.°, n.°1, do CCiv, ao estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.»

Em face ao dito,

59. deve o contrato de compra e venda celebrado entre as partes, bem como o contrato de promessa de compra venda e arrendamento ser declarado nulo, nos termos e para os efeitos do artigo 289.º do Código Civil.

60. Perante a explicação enunciada em sede de Contestação, detinham as instâncias a prova ou até a presunção evidente de que o negócio seria nulo.

1.2. NULIDADE POR VIOLAÇÃO DOS BONS COSTUMES:

61. Quanto à nulidade do negócio de compra e venda celebrado por escritura pública de 20-09-2011 por violação dos bons costumes conclui o Tribunal a quo pela improcedência deste argumento.

62. Perante a matéria aqui trazida à colação, obviamente que o negócio em causa violaria os bons costumes, sendo contrário à lei.

63. Nos termos do disposto no art.º 281.º, do Código Civil, “é nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”, estatuindo ainda o art.º 282.º, que se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.

64. Esta referência traduz uma forte aproximação do jurídico ao social, ou seja, o legislador busca os padrões sociais vigentes em cada momento como parâmetros delimitadores do exercício do direito, ficando ao critério do aplicador utilizar, em cada momento, os costumes sociais como baliza para o exercício do direito.

65. A Recorrente, na primeira instância, invocou a sua inexperiência, a sua fragilidade emocional e económica e o aproveitamento que o autor originário quiseram fazer para, desse modo, usando um “plano”, “apropriar-se” do imóvel da Ré, o que não deve ser ignorado por nenhum Tribunal.

66. Nessa medida, deveria o pedido formulado pelo Recorrido soçobrar.

1.2. QUANTO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DO AUTOR ORIGINÁRIO:

67. Quanto ao enriquecimento sem causa por parte do autor originário, adquirente na escritura de 21 de Setembro de 2011 entendeu a primeira instância que a Recorrente, no seio da sua defesa, não alegou, de forma concreta, a causa justificativa e portanto, sendo este um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artigo 473.º do Código Civil, o instituto não será de aplicar na presente situação concreta.

68. O Tribunal da Relação …, no caso subjudice, estatuiu o seguinte:

“Em consonância, se afasta a ocorrência de enriquecimento sem causa, o qual depende do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: (i) que alguém obtenha um enriquecimento; (ii) que o enriquecimento contra o qual se reage não tenha causa justificativa; (iii) que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem, aquele que requer a restituição. (vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 3ª edição revista e actualizada, pág. 427 e ss.).

Da análise aqui extraída, se conclui que os negócios celebrados correspondem perfeitamente à vontade real das partes, inexistindo qualquer locupletamento sem causa.”

Sobre esta matéria, apraz suscitar o seguinte:

69. Estabelece o artigo 473.º do Código Civil que:

«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»

70. O credor da obrigação de restituir sempre será aquele à custa de quem o enriquecimento de se deu; o devedor aquele que injustamente se locupletou. Assim o enriquecimento injusto tanto pode dar lugar à acção de restituição ou obrigação de restituir, quando o enriquecimento se tenha já verificado, como à excepção do enriquecimento sem causa, para evitar que ele se verifique.

71. Conforme ensina ANTUNES VARELA, a obrigação de restituir impõe-se, portanto, pelo facto de nem sempre a causa formal de certas situações constituir justificação bastante para todas as modificações substanciais que elas se encontram adstritas. Pelo que a obrigação de restituir e a inerente pretensão a essa restituição constituem uma compensação, concedida por lei, para as situações que embora formalmente conforme aos seus preceitos, conduzem a resultados injustos.

72. Desse modo, as situações de enriquecimento sem causa provêm, muitas das vezes, de um negócio jurídico, em regra celebrado entre o empobrecido e o que se enriquece. Pelo que a deslocação patrimonial sempre será todo o acto por virtude do qual se aumenta o património de alguém à custa de outrem14, seja qual for a forma por que o aumento opera.

73. Assim, serão requisitos da obrigação de restituir:

— Que haja um enriquecimento de alguém;

— Que o enriquecimento careça de causa justificativa;

— Que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.

74. Requer maior cautela o tratamento do segundo requisito: é necessário que o enriquecimento se tenha dado sem causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque entretanto a haja perdido. De facto, nos casos em que o negócio tem carácter negocial, como o presente contrato de compra e venda sobre o qual nos debruçamos nos presentes autos, a causa consistirá no fim típico do negócio e que se integra. Quando esse fim não existe, inevitavelmente também não existirá a causa.

75. No caso, ainda que a Recorrente, no caso de o contrato vir a ser declarado nulo, encontre na própria declaração de nulidade o restituir dos valores ilegitimamente locupletados pelos Autores; a Recorrente invocou o instituto do enriquecimento sem causa para o caso de tal não suceder (o que ainda assim jamais admite!). É que, tendo sido manietada à celebração do contrato de compra e venda, dado o seu estado de debilidade psicológica, o que não fez em consciência, sofreu um prejuízo patrimonial de, pelo menos, oitenta mil euros (diferença entre o valor de mercado da casa em 2011 e o preço pelo qual ela foi efectivamente vendida).

76. O que ainda assim peca deveras por defeito, uma vez que o imóvel foi vendido ao aqui Autor Habilitado por um preço consideravelmente superior – conforme resulta de contrato de compra e venda celebrado entre as partes e constante dos presentes autos.

77. Efectivamente, o Autor originário obteve um incremento patrimonial às totais expensas da Recorrente que, vendo-se sem casa de habitação, viu-se ainda ficar sem o valor justo que o mercado, noutras circunstâncias lhe teria entregue.

78. Veja-se ainda que, neste caso, se encontra verificado o carácter subsidiário da obrigação de restituir.

79. Não encontra a Recorrente, para o empobrecimento que sofreu na sua esfera jurídica, qualquer outro meio de ser ressarcida, pelo que a vantagem tida pelos Recorridos sempre lhe deve ser devolvida.

80. Neste conspecto, atente-se no entendimento proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 11 de Outubro de 20161:

«I - A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos (artigos 473.º, n.º 1, e 474.º, ambos do Código Civil), tornando-se necessário que:

a) Haja um enriquecimento;

b) O enriquecimento careça de causa justificativa;

c) O enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;

d) A lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

II – A 1ª das situações previstas no nº 2 do artº 473º do C.Civil é a da restituição daquilo que for indevidamente recebido (“condictio indebiti”).

III - No que diz respeito ao enriquecimento, este pode consistir “na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista (…)”.

IV - Como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela, “poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento”.»

Em face a tudo quanto fica exposto,

81. devem V. Exas. declarar nulos ambos os contratos celebrados entre o BB, ora Recorrido, e a Recorrente, no dia 21 de Setembro de 2011, por simulados, nos termos do artigo 240.º do Código Civil.

Exmos. Senhores Juízes Conselheiros,

82. Ao decidir como decidiu, o douto Tribunal violou, entre outros, os artigos 240.º, n.º 1, 370.º, n.º 1, 372.º, 1154.º, 1083.º, 1085.º, todos do Código Civil.

83. Em consequência, deve revogar-se a decisão recorrida.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o Recurso ser julgado procedente, por provado, e revogado o Acórdão recorrido, com o que V. Exas. farão a sã e costumeira JUSTIÇA!


13. A Autora / Habilitada Watersuccess, S.A, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.


14. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1. Nos termos da alínea b) don.º 2 do artigo 641.º do CPC, o recurso deve ser rejeitado quando não contenha ou junte a alegação ou quando esta não tenha conclusões.

2. As conclusões do recurso interposto, a Recorrente limita-se a reproduzir integralmente o texto das alegações, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, o recurso deve ser rejeitado quando não contenha ou junte a alegação ou quando esta não tenha conclusões.

