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CRIME DE AMEAÇA
MAL IMINENTE
CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
Sumário
I – O mal objeto da ameaça tem de ser um mal futuro. II - O mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. III – Sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal (já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico); mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça. IV – A relação existente entre o tipo de crime fundamental de ameaça e o agravado em nada se distingue daquela que se verifica em outros tipos de crime simples e qualificados, sendo unânime o entendimento de que a eventual exigência de queixa do tipo fundamental não se estende ao tipo qualificado, que é distinto daquele (é o que sucede, por exemplo, no caso dos crimes de furto simples e qualificado, previstos nos artigos 203º e 204º do Código Penal; nos crimes de ofensa à integridade física simples e qualificada, previstos nos artigos 143º, 144º e 145º do Código Penal e nos crimes de dano simples e dano qualificado, previstos nos artigos 212º e 213º do Código Penal) V - Assim, no tipo de crime de ameaça agravado, a remissão feita pelo artigo 155º, nº 1 para o artigo 153º, não abrange o seu nº 2, que contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», antes se cinge, tão só, aos «factos previstos» no citado preceito, ou seja, à previsão do nº 1 onde se descrevem «factos». VI – O crime de ameaça agravado tem, pois, natureza pública.
Texto Integral
Proc. n.º 775/18.0GBVFR.P1
Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I–RELATÓRIO
No Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3 – do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, no processo comum singular nº 775/18.0GBVFR foi submetido a julgamento os arguidos B… e C…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Face ao exposto, julgo a acusação parcialmente procedente por provada e, em consequência, decide-se:
- absolver o arguido B… da prática de um dos crimes de ameaça agravada (ocorrido em 10/03/2019 na pessoa do ofendido D…) de que vinha acusado;
- operar a convolação fáctico-jurídica do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 155.º n.º1 alínea a) do C.P., ocorrido em 6/12/2018, de que o arguido B… vinha acusado, em crime de ameaça simples, p. e p. pelo art. 153.º n.º1 do C.P., homologar a desistência de queixa apresentada pelo ofendido D… e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido pela prática destes factos;
- operar a convolação fáctico-jurídica do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 155.º n.º1 alínea a) do C.P., ocorrido em 10/03/2019, de que o arguido C… vinha acusado, em crime de ameaça simples, p. e p. pelo art. 153.º n.º1 do C.P., homologar a desistência de queixa apresentada pelo ofendido D… e, em consequência, julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido pela prática destes factos;
- condenar o arguido B… pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), do Código Penal (ocorrido em 10/03/2019 na pessoa da ofendida E…), na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros), num total de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros).
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Custas pelo arguido B… e pelo assistente D…, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s – cfr. art. 513.º n.º1 e 3 e 515.º n.º1 alíneas a) e d) do C.P.P. e art. 8.º n.º9 do R.C.P., por referência à Tabela III anexa àquele diploma.
Notifique e deposite.
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Inconformado com a sentença, o arguido veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso versa sobre a condenação do arguido B… pela prática de um crime de ameaça agravada, p.p pelos artigos 153 n°1 e 155 n°1 alínea a) do Código Penal, ocorrido em 10-03-2019 na pessoa da ofendida E…, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, num total de €480,00.
2. Da matéria dada como provada e com interesse para o presente recurso, destaca-se:
“3-Nodia10/03/2019,pelas13horas,naRua … - …,juntoaon° .., …,SantaMariadaFeira,o arguidoB…,motivadopormotivospassionais,aovisualizaraofendidaE…(mãedoofendidoD…)proferiuasseguintesexpressõesdirigidasàmesma:"vou-tematar" 4-AofendidaE…ficoucomreceio,médioeinquietação,"
3. Verificou-se um erro flagrante na apreciação da prova - máxime ponto 3 e 4 dos factos provados, e por conseguinte, Violação do principio indubioproreo. Art 410 n°2 al.c) do CPP
4. Os depoimentos dos assistentes (D… e E…) e da testemunha F…, não merecem qualquer credibilidade pois além da relação familiar existente - mãe e respectivos filhos - as múltiplas incongruências e contradições existentes nas versões relatadas são flagrantes..
5. Não há dúvida que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum e contra critérios legalmente fixados, uma vez que não foi produzida qualquer prova nesse sentido- se consubstancia no facto do Tribunal ter considerado provado os pontos 3 e 4 dos factos provados.
6. O Assistente D… disse que conhece o arguido B… apenas de vista do caso - o que não é verdade, por se tratar do namorada da sua ex-namorada e que o acordo de desistência junto aos autos respeitante a um processo com a sua namorada pensava que estava tudo resolvido. No que se reporta aos pontos 3 e 4 dos factos provados, só após muita insistência da Meritíssima Juíza, o assistente referiu que o arguido B… tinha proferido apenas a expressão "..vou-te abrir a cabeça" dirigido a sua mãe.
7. O depoimento da assistente E… é tudo menos credível uma vez que o seu depoimento apresenta enormes discrepâncias de fundo, tendo sido, inclusivamente, alertada pela Digníssima Porcuradora a assistente que estava a dizer uma coisa, passado um bocadinho acrescentava ou não determinada expressão. As suas versões não são coincidentes.
8. No seu depoimento, a assistente E… disse que mandou o seu filho entrar dentro de casa inclusive perguntou ao arguido B… porquê. Ora tal atitude não é compatível com uma pessoa que teve receio e medo.
9. Da audição dos depoimentos dos assistentes conclui-se que não estavam mais ninguém além deles, peio que, não há quaisquer testemunhas que possam corroborar as versões discrepantes dos assistentes. Razão pela qual o depoimento da testemunha F… quanto a estes factos não tem relevância.
10.O discurso do assistente D… e da assistente E… ao dirigir-se ao arguido e respectiva namorada demonstra desdém, e ao utilizar determinadas expressões demonstram que pretendiam retaliações "a namorada, o fiiho da namorada..."
11.A dificuldade dos assistentes em distinguir as injurias e as alegadas ameaças é demonstrativo no nosso entender, que ambos jamais assumiram as alegadas expressões proferidas como ameaça e por conseguinte, jamais sentiram medo ou inquietação ou prejudicaram a sua liberdade de determinação.
12.Consta dos autos de fls … requerimento nos termos do qual, os assistentes, E… e D… declararam que desistem do procedimento criminai contra o arguido B….
13.Face prova produzida, jamais o Tribunal poderia ter dado como provados os pontos 3 e 4 dos factos provados, porque subsiste em relação a estes factos uma duvida - não ficou provado com um grau de certeza suficiente que o arguido disse proferiu aquelas expressões, nem que a assistente tenha tido medo -devendo por isso beneficiar do principio indúbioproreo.
14. Perante essa margem de incerteza irremovível que convoca a aplicação do princípio indubioproreo e que o tribunal aquo afastou, quando, s.m.o, o devia ter aplicado,
15.O Tribunal aquo considerou que a expressão " vou-te, matar" proferida alegadamente pelo arguido, de "forma oral e directamente dirigida à visada, significa, inequivocamente um anúncio de um mal para a vida da ofendida. Pelo que, ao dirigir-se nos termos referidos, quis o arguido com tal expressão de teor intimidatório, criar um estado de medo naquela, temendo que o mesmo pudesse concretizar tais intentos anunciados. Mais acresce que, tendo as mesmas palavras sido proferidas em contexto de discussão e animosidade para com a ofendida e seu filho, forçoso é concluir que a ameaça foi apropriada, dentro de um critério de razoabilidade próprio do homem médio ou comum, a criar um estado de medo na ofendida… "Pra o preenchimento do tipo lega! em causa " exige-se apenas a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individuai ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado"
16.No nosso entender, o tribunal errou, ao considerar que o arguido praticou o crime de ameaça agravada, p e pelos artigos 153 n° 1 e 155 n°1 alínea a) do CP e por revestir natureza publica, a desistência da queixa não é juridicamente razão.
