EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVEDOR
OBRIGAÇÕES
MUDANÇA DE RESIDÊNCIA
Sumário

“I - Independentemente do dever geral de respeitar a residência fixada previsto no art. 36º, al. c) do CIRE - que consiste na proibição de mudar de residência e de se ausentar dela sem autorização ou comunicação ao tribunal - existe uma regra especial no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante (art. 239º, nº 4, al. d) do CIRE) de onde decorre que, durante o período de cessão de rendimentos, se permite que o devedor possa mudar de domicilio, estabelecendo-se que, nesse caso, constitui obrigação do devedor “informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio”.
II - A decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante tem que ser notificada pessoalmente aos devedores, pois que, de acordo com o art. 247º do CIRE, tem que ser efectuada nos exactos termos em que deve ser notificada a decisão de encerramento do processo, pelo que é aplicável o disposto no art. 230º, nº 2 do CIRE (que por sua vez remete para o regime de publicidade, registo e notificações previstos nos arts. 37º e 38º do CIRE).
III - Tendo os devedores, durante o período de cessão de rendimentos, comunicado aos autos, a mudança do seu domicilio - cumprindo o aludido dever que lhe era imposto pela al. d) do nº 4 do art. 239 do CIRE -, a notificação da aludida decisão final, que tenha sido efectuada por referência à anterior morada daqueles, não pode produzir os efeitos de lhes dar conhecimento de que foi proferida a decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante (cfr. art. 195º, nº 1 do CPC), pelo que esta, nestas circunstâncias, não transitou ainda em julgado (art. 628.º do CPC), podendo, nessa medida, os devedores ainda arguir as suas alegadas nulidades”.

Texto Integral

APELAÇÃO Nº 1900/13.3TBVNG.P1

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Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):
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Tribunal Judicial da Comarca de Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 1*
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
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I. RELATÓRIO.
Recorrente(s): - B… e mulher C…;
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Inconformados com o despacho datado de 22.1.2021, proferido pelo tribunal recorrido que se pronunciou sobre um seu requerimento que arguia a nulidade da decisão, vieram os recorrentes B… e mulher C…, insolventes nos presentes autos, apresentar recurso
É a seguinte decisão que aqui constitui o objecto do recurso:
“Os devedores vieram arguir a nulidade do despacho de 24 de Setembro, que não concedeu a exoneração do passivo restante.
Ora aquando da junção do requerimento em causa, a decisão de 24 de Setembro já tinha transitado em julgado, pelo que não pode agora vir arguir a nulidade do despacho.
Assim, julgo improcedente a invocada nulidade.
Notifique.”.
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Os recorrentes concluem as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES
I. O Despacho ora recorrido, proferido em sede de incidente de exoneração do passivo restante concluiu pelo indeferimento do requerimento apresentado pelos Insolventes B… e C…, em que foram arguidas nulidades do processado, sustentando o Tribunal a quo ter havido trânsito em julgado da Decisão de não concessão de exoneração do passivo restante, por Despacho datado de 24 de Setembro de 2020, com o que obviamente não concordam os Apelantes, mormente porque não pode haver trânsito em julgado de uma decisão se ela não foi notificada.
II. Atendendo ao MÉRITO DO RECURSO, os Insolventes arguiram, em 17-01-2021, mediante requerimento, a nulidade do processado em incidente de exoneração do passivo restante, apresentando os seguintes fundamentos:
(…)
V. Sucede que, não havendo comunicação dos anteriores mandatários com os Insolventes, as notificações dos vários Despachos aos Insolventes foram sempre feitas para morada errada, com excepção do Despacho de 23-07-2020, que não foi sequer pessoalmente notificado aos mesmos, facto que não lhes é de todo imputável, tendo os Insolventes respeitado a obrigação que lhes advinha do art. 239º nº4 d) do CIRE, e comunicado, por requerimento apresentado a 16 de Fevereiro de 2018, a alteração da sua residência para a “Rua …, …, ….-… Vila Nova de Gaia”.