3. O presente recurso como a própria Recorrente admite não deverá ser admitido, uma vez que o que está a ser pedido a este Tribunal é que analise e se pronuncie sobre matéria já analisada e julgada em 1ª instância, a qual foi confirmada pelo douto Acórdão da Relação aqui em crise, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

4. O presente recurso é interposto pela Ré-Recorrida AA do douto acórdão, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação ……., em 09 de março de 2021, que julgou totalmente improcedente a apelação, confirmando se a sentença recorrida.

5. O Tribunal da Relação considerou que a recorrente pretende ver alterada logrou alcançar qualquer prova no sentido dessa modificação da matéria de facto, sendo que, além do mais, muita da facticidade almejada não tem qualquer congruência com o efeito que a recorrente visou alcançar.

6. Bem andou o douto Acórdão aqui em crise em considerar que no caso, evidencia-se, desde logo, a inexistência da invocada divergência entre a vontade declarada e a vontade real. É que mesmo concebendo-se a compra e venda como o instrumento de constituição da garantia, as partes ao celebrarem o negócio para garantir uma dívida, tiveram necessariamente que querer vender e querer comprar.

7. Caso tivesse havido um plano do Autor para se apropriar do imóvel, não teria sido dado a possibilidade da Ré aqui Recorrente recomprar o imóvel – não faz, pois, qualquer sentido a tese da Ré/Recorrente,

8. São elementos constitutivos do enriquecimento sem causa (artigo 473.º, do Código Civil) o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causa justificativa da declaração patrimonial verificada. O que no caso não se verifica

9. E do mais que, doutamente, será suprido, o acórdão recorrido não violou por erro de interpretação e de aplicação qualquer preceito substantivo ou adjetivo.

NESTES TERMOS, E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ SER REGEITADO O RECURSO INTERPOSTO POR FALTA DE CONCLUSÕES, NOS TERMOS DA ALÍNEA B) DO N.º 2 DO ARTIGO 641.º DO CPC, BEM COMO PELA VERIFICAÇÃO DA DUPLA CONFORME

CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA DEVERÁ SER NEGADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE REVISTA, DEVENDO, EM CONSEQUÊNCIA SER MANTIDA O ACÓRDÃO DA RELAÇÃO …….. E CONSEQUENTEMENTE A DECISÃO PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA.

ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA.

 

15. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

I. — se o acórdão recorrido é nulo, por o Tribunal da Relação não ter apreciado a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, AA;

II. — o acórdão recorrido violou a lei de processo, por o Tribunal da Relação não ter actuado ou exercido os poderes previstos no art. 662.º do Código de Processo Civil;

III. — se o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 é nulo por simulação;

IV. — se, ainda que não seja nulo por simulação, o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 é nulo por ofensa dos bons costumes;

V. — se, ainda que não seja nulo, o contrato concluído em 20 de Setembro de 2011 determinou o enriquecimento sem causa de BB.


II. — FUNDAMENTAÇÃO


  OS FACTOS


16. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

01. Por escritura pública outorgada em 20-09-2011, realizada no Cartório da Notária DD, a ré AA declarou vender e BB e este declarou comprar, pelo preço de 70.000,00€, que a ré declarou que “já recebeu”, o prédio urbano destinado à habitação, com varanda e lugar de garagem na cave, designado pela letra “X”, correspondente ao segundo andar esquerdo poente, de tipologia T3, com entrada pela ..........., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 35………, freguesia ………, concelho …….. e descrita e descrito na Conservatória do Registo Predial …….. sob o número 26………, conforme doc. 3, junto com a petição inicial e cujo teor se considera reproduzido.

02. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que, sobre a referida fração, incidem três penhoras, registadas uma a favor do Finibanco S.A. (), outra a favor da Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Credito S.A. () e outra a favor da Fazenda Nacional () cujo pagamento já se encontra assegurado, conforme declarou a Primeira Outorgante, sob a sua inteira responsabilidade”.

03. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que sobre a referida fração autónoma, incide uma hipoteca registada a favor de BB (), cujo pagamento já se encontra assegurado, renunciando, desde já, o Segundo Outorgante, na qualidade em que outorga, à garantia, autorizando o seu cancelamento”.

04. Na mesma data e após a outorga da escritura pública referida em 01), BB e a ré AA celebraram o contrato cuja foi junta sob doc. 4 com a petição e cujo teor se considera reproduzido, designado de “contrato promessa de compra e venda e arrendamento”, do mesmo constando, designadamente que:

04.1. BB promete vender a AA e esta promete comprar, o prédio id. em 01), sendo a escritura pública definitiva outorgada no prazo de 180 dias da assinatura do contrato promessa (21-03-2012);

04.2. BB dá de arrendamento a AA o mesmo prédio, pelo período entre a assinatura do contrato promessa (21-09-2011) e até à data da escritura pública de compra e venda (cláusula 6.ª), sendo o local arrendado destinado exclusivamente à habitação da ré pelo referido período de 180 dias, com início em 21-09-2011 e termo a 21-03- 2012, mediante o pagamento da renda mensal no valor de 400,00€ vencendo-se a primeira no primeiro dia útil do calendário gregoriano após a assinatura do contrato de arrendamento (cláusula 7.ª)

05. BB interpelou a ré para a realização da escritura pública de compra e venda), conforme doc. 5, 6, 7 e 8 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera reproduzido.

06. O contrato referido em 04.2 manteve-se após o período de 180 dias inicialmente acordado, sem que, contudo, a ré tenha pago qualquer renda, quer durante o período inicial estabelecido para a duração do contrato de arrendamento quer posteriormente.

07. A ré continua a ocupar, usar e fruir da habitação do prédio id. em 01).

08. À data da instauração da ação, encontravam-se por pagar as rendas desde a data do início do contrato id. em 04), no valor total de 20.400,00€.

09. Em 14-02-2011, a ré AA assinou o doc. 3 junto com a contestação, designado de “confissão e pagamento prestacional de dívida”, celebrado entre a ré, o autor originário BB e o pai deste, CC, pelo qual a ré declarou que “confessa-se devedora ao Segundo Outorgante da quantia de 52.000,00€”, que “tal quantia será paga em 11 prestações no valor de 1.000,00€ cada, vencendo-se a primeira a partir do próximo dia 15 de março e as restantes 11 de igual valor, em igual dia dos meses subsequentes.

Quanto ao remanescente, no valor de 41.000,00€ vencer-se-á e será paga na totalidade ao 12.º mês (15 de fevereiro de 2012)”, que “o referido capital ficam a vencer-se juros” e que “o presente contrato feito em duplicado, por estar conforme à vontade dos Outorgantes vai por ambos assinado”.

10. As penhoras (ónus) identificadas em 02) dos factos provados somavam a quantia de 21.539,00€.

11. A ré AA compareceu em 30-04-2013, pelas 14:00 hr., no Cartório Notarial ……, do Lic. EE, “para realização de escritura de compra e venda, marcada para aquele dia e hora, em que teria como vendedor BB”, a qual “não se realizou por falta de comparência da parte vendedora, BB, à hora marcada”, conforme certificado junto sob doc. 19 com a contestação, cujo teor se considera reproduzido.

12. À data da escritura pública referida em 01), o prédio aí declarado vender tinha o valor de mercado de 158.000,00€.