17.O crime de ameaça está previsto no artigo 153° n° 1 do CP exige como elemento objectivo, que o agente pronuncie um mal futuro, cuja verificação dependa da sua vontade e que constitua crime, devendo efectuá-lo de forma propícia a provocar medo ou inquietação à vítima. O conceito de ameaça contém 3 requisitos fundamentais: um mal, futuro e cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
18.No caso concreto, a ameaça proferida não se revela apropriada a determinar prejuízo à liberdade de determinação dos queixosos, pois somente constitui um aviso e não foram adequadas a provocar aos seus recetores medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, como se percebe tomando em conta a postura da assistente E… ao relatar a sua versão ( ela mandou o seu filho para dentro de casa e ainda ficou a questionar o arguido a razão pela qual ele estava a proferir tais expressões).
19.Uma a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais e exige-se a comprovação da adequação da ameaça, perante a situação concreta, para provocar medo ou inquietação.
20.Por outro lado, a simples utilização daquela expressão, de forma isolada, sem a utilização de nenhum objecto, e de acordo com o contexto descrito pelos assistentes, não é possível extrair a ilação de que o arguido, que a assistente, como qualquer homem médio colocado nas concretas circunstâncias em que ela se encontrava, levou naturalmente a sério o mal anunciado.
21. De acordo com o Professor Américo Taipa de Carvalho, "o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar o medo ou inquietação é objectivo-individuai: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentaís da pessoa ameaçada (relevância das «sub-capacídades» do ameaça).
22. Acresce que, incasu, a expressão utilizada embora usada no presente do indicativo, ocorre o anúncio de um mal actual, iminente, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali, sendo levado à prática, integra o crime de ofensa à integridade física, ou dado que o agente desiste de o executar, sem que, em qualquer dos casos, o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da vítima. Cremos que este contexto, é revelador de um evidenciado, iminente, propósito de tirar a vida ao ofendido, integrando um acto executório do crime (do qual o agente veio a desistir de levar adiante) e não de uma ameaça contra a sua liberdade.
23.Finalmente,importaaindamencionarqueosassistentessusbscreveramumdocumentonostermosdoqual,aíémdadesistênciadoprocedimentocriminal,declararam" que as palavras proferidas pelos arguidos não foram adequadas a provocar medo ou Inquietação, não tendo por conseguinte provocado nem medo e nem receio. Logo, não prejudicaram a liberdade de determinação dos assistentes."
24.Por não se verificar todos os elementos objectivos do tipo de ilícito, impõe-se a absolvição do recorrente.
25.Ademais, contrariamente a posição assumida pelo Tribunal, defendemos que o crime imputado -ameaça agravada, p. e p. pelo artigos 153.° e 155.° do Código Penal - ao arguido reveste natureza semi-pública, pelo que será relevante a desistência da queixa apresentada.
26.O crime de ameaça não sofreu alterações (de fundo) desde a sua redacção originária no Código Penal de 1982, mantendo desde então a sua natureza semi-pública. Com reforma penai levada a efeito pela já mencionada Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o dispositivo onde antes estava contemplada a agravação da moldura penai prevista para os casos em que alguém ameaçava outrem com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos - o n.° 2 do artigo 153.° - passou a constar do artigo 155.°, ao lado de outras circunstâncias que agravam o crime de ameaça.
27.Tal alteração não acarreta, por si só, uma alteração da natureza semi-pública do ilícito, porque contém meramente um conjunto de circunstâncias agravantes do crime base, para o qual remete necessariamente, não constitui um tipo penal autónomo e independente.
28.No sentido da opinião por nós agora sufragada, Pedro Daniel dos Anjos Frias (in "Por quem dobram os sinos?" - A Perseguição pelo Crime de Ameaça Contra A Vontade Expressa do Ofendido?! Um Silêncio Ruidoso", Revista Julgar, Janeiro - Abril 2010, Tribunal Judicia! da Comarca de Aveiro Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2 Palácio da Justiça, Rua …, ..-.. ….-… Santa Maria da Feira Telef: 256377147 Fax: 256090139 Mail: feira.judicial@tribunais.org.pt Proc.N0 1475/18.7T9VFR Associação Sindical dos Juízes Portugueses): "(...) entendoqueoartigo155.°,doCódigoPenal,constitui,emrelaçãoaocrimedeameaça,previstonoartigo153.°doCódigoPenal,umrepositóriodecircunstânciasqueagravamapenaaaplicaraoagenteequenãoprescinde,paraasuaactuaçãoconcreta,demanifestaçãodevontadedavítima,independentementedaqualidadeoucondiçãodesta."e"Ascircunstânciasagravantescontidasnoartigo155.°,n.°1doCódigoPenal,nãoalteramanaturezadocrimedeameaça,".
29.O crime de ameaça agravada tem natureza semi-pública (artigo 155.°, n,° 1, alínea a) do Código Penal), já que se reporta ao tipo de crime do artigo 153.°, de natureza semi-pública, não configurando a mera agravação das penas aplicáveis pelas circunstâncias elencadas no artigo 155.° uma alteração da natureza do crime, apenas configurando um crime público a prática do crime de coacção agravada porque também o é o crime simples.
30.Além de corresponder a vontades das partes e atendendo a natureza semi-pública do ilícito penal que ao arguido é imputado - artigos 153.°, n.° 2, do Código Penal a legitimidade do desistente, a tempestividade do acto praticado e a não oposição do arguido, a desistência de queixa é válida e juridicamente eficaz - artigo 116.°, n.° 2 do Código Pena! -, em razão do que, nos termos previstos no artigo 51.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, a homologo, declarando consequentemente extinto o procedimento criminal instaurado nos presentes autos contra o arguido.
Termos em que, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso e em consequência decidir-se pela absolvição do arguido, ou se assim não se entender, homologar a desistência de queixa apresentada pela ofendida e em consequência, julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido B… pela prática do crime de ameaça agravada p.p pelo artigo 153 n° 1 do CP.
Como é de inteira e sã JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido (cfr. despacho datado de 12.02.2021).