(…)
VII. Apesar de o Tribunal ter na sua posse a correcta morada dos Insolventes à data das notificações, por tal lhe ter sido comunicado previamente pelos Insolventes, nenhuma atitude foi tomada por parte do Tribunal de pedir esclarecimentos acerca da correcta morada, nem mesmo ao ver serem devolvidas todas essas notificações; aliás, a situação foi ao ridículo de, mesmo após o nosso Requerimento de 27/12/2020 pelo qual requereram a alteração da sua morada para a Praceta …, ..., …, … – Vila Nova de Gaia, constatou-se que foi lavrada COTA a alterar a sua morada e a associar o signatário, todavia, a morada alterada foi a errada e, devido a esse erro, mais uma vez foi expedida notificação para uma morada desactualizada, que será a da Rua …, .., …, V. N. Gaia.
(…)
XV. Tendo em conta estas irregularidades não se pode admitir que os Insolventes fiquem privados do seu direito e impossibilitados de apresentar a sua defesa, por falta de notificação dos diversos Despachos que se destinavam a chamá-los ao processo. Veja-se, quanto ao exposto, o Ac. TRP, de 18-12-2018, processo nº 1180/11.5TBLSD.P1, relator Dr. Telles de Menezes: “Sendo certo que as notificações ao mandatário dos devedores foram feitas via citius e que ele as consultou, o certo é que a carta que lhes foi endereçada pelo Fiduciário não chegou ao seu conhecimento, tendo sido devolvida com a errada menção “mudou-se”. Ora, os devedores não podem ser responsabilizados pela falta de colaboração exigida em correspondência que lhes não foi entregue, desconhecendo-se se o mandatário lhes fez chegar as exigências do Fiduciário e do Tribunal.”
XVI. Assim, anteriormente ao Despacho de 17-01-2021, em que se arguiram as nulidades do processado, nunca foi possível aos Insolventes suscitar estas nulidades, uma vez que delas não tinham ainda conhecimento, nem podiam ter, por acreditarem que as notificações seriam sempre feitas para a nova morada, que consta do requerimento previamente apresentado por eles nos autos comunicando a alteração da residência.
XVII. Mas mais: o próprio Despacho final, que decide pela não concessão da exoneração do passivo restante, fundamentada no incumprimento da obrigação constante do art. 239º, nº 4, e) do CIRE, objecto de notificação aos Insolventes por aplicação dos arts. 247º, 230º nº2, 37 e 38º do CIRE, foi também ele notificado para morada errada, não havendo comunicação dos anteriores mandatários com os Insolventes.
XVIII. Ora, a notificação da decisão consubstancia um dos requisitos necessários para o início da contagem do prazo de recurso, determinando o momento a quo da contagem desse prazo, conforme resulta do art. 638º do CPC “o prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão…”, pois só quando a decisão é notificada à parte é que esta conhece a existência e o respectivo teor da decisão, e só aí pode decidir se quer recorrer ou não. Não podendo recorrer de algo que não conhece, sem culpa sua, mas sim da Secretaria do Tribunal.
XIX. Referindo a importância da notificação para o exercício dos poderes processuais veja-se o Ac. do TRG, de 08-10-2015, proc. Nº 58/12.0TBSBR-B.G1, do relator Dr. José Amaral, quando expõe que: “A notificação às partes tem a função de, em quaisquer casos, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto e o objectivo de lhes facultar o pleno conhecimento do respectivo objecto – nºs 2 e 3, do artº 219º. Implicando as mesmas o início de prazo para o notificado exercer os seus direitos, cuida a lei processual de definir regras para, com certeza e segurança, se fixar o termo inicial respectivo e de o tornar claro para o processo e sujeitos dele. Tal dependendo do momento em que se realiza a notificação, a demonstração eficaz da respectiva data constitui objectivo crucial do direito processual, atentos os efeitos daquela derivados.”
XX. A contagem do prazo de recurso em momento anterior constituiria uma limitação e violação injustificada do direito ao recurso, uma vez que se estaria a impedir o sujeito processual do seu efectivo direito ao recurso, não podendo recorrer de algo que não conhece.