 

17. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:

i) Pelo doc. junto sob n.º 3 com a contestação, a que se refere o facto provado 09), a ré contraiu um mútuo junto do autor originário BB e do seu pai CC, pelo valor aí mencionado de 52.000,00€.

ii) Do documento particular referido em 09) dos factos provados não foi facultada uma cópia à ré.

iii) O valor “mutuado” por BB e seu pai à ré AA foi no valor de 25.000,00€ e destinou-se exclusivamente a “levantar”os ónus referidos em 02) dos factos provados.

iv) A escritura pública referida em 01) foi exigida pelo autor originário e seu pai, pois e também e segundo eles “só deste modo seria possível obter futuramente um crédito junto de instituição bancária” que permitisse à Ré reembolsar o dito mútuo”.

v) A escritura referida em 01) dos factos provados foi realizada por exigência firme do BB e do pai deste.

vi) A escritura pública referida em 01) foi realizada sem qualquer contraprestação e sem que nem declarante vendedora nem declarante comprador tenham pretendido vender e comprar o prédio aí identificado.

vii) O contrato designado de “promessa de compra e venda e arrendamento” foi celebrado sem que a ré tivesse vontade de adquirir ou sem que o ali promitente vendedor tivesse a vontade de vender o prédio aí identificado e sem que tenha sido vontade dos outorgantes a celebração de contrato de arrendamento aí igualmente mencionado.

viii) A presente ação foi fundada no intuito usurário de BB e seu pai para se apropriarem da casa de habitação da ré.

ix) A atividade do autor originário BB e seu pai é de serem “banqueiros informais”.

x) O prédio objeto da escritura referida em 01) dos factos provados tem um valor comercial superior a 170.000,00€ e, na data a que se refere o doc. id. em 09) dos factos provados, o valor de 200.000,00€.

xi) A ré nunca vendeu nem pretendeu vender o prédio id. em 01) dos factos provados.

xii) O autor originário BB nunca pagou à ré os 70.000,00€ que figuram como preço de venda referida em 01) dos factos provados.

xiii) A ré confiadamente subscreveu, sem ler, toda a documentação junta aos autos pelo autor e da lavra deste, não lhe tendo sido “convenientemente” fornecida no momento da aposição da sua assinatura qualquer cópia de tal documentação.

xiv) A ré só veio a tomar verdadeiro conhecimento e apreender as consequências, contornos e conteúdo de tal documentação, quando a “pressão” do autor originário e seu pai sobre si começou a ser insuportável, em abril de 2013.

xv) A ré veio a aderir ao “esquema/estratagema do mútuo/financiamento) por recomendação de um colega de ofício à data também comissionista do ramo imobiliário que conhecia aquele autor e o seu pai e que sabia que estes se dedicavam e dedicam ainda, a esta “atividade”, e tendo como pressuposto premente a necessidade de evitar que os ónus judiciais existentes sobre o seu imóvel (3 penhoras) levassem á venda judicial deste com o inerente “despejo” da ré.

xvi) E porque esse “esquema”, segundo o autor originário permitiria “limpar a ficha bancária da ré” – assim lhe foi dito – para que seguida fosse possível alcançar um crédito hipotecário junto da Banca, que por sua vez permitisse o reembolso do financiador (autor originário).

xvii) A ré aceitou o “plano” de financiamento do autor originário e do seu pai, em função do medo/receio que à data possuía de “ficar sem a sua habitação” e sem local para viver, face aos processos executivos pendentes e penhoras sobre ele.

xviii) À data, a ré não possuía ordenado fixo ou rendimento estável, o que a impedia de se socorrer de crédito bancário.

xix) Aquando do ato referido em 01) dos factos provados, a ré encontrava-se fragilizada sentimental e emocionalmente e depauperada economicamente, tendo acreditado no autor originário que lhe anunciou que a queria ajudar para que, de seguida, pudesse obter o prometido crédito bancário

xx) O autor originário e o seu pai eram pessoas sagazes, habituados às situações similares à ré e estavam cientes das fragilidades evidenciadas pela ré e do momento de grande tensão e desespero por esta vivenciado, pretendendo dela tirar imediato proveito.

xxi) A ré acedeu a tudo o que o autor originário e seu pai lhe exigiram, sem qualquer informação e no pressuposto “de que não perderia o seu imóvel”.

xxii) O autor originário e o seu pai, com intuito de levar até ao fim o seu plano e objetivo de se apropriarem do imóvel, acrescentaram pressão à ré, convencendo-a da necessidade de transferência do imóvel a favor do autor originário, pelo valor de 70.000,00€.

xxiii) O autor originário passou, em 2012, a fazer constantes ameaças de despejo à ré, a que se somaram os pedidos de renda e onde se afirmava “tenha cuidado porque o empréstimo que terá que fazer para recuperar a casa terá de ser pelo menos de €100.000,00”.

xxiv) Na sequência do referido em 05) dos factos provados, a ré não compareceu nos cartórios notariais e nas datas agendadas para o efeito (30-04-2013, 15-05-2013, 14-06-2013 e 25-06-2013).

xxv) O referido em xxiv) ocorreu em virtude de o autor originário não querer vender o prédio id. em 01) dos factos provados e desse modo, alcançado o motivo para “apropriação” do imóvel.

xxvi) Aquando da outorga da escritura pública referida em 01) dos factos provados, o autor originário e a ré pretenderam apenas celebrar um contrato de mútuo no valor de 25.000,00€.

xxvii) O autor originário valeu-se da inferioridade da ré, explorando a sua situação de inexperiência, dependência psicológica, anímica e estado mental da ré, pretendendo desse modo obter para si um “benefício excessivo e injustificado”.


           O DIREITO


18. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.

           

19. O acórdão recorrido confirmou, por unanimidade, a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, pelo que deve averiguar-se se estão preenchidos os pressupostos do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


20. A Ré, agora Recorrente, alega que não, porque a fundamentação das duas decisões é essencialmente diferente: o Tribunal de 1.ª instância considerou, tão-só, a hipótese de que o contrato de compra e venda fosse simulado ou, ainda que não simulado, ofensivo dos bons costumes e o Tribunal da Relação considerou a hipótese de que o contrato de compra e venda correspondesse a uma alienação em garantia.


21. Entende-se que entre a fundamentação das duas decisões há de facto uma diferença, e que a diferença é de facto suficiente para que não estejam preenchidos os pressupostos do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


22. Em todo o caso, ainda que a diferença entre a fundamentação das duas decisões não fosse suficiente, sempre deveria entender-se que o recurso de revista é admissível.


23. A Ré, agora Recorrente, alega que houve violação da lei de processo, por o Tribunal da Relação não ter exercido os poderes previstos no art. 662.º do Código de Processo Civil.


24. As conclusões 27 a 31 da alegação de recurso são do seguinte teor:

27. Entendeu o Acórdão que “Tudo assim escrutinado prejudicada fica a requerida produção de novos meios de prova nos termos do disposto no artigo 662º, nº 2 do CPC.”

28. A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa, comunicada ao despacho/acórdão proferido constitui uma Nulidade de Sentença/Acórdão.

29. Em matéria de prova, mesmo junto da Relação, seja pelo despoletar da inquisitoriedade seja com recurso à adequação formal e ao dever de gestão processual, sempre o superior interesse na descoberta da verdade e na justa decisão da causa se conseguem alcançar, não podendo o Mmo. Julgador ficar na mera passividade da interpretação literal da norma diretamente aplicável, tendo de ir mais longe e atender aos princípios e interesses que regem o processo para, abraçando o espírito do sistema, alcançar os superiores interesses que o processo serve.

Pelos fundamentos expostos,

30. deveriam os Senhores Juízes do Tribunal da Relação …. dado cumprimento ao requerido pela Recorrente no que concerne à produção de meios de prova.

31. Aliás, dúvidas não existem de que a produção de meios de prova e a impugnação da matéria de facto seriam essenciais para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio.

32. Impedir esse acto, constitui uma grave violação do direito processual civil, porquanto, dessa forma, fica a Recorrente sem a possibilidade de impugnar a matéria de facto, o que deverá merecer a censura do Digníssimo STJ.


25. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, constantemente, que deve fazer-se uma interpretação restritiva do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, de forma a admitir-se o recurso de revista com fundamento em violação da lei de processo imputável ao Tribunal da Relação [1].


26. Como se diz, p. ex., no acórdão do STJ de 28 de Janeiro de 2016 — processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1 —,

I – Existe dupla conforme quando a Relação confirma, sem voto de vencido e com base em fundamentação substancialmente idêntica a decisão da 1ª instância.