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O Ministério Público respondeu defendendo que, no que toca à impugnação da matéria de facto, o recurso “nãopodeterprovimento,poisque,nostermosdoartigo412.º,n.º3,alíneab)doCódigodeProcessoPenal,oTribunaldaRelaçãosópodemodificaradecisãorecorridaemtermosdefactoquandoaprovaimponhadecisãodiversadaquelaquefoitomadapeloTribunal”,paraalémdeque“Inexiste,nasentençaemcrise,qualquerjuízofeitodeformaarbitráriapelojulgadorouquaisquerjuízosvioladoresdasregrasdaexperiênciacomum,peloquenãoassistequalquerrazãoaoRecorrente”,defendendoaindaque“notextodasentençanãosevislumbraquesobreaMma.Juizhajaperpassadoquaisquerdúvidas(emuitomenosdessanatureza)eque,porviadelas,adecisãorecorridacontenhaqualquererronotórionaapreciaçãodosfactosounavaloraçãodaprovaproduzida”.RelativamenteàvaloraçãodadesistênciaapresentadaoMinistérioPúblicosufragaintegralmenteaposiçãodorecorrentenosentidodequeoreferidoilícitotemnaturezasemi-pública,peloqueconcluique“deveserhomologadaadesistênciadequeixaapresentadaou,assimnãoseentendendo,deverámanter-seadoutasentençaproferida”.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, defendendo que “ocrimedeameaçaprevistonoartigo153.ºdoCP,qualificadonostermosdodispostonoartigo155.ºn.º1alíneaa),doCP,assumenaturezapúblicaedestemodoadesistênciadequeixaéirrelevante”, emitiu parecer no sentido de que “orecursodeveserjulgadototalmenteimprocedenteeconsequentementehaveráquemanteradecisãorecorrida”.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
*** II–FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal singular.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida.
Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados e respetiva motivação (transcrição):
II.FUNDAMENTAÇÃODEFACTO Factosprovados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
1. No dia 06/12/2018, pelas 15 horas e 30 minutos, na Rua … – …, junto ao n.º .., …, Santa Maria da Feira, o arguido B…, motivado por motivos passionais, abeirou-se do ofendido D… e proferiu as seguintes expressões dirigidas ao mesmo: “vou-te abrir a cabeça”.
2. O ofendido D… ficou com receio, medo e inquietação.
3. No dia 10/03/2019, pelas 13 horas, na Rua … – …, junto ao n.º .., …, Santa Maria da Feira, o arguido B…, motivado por motivos passionais, ao visualizar a ofendida E… (mãe do ofendido D…), proferiu as seguintes expressões dirigidas à mesma: “vou-te matar”.
4. A ofendida E… ficou com receio, medo e inquietação.
5. Após, o ofendido D… abeirou-se do arguido B… questionando o mesmo o que queria, tendo este dito ao mesmo: “vou-te foder o carro e o telemóvel”.
6. O ofendido D… ficou com receio, medo e inquietação.
7. Naquele momento, abeirou-se chegou ao local o arguido C… (familiar do arguido B…) que proferiu expressões concretamente não apuradas mas dirigidas ao ofendido D…, ao mesmo tempo que passava com a mão estendida ao longo do seu pescoço.
8. O ofendido D… ficou com receio, medo e inquietação.
9. O arguido B… ao levar a cabo as acções descritas, actuou com intenção de provocar medo e inquietação aos ofendidos D… e E…, agindo de forma livre, consciente e deliberada.
10. O arguido C… ao levar a cabo a acção descrita, actuou com intenção de provocar medo e inquietação ao ofendido D…, agindo de forma livre, consciente e deliberada.
11. Bem sabiam os arguidos que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
12. O arguido B… é ajudante de máquinas, auferindo o salário mínimo nacional; vive com a sua mãe, a qual é doméstica; habitam em casa arrendada, suportando o arguido a quantia mensal média de 200,00€ com as despesas da casa; como habilitações literárias tem o 6.º ano de escolaridade.
13. O arguido C… é mineiro, actualmente desempregado; realiza trabalhos esporádicos através dos quais aufere a quantia mensal média de 500,00€; vive com a sua irmã; tem três filhos menores, a cargo da mãe; como habilitações literárias tem o 4.º ano de escolaridade.
14. O arguido B… não tem antecedentes criminais.
15. O arguido C… sofreu já as seguintes condenações transitadas em julgado:
a. PS 465/00, foi condenado por sentença transitada em julgado em 28/09/2000 pela prática em 11/07/2000 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 50 dias de multa;
b. PCS 242/03.7GBVFR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 9/01/2007 pela prática em 28/05/2003 de um crime de tráfico de menor gravidade na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa por 2 anos;
c. PCS 67/03.0TAVFR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 18/01/2010 pela prática em 12/08/2002 de um crime de falsificação de documento na pena de 9 meses suspensa por 1 ano;
d. PCC 199/08.8GBVFR, foi condenado por acórdão transitado em julgado em 20/05/2014 pela prática em 2008 de um crime de furto qualificado na pena de 3 anos de prisão suspensa por igual período com regime de prova;
e. PS 508/13.8GBVFR, foi condenado por sentença transitada em julgado em 1/10/2013 pela prática em 11/11/2015 de um crime de furto qualificado na pena de 110 dias de multa.
Factosnãoprovados
Com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias referidas em 1) o arguido B… disse ao ofendido D…: “vou-te foder com as chaves”.
b) Nas circunstâncias referidas em: 5), o arguido B… disse ao ofendido D…: “quero-te a ti, vou chamar alguém para te foder a ti e à tua mãe”.
c) Nas circunstâncias referidas em 7), o arguido C… disse ao ofendido D…: “Eu agora já te conheço, tens os dias marcados”.
Motivação
O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no art. 127.º do C.P.P.
Os arguidos B… e C… recusaram-se validamente a prestar declarações no uso do seu direito ao silêncio.
O tribunal valorou, assim, as declarações prestadas pelos assistentes D… (ofendido) e E… (ofendida e mãe do ofendido D…) e os depoimentos prestados pelas testemunhas F… (irmã e filha dos ofendidos), G… (filho da ex-namorada do assistente D… e actual namorada do arguido B…) e H… (ex-namorada do assistente D… e actual namorada do arguido B…).
Importa referir, desde logo, terem ocorrido em audiência de julgamento algumas divergências nos depoimentos prestados, descrevendo os factos de forma diversa. Porém, importa ter presente que, não se vislumbrando qualquer particular intenção por parte dos assistentes em prejudicar os arguidos (tanto mais que, apesar de subsistir alguma animosidade, afirmaram somente conhecer os arguidos da situação em causa nos autos e até manifestaram vontade de desistir das queixas apresentadas e dos pedido de indemnização civil formulados), o tribunal atribuiu quaisquer divergências das declarações prestadas entre os dois assistentes e entre estes e o depoimento da testemunha F…, sua familiar directa, a alguma confusão ou falta de memória, natural em face do número de episódios ocorridos e do decurso do tempo.
Nessa medida, quanto ao primeiro episódio descrito em 1) dos factos provados, o assistente D… descreveu o sucedido, de forma séria e credível, dizendo que foi abordado pelo arguido B… (que sabia apenas ser o actual namorado da sua ex-namorada H…), o qual lhe disse “vou-te abrir a cabeça”, não relatando qualquer outra expressão. Assim, não tendo sido este relato contrariado por qualquer elemento
probatório, o tribunal deu esta expressão como provada, sendo a restante factualidade considerada como não provada em a).
Relativamente ao segundo episódio, foram várias as versões trazidas a julgamento. Por um lado, os assistentes e a testemunha F… descreveram que os primeiros foram abordados, inicialmente pelo arguido B… e pela testemunha G…, e posteriormente também pelo arguido C…, o qual se deslocou ao lugar da ocorrência dos factos. Por outro lado, a testemunha G… negou que tivessem sido proferidas quaisquer das palavras descritas na acusação.
