I - O recurso para uniformização de jurisprudência, consubstanciando um recurso extraordinário, encontra-se sujeito a tramitação específica e obedece a requisitos próprios, fundando-se numa contradição existente entre dois acórdãos do STJ, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
II - Tratando-se, pois, de um recurso que tem por finalidade dirimir um conflito de jurisprudência sobre uma mesma questão de direito, decidida, em função do mesmo quadro normativo, contraditoriamente, por dois acórdãos do STJ transitados em julgado, apenas se mostra possível invocar um único acórdão-fundamento em função de cada questão de direito.
III - Não se verifica o pressuposto indispensável à admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência – contradição de acórdãos – quando o recorrente se ancora em acórdão fundamento onde a decisão quanto à existência de abuso do direito do autor se mostra justificada num núcleo factual essencial diverso do que foi apreciado no acórdão recorrido.
I - Relatório
1. APÍCULA – INVESTIMENTOS, SA, vem reclamar para a conferência do despacho da relatora que não admitiu o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que interpôs, reiterando o entendimento no sentido de ocorrer contradição entre o acórdão recorrido e os acórdãos-fundamento quanto à mesma questão fundamental de direito, referindo estar em causa nas referidas decisões a aplicação da figura do abuso do direito, cuja uniformização sugere nos seguintes termos:
“I. Impugnar deliberações com um sentido idêntico a outras que não foram (pelo impugnante) impugnadas e cujo sentido estava ínsito em proposta de idêntico teor formulada por ele, impugnante, constitui um comportamento contrário aos ditames da boa fé, dos bons costumes, um comportamento contrário ao fim económico ou social do direito, constituindo uma traição da confiança incutida por uma conduta anterior, perpretada por um novo comportamento, não expectável (nem admissível) e consequentemente censurável, desvirtuando, ao limite, a funcionalidade do direito que o impugnante pretendeu exercer, e II. Impugnar deliberações, sem que com isso o impugnante possa obter alguma vantagem, é revelador duma manifesta falta de interesse dele na acção, constituindo a impugnação um claro abuso do direito a impugnar. III. Em ambos os casos, tal conduta é ilícita, por violação do art. 334.º, do Código Civil.”.
Sustenta a sua discordância alegando que, ao invés do considerado no despacho objecto de reclamação, verifica-se oposição de acórdãos porquanto o acórdão recorrido, em entendimento diverso do assumido no(s) acórdão(s)-fundamento, perante a demonstração da existência de inequívoca contradição do comportamento do Autor com a sua conduta anterior, não aplicou a figura do abuso do direito. Explicita, para o efeito, que o núcleo factual similar determinante para a oposição de acórdãos é apenas a existência de comportamento contraditório, sendo a restante diversidade fáctica matéria acessória não relevante para tal caracterização.
Alega ainda que a decisão liminar omite pronúncia não só quanto à existência de oposição de acórdãos em função dos acórdãos-fundamento por si indicados no requerimento de interposição de recurso, mas também quanto à admissibilidade do recurso de revisão interposto.
Formula as seguintes conclusões (transcrição):
“Um - Ao não admitir o recurso de uniformização de jurisprudência, o douto STJ, nesta sua decisão singular, violou o n.º 1, do art. 692.º, do CPC, pois verifica-se uma contradição entre os julgados (entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento proferido pelo douto STJ, em 12/11/2013, no âmbito do Processo n.º 1464/11);
Dois - Deve ser atendida a presente reclamação e deve ser revogada a decisão reclamada e substituída por uma outra que determine a apreciação do interposto recurso de uniformização de jurisprudência;
Três - Ao não admitir o recurso de uniformização de jurisprudência, sem que apreciasse a contradição de julgados entre o Acórdão recorrido e os Acórdãos-fundamento proferidos pelo douto STJ, em 2019/07/04, no processo n.º 34352/2015, pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, em 2017/11/02, no processo 731/2013, pelo douto STJ, em 2015/05/19, no processo 477/2003, pelo douto STJ, em 2011/01/11, no processo 801/2006 e pelo douto STJ, em 09/10/2014, o douto STJ, nesta sua decisão singular, violou o n.º 2, do art. 608.º, do CPC, violou o n.º 2, do art. 202.º, da CRP (ao não o aplicar), violou o art. 2.º, da CRP (ao o não aplicar), e violou o n.º 1, do art. 20.º, da CRP (ao não o aplicar), quer conciliados entre si, quer autonomamente apreciados, pois teria de aplicar tais normas, já que qualquer interpretação do art. 688.º, do CPC, e do n.º 2, do art. 608.º, do CPC, que “reduza” o objecto da lide, isto é, que não imponha ao douto Tribunal a obrigação de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação é inconstitucional;
Quatro - Deve ser atendida a presente reclamação e deve ser revogada a decisão reclamada e substituída por uma outra que determine a apreciação do interposto recurso de uniformização de jurisprudência;
Cinco - O douto STJ, na sua decisão singular, violou o n.º 2, do art. 608.º, do CPC, ao não resolver todas as questões que a Recorrente, APÍCULA, submeteu à sua apreciação e violou o art. 2.º, da CRP, ao não o aplicar e ao não resolver todas as questões que a Ré, Recorrente, APÍCULA, submeteu à sua apreciação, nomeadamente ao não apreciar, quer a admissão, quer o mérito do subsidiariamente interposto recurso de revisão;
Seis - Deve ser atendida a presente reclamação e deve ser revogada a decisão reclamada e substituída por uma outra que determine a apreciação do subsidiariamente interposto recurso de revisão”.