II – A dupla conformidade exige, assim, que a questão crucial para o resultado declarado tenha sido objecto de duas decisões “conformes”.

III – Tal não ocorre nos casos em que é imputado ao Acórdão da Relação a violação de normas de direito adjectivo no que concerne à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, nomeadamente as previstas nos arts. 640º e 662º, ambos do NCPC.

IV – Efectivamente, em tais circunstâncias, ainda que simultaneamente a Relação tenha confirmado a decisão recorrida no que respeita à matéria de direito, não se verifica uma situação de dupla conformidade no que concerne ao modo como foi reapreciada a matéria de facto.


27. Entendendo-se, como se entende, que o recurso é admissível, deve então apreciar-se as cinco questões suscitadas pela Ré, agora Recorrente.


28. A primeira questão consiste em averiguar se o acórdão recorrido é nulo, por o Tribunal da Relação não ter apreciado a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, AA


29. O art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por remissão dos arts. 666.º e 585.º, é do seguinte teor:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.


30. A Ré, agora Recorrente, impugnou:

 I. — a decisão sobre os factos dados como provados sob os n.ºs 1 a 5; e II. — a decisão sobre os factos dados como não provados sob os n.ºs III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXI, XXII, XXIII, XXVI e XXVI.


31. Os factos dados como provados sob os n.ºs 1 a 5 são os seguintes:

01. Por escritura pública outorgada em 20-09-2011, realizada no Cartório da Notária DD, a ré AA declarou vender e BB e este declarou comprar, pelo preço de 70.000,00€, que a ré declarou que “já recebeu”, o prédio urbano destinado à habitação, com varanda e lugar de garagem na cave, designado pela letra “X”, correspondente ao segundo andar esquerdo poente, de tipologia T3, com entrada pela …………, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 35……, freguesia ………, concelho …….. e descrita e descrito na Conservatória do Registo Predial …… sob o número 26……., conforme doc. 3, junto com a petição inicial e cujo teor se considera reproduzido.

02. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que, sobre a referida fração, incidem três penhoras, registadas uma a favor do Finibanco S.A. (), outra a favor da Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Credito S.A. () e outra a favor da Fazenda Nacional () cujo pagamento já se encontra assegurado, conforme declarou a Primeira Outorgante, sob a sua inteira responsabilidade”.

03. Na mesma escritura referida em 01), pelos outorgantes foi declarado “que têm conhecimento que sobre a referida fração autónoma, incide uma hipoteca registada a favor de BB (), cujo pagamento já se encontra assegurado, renunciando, desde já, o Segundo Outorgante, na qualidade em que outorga, à garantia, autorizando o seu cancelamento”.

04. Na mesma data e após a outorga da escritura pública referida em 01), BB e a ré AA celebraram o contrato cuja foi junta sob doc. 4 com a petição e cujo teor se considera reproduzido, designado de “contrato promessa de compra e venda e arrendamento”, do mesmo constando, designadamente que:

04.1. BB promete vender a AA e esta promete comprar, o prédio id. em 01), sendo a escritura pública definitiva outorgada no prazo de 180 dias da assinatura do contrato promessa (21-03-2012);

04.2. BB dá de arrendamento a AA o mesmo prédio, pelo período entre a assinatura do contrato promessa (21-09-2011) e até à data da escritura pública de compra e venda (cláusula 6.ª), sendo o local arrendado destinado exclusivamente à habitação da ré pelo referido período de 180 dias, com início em 21-09-2011 e termo a 21-03- 2012, mediante o pagamento da renda mensal no valor de 400,00€ vencendo-se a primeira no primeiro dia útil do calendário gregoriano após a assinatura do contrato de arrendamento (cláusula 7.ª)

05. BB interpelou a ré para a realização da escritura pública de compra e venda), conforme doc. 5, 6, 7 e 8 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera reproduzido.


32. A Ré, agora Recorrente, pretende que sejam dados como não provados.


33. Os factos dados como não provados sob os n.ºs III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXI, XXII, XXIII, XXVI e XXVI são os seguintes:

iii) O valor “mutuado” por BB e seu pai à ré AA foi no valor de 25.000,00€ e destinou-se exclusivamente a “levantar”os ónus referidos em 02) dos factos provados.

iv) A escritura pública referida em 01) foi exigida pelo autor originário e seu pai, pois e também e segundo eles “só deste modo seria possível obter futuramente um crédito junto de instituição bancária” que permitisse à Ré reembolsar o dito mútuo”.

v) A escritura referida em 01) dos factos provados foi realizada por exigência firme do BB e do pai deste.

vi) A escritura pública referida em 01) foi realizada sem qualquer contraprestação e sem que nem declarante vendedora nem declarante comprador tenham pretendido vender e comprar o prédio aí identificado.

vii) O contrato designado de “promessa de compra e venda e arrendamento” foi celebrado sem que a ré tivesse vontade de adquirir ou sem que o ali promitente vendedor tivesse a vontade de vender o prédio aí identificado e sem que tenha sido vontade dos outorgantes a celebração de contrato de arrendamento aí igualmente mencionado.

viii) A presente ação foi fundada no intuito usurário de BB e seu pai para se apropriarem da casa de habitação da ré.

ix) A atividade do autor originário BB e seu pai é de serem “banqueiros informais”.

xi) A ré nunca vendeu nem pretendeu vender o prédio id. em 01) dos factos provados.

xiii) A ré confiadamente subscreveu, sem ler, toda a documentação junta aos autos pelo autor e da lavra deste, não lhe tendo sido “convenientemente” fornecida no momento da aposição da sua assinatura qualquer cópia de tal documentação.

xiv) A ré só veio a tomar verdadeiro conhecimento e apreender as consequências, contornos e conteúdo de tal documentação, quando a “pressão” do autor originário e seu pai sobre si começou a ser insuportável, em abril de 2013.

xv) A ré veio a aderir ao “esquema/estratagema do mútuo/financiamento) por recomendação de um colega de ofício à data também comissionista do ramo imobiliário que conhecia aquele autor e o seu pai e que sabia que estes se dedicavam e dedicam ainda, a esta “atividade”, e tendo como pressuposto premente a necessidade de evitar que os ónus judiciais existentes sobre o seu imóvel (3 penhoras) levassem á venda judicial deste com o inerente “despejo” da ré.

xvi) E porque esse “esquema”, segundo o autor originário permitiria “limpar a ficha bancária da ré” – assim lhe foi dito – para que seguida fosse possível alcançar um crédito hipotecário junto da Banca, que por sua vez permitisse o reembolso do financiador (autor originário).

xvii) A ré aceitou o “plano” de financiamento do autor originário e do seu pai, em função do medo/receio que à data possuía de “ficar sem a sua habitação” e sem local para viver, face aos processos executivos pendentes e penhoras sobre ele.

xviii) À data, a ré não possuía ordenado fixo ou rendimento estável, o que a impedia de se socorrer de crédito bancário.

xix) Aquando do ato referido em 01) dos factos provados, a ré encontrava-se fragilizada sentimental e emocionalmente e depauperada economicamente, tendo acreditado no autor originário que lhe anunciou que a queria ajudar para que, de seguida, pudesse obter o prometido crédito bancário

xx) O autor originário e o seu pai eram pessoas sagazes, habituados às situações similares à ré e estavam cientes das fragilidades evidenciadas pela ré e do momento de grande tensão e desespero por esta vivenciado, pretendendo dela tirar imediato proveito.

xxi) A ré acedeu a tudo o que o autor originário e seu pai lhe exigiram, sem qualquer informação e no pressuposto “de que não perderia o seu imóvel”.

xxii) O autor originário e o seu pai, com intuito de levar até ao fim o seu plano e objetivo de se apropriarem do imóvel, acrescentaram pressão à ré, convencendo-a da necessidade de transferência do imóvel a favor do autor originário, pelo valor de 70.000,00€.

xxiii) O autor originário passou, em 2012, a fazer constantes ameaças de despejo à ré, a que se somaram os pedidos de renda e onde se afirmava “tenha cuidado porque o empréstimo que terá que fazer para recuperar a casa terá de ser pelo menos de €100.000,00”.

xxvi) Aquando da outorga da escritura pública referida em 01) dos factos provados, o autor originário e a ré pretenderam apenas celebrar um contrato de mútuo no valor de 25.000,00€.

xxvii) O autor originário valeu-se da inferioridade da ré, explorando a sua situação de inexperiência, dependência psicológica, anímica e estado mental da ré, pretendendo desse modo obter para si um “benefício excessivo e injustificado”.