Desde logo, importa referir que este depoimento da testemunha G… não nos mereceu qualquer credibilidade: pelo comprometimento com que foi prestado, pelas incongruências das suas declarações e pela circunstância de ter sido desmentido, de forma que nos pareceu séria e segura, pelos assistentes e pela testemunha F…. Note-se que, segundo a testemunha G…, vinha de registar uma aposta com o arguido B… (actual namorado da sua mãe) e, por coincidência, passaram em frente à casa do assistente D…, o qual estava na varanda e os abordou, saindo de casa munido de um ferro e ameaçando que os iria agredir. Disse então que ali permaneceram à espera que o assistente se aproximasse. Mais relatou que, sem explicar o que efectivamente se teria passado, ficaram no exterior da casa do assistente até chegar a irmã deste, sem que nenhumas ameaças tenham sido proferidas pelo arguido B…. Referiu, por fim, que este então ligou ao arguido C…, que se dirigiu ao local, e que depois da sua chegada se foram embora, não tendo em momento algum apresentado queixa contra o assistente. Tal depoimento mostrou-se totalmente inverosímil, contrário às regras da experiência e da normalidade, ficando por explicar por que razão haveriam os arguidos de ficar à espera que o assistente os abordasse, vindo da varanda de sua casa, o que ficaram a falar enquanto chegavam outras pessoas ao local, qual a razão para o arguido B… ter chamado o arguido C… e por que razão aguardaram a sua chegada para, após, terem abandonado o local, tudo fazendo, supostamente, de forma pacifica.
Resta referir que a testemunha H… afirmou que nada presenciou relativamente aos factos em julgamento.
Em face da prova assim produzida quanto ao sucedido em 10/03/2019, o tribunal ficou convencido de que, efectivamente, os arguidos proferiram expressões dirigidas aos assistentes. Porém, tendo ocorrido várias descrições das palavras que foram sendo ditas por ambos os arguidos, surgiram dúvidas quanto àquelas que efectivamente foram proferidas, pelo que o tribunal apenas deu como provadas as expressões que resultaram de forma segura da prova produzida.
Desta forma, quanto a este episódio, o assistente D… referiu que ouviu o arguido B… a dizer que lhe ia “abrir a cabeça”, “partir o carro”, “partir os dentes” e que lhe iria “foder o carro e o telemóvel”. Já quanto ao arguido C…, o assistente afirmou que o mesmo lhe disse que lhe “foder os dentes e o telemóvel”, ficando convencido que o mesmo apenas pretendia dizer que o iria agredir, mas não mais do que isso.
A assistente E… afirmou, de forma peremptória, que o arguido B… lhe disse que a iria matar e que, relativamente ao seu filho, afirmou “parto-te esses dentes, eu mato-te”. Já quanto ao arguido C…, afirmou que o mesmo disse ao D… “eu fodo-te, eu mato-te, eu conheço-te bem e vou-te foder”. A assistente foi, porém, confrontada com as suas declarações prestadas na fase de inquérito (a fls. 16 e 17 dos autos), em que descreveu diferentes expressões dirigidas ao seu filho, mostrando-se então hesitante quanto àquelas que foram efectivamente proferidas. Nessa medida, se quanto às palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido B…, o tribunal ficou convencido da sua credibilidade (até porque constavam já daquelas declarações, prestadas em momento mais próximo da ocorrência dos factos), sérias dúvidas restaram quanto às palavras que a assistente ouviu como tendo sido dirigidas ao assistente D….
Ademais, a testemunha F…, que se deslocou a casa da sua mãe a pedido desta e do ofendido, afirmou ter ouvido o arguido B… a dizer ao seu irmão “eu mato-te, eu parto-te os dentes”. Já quanto ao arguido C…, que, entretanto, chegou também ao local, afirmou que o mesmo apenas disse “quando passar por ti…” e de seguida fez um gesto com a mão a passar pelo pescoço.
Ora, em face de tais diferentes versões, certo é que nenhum dos intervenientes fez referência às expressões descritas em b) e c) dos factos não provados, relatando até expressões com significados particularmente diferentes, havendo total ausência de prova quanto às mesmas. Assim, quanto a este episódio envolvendo o assistente D… e o arguido B…, o tribunal apenas pôde valorar o depoimento do ofendido na parte em que confirmou a expressão descrita na acusação "vou-te foder o carro e o telemóvel”, expressão que constava também já das declarações prestadas pela assistente na fase de inquérito. Já quanto ao arguido C…, em face das diferentes versões, o tribunal não logrou apurar quais as concretas palavras que pelo mesmo foram ditas, dando como provado o gesto que o mesmo fez,
seja porque descrito, de forma séria e credível, pela testemunha F…, seja porque essa mesma descrição consta também das declarações prestadas pela assistente E… na fase de inquérito e lidas em audiência de julgamento.
Por fim, cumpre referir que a nada obsta à factualidade dada como provada o teor da declaração subscrita pelos assistentes e junta aos autos em 13/10/2020. Não obstante o ali declarado (designadamente que as expressões proferidas não foram adequadas a provocar medo ou inquietação), certo é que resultou de forma inequívoca da prova em julgamento que as palavras em causa foram ditas com foros de seriedade, num contexto de litigio motivado por relações pessoais entre os intervenientes, e que assim foram entendidas pelos visados.
Quanto às condições económicas e pessoais dos arguidos, o tribunal valorou as declarações prestadas pelos próprios em audiência de julgamento.
Por fim, quanto aos antecedentes criminais, foi valorado o teor dos respectivos certificados de registo criminal.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada e Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95)].
1. Assim, face às conclusões apresentadas pelo arguido, importa decidir as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto: vício decisório aludido no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal/ erro de julgamento; violação do princípio indubioproreo;
- Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido; - Valoração da desistência de queixa.
*** Decidindo
1.Impugnaçãodamatériadefacto:víciodecisórioaludidonoartigo410º,nº2,alíneac),doCódigodeProcessoPenal/errodejulgamento/violaçãodoprincípioindubioproreo
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pela recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
O arguido sindica a matéria de facto recorrendo às duas vias.
No que à primeira se refere o recorrente defende que “Verificou-seumerroflagrantenaapreciaçãodaprova-máximeponto3e4dosfactosprovados,eporconseguinte,Violaçãodoprincípioindubioproreo.Art410n°2al.c)doCPP.Osdepoimentosdosassistentes(D…eE…)edatestemunhaF…,nãomerecemqualquercredibilidadepoisalémdarelaçãofamiliarexistente-mãeerespectivosfilhos-asmúltiplasincongruênciasecontradiçõesexistentesnasversõesrelatadassãoflagrantes.Nãohádúvidaqueotribunalvalorizouaprovacontraasregrasdaexperiênciacomumecontracritérioslegalmentefixados,umavezquenãofoiproduzidaqualquerprovanessesentido-seconsubstancianofactodoTribunalterconsideradoprovadoospontos3e4dosfactosprovados”.
Vejamos.
Estabelece o artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Comecemos por dizer que não se pode confundir o erro de julgamento com o vício do erro notório na apreciação da prova, os quais ocorrem respetivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legisartis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
Em matéria de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, muitas vezes se confunde o da al. c) (erro notório da apreciação da prova) com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
Ora, como já se disse, apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, se os mesmos decorrerem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Revertendo para o caso em apreço, nomeadamente para o texto da sentença em crise, importa dizer que o tribunal aquo valorou toda a prova produzida, não se bastando com uma leitura parcial e descartada das regras da experiência comum.