XXI. Mais se diga que a Decisão de que ora se recorre olvidou por completo a regra do art. 157º nº 6 nos termos da qual “os erros e omissões praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”, sendo que a actuação da secretaria se deve regrar pelo exposto nos nºs 1 e 2 do mesmo preceito, assegurando a normal tramitação e desfecho dos processos.
XXII. Como evidencia o Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª edição, Dezembro de 1998, está em causa “O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) (vide Alegação 36º) e, neste sentido, o Ac. do STJ, proc. nº 88/16.2PASTS-A.S1, relatado pelo Dr. Raul Borges, de 30-11-2017 (in www.dgsi.pt): “IV - Na dúvida deve entender-se que a parte não pode ser prejudicada por actos praticados pela secretaria judicial, como estatui o art. 157.º, n.º 6, do CPC vigente e preceituava identicamente, o anterior n.º 6 do art. 161.º do CPC. V – Esta norma constitui emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo. VI – A regulação dos prazos processuais implica com a realização da garantia constitucional do acesso aos tribunais.
XXIII. É inegável que as irregularidades das notificações, e num caso a sua completa omissão, erros e omissão que apenas se podem imputar à Secretaria do Tribunal, resultou numa desconformidade entre a tramitação que foi efectuada e aquela que devia ter sido levada a cabo nos autos, o que implicou um grave prejuízo aos Insolventes, quer por terem visto preterido o seu direito de exercer o contraditório tendo por consequência a Decisão de recusa da exoneração do passivo restante, quer por terem visto preterido o direito de recorrerem dessa Decisão.
XIV. Assim, não tinha ainda ocorrido o trânsito em julgado da decisão aquando da apresentação do requerimento de 17-01-2020 por parte dos Insolventes e, por consequência, não se encontravam sanadas as nulidades processuais aí invocadas, resultantes da falta de notificação do Despacho de 30-10-2019, do Despacho de 17-12-2019, e ainda do Despacho de 23-07-2020, ao contrário do pugnado pelo Despacho a quo, que deverá ser revogado e substituído por outro que conheça das nulidades invocadas pelos Insolventes.
XXV. Tem-se que seria injusto perpetuar a situação de insolvência quando se trata de um casal que sempre cumpriu os deveres que lhes advinham do instituto de exoneração do passivo restante, pautando-se sempre pela transparência e boa-fé, e que cumpriu o seu dever de apresentação à insolvência. Casal este que perdeu tudo, tendo visto ser vendido nestes autos o seu imóvel (sem ter procedido a vendas reais ou fictícias a terceiros antes de se apresentar à insolvência) com vista à satisfação dos credores.
XXVI. Seria sim justo e perfeitamente exequível uma Decisão final de concessão da exoneração do passivo restante, oque permitiria aos Insolventes pagar o tal valor à Fidúcia por não prejudicar a satisfação dos credores da insolvência, uma vez que seria sempre possível revogar a concessão no prazo de um ano caso o pagamento não fosse cumprido e ficasse prejudicada a satisfação dos credores da insolvência, conforme o art. 246º do CIRE, ou até pagarem de uma só vez, para o que tentariam a todo o custo obter empréstimos de particulares/familiares.
XXVII. Caso assim não se entenda e este Tribunal conclua pela sanação das nulidades, confirmando o Despacho recorrido, deverá ser declarada a INCONSTITUCIONALIDADE da interpretação dado pelo Tribunal ao conjunto normativo dos arts. 243º e 244º do CIRE conjugados com os arts. 157º, 247º nº 2, 628º e 638º do CPC, por violação do direito a um processo equitativo e bem assim dos princípios da segurança jurídica e protecção da confiança, consagrados no art. 2º da CRP, e na violação do direito constitucional de acesso à justiça e tutela jurisdicional efectiva, por violação do direito de defesa e de recurso, plasmados no art. 20º nºs 1e 4da CRP, interpretação inconstitucional no sentido de considerar sanadas nulidades decorrentes da falta ou de irregularidades de notificações, por erro da Secretaria do Tribunal, que se destinavam a chamar as partes para a prática de actos pessoais, nomeadamente para o exercício do contraditório, imposto expressamente pelos arts. 243º e 244º do CIRE e determinado por despacho do Juiz, e sanação da nulidade, também por falta de notificação, de Decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante, com fundamento no trânsito em julgado desta última decisão, que não foi notificada, mediante erro imputável à secretaria judicial, prejudicando gravemente as partes.