34. A Ré, agora Recorrente, pretende que sejam dados como provados.


35. O texto do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil é claro no sentido de que o acórdão só será nulo, por omissão de pronúncia, desde que o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.


36. O Tribunal da Relação …. pronunciou-se sobre a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, sustentando duas coisas:

I. —  em parte, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, não era uma questão que devesse ser apreciada, por não ser pertinente para a decisão da causa; II. — em parte, — na parte em que era uma questão que devesse ser apreciada, — a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, não era procedente.


37. Em primeiro lugar, o Tribunal da Relação …. sustentou que, em parte, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, não era uma questão que devesse ser apreciada, por não ser pertinente para a decisão da causa:

“… o objecto da prova não são todos os factos alegados pelas partes, mas apenas os pertinentes e que precisem de prova. E factos pertinentes são todos aqueles que forem determinantes para a decisão.

E, em bom rigor, sendo a reapreciação da decisão de facto um recurso é necessário que o recorrente esclareça qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c) do nº 1 do artigo 640º do CPC. Significa, evidentemente, a demonstração da relevância da factualidade a alterar para a decisão do mérito.

… muita da facticidade almejada não tem qualquer congruência com o efeito que a recorrente visou alcançar”.


38. Em segundo lugar, o Tribunal da Relação …… sustentou que, em parte, — na parte em que era uma questão que devesse ser apreciada, — a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, não era procedente:

“Ouvida a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento e analisada a prova documental, salienta-se o seguinte.

A testemunha JJ disse ser amigo da ré, tendo-a conhecido na imobiliária onde ambos eram angariadores. Que ela andava muito preocupada porque tinha dívidas de créditos contraídos, nomeadamente à Cofidis, que não conseguia pagar. Já havia uma penhora do andar que ela habitava. Que ela não conseguia crédito bancário pois tal era incompatível com os seus rendimentos a ‘recibos verdes’.

A testemunha FF disse que conheceu a ré porque na altura tinha uma empresa de consultadoria financeira que ela procurou por anúncio.

Verificou que a ré tinha muitas dívidas e não tinha condições para recorrer ao crédito bancário. Para estas situações sua empresa valia-se, nomeadamente de uma senhora que tratava por GG que se dedicava a angariar investidores recebendo uma comissão. Percebeu que a ré era divorciada, tinha dois filhos, que trabalhava numa imobiliária a “recibos verdes” e que se estava a defrontar com dívidas de grandes montantes. Recorda-se que os credores eram um banco e financeiras de créditos pessoais. Através da GG conseguiu-se um investidor, um engenheiro, e foi combinado com a ré vender a casa a esse investidor e fazer um contrato de arrendamento da casa com opção de compra.

CC, pai do autor originário, declarou que, como procurador do filho, BB, adquiriu à ré o imóvel aqui em causa. Pagou os ónus e encargos que sob o imóvel impendiam e simultaneamente celebrou com a ré um “contrato de promessa de compra e venda e arrendamento”, nos termos do qual prometeu vender à ré e esta promete comprar-lhe o dito imóvel, ficando estipulado que a escritura definitiva seria outorgada no prazo máximo de 180 dias, ou seja, até 21/03/2012, bem como prometeu dar de arrendamento à ré o aludido prédio pelo período de 180 dias, coincidindo o seu início e fim com o prazo do seu contrato de compra e venda.

Mais acabou por dizer que o preço que figurou no contrato de compra e venda correspondia à totalidade de empréstimos que tinha feito à ré e que o valor total do custo que suportou terá de englobar o pagamento que efectuou dos ónus e encargos que incidiam sobre o imóvel.

De tudo se apreende que o esquema negocial era a venda da casa ao autor para que ficassem solucionadas as dívidas da ré, permitindo-lhe, com celebração de um contrato de promessa de compra e venda, vir adquirir de novo a casa e, até essa altura, continuar a ali viver mediante um arrendamento”.


39. O Tribunal da Relação continuou, apreciando a alegação da Ré, agora Recorrente, de que havia simulação relativa, sobre o conteúdo do negócio:

“No que recorrente insiste é que a real intenção das partes não era transmitir a propriedade do imóvel, mas somente constituir uma garantia face ao mútuo celebrado. Que o negócio declarado na escritura de compra e venda não corresponde à efectiva e real vontade das partes, tratando-se, por isso, de negócio simulado, nos termos do artigo 240.º do Código Civil”.

           

40. Em todo o caso, concluiu que não foi feita a prova de que houvesse simulação: 

“… de toda a prova analisada, nenhum indício sequer aflora no sentido de que a verdadeira disposição das partes, no sentido de vontade real, não fosse a de transmitir a propriedade do prédio urbano, celebrando assim um contrato de compra e venda e um contrato de promessa de compra e venda e arrendamento”.


41. Finalmente, o Tribunal da Relação declarou que

“… quanto ao alegado aproveitamento do estado de inferioridade, situação de inexperiência, dependência psicológica e estado mental da ré, é patente não existir nos autos qualquer factualidade que possa sustentar tal alegação.

O que se observa é que a circunstância da recorrente insere-se na vasta problemática das relações de consumo, cuja característica é a vulnerabilidade do consumidor. Apesar da vasta legislação nacional e, sobretudo, da União Europeia no sentido de proteger o consumidor, tornou-se óbvio que com a cada vez maior complexidade das relações deste tipo é urgente a promoção da literacia financeira”.


 42. Os termos em que o Tribunal da Relação apreciou sobre a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, são suficientes para que se conclua que não há nenhuma omissão de pronúncia, relevante para efeitos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil: em primeiro lugar, como o Tribunal da Relação concluiu que não estava provado que houvesse simulação relativa, tinha logicamente de dar como provados os factos em que se dissesse que o contrato de compra e venda foi concluído [2] e de dar como não provados os factos (todos os factos) em que se dissesse ou em que se pressupusesse que o contrato de compra e venda não foi concluído [3]; em segundo lugar, como o Tribunal da Relação concluiu que não estava provado que a Ré, agora Recorrente, se encontrasse em situação de dependência, de fragilidade ou de inferioridade, tinha logicamentte de dar dar como não provados os factos (todos os factos) em que se dissesse ou em que se presupusesse que a Ré se encontrava em situação de dependência, de fragilidade ou de inferioridade [4].


43. Em resposta à primeira questão, deverá dizer-se que o Tribunal da Relação apreciou a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, agora Recorrente, AA — devendo, em consequência, excluir-se a aplicação ao caso do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.


44. A segunda questão suscitada pela Ré, agora Recorrente, consiste em averiguar se o acórdão recorrido violou a lei de processo, por o Tribunal da Relação não ter actuado ou exercido os poderes previstos no art. 662.º do Código de Processo Civil.


45. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil determina que

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.


46. Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018  — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [5];

“… está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [6].


47. Em todo o caso, como se diz, designadamente, no acórdão do STJ de 30 de Maio de 2019 — processo n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1 —,

“[n]ão obstante a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto ser residual e de o n.º 4 do artigo 662.º do Código de Processo Civil ser peremptório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais o Tribunal da Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 da mesma norma, é admissível julgar o modo de exercício destes poderes, dado que tal previsão constitui ‘lei de processo’ para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.


48. O art. 662.º do Código de Processo Civil estabelece:

1. — A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2. — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

3 - Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:

a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;

b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.