De facto, o tribunal aquo analisou toda a prova produzida, criticamente e de forma concertada, com recurso às regras da experiência comum, explicando detalhadamente os elementos de prova de que partiu e as razões pelas quais chegou a determinada conclusão sobre a matéria de facto, de tal modo que é possível percecionar a linha de raciocínio conducente à convicção que formou
E da mera leitura da sentença recorrida não resulta efetivamente por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o Tribunal; ao invés, é assertiva a fundamentação que dela resulta, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do Tribunal aquo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência.
Quer dizer, do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência, constam os factos suficientes para a decisão de direito, a mesma dá como provados os factos necessários e suficientes ao raciocínio lógico-subsuntivo que integra a decisão (de condenação), sendo que o tribunal apurou e pronunciou-se sobre os factos relevantes alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, e investigou os factos relevantes para a decisão, não evidenciando erro notório na apreciação da prova.
Ora, o recorrente discorda da forma como foi apreciada pelo tribunal a prova produzida em audiência, pretendendo contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos (que é irrelevante) à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invoca o aludido vício decisório. No entendimento do arguido/recorrente, a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão que veio a ser acolhida na sentença recorrida.
Contudo, o modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efetuado pelo tribunal aquo, ao não coincidir com a perspetiva do recorrente nos termos em que este as analisam, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão.
Por conseguinte e, face ao exposto, entendemos que, ao contrário do propugnado pelo recorrente, não padece a sentença recorrida do invocado vício aludido na alínea e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
O arguido também sindica a matéria de facto através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal.
Nestes casos (de impugnação ampla), o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E sem esquecer que uma das grandes limitações do tribunal de recurso, quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efetuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto direto com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
No nosso sistema processual vigora o já referido princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com o qual o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua íntima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos (cfr. artigo 127º do Código de Processo Penal). E a livre apreciação da prova está sujeita ao controlo deste tribunal de recurso, quando a violação do princípio da objetividade for evidente.
Cavaleiro Ferreira, in «Curso de Processo Penal», 1986, 1° Vol., Fls. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e as normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».
O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, «é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (...) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo» (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.).
Também não podemos esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal).
Na verdade, é comumente aceite que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP de 28.01.2009, do TRC de 30.03.2010 e do STJ de 11.07.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
Em face de todo o exposto, podemos dizer que, regra geral (e ressalvadas as exceções previstas na lei), na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. Normalmente, o que acontece é que, face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras, nada impedindo a que esse convencimento parta de um registo mínimo, mas credível, de prova, em detrimento de vastas referências probatórias, que, contudo, não têm qualquer suporte de credibilidade.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
É certo que casos há em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Atente-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal adquem são aquelas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal) – neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 17.02.2005, relatado por Simas Santos, acessível em www.dgsi.pt.
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados, com as especificações estatuídas no artigo 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal, ónus que aquele cumpriu.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida. E atentemos também nos argumentos invocados pelo arguido que defende que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 3º e 4º dos “Factos Provados, os quais considera que deverão ser dados como não provados.
Defende o recorrente que “sóapósmuitainsistênciadaMeritíssimaJuíza,oassistentereferiuqueoarguidoB…tinhaproferidoapenasaexpressão“...vou-teabriracabeça”dirigidoasuamãe”, sendo que o “depoimentodaassistenteE…étudomenoscredívelumavezqueoseudepoimentoapresentaenormesdiscrepânciasdefundo”, além de que “Daaudiçãodosdepoimentosdosassistentesconclui-sequenãoestavammaisninguémalémdeles,peioque,nãoháquaisquertestemunhasquepossamcorroborarasversõesdiscrepantesdosassistentes.Razãopelaqualodepoimentodatestemunha F… quantoaestesfactosnãotemrelevância”. Alega ainda que o “discursodoassistente D… edaassistente E… aodirigir-seaoarguidoerespectivanamoradademonstradesdém”,sendoque“ambosjamaisassumiramasalegadasexpressõesproferidascomoameaçaeporconseguinte,jamaissentirammedoouinquietaçãoouprejudicaramasualiberdadededeterminação”.
Argumenta, ainda, o recorrente que consta dos autos requerimento nos termos do qual, os assistentes, E… e D… declararam que desistem do procedimento criminal contra o arguido B… e que as palavras proferidas pelos arguidos não foram adequadas a provocar medo ou inquietação, não tendo por conseguinte provocado nem medo e nem receio. Logo, não prejudicaram a liberdade de determinação dos assistentes.
Vejamos.
O Tribunal da Relação procedeu à análise da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal e documental, sendo que os segmentos dos depoimentos/declarações aludidos na motivação do recurso traduzem apenas parte do que foi dito na audiência de julgamento, correspondendo apenas a parte da prova produzida, e não são suscetíveis de abalar a convicção do tribunal, conforme pretende o recorrente.
Por outro lado, não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre os vários depoimentos/declarações, o tribunal atribua maior credibilidade a uns em detrimento de outros, na medida em que todos se encontram sujeitos à livre apreciação do julgador.
Sabemos que as provas (todas) se encontram sujeitas à livre apreciação do julgador e não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência. E não podemos esquecer que os vários depoimentos prestados, não podem ser retirados e isolados do contexto, omitindo-se ou exacerbando-se parte deles, conforme se defenda uma ou outra versão.
Efetivamente impõe-se que o tribunal proceda a uma análise conjugada dos meios de prova, tendo presentes as regras da experiência comum e da normalidade, sendo-lhe permitido socorrer-se de presunções naturais para a formação da convicção sobre a factualidade provada, conforme já referimos, devendo a sua convicção apoiar-se em raciocínio lógico, objetivo e motivado, sem atropelo daquelas normas da vivência comum e resulte perfeitamente explicado na decisão.
No caso subjudice, no que se refere à matéria de facto impugnada, a motivação de facto revela uma avaliação objetiva, racional e ajuizada do conjunto da prova produzida. Mostra-se estruturada a partir da análise das declarações dos assistentes D… (a quem foi perguntado diretamente se o arguido tinha feito alguma ameaça, tendo o assistente respondido: "Sim…vou-te abrir a cabeça" dirigido à sua mãe. "sim, vou-te abrir a cabeça”, várias vezes" e E… (que “afirmou, de forma peremptória, que o arguido B… lhe disse que a iria matar”) e da testemunha F… (que confirmou que se deslocou a casa da sua mãe a pedido desta e do ofendido e afirmou ter ouvido o arguido B… a dizer ao seu irmão “eu mato-te, eu parto-te os dentes”), tendo sido unânimes em confirmar a abordagem aos primeiros pelo arguido B…, declarações e depoimento devidamente valorados e conjugados entre si e com as regras da experiência comum e com recurso a presunções legais.
E reiteramos que, lendo as transcrições da prova gravada, nomeadamente os concretos segmentos dos depoimentos dos ofendidos/assistentes que são convocados pelo recorrente, não se vislumbra que, de essencial, algo resulte que permita infirmar aquela que foi a convicção formada pelo julgador em 1ª instância. A conjugação de todos os elementos probatórios permitem inferências suficientemente seguras no sentido da matéria de facto dada como provada, sendo que não vislumbramos qualquer contra-argumento suficientemente seguro que justificasse solução diferente daquela a que chegou o Tribunal.