2. Em resposta o Autor defende a manutenção do despacho de não admissão liminar do recurso.
II - Apreciando
1. Após o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos (de 15-12-2020), a Ré veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência, para o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 688.º e ss do Código de Processo Civil (CPC), alegando contradição daquele acórdão com os seguintes acórdãos que, subsidiariamente, indica:
a) Do STJ, de 11-01-2011, proferido no Processo n.º 801/2006;
b) Do STJ de 12-11-2013, proferido no Processo n.º 1464/11;
c) Do STJ de 04-07-2019, proferido no Processo n.º 34352/2015;
d) Do tribunal da Relação de Lisboa, de 02-11.2017, proferido no Processo n.º 731/2013;
e) Do STJ, de 19-05-2015, proferido no Processo n.º 477/2003;
f) Do STJ de 09-10-2014 (sem identificar o processo apenas indicando o Conselheiro relator - Fernando Bento).
Com o recurso a Recorrente pretende a fixação de jurisprudência nos termos acima indicados, e a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição pelo acórdão uniformizador, que determine a improcedência da acção e a procedência da reconvenção, com a condenação do Autor como litigante de má-fé, recuperando-se o dispositivo da sentença do douto Tribunal de 1.ª Instância.
No mesmo requerimento, a título subsidiário, para o caso de se entender inexistir contradição de acórdãos, a Ré interpôs recurso de revisão nos termos da alínea b) do artigo 696.º do CPC, indicando como depoimentos falsos, a serem ouvidos novamente o depoimento do Autor prestado em 22 de Fevereiro e 08 de Março de 2016 e o depoimento de AA, prestado em 03 e em 30 de Maio de 2017.
2. Por se considerar que se impunha a identificação de um só acórdão fundamento (entenda-se, em função de cada questão), foi a Recorrente notificada para vir aos autos indicar o acórdão-fundamento por que opta, sob pena deste tribunal ter em conta para o efeito o indicado em primeiro lugar no requerimento de interposição de recurso.
3. Em resposta a Recorrente veio informar que, sem prescindir do entendimento de que o artigo 688.º, n.º1, do CPC, não exclui a possibilidade de indicação de mais do que um Acórdão, ao menos a título subsidiário[1] indicava para acórdão fundamento o proferido por este STJ em 12-11-2013, no âmbito do Processo n.º 1464/11.
Alegou, ainda, estarem em causa duas questões fundamentais de direito (ainda que enquadradas no abuso do direito): uma reportada à figura na modalidade de venire contra factum proprium; outra, na manifesta falta de interesse do Autor na acção ao impugnar as deliberações.