4 - Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.


49. A Ré, agora Recorrente, alega em síntese que o Tribunal da Relação deveria ter deferido o requerimento probatório deduzido no segmento final das conclusões do recurso de apelação:

Ao abrigo do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, desde já se requer, mui respeitosamente, que Vossas Excelências se dignem ordenar a seguinte produção de prova:

- notificação do Tribunal da área de residência do Autor originário, BB e aqui Recorrido, cuja residência se encontra identificada nos presentes autos, bem como deste, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados;

- notificação do Tribunal da área de residência da Testemunha CC, residente em ……., bem como da Testemunha, para vir aos presentes autos informar se detém outras acções pendentes, de anulação/nulidade de contratos ou atinentes ao objecto de contratos por si celebrados.


50. Ora, como decorre do art. 662.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação só deve ordenar a produção de novos meios de prova “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”.


51. O facto de o Tribunal da Relação …… ter concluído que “nenhum indício sequer aflora no sentido de que a verdadeira disposição das partes, no sentido de vontade real, não fosse a de transmitir a propriedade do prédio urbano, celebrando assim um contrato de compra e venda e um contrato de promessa de compra e venda e arrendamento” significa (só pode significar) que o Tribunal da Relação não se confrontou com nenhuma dúvida e, em todo o caso, não se confrontou com nenhuma dúvida fundada sobre a prova realizada.


52. Como não se tenha confrontado com nenhuma dúvida ou, em todo o caso, não se tenha confrontado com nenhuma dúvida fundada sobre a prova produzida, só poderia ter dado como prejudicado o requerimento apresentado pela Ré, agora Recorrente.


53. Em resposta à segunda questão, deverá dizer-se que o Tribunal da Relação actuou ou exerceu os poderes previstos no art. 662.º do Código de Processo Civil — devendo, em consequência, excluir-se a alegada violação da lei de processo.


54. A terceira questão consiste em determinar se o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 é nulo por simulação.


55. A Ré, agora Recorrente, alega que houve simulação relativa — as partes teriam querido concluir um contrato de mútuo, cujo cumprimento seria garantido pela alienação de um imóvel, e teriam declarado que queriam concluir um contrato de compra e venda.


56. O art. 240.º, n.º 1, do Código Civil define simulação, determinando que, “[s]e, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado” [7].


57. Os factos provados não são de forma nenhuma suficientes para que se conclua sequer que houve divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante — ficando prejudicada a apreciação dos demais pressupostos da simulação, do acordo entre declarante e declaratário e do intuito de enganar terceiros.


58. O Tribunal da Relação ….. aprecia a hipótese de existir uma alienação em garantia [8], considerando que “o esquema negocial era a venda da casa ao autor para que ficassem solucionadas as dívidas da ré, permitindo-lhe, com celebração de um contrato de promessa de compra e venda, vir adquirir de novo a casa e, até essa altura, continuar a ali viver mediante um arrendamento” e que o “esquema negocial” exposto corresponde

“à junção de um pacto fiduciário (ou cláusula fiduciária) a um negócio de alienação, para que este cumpra uma função de garantia, cabendo ao pacto fiduciário proceder à adaptação do negócio à pretendida finalidade, estabelecendo os termos da relação entre fiduciante e fiduciário”.


59. A alienação em garantia, ou alienação fiduciária em garantia, define-se como um “negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade” [9].


60. O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de que a alienação fiduciária em garantia é compatível com o princípio da proibição do pacto comissório — e, em consequência, válida [10].


61. O acórdão do STJ 16 de Março de 2011 — processo n.º 279/2002.E1.S1 — diz, expressamente, que

“4. A estrutural diversidade jurídica entre as figuras da constituição de direitos reais de garantia ( ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissório) e da venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor  a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da ‘coisa onerada’ no caso – e no momento - em que o devedor não cumprir a obrigação garantida.

5. Não é de admitir a ‘extensão teleológica’ da proibição contida no citado art. 694º, determinante do vício de nulidade, à venda fiduciária em garantia de bens imóveis, por tal envolver restrição desproporcionada do princípio fundamental da segurança e confiança no comércio jurídico, ao facultar aos outorgantes a invocação e a consequente oponibilidade da nulidade a terceiros de boa fé, subadquirentes do imóvel alienado, nos termos do art. 291º do CC, mesmo nos casos em que o pacto fiduciário estivesse oculto e dissimulado, relativamente às cláusulas contratuais integradoras do negócio formal de alienação e do teor do respectivo registo, de modo a afectar a consistência jurídica dos direitos que aqueles fundadamente supunham ter adquirido”.


62. Em consonância com o acórdão do STJ 16 de Março de 2011, os acórdãos de 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1 —e de 14 de Janeiro de 2021 — processo n.º 2603/17.5T8STB.E1.S2 — dizem que

I. — Para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia.

II - Dentro do género, surge a figura da alienação fiduciária ou venda em garantia, a qual constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade [11].

“N[um] caso […] em que, no âmbito de um contrato fiduciário atípico de alienação em garantia, o credor fiduciário vende a terceiro o bem em causa, quando o devedor fiduciante não satisfez a quantia em dívida, […] não se verifica nem a nulidade do pacto comissório prevista no art. 694.º do CC, nem sequer a violação das obrigações contratuais por parte do primitivo credor fiduciário” [12].


63. Em todo o caso, ainda que se admita que há uma alienação em garantia, ou uma alienação fiduciária em garantia, deve chamar-se a atenção para duas coisas:


64. Em primeiro lugar, para a diferença entre a alienação em garantia e a simulação — a alienação em garantia pressupõe que a transmissão da propriedade do vendedor para o comprador seja querida pelas partes, que a transmissão corresponda à vontade real das partes, e a simulação pressupõe que a transmissão não tenha sido querida, não corresponda à vontade real [13] [14].


64. Em segundo lugar, deverá chamar-se a atenção para a validade da alienação em garantia ou alienação fiduciária em garantia:

“a celebração de negócios jurídicos fiduciários é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei” [15].


65. Em resposta à terceira questão, deverá dizer-se que não estão provados factos suficientes para que se conclua que o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 é nulo por simulação.


66. A quarta questão consiste em determinar se, ainda que não seja nulo por simulação, o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 será nulo por ofensa dos bons costumes.


67. A Ré, agora Recorrente, alega que o negócio é usurário — o Autor originário, BB, ter-se-ia aproveitado da inexperiência, da fragilidade emocional e da fragilidade económica da Ré AA, para se apropriar do imóvel.


68. O art. 282.º do Código Civil associa ao preenchimento dos pressupostos ou requisitos da usura a consequência da anulabilidade do negócio jurídico:

1. — É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.

2. — Fica ressalvado o regime especial estabelecido Nos artigos 559.º-A e 1146.º.


69. O princípio de que o negócio usurário é, tão-só, anulável só poderá ser derrogado em casos excepcionalmente graves, em que o preenchimento dos pressupostos ou dos requisitos do art. 282.º deva representar-se como ofensa aos bons costumes, no sentido do art. 280.º do Código Civil — logo, de nulidade do negócio jurídico [16].


70. A Ré, agora Recorrente, não conseguiu provar nem que se estivesse perante um caso comum nem (muito menos) que se estivesse perante um caso excepcionamente grave.