E mesmo eventuais divergências existentes entre os depoimentos/declarações das referidas testemunhas/ofendidos/assistentes, que não deixaram de ser assinaladas pelo tribunal aquo, reportam-se a pormenores que não contendem com o núcleo fáctico essencial e são fruto do decurso do tempo, da inerente seleção da memória e da necessária efemeridade da ocorrência e multiplicidade dos factos. Mas, reitera-se, não bolem com a essência da factualidade em causa, não sendo suscetíveis de abalar a credibilidade dos mesmos.
Ademais, o tribunal aquo entendeu que “anadaobstaàfactualidadedadacomoprovadaoteordadeclaraçãosubscritapelosassistentesejuntaaosautosem13/10/2020.Nãoobstanteoalideclarado(designadamentequeasexpressõesproferidasnãoforamadequadasaprovocarmedoouinquietação),certoéqueresultoudeformainequívocadaprovaemjulgamentoqueaspalavrasemcausaforamditascomforosdeseriedade,numcontextodelitígiomotivadoporrelaçõespessoaisentreosintervenientes,equeassimforamentendidaspelosvisados”.
De facto, como se refere na sentença recorrida “nãosevislumbrandoqualquerparticularintençãoporpartedosassistentesemprejudicarosarguidos(tantomaisque,apesardesubsistiralgumaanimosidade,afirmaramsomenteconhecerosarguidosdasituaçãoemcausanosautoseatémanifestaramvontadededesistirdasqueixasapresentadasedospedidosdeindemnizaçãocivilformulados)”, não nos podemos esquecer que o assistente D… (ofendido) é filho de E… e o arguido B… é o atual namorado da testemunha H… (ex-namorada do assistente D…), pelo que a expressão em causa, no relatado contexto, foi proferida “com foros de seriedade”.
Acresce que a invocada declaração surge necessariamente em momento posterior à data da prática dos factos, num contexto completamente diverso, em que se procurava pôr termo à situação litigiosa.
Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (direta e indireta) produzida, e com eco na decisão proferida.
Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal aquo, tampouco o recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por ele indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal aquo.
Aqui chegados e, face a todo o exposto, parece-nos evidente a falta de razão do recorrente, no que se refere à invocada violação princípio do indubioproreo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
A violação do princípio indubioproreo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide “contra” a arguida. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
E a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra a arguida apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto (neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008, relator Conselheiro Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Ora, no caso em apreço, conforme já referimos, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objetiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
E a decisão em causa, quanto à matéria de facto impugnada, baseia-se num juízo de certeza, não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto dado como provado e acerca da sua autoria. Ao invés, o tribunal recorrido afirma convictamente a matéria dada como provada.
E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objetiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Pelo que, face a todo o exposto, é patente a inexistência de motivos para se invocar, como faz o recorrente, a violação do princípio do indubioproreo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, assim, a questão atinente à impugnação da matéria de facto.
2.Enquadramentojurídico-penaldacondutadoarguido
Aqui chegados e, considerando definitivamente assente a matéria de facto provada, cumpre enquadrar juridicamente a conduta do arguido.
Defende o recorrente que “Nocasoconcreto,aameaçaproferidanãoserevelaapropriadaadeterminarprejuízoàliberdadededeterminaçãodosqueixosos,poissomenteconstituiumavisoenãoforamadequadasaprovocaraosseusrecetoresmedoouinquietaçãoouaprejudicarasualiberdadededeterminação”.
Acresce que, segundo o recorrente, “incasu,aexpressãoutilizadaemborausadanopresentedoindicativo,ocorreoanúnciodeummalactual,iminente,contraaofensaàintegridadefísica,quecomeçaeacabaali,sendolevadoàprática,integraocrimedeofensaàintegridadefísica,oudadoqueoagentedesistedeoexecutar,semque,emqualquerdoscasos,omalanunciadoseprojectenaliberdadededecisãoedeacçãofuturadavítima.Cremosqueestecontexto,éreveladordeumevidenciado,iminente,propósitodetiraravidaaoofendido,integrandoumactoexecutóriodocrime(doqualoagenteveioadesistirdelevaradiante)enãodeumaameaçacontraasualiberdade”.
Invoca também o recorrente que “osassistentessubscreveramumdocumentonostermosdoqual,aíémdadesistênciadoprocedimentocriminal,declararam"que as palavras proferidas pelos arguidos não foram adequadas a provocar medo ou Inquietação, não tendo por conseguinte provocado nem medo e nem receio. Logo, não prejudicaram a liberdade de determinação dos assistentes."
E conclui que “Pornãoseverificartodososelementosobjectivosdotipodeilícito,impõe-seaabsolviçãodorecorrente”.
Vejamos.
Dispõe o artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal que “quemameaçaroutrapessoacomapráticadecrimecontraavida,aintegridadefísica,aliberdadepessoal,aliberdadeeautodeterminaçãosexualou benspatrimoniaisdeconsiderávelvalor,deformaadequadaaprovocar-lhemedoouinquietaçãoouaprejudicarasualiberdadededeterminação,épunidocompenadeprisãoaté1anooucompenademultaaté120dias”.
Por seu turno, dispõe o art. 155.° do Código Penal “Quandoosfactosprevistosnosartigos 153.ºe154.º-Cforemrealizadospormeiodeameaçacomapráticadecrimepunívelcompenadeprisãosuperioratrêsanos,oagenteépunidocompenadeprisãoaté2anosoucompenademultaaté240dias,noscasosdosartigos153.ºe154.º-C,compenadeprisãode1a5anos,noscasosdosn.º1doartigo154.ºedoartigo154.º-A,ecompenadeprisãode1a8anos,nocasodoartigo154.º-B”.
O bem jurídico protegido pelo citado artigo 153.º é a liberdade de decisão e de ação. “Asameaças,aoprovocaremumsentimentodeinsegurança,intranquilidadeoumedonapessoadoofendido,afetam,naturalmente,apazindividualqueécondiçãodeumaverdadeiraliberdade” (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal – parte especial, tomo I, Coimbra, 1999, página 342).
São elementos deste tipo legal de crime: a) a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; b) que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima e finalmente; c) o dolo.
A ameaça tem de representar o anúncio de um mal, que tanto pode ser de natureza patrimonial como pessoal; esse mal tem de ser futuro, sendo porém indiferente que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal; finalmente, torna-se indispensável que o mal futuro anunciado esteja na dependência da vontade do agente, indispensabilidade essa que deverá ser analisada, tendo como ponto de partida a perspetiva do homem comum, atendendo igualmente aos especiais conhecimentos da pessoa ameaçada.
Em segundo lugar, é necessário que a ameaça seja “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.
Como referiu Figueiredo Dias, no âmbito da Comissão de Revisão, “oqueseexige,parapreenchimentodotipo,équeaaçãoreúnacertascircunstâncias,nãosendonecessárioqueemconcretosechegueaprovocaromedoouainquietação” (Código Penal – Atas e Projeto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, página 500). Daí que o normativo legal em causa se assuma atualmente sob a veste de um crime de perigo e já não, como ocorria anteriormente à Revisão de 1995, como um crime de dano. Hoje, já não se exige a ocorrência do dano, como efectiva perturbação da liberdade do ameaçado, mas também não basta a simples ameaça da prática do
crime. Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o preenchimento do tipo legal (neste sentido, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário, cit, pág. 348, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, volume II, Lisboa, 1996, pág. 185).