Formulou as seguintes conclusões (transcrição):
“Conclusão Um - O AUTOR, agora recorrido, deduziu uma pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, alterando a verdade dos factos e omitindo factos relevantes, fazendo do processo um uso reprovável, na pretensão de obter um objectivo ilegal, pois:
a) - O AUTOR não era o verdadeiro titular de quaisquer participações sociais, nunca o tendo sido, pois, inicialmente, foi-o AA e, depois, por transmissão deste acordada com BB, foi-o este (e, claro, mais tarde, aqueles a quem ele as transmitiu);
b) - A deliberação em crise mais não era que a reprodução de outra, de 2011, já estabilizada e que ele, AUTOR, nunca impugnou;
c) - Deliberação coincidente (a em crise) com a de não impugnada de 2011, cuja ordem de trabalhos precedente tinha sido redigida pelo AUTOR, com o claro sentido deliberativo conforme àquilo que, em qualquer uma das assembleias gerais veio a ser decidido – a alteração da denominação para a firma que o RNPC viesse a aprovar (e aprovou Apícula) e a alteração da sede para …..;
d) - O AUTOR não se pode arrogar o estatuto de mandatário sem representação, que nunca invocou, assumindo-se processualmente como o verdadeiro titular das participações sociais (embora falsamente), pelo que não lhe pode ser reconhecido esse estatuto;
Conclusão Dois - Atento o expendido, o AUTOR agiu contra o seu comportamento antecedente, abusando do seu direito, na modalidade de venire contra factum proprium;
Conclusão Três - A conduta do AUTOR (a de impugnar as deliberações sociais) é reprovada pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito, tornando patente um comportamento que trai a confiança incutida por uma conduta anterior, que outra (posterior) em contradição com aquela torna censurável e que, clamorosamente, desvirtua a funcionalidade do direito que pretendeu exercer;
Conclusão Quatro - O abuso de direito caracteriza-se, entre outras possibilidade, pelo pedido de anulação, quando o sócio exerce o direito de voto (ou o direito a impugnar uma deliberação) para obter vantagens especiais para si ou para terceiros com prejuízo (ou apenas com o propósito de prejudicar) a sociedade ou outros sócios, independentemente da regularidade formal da mesma;
Conclusão Cinco - Mesmo que o AUTOR fosse (não o é, nem nunca o foi) um mandatário sem representação de AA, ele, AUTOR, nenhum interesse teria na acção;
Conclusão Seis - O AUTOR violou o art. 334.º, do Código Civil, com a sua conduta;
Conclusão Sete - E actuou em manifesta má-fé processual, violando o art. 542.º, do Código de Processo Civil;
Conclusão Oito - Ao dar como procedente a acção, o douto Supremo Tribunal de Justiça violou o art. 334.º, do Código Civil, e o art. 542.º, do Código de Processo Civil;
Conclusão Nove - Deve a decisão em crise ser revogada e alterada por uma outra que determine a improcedência da acção e a procedência da reconvenção e uniformize a jurisprudência que se encontra em contradição (a decisão do presente caso com as decisões dos casos dos Processo n.º 34352/2015, Acórdão, Supremo Tribunal de Justiça, de 2019-07-04, Processo 1464/11, Acórdão, Supremo Tribunal de Justiça, de 2013/11/12, Processo n.º731/2013, Acórdão, Relação de Lisboa, 2017-11-02, Processo n.º 477/2003, Acórdão, Supremo Tribunal de Justiça, 2015-05-19, Processo n.º 801/2006, Acórdão, Supremo Tribunal de Justiça, 2011-01-11, Acórdão do douto Supremo Tribunal de Justiça, 2.ª Secção, relatado pelo Ilustre Conselheiro Fernando Bento, de 09/10/2014;
Conclusão Dez - Deve a uniformização de jurisprudência conter dispositivo que determine que (se outra melhor redacção do douto Supremo Tribunal de Justiça não vier a encontrar):
«I. Impugnar deliberações com um sentido idêntico a outras que não foram (pelo impugnante) impugnadas e cujo sentido estava ínsito em proposta de idêntico teor formulada por ele, impugnante, constitui um comportamento contrário aos ditames da boa fé, dos bons costumes, um comportamento contrário ao fim económico ou social do direito, constituindo uma traição da confiança incutida por uma conduta anterior, perpretada por um novo comportamento, não expectável (nem admissível) e consequentemente censurável, desvirtuando, ao limite, a funcionalidade do direito que o impugnante pretendeu exercer, e
II. Impugnar deliberações, sem que com isso o impugnante possa obter alguma vantagem, é revelador duma manifesta falta de interesse dele na acção, constituindo a impugnação um claro abuso do direito a impugnar.
III. Em ambos os casos, tal conduta é ilícita, por violação do art. 334.º, do Código Civil.».
Conclusão Onze - Deve a decisão em crise ser revogada e alterada por uma outra que determine a improcedência da acção, a procedência da reconvenção, com a condenação do AUTOR como litigante de má-fé, recuperando-se, na íntegra o dispositivo da sentença do douto Tribunal de 1.ª Instância”.
4. A decisão singular indeferiu o peticionado sustentada nas seguintes razões:
“Confrontando as referidas decisões evidencia-se que embora ambas (tal como os restantes acórdãos indicados subsidiariamente) tenham apreciado a questão do abuso de direito, o sentido diverso das decisões proferidas assentou na especificidade e diversidade da realidade fáctica a subsumir com que o STJ se deparou em cada um dos casos.
Assim, a conclusão jurídica (em sentido diverso) retirada por cada um dos referidos acórdãos quanto à questão do abuso de direito não decorreu por falta de consonância (nos termos em que a oposição de acórdãos terá de ser entendida) quanto ao entendimento referente ao conceito de exercício abusivo do direito (quanto à figura da conduta contraditória - venire contra factum proprium) presente na norma do artigo 334.º do Código Civil, mas teve a ver, unicamente, com a realidade (diversa) fáctica que foi objecto de apreciação em cada uma das decisões.”.
6. O entendimento da decisão proferida não pode deixar de ser reiterado.
Vejamos.
6.1. Mostra-se pacificamente aceite a orientação deste Tribunal quanto ao alcance do conceito contradição entre acórdãos prevista no artigo 688.º, n.º 1, do CPC.
Com efeito, como vem sendo reiteradamente afirmado por este tribunal[2], a divergência jurisprudencial relevante terá de se assumir numa inequívoca oposição directa de acórdãos reportada à mesma questão fundamental de direito.
E a oposição de acórdãos ocorre quando determinada situação concreta (constituída por um núcleo factual similar) é decidida, com base na mesma disposição legal, em sentidos diametralmente opostos.
Acresce que a divergência frontal na questão (fundamental) de direito terá de assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, isto é, tem de integrar a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto, carecendo de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum; nessa medida, inexistirá contradição relevante de julgados se confinada entre a decisão de uma e fundamentação de outra[3].
6.2 Limitando-se a consignar excertos dos acórdãos-fundamento, que se reportam à caracterização da figura do abuso do direito, o Recorrente identifica a contradição de arestos na existência de comportamento contraditório do autor[4], que impõe a aplicação da figura, defendendo que a factualidade subjacente a cada um dos casos sob apreciação nos acórdãos em confronto constitui matéria acessória e, como tal, sem relevo para a configuração da oposição.
Como já salientado na decisão reclamada, as conclusões do recurso evidenciam que o posicionamento defendido no recurso encontra-se centrado na discordância da Recorrente relativamente ao decidido no acórdão recorrido quanto à questão do abuso do direito e ao interesse do autor na acção em função da realidade fáctica segundo a sua óptica, que é diversa da que se mostra provada naqueles autos, sendo que foi com fundamento na matéria de facto efectivamente provada no processo que o tribunal decidiu.
Contrariamente ao pugnado pela Recorrente, a especificidade da realidade fáctica sobre a qual cada um dos acórdãos alegadamente em confronto se teve de pronunciar assume importância crucial na delimitação da questão fundamental de direito para os efeitos pretendidos, porquanto o recurso para uniformização de jurisprudência previsto no artigo 688.º, do CPC, tem na sua base e fundamenta-se numa contradição existente entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
Conforme se mostra justificado na decisão singular que se transcreve (na parte a que para o efeito assume cabimento), no caso, a similitude entre os acórdãos reside no facto de ambos (recorrido e fundamento[5]) se terem pronunciado sobre a questão do abuso do direito:
- “Em causa estão os seguintes acórdãos:
i) o acórdão proferido neste autos [Processo n.º 3025/13……, acção declarativa instaurada pelo Recorrido contra a aqui Recorrente pedindo a declaração da nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 22 de Janeiro de 2013 com a condenação desta a proceder à anulação dos registos efectuados com base em tais deliberações], datado de 15-12-2020, que transitou em julgado.
O acórdão recorrido confirmou o acórdão da Relação o qual, alterando a matéria de facto provada em 1ª instância, revogou a sentença que havia julgado a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional (condenando o Autor a restituir à Ré os títulos das acções que mantinha na sua posse, bem como litigante de má-fé e julgou improcedentes os incidentes de falsidade que este havia suscitado[6]).
Em função pois da alteração da matéria de facto (partindo da prova de que o Autor era portador de acções representativas de parte do capital social da Ré, assistindo-lhe, por isso, a faculdade de pedir a declaração de nulidade das deliberações sociais tomadas na assembleia de 22-01-2013, por a mesma não ter sido convocada e por o Autor não ter estado presente), julgou a acção procedente, declarando a nulidade das deliberações tomadas na AG em causa (nos termos dos artigos 55.º, do CVM, e 56.º, n.º 1, alínea a), do CSC). Nessa sequência, julgou a reconvenção improcedente e absolveu o Autor do pedido de condenação por litigância de má-fé.
Relativamente à questão do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium mostra-se ponderado no acórdão recorrido:
«(…) atenta a definição do artigo 334.º, do Código Civil (é ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito), a figura assenta em razões de justiça (material e concreta) e de igualdade pois o direito subjectivo privado tem um carácter relativo (e não absoluto), pelo que o seu reconhecimento abstracto terá de corresponder à sua concretização lícita/legítima.
Trata-se, porém, de um mecanismo legal de carácter extraordinário (a lei refere exceda manifestamente os limites impostos) funcionando como válvula de segurança por forma a impor o exercício moderado de direitos (trata-se, por isso, de um instrumento de correcção de natureza subsidiária que só deve ser utilizado como uma última ratio - cfr. entre outros, acórdãos do STJ de 28/10/1997, processo n.º 97A609 e de 28-02-2012, Processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ). Nesse sentido, a situação de abuso terá de ser evidente e inequívoca.
Neste quadro e enquanto inaceitável conduta ético-jurídica, o abuso do direito pode assumir diversas vertentes norteadas em função da tutela de vários valores que se reconduzem a três fundamentais - a integridade, a confiança e a justeza dos procedimentos – e onde podem ser identificadas várias figuras parcelares que têm vindo a ser consideradas pela doutrina ainda que nem todas possuam uma efectiva autonomia dogmática (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo 1, 1999, Almedina).
A figura do venire contra factum proprium é marcada por um princípio de confiança radicado na protecção dos sujeitos quando, em termos justificados, tenham sido levados a acreditar na manutenção de uma certa conduta ou estado de coisas.
Tem pois por pressuposto a existência de uma situação de confiança, ou seja, um comportamento que possa ser entendido como posição vinculante em relação à posição futura e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta (acórdão do STJ de 28-02-2012, Processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1).
A este respeito a Ré, fundamentalmente, faz referência ao facto de ter sido realizada em 09-12-2011 uma AG cuja ordem de trabalhos (elaborada pelo Autor) era idêntica à da AG 22-01-2013 agora em causa, não tendo o Autor procedido à impugnação da mesma nem de outras assembleias subsequentes à de 22-01-2013.
A realidade fáctica apurada (cfr. n.ºs 64, 66, 68 a 72) não permite retirar a conclusão pretendida pela Recorrente uma vez que nada se mostra provado quer quanto à convocação da AG realizada em 09-12-2011 (se a mesma foi ou não convocada sem as formalidades legais), quer relativamente à circunstância do Autor nela ter participado ou votado e, ainda, que tenha tido (ou não) conhecimento das deliberações nela tomadas, antes da instauração da presente acção.
Resulta por isso claro que a matéria de facto é indubitavelmente insuficiente para demonstrar o comportamento contraditório do Autor que constituiria o requisito indispensável para a caracterização de uma situação de venire contra factum proprium.
Em consequência, o facto de o Autor peticionar a declaração de nulidade da assembleia de 23-01-2013 por falta de convocatória, não é um acto contrário à sua actuação no que se refere ao comportamento tido quanto à precedente assembleia de 09-12-2011.».
Relativamente à falta de utilidade da acção (segundo a Recorrente, porque tais deliberações já haviam sido aprovadas por deliberação anterior, que não foi objecto de impugnação, ou seja, por as deliberações tomadas na AG de 22-01-2013 constituírem a réplica das deliberações tomadas na assembleia de 09-12-2011), refere o acórdão recorrido:
«No que respeita à (in)utilidade do pedido de declaração de nulidade das deliberações de 23-01-2013 relativamente à deliberação de alteração da denominação social referente à AG de 09-12-2011 (onde, sublinhe-se, não foi deliberada a alteração da denominação social da Ré para Apícula) a insubsistência da argumentação da Ré resulta evidenciada da necessidade da própria realização da AG em 2013 atento o facto de o deliberado em 2011 não ter tido qualquer eficácia (impondo novamente decidir para o efeito).».
Segundo o raciocínio em que se mostra ancorada, a decisão de concluir pela inexistência de abuso de direito por parte do Autor quer sob a modalidade de venire contra factum proprium quer relativamente à falta de utilidade da acção (interesse do Autor na acção) assenta na ausência de realidade fáctica, sendo certo que a Recorrente sustenta a configuração da figura do abuso de direito em factos que se mostram infirmados nos autos: não ser o Autor o titular das acções de que se arrogou ao intentar a presente acção, ou seja, não ser accionista da Ré/Recorrente.
Ao invés do que afirma, atendendo aos factos definitivamente apurados, o Autor demonstrou, como alegou, ser accionista da Ré e possuir legitimidade e interesse na declaração de nulidade das deliberações objecto da acção.
ii) o acórdão-fundamento, cujo trânsito se presume, conheceu da oposição à execução por parte dos executados avalistas tendo o STJ confirmado o acórdão da Relação que considerou que o exequente havia agido com abuso do direito (determinando com isso a extinção da execução). Considerou para tal efeito que «(…) o exequente accionou a livrança que os recorrentes avalizaram em branco oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse; era do conhecimento do exequente que os recorrentes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora; na altura do afastamento (meados de 2003) a conta caucionada de que a sociedade subscritora era titular encontrava-se regularizada, facto que foi confirmado aos recorrentes por funcionários do exequente; e posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 3/7/02.
Perante estes dados de facto temos por certo que o comportamento do exequente, qualificado em termos jurídicos à luz do que acima se expôs, integra um venire contra factum proprium, proibido pelo artº 334º do CC: efectivamente, como bem se pondera no acórdão recorrido, “...uma pessoa normal, colocada na posição concreta dos recorrentes, podia objectivamente confiar que, estando a conta caucionada liquidada, no momento em que deixaram de ter interesse na sociedade, o exequente não lhes exigiria, 8 anos depois, que honrassem a garantia representada pelo aval, relativamente a crédito concedido ao avalizado em momento posterior em que deixaram de ter aquele interesse e se sentiam já desobrigados. Em boa verdade, o portador da livrança que, neste contexto, cria nos recorrentes aquela confiança, através da comunicação, em 2003, que a conta caucionada estava regularizada, mas 8 anos depois lhes exige coactivamente a realização da prestação pecuniária incorporada na livrança, emergente da concessão de crédito ao subscritor, posterior àquele momento – e para a qual era suficiente a garantia dos avales restantes - age contra facta propria e, por conseguinte, de forma abusiva. Havendo abuso, a inibição do exercício, contra os recorrentes, do direito cambiário é meramente consequencial” (fls 139).
Em resumo: os recorrentes podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o recorrido não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e, sem dúvida, contrária à boa fé a conduta por ele assumida, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.».
6.3 Na sequência da conclusão retirada no despacho reclamado, o teor dos acórdãos que a Recorrente considera em confronto quanto à questão do abuso do direito, com facilidade evidencia, comparando as situações litigiosas em confronto, que não existe qualquer similitude essencial fáctica que possa sustentar o necessário pressuposto de ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) terem emitido pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito.
Na verdade, o tratamento jurídico com base no qual foram dirimidos os litígios conduziram a soluções jurídicas não coincidentes em função da divergência do quadro factual.
Sublinhe-se que o mesmo acontece com os restantes acórdãos-fundamento indicados subsidiariamente pela Recorrente, conforme foi entendido na decisão singular que a tal respeito fez constar e ao que, neste âmbito, se adere:[7]
“Importa ter presente que os restantes acórdãos indicados pelo Recorrente de modo algum podem ser entendidos enquanto oposição ao acórdão recorrido porquanto, para além da falta da similitude fáctica, verifica-se identidade do sentido da decisão quanto à questão decidida de abuso de direito e, por isso, não ocorre o indispensável confronto das decisões. Com efeito:
- o acórdão de 11-01-2011, proferido no Processo n.º 801/06 6TYVNG.P1.S1, reporta-se a uma acção, com processo ordinário, onde era pedida a declaração de anulação de todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral da ré. Relativamente à questão do abuso de direito, que não constituiu questão decisiva para o sentido da decisão, embora tenha sido defendido que as deliberações tomadas com o objectivo de um dos sócios conseguir, com o seu direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, à revelia do interesse social ou contra este, traduzindo isso uma modalidade de abuso de direito, subsumível aos princípios, do artigo 334.º do Código Civil, foi concluído que no caso “não existem nos autos elementos fácticos que permitam imputar ao recorrido o propósito de obter qualquer vantagem especial para si, como afirma o recorrente”;
- no acórdão de 19-05-2015, proferido no Processo n.º 477/03.2TBVNO.C3.S1, estava em causa a questão do abuso de direito nas modalidades de venire contra factum proprium, que foi julgada improcedente e mostrava-se reportada ao seguinte comportamento do autor:
- ter comunicado à Ré que era o representante dos contitulares da quota pertencente à sócia falecida com quem foi casado, sendo filhos do casal os demais autores;
- perante a convocação da Ré para uma assembleia geral extraordinária aprazada para 16.2.2003, onde se iria deliberar sobre a cessão da quota indivisa dos herdeiros da falecida sócia e sobre a eventual recusa de consentimento à cessão ter requerido a presença de Notário;
- ao ter sido constatada a não presença do Notário e não obstante antes da realização dessa assembleia-geral ter assumido perante os restantes sócios da ré como representante comum dos contitulares da quota dos autores, ter o autor informado a Presidente da Mesa da AG que estava presente em nome próprio, não como representante dos herdeiros da falecida sócia.
No referido quadro fáctico foi considerado que: “Não age com abuso do direito de voto, o sócio que tendo informado que compareceria na assembleia geral da sociedade ré, como representante comum dos demais contitulares de quota indivisa, requer atempadamente a comparência de notário para estar presente nesse acto e, ante a não comparência deste, de que tomou conhecimento no dia da assembleia geral por não ter sido convocado pela Presidente da mesa da assembleia geral, se recusa a participar naquela qualidade, afirmando intervir apenas em nome individual.”.
- O acórdão de 04-07-2019, proferido no Processo n.º 34352/15.3T8LSB.L1.S1, onde fundamentalmente foi considerado que deve ser considerada não convocada a assembleia realizada sem a presença de um ou mais sócios que não foram convocados, sendo, consequentemente, nulas, por força da mesma norma, as deliberações aí tomadas, foi concluído, quanto à questão do abuso de direito, não se mostrar exercício abusivo a invocação da nulidade da deliberação social nessas circunstâncias ainda que na prática a não convocação da assembleia-geral se mostrava admitida pelo mesmo porquanto “globalmente considerada, a proibição do comportamento contraditório e a tutela, por essa via, das pretensões das rés não seria, no caso concreto, ético-juridicamente adequada. Seria, de facto, um paradoxo difícil de explicar que uma situação antijurídica deste tipo pudesse perpetuar-se, condenada a permanecer subtraída ao controlo do Direito, pelo facto de a sua superação, não obstante ser possível e fácil, estar na dependência da iniciativa dos participantes e de nenhum dos participantes estar autorizado pelo Direito a exercer o poder de inflectir eficazmente a sua posição. Representaria isso um “aprisionamento” dos sujeitos, pelo Direito, na sua infracção anterior (uma vez infractor sempre infractor).
Atendendo ao exposto, deve concluir-se que, apesar do seu comportamento anterior, a autora / recorrida não está inibida do exercício do direito de requerer a declaração de nulidade das deliberações, devendo entender-se que procedeu bem o Tribunal a quo ao declarar a nulidade das deliberações sociais respeitantes às prestações de contas dos exercícios de 2012 e 2013 e ao determinar o cancelamento do respectivo registo.”
Assim, não podemos deixar de concluir nos termos considerados na decisão singular pois que, inexiste, no caso, a indispensável similitude fáctica essencial para que se verificasse o necessário pressuposto de ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) terem emitido pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito[8].
Consequentemente, não se verificando tal pressuposto essencial enunciado no artigo 688º, do CPC, não existe contradição entre os acórdãos em questão passível de fundar o recurso uniformizador de jurisprudência, pelo que se impõe a sua rejeição in limine.
Carece ainda de razão a Reclamante ao imputar à decisão reclamada nulidade por omissão de pronúncia por falta de apreciação da questão da existência de contradição de acórdãos em função dos restantes acórdãos fundamento indicados, bem como do pedido de recurso revisão subsidiariamente interposto.
Na verdade, no que respeita à apreciação dos demais acórdãos-fundamento indicados pela Recorrente[9], não obstante não se mostrar controverso (conforme lhe foi referido no despacho que a convidou a optar por um dos acórdãos-fundamento)[10] que, neste âmbito, apenas é possível a invocação de um único acórdão-fundamento em função de cada questão[11], a decisão singular acabou por tecer considerações acerca dos restantes acórdãos-fundamento indicados pela Requerente. Assim, ainda que se admitisse a possibilidade da serem indicados vários acórdãos-fundamento, não ocorreria omissão de pronúncia, não se descortinando, igualmente, em que medida seriam violados os preceitos constitucionais que a Recorrente se limita a indicar sem aduzir qualquer justificação.
Quanto à alegada omissão de apreciação da pretendida interposição de recurso de revisão, a Recorrente também se mostra equivocada perante uma realidade incontornável: a decisão singular emitiu pronúncia quanto à questão, ainda que remetendo tal apreciação para momento ulterior após o trânsito em julgado da decisão sobre a (in)admissibilidade do recurso de uniformização interposto[12].
Improcede, pois, a reclamação.
III - Decisão
Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em manter a decisão de rejeição liminar do recurso para uniformização de jurisprudência.
Lisboa, 7 de Julho de 2021
Graça Amaral (Relatora)
Maria Olinda Garcia
Ricardo Costa
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
______________________________________________________
[1] Considerando que outra interpretação viola os artigos 608.º, n.º2, do CPC e 202.º, n.º2, 2.º e 20.º, n.º1, da Constituição.
[2] Processos n.º 3144/12.2TBRD-E.P1.S1, 5838/16.4T8LSB.L1.S1-A, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[3] Acórdão do STJ de 29-01-2015, Processo n.º 20580/11.4T2SNT.L1.S1-A, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[4] Que, segundo o que defende, ocorre no caso do acórdão recorrido em face da factualidade provada que identifica, além do mais, com os factos n.ºs 14, 21, 23 a 30, 35 a 38, 42 a 51, 53 a 61, 66 a 81, 87, 88 e 95, fixados pela Relação.
[5] Como resulta do teor da decisão singular (cfr. nota de rodapé n.º 3), procedeu-se, ainda que a latere, a uma apreciação dos restantes acórdãos indicados pela Recorrente em oposição ao acórdão recorrido.
[6] Realça-se no acórdão recorrido, que o sentido da decisão da 1ª instância partiu dos seguintes pressupostos fácticos: que os verdadeiros sócios da Ré eram BB e AA e que, depois da transformação da Ré em sociedade anónima, se concretizou a cedência das acções de AA à Ré. Assim foi concluído na sentença que na data da AG em causa (22-01-2013) os títulos que o Autor reivindica como seus já eram pertença da Ré e, nessa medida, independentemente da referida assembleia não ter sido convocada com precedência das formalidades legais, dado que nela haviam estado presentes os accionistas titulares da totalidade do capital social, as deliberações que nela foram tomadas não padeciam do vício de nulidade atento o disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 56.º do CSC.
Pelas mesmas razões foi julgada procedente a reconvenção, considerando-se, para o efeito que, estando o Autor na posse dos títulos representativos do capital social da Ré, que não lhe pertenciam, tinha de os restituir.
[7] Carece, por isso, de cabimento a alegada omissão de pronúncia invocada pela Reclamante e, não se vislumbra em que medida ocorre a violação dos preceitos constitucionais por ela indicados (artigos 2.º, 20.º e 202.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa) ou quaisquer outros.
[8] O tratamento jurídico com base no qual foram dirimidos os litígios conduziu a soluções jurídicas não coincidentes em função de um divergente quadro factual.
[9] Invoca (a título subsidiário) 6 acórdãos, sendo um proveniente do tribunal da Relação de Lisboa (desde logo, sem preencher o requisito a que alude o n.º1 do artigo 688.º do CPC, inequívoco, relativamente à exigência da contradição entre acórdãos do STJ); um outro, com insuficiência de identificação (apenas pelo nome do relator).
[10] Na sequência, aliás, do que vinha sendo considerado no anterior recurso para o Tribunal Pleno - n.º 2 do artigo 676.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma de 1995.
[11] Cfr. acórdão do STJ de 13-04-2014, Processo n.º 16/13.7TBMRA-H.EL.S1-A, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.
[12] Com o seguinte teor: “Após trânsito, abra conclusão para apreciação do requerimento de recurso de revisão subsidiariamente interposto pela Recorrente”.