71. Entre os factos dados como não provados encontra-se os seguintes:

xvii) A ré aceitou o “plano” de financiamento do autor originário e do seu pai, em função do medo/receio que à data possuía de “ficar sem a sua habitação” e sem local para viver, face aos processos executivos pendentes e penhoras sobre ele.

xix) Aquando do ato referido em 01) dos factos provados, a ré encontrava-se fragilizada sentimental e emocionalmente e depauperada economicamente, tendo acreditado no autor originário que lhe anunciou que a queria ajudar para que, de seguida, pudesse obter o prometido crédito bancário

xx) O autor originário e o seu pai eram pessoas sagazes, habituados às situações similares à ré e estavam cientes das fragilidades evidenciadas pela ré e do momento de grande tensão e desespero por esta vivenciado, pretendendo dela tirar imediato proveito.

xxii) O autor originário e o seu pai, com intuito de levar até ao fim o seu plano e objetivo de se apropriarem do imóvel, acrescentaram pressão à ré, convencendo-a da necessidade de transferência do imóvel a favor do autor originário, pelo valor de 70.000,00€.

xxiii) O autor originário passou, em 2012, a fazer constantes ameaças de despejo à ré, a que se somaram os pedidos de renda e onde se afirmava “tenha cuidado porque o empréstimo que terá que fazer para recuperar a casa terá de ser pelo menos de €100.000,00”.

xxvii) O autor originário valeu-se da inferioridade da ré, explorando a sua situação de inexperiência, dependência psicológica, anímica e estado mental da ré, pretendendo desse modo obter para si um “benefício excessivo e injustificado”.


72. O Tribunal de 1.ª instância chama ainda a atenção para três coisas:


73. Em primeiro lugar, para que “a escritura pública não foi celebrada num período temporal exíguo relativamente à relação jurídica que já existia entre a ré e o autor originário — o período em causa foi superior a seis meses, durante o qual necessariamente era exigível à ré ponderar os contornos do negócio que estava a celebrar”.


74. Em segundo lugar, para que o negócio foi celebrado em período de crise económica e financeira:

“… face ao período de crise económica e financeira que ocorria, foram muitos os negócios em que os proprietários dos imóveis os oneraram ou alienaram, inclusive dando em pagamento (dação em pagamento/dação em cumprimento); é precisamente em períodos de crise financeira que os detentores de capital realizam negócios com uma apetência lucrativa maior, porém tal não significa só por si que seja violador dos bons costumes”.


75. Em terceiro lugar, para que os concretos termos do negócio excluíam a sua configuração como negócio usurário:

I. — por um lado, a Ré, agora Recorrente, tinha o direito de readquirir o imóvel, através do cumprimento do contrato-promessa descrito no facto dado como provado sob o n.º 4; II. — por outro lado, “a diferença de valor prevista nesse contrato para a celebração da escritura de compra e venda (72.800,00€) relativamente ao valor pelo qual foi celebrada a escritura de 20-09-2011 (70.000,00€) encontra-se dentro dos parâmetros negociais comuns do mercado imobiliário, considerando nessa sede também os encargos que o adquirente teve de suportar aquando da aquisição e do registo predial; tal diferença é de cerca de 4%”.


76. Embora admitindo que “poderia haver violação dos bons costumes se no contrato promessa de compra e venda tivesse sido previsto um preço de venda do imóvel próximo do valor real do mercado (158.000,00€)”, o Tribunal de 1.º instância coloca em evidência que “ao ser previsto um preço muito próximo àquele pelo qual o imóvel foi alienado pela escritura de 20-09-2011, daí resulta um comportamento negocial razoável, incompatível com a violação dos bons costumes”.


77. O Tribunal da Relação subscreve os argumentos deduzidos na sentença, sustentando que “Quanto ao valor da venda convencionado, é proficiente tudo que enunciou na sentença e quanto ao alegado aproveitamento do estado de inferioridade, situação de inexperiência, dependência psicológica e estado mental da ré, é patente não existir nos autos qualquer factualidade que possa sustentar tal alegação”.


78. Em termos em tudo semelhantes aos do acórdão do STJ de 9 de Julho de 2020 — processo n.º 1128/17.3T8PVZ.P1.S1 —, terá de concluir-se que “inexiste, neste acordo qualquer vício que o possa por em causa, vg, quaisquer elementos que nos levem a concluir que na transacção havida entre as partes tivesse havido por banda [do Autor originário] um aproveitamento ilícito de um eventual estado de necessidade [da Ré]”.


79. Em resposta à quarta questão, deverá dizer-se que não estão provados factos suficientes para que se conclua que o contrato concluído entre BB e AA em 20 de Setembro de 2011 é anulável por usura ou nulo por violação dos bons costumes.


80. A quinta questão suscitada pela Ré, agora Recorrente, consiste em determinar se, ainda que não seja nulo, o contrato concluído em 20 de Setembro de 2011 determinou o enriquecimento sem causa de BB.


81. O art. 473.º do Código Civil estabelece:

1. — Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. — A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.


82. O alegado enriquecimento do Autor BB à custa da Ré AA poderia consistir em uma de duas coisas:

 I. — em ter comprado o imóvel por um preço inferior ao seu valor real (de mercado); ou — II. — em ter vendido o imóvel por um preço superior ao preço da compra [17].

83. A alegação de que BB enriqueceu, por ter comprado o imóvel por um preço inferior ao seu valor real (de mercado) decorre da comparação entre os factos dados como provados sob os n.ºs 1 e 12:

01. Por escritura pública outorgada em 20-09-2011, realizada no Cartório da Notária Dr.ª DD, a ré AA declarou vender e BB e este declarou comprar, pelo preço de 70.000,00€, que a ré declarou que “já recebeu”, o prédio urbano destinado à habitação, com varanda e lugar de garagem na cave, designado pela letra “X”, correspondente ao segundo andar esquerdo poente, de tipologia T3, com entrada pela ……, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 35 …, freguesia ……, concelho … e descrita e descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o número 26…., conforme doc. 3, junto com a petição inicial e cujo teor se considera reproduzido.

12. À data da escritura pública referida em 01), o prédio aí declarado vender tinha o valor de mercado de 158.000,00€.


84. A alegação de que BB enriqueceu, por ter vendido o imóvel por um preço superior ao valor da compra, essa, decorreria do contrato de compra e venda com a Watersuccess, S.A. [18].


85. Entrando na apreciação dos argumentos deduzidos, dir-se-á duas coisas:


86. Em primeiro lugar, deve contextualizar-se a diferença entre o preço por que o Autor BB comprou o imóvel e o valor real (de mercado).


87. O Tribunal de 1.ª instância chama justamente a atenção para que “o prédio estava onerado com três penhoras e uma hipoteca” e para que “o valor concreto pelo qual um bem é transaccionado depende também das concretas condições em que vendedor e comprador se encontrem e estejam disponíveis a celebrar o negócio” — o vendedor “pode… alienar por carecer de capital e o adquirente disponibilizar esse capital que a outra parte, de outro modo, não seria capaz de obter”.


88. Em segundo lugar, ainda que não se contextualize a diferença entre o preço e o valor real (de mercado), deve dizer-se que, entre os pressupostos ou requisitos do art. 473.º do Código Civil está a ausência de causa justificativa — “Aquele que, sem causa justificativa, …”.


89. O requisito da ausência de causa justificativa, ou da falta de causa justificativa, remete-nos para o conceito de causa, ou de causa justificativa, e o conceito de causa justificativa é um conceito indeterminado [19] — remete-nos para os “critérios legais definidores de uma correcta ordem ou ordenação dos bens” [20].


90. Ora os critérios legais definidores de uma correcta ordem ou de uma correcta ordenação dos bens são todos os princípios e todas as regras do ordenamento ou do sistema jurídico — e, como os critérios legais definidores de uma correcta ordenação dos bens são todos os princípios e todas as regras do ordenamento ou do sistema jurídico, o requisito da falta de causa justificativa significa, em última análise, “uma remissão para o resto do ordenamento” [21].


91. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, constantemente, que “[a] noção de falta de causa do enriquecimento é… muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa” [22].


92. Entre os pontos mais ou menos consensuais estão o de que a ausência de causa justificativa põe um problema de interpretação e de integração da lei [23] e o de que, através da interpretação e da integração da lei, há-de determinar-se, “em cada caso concreto, ‘se o ordenamento jurídico […] acha ou não legítimo que o beneficiado […] conserve [o enriquecimento]” [24].


93. Como se diz, p. ex., nos acórdãos de 28 de Junho de 2011 — processo n.º 3189/08.7TVLSB.L1.S1 —, de 29 de Abril de 2014 — processo n.º 246/12.9T2AND.C1.S1 — ou de 3 de Maio de 2018 — processo n.º 175/05.2TBALR.E1.S1 —, “[o] eixo directriz da definição da ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial tem a ver com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema jurídico, de modo que, de acordo com a mesma, se o enriquecimento deve pertencer a outra pessoa, carece de causa justificativa”.


94. Entre as causas justificativas do enriquecimento, admitidas e reconhecidas pelo sistema jurídico, está a conclusão de um contrato de compra e venda válido — ainda que o contrato em causa esteja integrado em alguma alienação em garantia.


95. O enriquecimento sem causa do Autor BB ficou a dever-se, em primeira linha, ao facto de a Ré, agora Recorrente, AA lhe ter vendido o imóvel — e, em segunda linha, ao facto de a Ré, agora Recorrente, não ter re-comprado o imóvel vendido, actuando ou exercendo o direito de crédito constituído pelo contrato-promessa descrito no facto dado como provado sob o n.º 4.

           

96. O Tribunal de 1.ª instância diz explicitamente que “… [não] se afigura que o negócio jurídico realizado entre as partes tenha originado um enriquecimento sem causa: no âmbito negocial, os interesses podem não ser coincidentes e ainda que desse negócio possa decorrer um benefício económico para uma das partes, tal não significa necessariamente a sua integração no conceito de enriquecimento sem causa” e o Tribunal da Relação confirma-o, dizendo que “os negócios celebrados correspondem perfeitamente à vontade real das partes, inexistindo qualquer locupletamento sem causa”.


97. Existindo, como existe, uma causa justificativa, nem BB, nem a sua sucessora habilitada, W…, S.A, têm a obrigação de restituir a diferença entre o preço de compra e o valor do imóvel, ou entre o preço da compra e o preço da revenda.


98. Em resposta à quinta questão, deverá dizer-se que não estão provados factos suficientes para que se conclua BB ou sua sucessora habilitada Watersuccess, S.A, tenham enriquecido sem causa justificativa à custa da Ré AA.


III. — DECISÃO


Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

 Custas pela Recorrente AA.


Lisboa, 30 de Junho de 2021


Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

 Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

______

[1] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 14 de Maio de 2015 — processo n.° 29/12.6TBFAF.G1.S1 —, de 28 de Janeiro de 2016 — processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1 —, de 3 de Novembro de 2016 — processo n.º 3081/13.3TBBRG.G1.S1 —, de 24 de Novembro de 2016 — processo n.º 296/14.0TJVNF.G1.S1 —, de 17 de Maio de 2017 — processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1 —, de 18 de Janeiro de 2018 — processo n.º 668/15.3T8FAR.E1.S2 —, de 8 de Novembro de 2018 — processo n.º 48/15.0T8VNC.G1.S1 —, de 30 de Maio de 2019 — processo n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1 — ou de de 17 de Outubro de 2019 — processo n.º 617/14.6YIPRT.L1.S1.

[2] Em consequência, teria de confirmar a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância quanto aos factos dados como provados sob os n.ºs 1 a 5.

[3] Como, p. ex., os factos dados como não provados sob os n.ºs III, VI, VII ou XXVI.

[4] Como, p. ex., os factos dados como não provados sob os n.ºs XVII, XIX, XXI, XXIII e XXVI.

[5] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[6] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018  — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

[7] Sobre a simulação, vide por todos José Beleza dos Santos, A simulação em direito civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1921; Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II — Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Livraria Almedina, Coimbra, 1974 (reimpressão), págs. 168-215; Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 466-485; António Menezes Cordeiro (com a colaboração de A. Barreto Menezes Cordeiro), Tratado de direito civil, vol. II — Parte geral. Negócio jurídico. — Formação. Conteúdo e interpretação. Vícios da vontade. Ineficácia e invalidades, 4.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2014, págs. 875-909; ou Luís Carvalho Fernandes, Teoria geral do direito civil, vol. II — Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2001, págs. 280-319.

[8] Sobre a alienação em garantia ou alienação fiduciária em garantia, no quadro dos negócios fiduciários, vide por todos Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, 9.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2019, págs. 639-650; A. Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2014; Maria João Vaz Tomé / Diogo Leite de Campos, A propriedade fiduciária (Trust). Estudo para a sua consagração no direito português, Livraria Almedina, Coimbra, 1999; ou Catarina Monteiro Pires, Alienação em garantia, Livraria Almedina, Coimbra, 2009.

[9] Cf. acórdão do STJ de 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1.

[10] Cf. acórdãos do STJ 16 de Março de 2011 — processo n.º 279/2002.E1.S1 —, de 28 Novembro de 2013 — processo n.º 873/05.0TBVLN.G1.S1 —, de 30 de Setembro de 2014 — processo n.º  844/09.8TVLSB.L1.S1 —, de 7 de Março de 2017 — processo n.º 3585/14.0TBMAI.P1.S1 —, de 28 de Junho de 2017 — processo n.º 1626/12.5TBMT.J.L1.S1 —, 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1 —, de 9 de Julho de 2020 — processo n.º 1128/17.3T8PVZ.P1.S1 — ou de 14 de Janeiro de 2021 — processo n.º 2603/17.5T8STB.E1.S2.

[11] Expressões do acórdão do STJ de 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1.

[12] Expressões do acórdão do STJ de 14 de Janeiro de 2021 — processo n.º 2603/17.5T8STB.E1.S2.

[13] Cf. acórdão do STJ de 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1: “O contrato fiduciário… não se confunde com a simulação relativa (art. 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida”.

[14] Em consequência, a Ré, agora Recorrente, ao alegar que há simultaneamente uma alienação em garantia e uma simulação, está a incorrer em contradição — como se se diz no acórdão recorrido, “[a] argumentação da recorrente aparenta um paradoxal equívoco pois se, por um lado, dá a entender que o negócio em causa não era uma compra e venda tout court não era caso para invocar a simulação, bastando-lhe provar a substanciação desse negócio pois é ponto assente que a denominação, o nome que as partes deram ao acordo firmado poderá, quando muito, servir como um elemento auxiliar, entre outros, a ter em consideração no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, nada impedindo que o pactuado não coincida com o nome que lhe foi dado pelas partes”.

[15] Cf. designadamente acórdãos do STJ de 26 de Abril de 2018 — processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1 — e de 14 de Janeiro de 2021 — processo n.º 2603/17.5T8STB.E1.S2.

[16] Vide, na doutrina, Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 537-538, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato — Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indemnizar. Cláusulas penais, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2008, págs. 160-168; e, na jurisprudência, o acórdão do STJ de 27 de Novembro de 2008 — processo n.º 07B3045.

[17] Cf. conclusão 76 da alegação de recurso: “O que ainda assim peca deveras por defeito, uma vez que o imóvel foi vendido ao aqui Autor Habilitado por um preço consideravelmente superior – conforme resulta de contrato de compra e venda celebrado entre as partes e constante dos presentes autos”.

[18] Cf. conclusão 76 da alegação de recurso.

[19] Cf. Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, 13.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2017, pág. 453: “seguramente o conceito mais indeterminado no âmbito do enriquecimento sem causa”.

[20] Rui de Alarcão, Direito das obrigações (policopiado), Coimbra, 1983, pág. 190.

[21] Júlio Gomes, anotação ao art. 473.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, cit., pág. 251.

[22] Cf. acórdão do STJ de 24 de Março de 2017 — processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.

[23] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 23 de Setembro de 1999 — processo n.º 99B686 —, de 16 de Outubro de 2003 — processo n.º 03B2813 — e de 19 de Fevereiro de 2013 — processo n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1.

[24] Cf. acórdão do STJ de 24 de Março de 2017 — processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.