Seguindo novamente os ensinamentos de Taipa de Carvalho, “ocritérioparaaferirdaadequaçãodaameaçaparaprovocaromedoouinquietaçãoéobjetivo-individual:objetivo,nosentidodequedeveconsiderar-seadequadaaameaçaque,tendoemcontaascircunstânciasemqueéproferidaeapersonalidadedoagente,ésuscetíveldeintimidarouintranquilizarqualquerpessoa(critériodohomemcomum);individual,nosentidodequedevemrelevarascaracterísticaspsíquico-mentaisdapessoaameaçada(relevânciadas«sub-capacidades»doameaçado).Assim,umadeterminadaameaçapode,relativamenteaumadultonormal,nãoseradequada,masjáoserquandooameaçadoéumacriançaouumapessoacomperturbaçõespsíquicas.”
Do que se conclui que a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais.
Entende o recorrente que no caso em apreço “ocorreoanúnciodeummalactual,iminente”.
A discórdia reside, precisamente, na interpretação que se faz da destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Enquanto uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça [cfr. Acs. TRP de 25/9/02, proc.º 0240259, de 22/1/03, proc.º 0210754, de 17/11/04, proc.º n.º 0414654, de 23/2/05, proc.º 0510031, de 30/3/05, proc.º 0510587, de 25/1/06, proc.º n.º 0544124, de 17/5/06, proc.º n.º 0411428, de 22/11/06, proc.º n.º 0614091, de 20/12/06, proc.º n.º 0645320, de 28/11/07, proc.º n.º 0712156, de 28/5/08, proc.º n.º 0841544, de 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e de 7/3/12, proc nº 625/10.6GBVNG.P1; TRG de 1/2/10, proc. nº 495/05.6GBMR.G2; TRC de 7/3/12, proc.nº110/09.9TATCS.C1 e de 30/5/12,proc.nº366/10.4GCTND.C1], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra de toque para distinguir o que é ameaça e o que são atos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer [Casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime são os que foram analisados nos Acs. TRP de 28/5/03, proc.º 0340713, TRL de 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e de 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e TRE de 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1] (art. 22º nº 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão [No âmbito deste entendimento, cfr. Acs. TRP de 16/2/00, proc.º n.º 9910861, de 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 e de 13/7/11, TRG de 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, TRC de 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 e de 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, TRL de 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 e d9/3/10, proc nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e TRE de 6/9/11, proc nº 428/09.0PBELV.E1].
A posição do recorrente é claramente tributária da lição de Taipa de Carvalho, seguida por alguma jurisprudência já citada.
A propósito refiram-se também os acórdãos (da mesma Relação do Porto) de 14.7.2004, relatora Conceição Gomes, em que se considerou que ”o arguido diz ao queixoso: “Anda cá para fora, que eu mato-te”, está a anunciar um mal futuro; de 30.3.2005, relator Fernando Monterroso, onde foi considerado como mal anunciado futuro, a expressão “eu vou dar cabo de ti, eu vou-te cortar aos bocadinhos”; de 21.6.2006, relator Jorge França, considerou-se como mal futuro, a situação de o arguido, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”; de 30.9.2009, do mesmo relator, onde se entendeu que a expressão “Quando te agarrar para os lados da … faço-te as contas” utilizada de forma séria, no contexto de uma discussão, é suscetível de preencher o tipo legal do crime de ameaça; de 22.9.2010, relatora Lígia Figueiredo, onde se entendeu que preenche o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: “hei de te pôr numa cadeira de rodas”; de 6.10.2010, relator Moisés Silva, onde se considerou preencher o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: «hei de tratar-te da saúde, e só não é hoje porque tenho uma distensão muscular”.
De facto, Taipa de Carvalho assinala que “Omalameaçadotemdeserfuturo.Istosignificaapenasqueomal,objetodaameaça,nãopodeseriminente,poisque,nestecaso,estar-se-ádiantedeumatentativadeexecuçãodorespetivoatoviolento,istoédorespetivomal.Estacaracterísticatemporaldaameaçaéumdoscritériosparadistinguir,nocampodoscrimesdecoação,entreameaça(deviolência)eviolência.Assim,p.ex, haveráameaça,quandoalguémafirmahei-de-tematar:jásetratarádeviolênciaquandoalguémafirma“vou-tematarjá” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343).
Mas, salvo o devido respeito, este trecho do texto de Taipa de Carvalho tem de ser cuidadosamente analisadas e pensadas, sob pena de se desvirtuar o pensamento do legislador. Antes do mais, é manifesto que o mal objeto da ameaça tem de ser um mal futuro. Ameaçar “éanunciaraalguémumgraveeinjustodano,necessariamentefuturo” (Ac. do TRP
de 17-1-1996, proc.º n.º 9540886, rel. Fernando Fróis, disponíveis em www.dgsi.pt).
Mal futuro que se contrapõe a um mal passado.
O anúncio de um mal que se projetaria no passado não constitui ameaça.
Mas o futuro é o tempo que há de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num
tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da
língua Portuguesa Contemporânea, I vol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue
ao presente, o que está por vir, que há de ser, que deverá estar, que há de
acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003,
tomo IV, pág. 1828), aquilo que há de ser (Cândido de Figueiredo, Grande
Dicionário da Língua Portuguesa, 25ªed, vol. II, 1996, pág.1225), que há de vir
(José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol.
III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua
Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).
Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e
que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante (Taipa de Carvalho, cit, §7,
pág. 343).
O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.
Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda
não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a
acontecer.
É claro que, sendo o mal iminente, poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.
Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses atos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, nosentidoemqueestaexpressãoétomadaparaefeitosdetentativa(cf.art.22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343).
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. do TRL de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério “mato-te”, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”, disponível em www.pgdlisboa.pt), o Ac. do TRP de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante [neste último sentido, Taipa de Carvalho, cit., §5, pág. 342 e §26, pág. 351, e o Ac. do TRP de 18-9-2002, proc.º n.º 0110489, rel. Baião Papão (“Para integrar o elemento subjetivo deste ilícito o que releva é a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça”)].
Revertendo para o caso em análise, sem esquecer as considerações expostas. Atentemos que a factualidade considerada provada pelo tribunal aquo se encontra definitivamente assente.
Provou-se que no dia 10/03/2019, pelas 13 horas, na Rua … – …, junto ao n.º .., …, Santa Maria da Feira, o arguido B…, motivado por motivos passionais, ao visualizar a ofendida E… (mãe do ofendido D…), proferiu as seguintes expressões dirigidas à mesma: “vou-te matar”. A ofendida E… ficou com receio, medo e inquietação.
Provou-se ainda que o arguido B… ao levar a cabo as acções descritas, actuou com intenção de provocar medo e inquietação aos ofendidos D… e E…, agindo de forma livre, consciente e deliberada.
Estas expressões proferidas, no relatado contexto, mostram-se adequadas a provocar medo e inquietação.
Ainda que assim não fosse, reiteramos que para a consumação do crime não é necessário que o destinatário efetivamente sinta medo ou inquietação, apenas que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade, o que inequivocamente, têm.