XXVIII. Admitindo-se uma tal inconstitucional interpretação, estar-se-ia a inviabilizar a efectivação dos princípios da segurança jurídica e protecção da confiança, que impõe a fiabilidade e racionalidade dos demais actos praticados pelos serviços judiciais, nos quais as partes devem confiar e ver garantida a segurança dos seus actos e das decisões que revelem sobre os seus direitos e consequentes efeitos jurídicos, e, por conseguinte, a admitir que pudessem ficar prejudicadas por erros praticados pela secretaria judicial. Mais, estar-se-ia, também assim, a admitir que os Insolventes pudessem ficar impedidos de exercer o seu direito de acesso aos tribunais, admitindo que o prazo para exercerem o seu direito de audição prévia à decisão, consagrado na lei e determinado por Despacho do Juiz, e o prazo para recorrerem da decisão consequente, ambos prazos processuais, estariam a correr em momento em que não era possível aos Insolventes o exercício efectivo desses direitos, na medida em que não houve notificação dessas decisões.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V.ªs EXAS. MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, A DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA NOS TERMOS SUPRA POR ERRO DE JULGAMENTO QUANTO À SANAÇÃO DAS NULIDADES INVOCADAS PELOS APELANTES, COM VISTA A SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONHEÇA DAS NULIDADES INVOCADAS PELOS INSOLVENTES, MORMENTE POR AINDA NÃO TER OCORRIDO O TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISAO FINAL DE NÃO CONCESSÃO DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE POR FALTA DE NOTIFICAÇÃO (…)”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Tribunal Recorrido manteve a decisão recorrida sem fundamentação.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, os Recorrentes colocam a seguinte questão que importa apreciar:
- Saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que conheça das nulidades invocadas pelos insolventes, mormente por ainda não ter ocorrido o trânsito em julgado da decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante por falta de notificação da decisão;
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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Como factualidade relevante interessa aqui ponderar apenas os trâmites processuais atrás consignados no relatório do presente Acórdão e o teor da decisão proferida, que atrás se transcreveu na integralidade e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
Com relevância para a questão colocada importa ter ainda em atenção os seguintes factos:
1. Os recorrentes comunicaram a alteração da morada por requerimento apresentado a 16 de Fevereiro de 2018, tendo informado que a sua residência se situava na “Rua …, …, ….-… Vila Nova de Gaia”.
2. A notificação da decisão de não concessão da exoneração do passivo restante foi enviada para a seguinte morada: “Rua …, nº .. - …. ….-… Vila Nova de Gaia”;
3. Consta do rosto das cartas registadas enviadas que as mesmas foram “devolvidas ao remetente” e a menção escrita manualmente: “Não reside” – cfr. fls. 360 e 361 dos autos;
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Como supra se referiu, a única questão que importa apreciar e decidir consiste em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que conheça das nulidades invocadas pelos insolventes, mormente por ainda não ter ocorrido o trânsito em julgado da decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante, por falta de notificação da decisão aos devedores/recorrentes.
Julga-se que os recorrentes têm razão.
A decisão de final não concessão da exoneração do passivo restante deve ser notificada pessoalmente aos devedores/recorrentes, tendo em conta as seguintes regras especiais previstas no CIRE:
“Artigo 247.º
Publicação e registo
Os despachos iniciais, de exoneração, de cessação antecipada e de revogação da exoneração são publicados e registados, nos termos previstos para a decisão de encerramento do processo de insolvência”.
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“Artigo 230.º
Quando se encerra o processo
1 - Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
(…)
2 - A decisão de encerramento do processo é notificada aos credores e objecto da publicidade e do registo previstos nos artigos 37.º e 38.º, com indicação da razão determinante”.
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“Artigo 37.º
Notificação da sentença e citação
1 - Os administradores do devedor a quem tenha sido fixada residência são notificados pessoalmente da sentença, nos termos e pelas formas prescritos na lei processual para a citação, sendo-lhes igualmente enviadas cópias da petição inicial.
2 - Sem prejuízo das notificações que se revelem necessárias nos termos da legislação laboral, nomeadamente ao Fundo de Garantia Salarial, a sentença é igualmente notificada ao Ministério Público, ao Instituto de Segurança Social, ao requerente da declaração de insolvência, ao devedor, nos termos previstos para a citação, caso não tenha já sido citado pessoalmente para os termos do processo e, se este for titular de uma empresa, à comissão de trabalhadores.
3 - Os cinco maiores credores conhecidos, com exclusão do que tiver sido requerente, são citados nos termos do n.º 1 ou por carta registada, consoante tenham ou não residência habitual, sede ou domicílio em Portugal.
4 - Os credores conhecidos que tenham a residência habitual, o domicílio ou a sede estatutária num Estado-membro diferente daquele em foi aberto o processo, incluindo as autoridades fiscais e os organismos da segurança social desses Estados-membros, são citados por carta registada, sem demora, em conformidade com o artigo 54.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015.
5 - Havendo créditos do Estado, de institutos públicos sem a natureza de empresas públicas ou de instituições da segurança social, a citação dessas entidades é feita por carta registada.
6 - O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de notificação e citação por via electrónica, nos termos previstos em portaria do Ministro da Justiça.
7 - Os demais credores e outros interessados são citados por edital, com prazo de dilação de cinco dias, afixado na sede ou na residência do devedor, nos seus estabelecimentos e no próprio tribunal e por anúncio publicado no portal Citius.
8 - Os editais e anúncios referidos no número anterior devem indicar o número do processo, a dilação e a possibilidade de recurso ou dedução de embargos e conter os elementos e informações previstos nas alíneas a) a e) e i) a n) do artigo anterior, advertindo-se que o prazo para o recurso, os embargos e a reclamação dos créditos só começa a correr depois de finda a dilação e que esta se conta da publicação do anúncio referido no número anterior”.
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Decorre destes preceitos legais que a notificação da decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante (art. 247º do CIRE) tem que ser efectuada nos exactos termos em que deve ser notificada a decisão de encerramento do processo, pelo que é aplicável o disposto no art. 230º, nº 2 do CIRE.
Ora, como decorre da sua transcrição, este preceito legal, por sua vez, remete para o regime de publicidade, registo e notificações previstos nos arts. 37º e 38º do CIRE.
Ora, decorre destes preceitos legais, de uma forma inequívoca, que os devedores/insolventes têm de ser notificados pessoalmente da sentença (e da decisão final aqui em discussão por força das aludidas remissões) “nos termos previstos para a citação”.
Assim, no caso da decisão final aqui proferida, o art. 247º do CIRE (como decorre da remissão nele efectuada) “impõe (a notificação da decisão final) nos termos definidos por este preceito a todas as pessoas e entidades aí previstas (no art. 37º do CIRE), sendo afixado edital e publicado anúncio no Citius para conhecimento de todos os eventuais interessados que não sejam contactados pessoalmente, nomeadamente, por carta registada”[1].
A notificação tem que ser pessoal nos termos e pelas formas prescritas para a citação, o que revela a preocupação da lei no sentido de assegurar que o devedor toma efectivo conhecimento da sentença”[2].
Por força do disposto no art. 17º do CIRE aplicam-se subsidiariamente as regras da notificação e citação do CPC (arts. 219º e ss. do CPC),” o que significa que, como regra geral, as notificações se farão por correio registado (arts. 247º e 248º do CPC) e as citações por carta registada com aviso de recepção (art. 228º do CPC)”[3] .
Constata-se que o tribunal recorrido procedeu à notificação da decisão final da exoneração do passivo restante aos devedores/recorrentes, mas, ao efectuá-la, enviou a mesma para a seguinte morada: Rua …, nº .. - …, …. - … Vila Nova de Gaia”.
Sucede que resulta dos autos que os recorrentes em 16 de Fevereiro de 2018 comunicaram a alteração da sua morada/residência, indicando que a mesma se passou a situar na “Rua …, …, …. - … Vila Nova de Gaia”.
Como é sabido, uma das menções que deve ficar a constar da sentença de insolvência é justamente a sua identificação “com a indicação da sua … residência” (art. 36º, nº 1, al. b) do CIRE) e a fixação da residência ao próprio devedor se este for pessoa singular” (al. c) do citado preceito legal)[4].
Quanto a este “dever de respeitar a residência fixada … deve entender-se que consiste na proibição de mudar de residência e de se ausentar dela sem autorização (ou comunicação) ao tribunal (cfr. o revogado art. 1192º do CPC e, ainda, art. 196º, nº 3, al. b) do CPP). Além da função ao nível da eficácia e da celeridade dos sucessivos contactos com o insolvente … a fixação de residência visa garantir a segurança do processo, designadamente evitando o risco de fuga do insolvente…”[5].
Ou seja: “Quanto à fixação da residência … ao devedor pessoa singular não se trata, evidentemente de dizer que onde os mesmos vão residir, mas sim de assegurar que esses sujeitos estão contactáveis para lhes ser exigido o cumprimento dos seus deveres”[6].
Nesse mesmo sentido, já se decidiu inclusivamente no ac. da RC de 21.10.2014 (relator: Moreira do Carmo), in dgsi.pt que:
- ”É inconstitucional a referida interpretação do art. 36º, c), do CIRE e do mencionado dever de colaboração, que exige a prévia autorização do tribunal aos insolventes para mudarem de residência, depois desta ter sido fixada na sentença que declarou a insolvência, designadamente em caso de os mesmos emigrarem para a Alemanha, por violação do art. 44º da C. Rep. Portuguesa”.
Mas, além destas considerações gerais, existe uma regra especial no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante (art. 239º, nº 4, al. d) do CIRE) de onde decorre que, durante o período de cessão de rendimentos, se permite que o devedor possa mudar de domicilio, estabelecendo-se que, nesse caso, constitui obrigação do devedor “informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio”.
Assim, independentemente do âmbito daquele dever geral de fixação de residência, não há dúvidas que, durante o período de cessão de rendimentos, tal mudança de domicílio pode ocorrer, exigindo-se apenas que o devedor comunique ao Tribunal e ao Sr. Fiduciário tal facto.
Aliás, como se refere na fundamentação do citado acórdão, “se o próprio CIRE no seu art. 239º, nº 4, d), concedida liminarmente a exoneração do passivo, e durante o período legal da cessão, não exige a prévia autorização do tribunal para mudança da residência, apenas exigindo ao insolvente um dever de informação nesse sentido ao tribunal e ao fiduciário, porque razão essencial, pertinente, absoluta e necessária, exigiria aquela prévia autorização depois da declaração de insolvência mas antes do despacho liminar de exoneração do passivo? Não se percebe, porque não se descortina qualquer razão de peso nesse sentido interpretativo”.
Aqui chegados e concluindo-se que, pelo menos, durante o período de cessão de rendimentos, tal mudança de domicílio pode ocorrer, exigindo-se apenas que o devedor comunique ao Tribunal e ao Sr. Fiduciário tal facto, não podemos deixar de retirar as necessárias consequências processuais do facto de o tribunal, na notificação que efectuou da decisão final proferida (que em termos legais, como vimos, tinha que ser efectivada pessoalmente), ter endereçado a carta registada para uma morada que não correspondia já aquela que os devedores haviam comunicado aos autos.
Com efeito, os devedores/recorrente, durante o período de cessão de rendimentos, comunicaram, oportunamente, a mudança do seu domicílio para a “Rua …, …, …. - … Vila Nova de Gaia”, cumprindo o dever que lhe era imposto pela al. d) do nº 4 do art. 239 do CIRE.
Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, surge, como evidente, que, tendo tal notificação – exigida legalmente nos termos atrás expostos – sido efectuada por referência a uma morada, onde os devedores deixaram de residir (tal como comunicaram aos autos), não pode produzir os efeitos de lhes dar conhecimento de que foi proferida a decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante.
Nesta sequência, devendo-se considerar como totalmente omitido o acto de notificação da decisão final dos recorrentes (cfr. art. 195º, nº 1 do CPC)[7] e estando os recorrentes em tempo de arguir tal falta de notificação (por a terem arguido quando dela tiveram conhecimento ou quando dela se aperceberam - tendo em conta a posição assumida pelo tribunal – cfr. art. 199º do CPC), não se pode retirar a conclusão a que o tribunal recorrido chegou, na decisão que aqui constitui o objecto do presente recurso, ou seja, que “aquando da junção do requerimento em causa, a decisão de 24 de Setembro que não concedeu a exoneração já tinha transitado em julgado, pelo que não pode agora vir arguir a nulidade do despacho”.
Importa ter em atenção que o trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art. 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário.
Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
Mas, obviamente, que tal só pode ocorre se a decisão final tiver sido devidamente notificada (a quem se impõe essa notificação).
Assim, para que tal trânsito em julgado pudesse ter ocorrido, teria que a decisão final em questão que ter sido notificada aos devedores, o que, como decorre do exposto, não ocorreu.
Aqui chegados, importa, pois, concluir que a decisão recorrida não se pode manter no ordenamento jurídico, pois que o único fundamento nela invocado (o trânsito em julgado) não ocorreu.
Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, devendo o tribunal recorrido, além do mais, retirar as necessárias consequências processuais, desde logo, praticando o acto de notificação dos devedores indevidamente efectivado (atendendo à última morada comunicada aos autos), seguindo, após, os autos os pertinentes trâmites processuais.
Tendo o recurso interposto sido julgado procedente, com este primeiro fundamento, fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões que haviam sido invocadas pelos recorrentes.
Procede a apelação.
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III - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
- o Recurso interposto pelos Recorrentes procedente, com a consequência da decisão recorrida ser revogada, com as assinaladas consequências processuais.
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Custas pela massa insolvente (art. 527º do CPC).
Notifique.
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Porto, 21 de Junho de 2021
(assinado digitalmente)
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade – Consigna-se que a Exma. 1ª Adjunta votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente.
Eugénia Cunha
____________________
[1] Ana Prata/J. Morais/Rui Simões, in “CIRE anotado”, pág. 680.
[2] Ana Prata/J. Morais/Rui Simões, in “CIRE anotado”, pág. 130.
[3] Ana Prata/J. Morais/Rui Simões, in “CIRE anotado”, pág. 130 e 131.
[4] V. sobre o âmbito deste efeito, v. por ex. Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de direito da insolvência”, págs. 85 e ss.
[5] Catarina Serra, in “Lições de direito da insolvência”, pág. 150.
[6] Soveral Martins, in “Um curso de direito da insolvência”, pág. 122.
[7] Abrantes Geraldes, in “Temas Judiciários”, Vol. I, pág. 158 a 160. Refere este autor que “não se encontra no CPC norma que trate diferenciadamente o acto de notificação relativamente aos restantes actos judiciais, como sucede com a citação. Daí que, sem prejuízo de determinadas situações que possam qualificar-se como inexistentes, ou integrar-se no regime da falsidade de actos judiciais, prevendo a lei o cumprimento de determinadas formalidades é da análise dos factos que forem constatados e da sua conjugação com o disposto no art. 201º (actual art. 195º) que o juiz deve partir para efeitos de considerar ou não a existência de alguma nulidade… Ora, para efeitos deste normativo, devem observar-se os preceitos que determinaram a obrigatoriedade da notificação, regulam o seu conteúdo ou orientam a sua forma”.