Ora, atenta tal factualidade e, face a todo o exposto, não restam dúvidas de que as expressões em causa traduzem o anúncio de mal futuro e, consequentemente, por se encontrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do tipo, a conduta do arguido integra a prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punível pelos art. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), do Código Penal.
Não merece, pois, censura a sentença recorrida quanto ao enquadramento jurídico-penal efetuado.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
3.Valoraçãodadesistênciadequeixa
A questão a apreciar é a de saber se o crime de ameaça agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 155º, nº 1 alínea a) e 153º, nº 1, do Código Penal, reveste natureza pública ou semipública, em ordem a avaliar sobre a eficácia extintiva do procedimento criminal, relativamente à desistência de queixa formulada nos autos pela respetiva ofendida e aceite pelo arguido.
É controversa na jurisprudência a questão atinente à natureza do crime de ameaça agravado, nomeadamente saber se estamos perante um crime público ou semipúblico e se é, ou não, necessária a apresentação de queixa para que se desencadeie procedimento criminal pela prática desse crime.
Vejamos.
A promoção da ação penal não depende, em regra, de impulso do titular dos interesses protegidos pela incriminação, competindo ao Ministério Público promover o processo penal, segundo o princípio geral da oficialidade ou publicidade, nos termos do artigo 48º do Código Processo Penal.
A legitimidade do Ministério Público está sujeita às limitações decorrentes das regras dos artigos 49º a 52º do Código Processo Penal, sendo que uma delas ocorre quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, caso em que é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (cfr. artigo 49º).
Nos casos em o procedimento criminal depender de acusação particular, torna-se ainda necessário que, para além da queixa, o ofendido se constitua assistente e deduza acusação particular (cfr. o citado artigo 50º).
De que resulta que, face ao regime regra do artigo 48º do Código de Processo Penal, a legitimidade do Ministério Público para promover a ação penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos em que exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito. Sendo que, nesses casos, mesmo depois de validamente instaurado o procedimento criminal, por haver queixa, a intervenção do Ministério Público cessa e o procedimento é declarado extinto se o ofendido manifestar nos autos desistência da queixa, até à publicação da sentença em 1ª instância e se não houver oposição por parte do arguido, após homologação pela entidade competente, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 116º nº 2 do Código Penal e 51º nºs 1 e 2 do Código Processo Penal.
Situação diversa ocorre quando o procedimento criminal tem natureza pública, ou seja, não está condicionado à apresentação da queixa, em que a desistência do procedimento por parte do ofendido não produz qualquer efeito quanto ao prosseguimento do processo criminal, conservando o Ministério Público a legitimidade para o promover.
Neste contexto, que dizer quanto à natureza do crime de ameaça agravado em causa nos autos, previsto e punível pelos artigos 155°, n.º 1 e 153.°, n.° 1 do Código Penal?
Como saber qual a sua natureza?
Com relevância, ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I,
Verbo, 6.ª edição, p. 271:
“Há, assim, crimes em que a lei nada diz quanto ao procedimento criminal – são os que a doutrina denomina por crimes públicos -, noutros diz que depende de queixa – e que a doutrina denomina por crimes semipúblicos ou quase públicos -, e ainda noutros diz que o procedimento depende de acusação – são os chamados crimes particulares.
Em termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou de acusação particular. Se nada estabelecer o crime é público e, consequentemente, o Ministério Público tem legitimidade quanto a esse crime para promover livremente o procedimento”.
Ora, analisadas as referidas disposições legais incriminadoras, não se confirma a existência de disposição legal que condicione a promoção do procedimento criminal pelo ilícito em causa à apresentação de queixa.
Na verdade, a relação existente entre o tipo de crime fundamental de ameaça e o agravado em nada se distingue daquela que se verifica em outros tipos de crime simples e qualificados, sendo unânime o entendimento de que a eventual exigência de queixa do tipo fundamental não se estende ao tipo qualificado, que é distinto daquele. É o que sucede, por exemplo, no caso dos crimes de furto simples e qualificado, previstos nos artigos 203º e 204º do Código Penal; nos crimes de ofensa à integridade física simples e qualificada, previstos nos artigos 143º, 144º e 145º do Código Penal e nos crimes de dano simples e dano qualificado, previstos nos artigos 212º e 213º do Código Penal.
Assim, no tipo de crime de ameaça agravado, a remissão feita pelo artigo 155º, nº 1 para o artigo 153º, não abrange o seu nº 2, que contém a disposição «o procedimento criminal depende de queixa», antes se cinge, tão só, aos «factos previstos» no citado preceito, ou seja, à previsão do nº 1 onde se descrevem «factos».
Efetivamente, é indubitável que a exigência de queixa do ofendido, como condição de procedimento criminal, não pode de modo algum ser considerada como um dos factos previstos no artigo 153º a que a primeira parte do artigo 155º, nº1 alude expressamente.
Deste modo, a conduta delituosa que preenche conjuntamente os elementos exigidos no artigo 153º nº 1 e alguma das circunstâncias agravantes previstas no nº 1 do artigo 155.º, ambos do Código Penal, integra o tipo de crime qualificado que é autónomo e distinto do tipo fundamental.
Como se sabe, na versão anterior à reforma de 2007, aprovada pela Lei nº 59/2007 de 04.09, a forma qualificada do crime de ameaça – decorrente da circunstância de a ameaça se reportar à prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos – estava abrangida na norma que previa a forma simples ou base do tipo legal, sendo então comum aos dois tipos de crime a natureza semipública do procedimento criminal. Entretanto, a alteração legislativa não se limitou a agrupar as circunstâncias agravantes fora do tipo fundamental, antes implicou expressa alteração do regime procedimental, passando a atribuir natureza pública ao procedimento criminal relativo ao crime qualificado.
Como decorre da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/10 (que esteve na origem da revisão de 2007 do Código Penal), houve a clara intenção de aproximar o crime de ameaça agravado ao crime de coação (que sempre foi um crime público) e essa aproximação verifica-se, não só ao nível das circunstâncias agravantes, mas também quanto à natureza pública do crime.
As circunstâncias previstas no nº 1 do artigo 155º do Código Penal revelam mais acentuado desvalor da ação, introduzindo um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental, daí que a opção legislativa não tenha sido a de manter a natureza do tipo simples, uma vez que os interesses tutelados superam a vontade individual da vítima.
Aliás, precisamente no sentido da autonomia do crime de ameaça agravada foi até já uniformizada jurisprudência pelo Acórdão do STJ n.º 7/2013, publicado no Diário da República nº 56, de 20.03.2013, I-A Série, nos seguintes termos: «Aameaçadepráticadequalquerumdoscrimesprevistosnon.º1doartigo153.ºdoCódigoPenal,quandopunívelcompenadeprisãosuperioratrêsanos,integraocrimedeameaçaagravadodaalíneaa)don.º1doartigo155.ºdomesmodiplomalegal».
De tudo assim decorrendo, a natureza pública do crime de ameaça agravado perpetrado pelo arguido, que torna ineficaz a declaração de desistência de queixa, que não tem assim eficácia extintiva do respetivo procedimento criminal.
Temos este como o entendimento dominante na jurisprudência, que sufragamos. Por conseguinte, improcede, também esta pretensão recursória
*** III–DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
***
Porto, 26 de maio de 2021
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva