I - No art. 24.º, al. h) do DL n.º 15/93 de 22-01, tipificam-se situações de facto que, objetivamente, potenciam a perigosidade da ação desligada do resultado, - como é próprio dos crimes de perigo abstrato -, acrescentando dimensão ao ilícito que justifica o agravamento da moldura penal aplicável ao crime base.
II - O agravamento do tráfico cometido no EP, visa conferir proteção reforçada a um grupo determinado de pessoas, proteger a saúde e a reinserção social da população prisional, especialmente fragilizada na sua capacidade de autodeterminação relativamente ao consumo de estupefacientes.
III - Admitindo-se que o tráfico de muito baixa importância ou dimensão no qual concorre um facto agravante, possa, excecionalmente e no limite, não ser punido no âmbito da moldura agravada, não pode ser punido como tráfico de menor gravidade.
IV - A verificação de uma circunstancia qualificativa, conferindo maior densidade à ilicitude do facto, obsta ao privilegiamento do crime fundado na considerável diminuição da ilicitude.
V - A atenuação especial da pena prevista no art. 72.º do CP, continua reservada para os «casos extraordinários ou excecionais». Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, a pena determina-se dentro da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente.
O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:
I. RELATÓRIO:
a) a condenação:
No Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., mediante acusação do Ministério Publico, foi o arguido
- AA, de 26 anos e os demais sinais dos autos,
julgado e, por acórdão do tribunal coletivo datado de 28 de janeiro de 2021, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de cinco anos e seis meses de prisão.
O Tribunal coletivo decidiu também determinar perdidos em favor do Estado:
- os estupefacientes, sacos em plástico usados para os acondicionar, as armas de fogo e os telemóveis, nos termos dos arts. 35.º, do DL n.º 15/93 citado e 109.º, do Código Penal;
- os demais os objetos, quantias monetárias e viaturas automóveis apreendidos, nos termos dos arts. 35.º, do DL n.º 15/93, de 22.01., 1.º, n.º 1, a) e 7.º, da Lei n.º 5/2002 de 11.01., e 109.º, do Código Penal.
b) o recurso:
O arguido, inconformado com a punição agravada do crime de tráfico cometido, recorre, diretamente, perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese):
2. face à factualidade dada como provada e procedendo a análise da mesma, seria de afastar a aplicação da alínea h) do artigo 24.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.
3. Entendeu o Tribunal “a quo” que a conduta do recorrente foi dolosa, considerando mostrar-se verificada a circunstância agravante a que alude a alínea h) do artigo 24º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência ao segmento “estabelecimento prisional”.
4. numa leitura da imagem global dos factos, o Tribunal deveria ter convolado o crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21º, nºs 1 e 4 e 24º, alínea h) do DL nº 15/93, de 22 de janeiro para o crime previsto no artigo 25º do referido Decreto-Lei.
5. o Tribunal “ a quo” afirma não desconhecer uma corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, em termos de permitir o afastamento da agravante pela verificação da atenuante a que alude o artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.
6. Na situação em apreço, a quantidade de produto estupefaciente apreendido (canábis) tinha o peso total líquido de 20,985 gramas.
7. Por ser pequena a quantidade apreendida, tal situação não permite configurar um perigo real de disseminação da droga pelos reclusos, não existindo uma situação de ilicitude acrescida, pelo que afastada fica a aplicabilidade da al. h) do artigo 24º.
8. Reconduzidos os factos à matriz do artigo 21.º e não se verificando a agravação a que alude a alínea h) do artigo 24.º, nada obsta a que, tendo em conta as circunstâncias de facto, os factos sejam subsumidos ao artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
9. No mesmo sentido enumera Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça [dos anos de 2004 a julho de 2009].
11. A simples ameaça do cumprimento da pena de prisão seria adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição,
12. só devia cumprir a prisão em que foi condenado, se fosse a única forma de alcançar as finalidades da punição, o que não é o caso.
13. a aplicação de pena suspensa, será mais correta.
16. “A função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa”.
17. embora tenha antecedentes criminais, não consta no seu certificado de registo criminal nenhuma condenação pela prática de crimes desta natureza.
18. na “Informação Psicossocial” junta aos autos, consta que beneficia de acompanhamento psicológico, médico e social, administração de antagonista opiáceos e realização de testes de deteção de substâncias psicoativas, encontrando-se numa fase de adaptação à liberdade após ter saído da prisão.
19. consta ainda que tem cumprido com o estipulado, sendo de “suma importância que o Sr. Fábio dê continuidade ao seu processo de reabilitação e reinserção social”.
20. a condenação do recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21º, nºs 1 e 4 e 24º, alínea h), ambos do DL nº 15/93, de 22 de janeiro na pena de cinco anos e seis meses de prisão foi excessiva.
21. de acordo com o dispositivo legal que impele o julgador à condenação do agente e à sua ressocialização, a aplicação de pena suspensa, afigura-se suficiente para fazer justiça ao caso sub judice.
22. o Tribunal recorrido ao ter optado pela aplicação ao recorrente de uma pena de cinco anos e seis meses anos de prisão, violou o preceituado nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, tendo em conta as circunstancias mencionadas, devendo tal pena ser suspensa na sua execução, por estarem presentes os pressupostos legalmente exigidos no artigo 50.º do Código Penal.
Peticiona a revogação “da pena a que foi condenado”, convolando-se a qualificação jurídica para o crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25º do DL n.º 15)3 de 22 de janeiro, “cuja pena deverá ser suspensa na sua execução”.
c) resposta do Ministério Público:
O Ministério Público no Tribunal recorrido pugna pela confirmação da condenação.
Ao reclamado desagravamento do crime de tráfico opõe a importância, no interior do estabelecimento prisional, da quantidade do estupefaciente apreendido ao arguido.
Defende a dosimetria da pena judicial.
d) parecer do Ministério Público:
O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, pronuncia-se, doutamente, pela procedência parcial do recurso, argumentando (em síntese)
“deve rejeitar-se a ideia de que o facto constitutivo da infracção ter sido cometido dentro dos muros prisionais, implica a se a verificação do efeito qualificativo, previsto na alínea h), do art.º 24º, do DL n º 15 / 93 de 22 de Janeiro.
“o crime de tráfico de estupefacientes insere-se na categoria dos crimes de perigo abstracto, não pressupondo, assim, para a sua perfectibilização a verificação do dano, nem do perigo concreto para os bens jurídicos tutelados pela incriminação, mas tão só e apenas a perigosidade da acção para qualquer dos bens jurídicos pessoais protegidos (integridade física, vida dos consumidores e primacialmente a saúde pública).
Retira-se “do acervo fáctico plasmado no acórdão, que o estupefaciente apreendido ao recorrente e destinado à venda a outros reclusos se mostra adequado a uma disseminação por um número não despiciendo destes, já que em ambiente prisional, qualquer tipo de estupefaciente ou substância psicotrópica abrangida pelas tabelas anexas (no caso vertente, a espécie botânica identificada e catalogada por Lineu, a cannabis sativa L, resina) apesar de tudo, circula e é transaccionada de forma necessariamente mais dificultada que no exterior. Haverá também, que ponderar a quantidade apreendida -20,985 gramas/peso líquido- e o tipo da substância estupefaciente em causa.
Neste conspecto, tendo em conta a exigência constitucionalmente fundada da proporcionalidade das penas afigura-se-nos ser de atenuar especialmente a pena a aplicar in casu no âmbito do crime qualificado do art.º 24º, alínea h), do DL n º 15 / 93 de 22 de Janeiro- ut 72º n º 1 e 73º, n º1, alíneas a) e b), do Código Penal. Temos assim que a moldura penal abstracta resultante da atenuação especial da pena, vai de 4 a 10 anos de prisão.
“a vida pregressa do recorrente, evidencia forte deviance ilustrada pelas inúmeras condenações sofridas pela comissão de vários tipos de crimes, num percurso delitivo que remonta a 31-10-2001. Tal não pode deixar de evidenciar fortes necessidade de prevenção especial de socialização, as quais no âmbito da moldura de prevenção operam, necessariamente, em desfavor do recorrente, evidenciando, ter uma personalidade avessa à manutenção de uma conduta normativa. Por sua vez, neste tipo de crime as necessidades de prevenção geral de integração positiva, são muito elevadas, pela danosidade social que a prática do mesmo, implica, não só para a saúde pública, mas igualmente pelos graves fenómenos de tropismo criminal que provoca.
Neste conspecto, entendemos que as necessidades de prevenção geral já encontrarão satisfação, numa pena fixada em quatro anos e oito meses de prisão efectiva. Com efeito, a nosso ver, as necessidades de ordem preventiva geral que vimos de referir, aliadas ao percurso-longo- delitivo do recorrente, são impeditivas de se fazer aquele juízo de prognose favorável que nos termos do art.º 50º, n º 1, do Código Penal, constitui conditio sine qua non da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena.
Nos termos expendidos, o recurso merece parcial provimento, condenando-se o recorrente enquanto autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado, p. e p. pelos artigos 21º, n º 1 e 24º, alínea h) do DL n º 15 / 93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela anexa I-C, especialmente atenuado- CP 72º n º 1 e 73º, n º 1, alíneas a) e b) - na pena de quatro (04) anos e oito (08) meses de prisão efectiva.
e) contraditório:
Observado o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, o recorrente reafirmou a a argumentação e insistiu nos pedidos que constam do seu recurso e respetivas conclusões.
Cumpre decidir.
II - OBJETO DOS RECURSOS:
São as seguintes as questões para julgar:
- qualificação jurídica do tráfico;
- atenuação especial
- medida da pena;
- pena suspensa.
III – FUNDAMENTAÇÃO:
1. os factos:
Vem assente a seguinte matéria de facto:
I. Da acusação:
1. No dia ... de dezembro de 2019, o arguido encontrava-se em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional Regional....
2. Pelas 15:45h. daquele dia, no interior daquele Estabelecimento Prisional, o arguido tinha consigo, dissimulados nas sapatilhas que calçava, pedaços de canabis (resina), com o peso total líquido de 20,985 gramas, e que daria para ser dividida em 55 doses diárias individuais.
3. O referido produto estupefaciente destinava-se a ser vendido e consumido pelos reclusos.
4. O arguido conhecia perfeitamente as características do produto que detinha, nomeadamente a sua natureza estupefaciente, sabendo que não se encontrava autorizado a deter, transportar ou transacionar, por qualquer forma, tais substâncias.
5. O arguido mais sabia que, com a sua atuação, perturbava o processo de ressocialização dos reclusos, uma vez que facilitava o acesso a substâncias estupefacientes e contribuía para o transtorno da ordem e organização do Estabelecimento Prisional de ..., o que quis.
6. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
II. Mais se provou, das condições pessoais do arguido e a sua situação económica e das condutas anteriores aos factos
7. O arguido é oriundo de um agregado familiar desestruturado. Após ter vivenciado um período em que se autonomizou por ter estabelecido uma relação afetiva, tendo uma filha com 10 anos de idade, o arguido separou-se pouco tempo depois, tendo reintegrado o agregado de origem. Atualmente, o agregado é composto por onze elementos (mãe, irmãos, cunhada e sobrinhos), sendo frequentes os conflitos. A residência, sita num bairro social com problemática criminal/de pobreza e exclusão social, está sobre ocupada e apresenta deficitárias condições de limpeza e manutenção. O agregado beneficia há vários anos do rendimento social de inserção, havendo privações económicas e alguma fragilidade na gestão da economia doméstica. O processo educativo do arguido ocorreu de forma pouco estável e desadequado. Completou o 5º ano de escolaridade. Nunca efetivou um percurso profissional de relevo, tendo tido experiências pontuais em atividades indiferenciadas, sendo que tem por hábito ajudar o proprietário de um Café na freguesia e um irmão na lavoura. Está desempregado. O arguido iniciou os consumos de estupefacientes aos 15 anos de idade, na companhia do grupo de pares. Regista a realização de vários tratamentos à problemática aditiva, sem sucesso e seguidos de recaídas. Manteve durante muitos anos os consumos de opiáceos e de álcool, encontrando-se, a esse nível, abstinente e estável. Presentemente mantém o tratamento à toxicodependência na Associação ALTERNATIVA, desde novembro de 2017, encontrando-se a tomar antagonista. Realiza testes de despiste regulares e tem obtido resultados positivos a canabinóides. O arguido sofreu um acidente em ... .07.2013, tendo caído de uma varanda situada num 4º andar. Permaneceu um mês em coma, tendo ficado com diversas sequelas. O arguido foi libertado em 26.06.2020 (data em que atingiu o meio da pena de prisão que cumpria), ao abrigo da Lei nº 9/2020, de 10 de abril. Embora reconheça, em abstrato, a ilicitude dos factos, o arguido revela dificuldades na resolução de problemas, é influenciável e mantém uma postura passiva no sentido da procura de soluções para alterar o seu atual circunstancialismo de vida. Denota dificuldades ao nível cognitivo e revela défices em termos de pensamento consequencial, não conseguindo identificar as consequências do seu comportamento sobre si e sobre terceiros.
8. O arguido já sofreu as seguintes condenações: a) por decisão transitada em julgado em 10.12.2002, pela prática, em ... .01.2002, de um crime de roubo, na pena de 16 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de dois anos; b) por decisão transitada em julgado em 25.02.2003, pela prática, em ... .12.2001, de um crime de furto, na pena de 100 dias de multa à razão diária de 3€; c) por decisão transitada em julgado em 03.04.2003, pela prática, em ... .10.2001, de um crime de furto qualificado, na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 anos com regime de prova; d) por decisão transitada em julgado em 28.04.2003 pela prática, em ... .02.2002, de um crime de furto, na pena de 60 dias de multa à razão diária de 3€; e) por decisão proferida em 25.11.2003, pela prática, em ... .01.2003, de crimes de furto de uso de veículo, furto qualificado, roubo e condução sem habilitação legal, na pena única de cinco anos de prisão; f) por decisão transitada em julgado em 04.05.2004, pela prática, em ... .01.2003, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 7 meses de prisão; g) por decisão cumulatória transitada em julgado em 27.10.2004 das penas referidas em e) e f), numa pena única de 7 anos de prisão. h) por decisão transitada em julgado em 15.09.2008, pela prática, em ... .09.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 3 meses de prisão substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade; i) por decisão transitada em julgado em 04.08.2009, pela prática, em 04.07.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 5 meses de prisão suspensa por um ano; j) por decisão transitada em julgado em 16.12.2011, pela prática, em 28.10.2009, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de um ano de prisão substituída por 72 períodos de prisão por dias livres; k) por decisão transitada em julgado em 23.05.2012, pela prática, em ... .02.2011, de um crime de furto, na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano; e l) por decisão transitada em julgado em 13.06.2018, pela prática, em ... .08.2016, de um crime de roubo, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.
2. o direito:
a) da qualificação jurídica dos factos:
i. argumentação do recorrente:
Insurge-se contra o agravamento da punição do crime de tráfico que cometeu. Sem questionar o facto agravante, consistente em ter traficado no interior de estabelecimento prisional, pretende a convolação da qualificação jurídica para o crime de tráfico de menor gravidade. Em substância argumenta que a “pequena quantidade apreendida” “não permite configurar um perigo real de disseminação da droga pelos reclusos”. Apela a jurisprudência - com mais de 12 anos -, que cita.
ii. na decisão recorrida:
O Tribunal recorrido, motivou a subsunção jurídica dos factos ao tráfico agravado motivando (em síntese)
“(…) poder-se-ia erguer uma objeção ao funcionamento da agravação traduzida na aparente “pouca monta” do produto estupefaciente em questão e na concreta natureza que se inscreve no domínio das denominadas “drogas leves”, circunstâncias estas compaginadas com a severidade da punição atenta a moldura abstrata da pena (de cinco a doze anos de prisão), (…).
Acrescenta: “(…) a circunstância agravante funciona independentemente da natureza ou da quantidade da substância estupefaciente traficada (…). (…) não se nos afigura possível concatenar a agravante com a atenuante, pois entre uma e outra norma (arts. 24º al. h) e 25º) existe uma relação de subsidiariedade implícita, de forma que, verificada a primeira (…), não é possível normativamente eliminá-la a pretexto de uma menor ilicitude (…). Por seu turno, se o grau da conduta é agravado na medida da verificação do seu pressuposto objetivo – no caso, a traficância por um recluso no interior do estabelecimento prisional precisamente porque praticada nesse local –, também não poderá simultaneamente ser diminuído (tratar-se-ia de uma contradição nos seus precisos termos). Não nos parece que o legislador tenha pretendido fazer depender o funcionamento da agravante da exclusão da integração da conduta no tipo privilegiado, caso em que estar-se-ia a fazer da exceção a regra. Parece-nos, ao invés, que a intenção do legislador é simplesmente esta: o tráfico em estabelecimento prisional é sempre e em qualquer caso agravado.
(…) só aparentemente se poderia considerar, no caso, que a quantidade de haxixe era “pouca monta”. Na verdade, sendo o Estabelecimento Prisional um local, por natureza, fortemente vigiado neste domínio, não é natural que nele entrem e, a jusante, sejam detidas, grandes quantidades de estupefaciente, talqualmente sucede fora daquele ambiente prisional. Aquela quantidade tem de ser lida no contexto da exiguidade do meio e na tensão da permanente vigilância, não sendo por isso comparável – no mesmo plano de risco e de abrangência de consumidores – à detenção, para venda, de cerca de 21 gramas, fora daquele local.
iii. o tráfico de estupefacientes:
A incriminação do tráfico (de estupefacientes e precursores) e outras atividades ilícitas visa proteger a saúde pública, a “saúde física e moral da humanidade”[1], “a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos”. E, mediatamente, proteger também “a economia legal, a estabilidade e a segurança do Estado”. Proclama-se no preambulo da Convenção Única de 1961 sobre Estupefacientes que “a toxicomania é um flagelo para o indivíduo e constitui um perigo económico e social para a humanidade” que “incumbe de prevenir e de combater”. Tanto assim que se tem empreendido esforços no sentido da criação de um direito penal universal sobre o tráfico ilícito de estupefacientes ou pelo menos de uma forte harmonização dos regimes sancionatórios nacionais, neste âmbito. Portugal, em linha com o direito penal internacional convencional nesta matéria e também na senda do direito penal europeu com idêntica incidência material, tipifica o ilícito criminal fundamental da repressão do tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas no artigo 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, estipulando: 1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. Com abrangência tão vasta, não é excessivo concluir que qualquer atividade, não autorizada pelas entidades competentes, que incida sobre produtos estupefacientes constantes das referidas tabelas, preenche este tipo de crime. Excetua-se o consumo. E também “a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93”, que não excedam “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” – Lei n.º 30/200 de 29/11. Apesar da amplitude da moldura penal, o legislador, em linha com o estabelecido na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 20 de Dezembro de 1988 [2] entendeu que “a graduação das penas aplicáveis ao tráfico tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade. O que não implica necessária adesão à distinção entre drogas duras e leves (…). Simplesmente, a decisão de uma gradação mais ajustada tem de assentar na aferição científica rigorosa da perigosidade das drogas nos seus diversos aspetos, onde se incluem motivações que ultrapassam o domínio científico, para relevarem de considerandos de natureza sócio-cultural não minimizáveis.” Na lógica deste ideário e também em conformidade com o estipulado na Convenção referida –art. 3º n.º 4 al.ª a) -, o legislador nacional criou tipos, privilegiados e agravados – adequados à dimensão da ilicitude das diversas modalidades da ação ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, que “contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo”[3]. Entre as circunstâncias que conferem particular gravidade ao tráfico de substâncias estupefaciente, respeitando o acordado na Convenção de 1988, incluiu o facto de ser cometido num “estabelecimento penitenciário” (na expressão do instrumento jurídico convencional).
iv. tráfico agravado: No art. 24º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro estabelece-se o agravamento em um quarto nos limites mínimo e máximo da pena prevista no artigo 21.º, quando o crime de tráfico tiver sido cometido em estabelecimento prisional. São ali tipificadas situações de facto que, objetivamente, potenciam a perigosidade da ação desligada do resultado, - como é próprio dos crimes de perigo abstrato -, acrescentando dimensão ao ilícito que justifica o agravamento da moldura penal aplicável. São situações, todas elas, que comportam um juízo sobre a ilicitude do facto que, verificando-se, situam a necessidade de uma moldura de prevenção geral positiva, forçosamente, agravada relativamente aos limites mínimo e máximo do tipo base. Que o legislador não condicionou à verificação de uma clausula geral. Por exemplo, oposta à utilizada para desqualificar o crime. Seja como for, no agravamento da punição não há margem para juízos de culpa, para considerações relativas ao desvalor da atitude interna do agente ou à sua personalidade. Conforme se referiu, a punição do tráfico de estupefacientes visa proteger a saúde pública e o bem-estar social, evitar a degradação dos seres humanos, a destruição mental e física dos consumidores, causada pelo consumo ilícito de estupefacientes e reflexamente os fundamentos da organização social, económica e politica dos Estados. O agravamento do tráfico cometido no EP, visa especificamente conferir proteção reforçada a um grupo determinado de pessoas, foi estabelecida precisamente para proteger a saúde e a reinserção social da população prisional, especialmente fragilizada na sua capacidade de autodeterminação relativamente ao consumo de estupefacientes, portanto alvo fácil da oferta, aquisição, guarda e consumo de estupefacientes e num ambiente fechado, onde, pela apertada vigilância exercida, os valores ou as vantagens dos traficantes facilmente se exponenciam. Acresce que a prisão é sempre uma estação de trânsito, onde se deve refletir e preparar o reingresso na vivência livre, responsável e socialmente útil para a comunidade das mulheres e homens fieis ao direito. Plano de reinserção social que não pode tolerar com consumos de estupefacientes. Consequentemente, o tráfico de drogas em estabelecimento prisional porque confere gravidade acrescida ao ilícito e acentua o desvalor da ação tem de punir-se no âmbito de moldura penal mais severa. Este Supremo Tribunal tem sido frequentemente convocado a resolver as duas questões suscitadas pela recorrente: - a do não funcionamento automático da agravação, pela verificação daquele facto (tráfico em EP); - se a verificação de uma circunstância agravante do crime obsta a que a ilicitude possa ter-se por consideravelmente diminuída. Quanto à primeira impõe-se salientar que o legislador, na tipificação do art.º 24º do DL n.º 15/92 de 22 de janeiro, utilizou um proémio e uma fórmula sem qualquer clausula geral. Nem tão-pouco se socorreu da expressão utilizada no direito convencional que transpôs para o regime interno. Simplesmente e secamente agrava a moldura penal do crime de tráfico tipificado no art.º 21º, quando no caso se verifique um dos factos que, taxativamente, enuncia. Sem que tenha exposto as razões, utilizou técnica diferente para tipificar o tráfico de menor gravidade. Ademais da clausula geral – consideravelmente diminuição da ilicitude -, socorreu-se também da prática dos exemplos padrão. Técnica legislativa não muito diferente da adotada no Cód. Penal e em alguma legislação penal extravagante. Naquele e nestas serviu-se indistintamente das duas práticas. Com a particularidade de em algum caso ter estabelecido expressamente que a atenuação especial opera na moldura do tipo agravado – cfr. art.º 294º n.º 3. Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal tem interpretado que os factos tipificados no art. 24º do DL n.º 15/93 tornam, de per si, imediatamente, a ilicitude do tráfico especialmente grave. Foi esse o entendimento adotado no acórdão recorrido. Também assim se entende, ainda que se admitam situações excecionalmente raras que tornem excessivamente insuportável, do ponto de vista da justa medida, a aplicação da moldura penal agravada, como adiante se justifica. Por ora, adianta-se que compreendemos com dificuldade a interpretação que afirma não operarem automaticamente os factos catalogados no art. 24º. Com grande respeito, não é essa, manifestamente, a adjetivação apropriada. Os factos – de factos realmente se trata - ou se provam ou não se provam. Uma vez julgados provados têm as consequências jurídicas legalmente firmadas. Não pode o tribunal ignora-los ou deixar de considerar os efeitos jurídicos que a lei lhes prescreve, desde logo e sobretudo porque não está investido no poder de derrogar a lei, mas também pelo perigo real de a justiça penal se desligar do facto e se transformar na perigosa justiça do agente. Aquela interpretação pressupõe uma cláusula geral implícita na norma do art.º 24º. Entende que embora não escrita na letra da lei, a agravação ali estabelecida, só ocorre quando a ilicitude do tráfico assumir gravidade acrescida em relação ao tipo base. Não ignorando os factos provados que agravam a punição, entende que, em determinadas situações, podem não alcançar densidade suficiente para provocar o efeito agravante que o legislador estabeleceu. Na variante mais extremada, com alguns seguidores, afasta-se qualquer efeito jurídico ao facto agravante da ilicitude, acabando, num “duplo salto”, a desqualificar o crime de tráfico. Por outras palavras, em patente contradição dos termos - como se exprime o acórdão recorrido -, entende que o facto agravante seria absolutamente irrelevante, a tal ponto que não impede que a ilicitude do tráfico agravado assim cometido possa, de qualificado pelo facto exasperante, transmutar-se em consideravelmente diminuída. Entendemos que a interpretação mencionada em último lugar é manifestamente contrária ao espirito do legislador e às regras da melhor hermenêutica jurídica conforme, aliás, bem demonstra a jurisprudência deste Supremo Tribunal. Julgando recurso em processo no qual o arguido vinha condenado por um crime de tráfico de menor gravidade, o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 11.04.2002, sustentando: “4 - Quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Depois, nos tipo privilegiado e qualificado, vem definir os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos. E só a verificação afirmativa, positiva desses elementos atenuativo ou agravativo é que permite o abandono do tipo simples. 5 - Mas para tanto deve partir-se do tipo mais grave, para aferir da sua verificação, só devendo ser convocado novamente o tipo simples ou o tipo privilegiado em caso de resposta negativa. Os tipos legais protegem bens jurídicos, pelo que se uma conduta concreta preencher vários tipos legais que defendem o mesmo bem jurídico, como é o caso, se deve eleger o tipo que melhor o protege, o mesmo é dizer o tipo agravado ou qualificado. 6 - Mesmo a entender-se que as circunstâncias das alíneas do art. 24.º não são automáticas, gerando inevitavelmente o efeito agravativo especial, impõe-se a consideração de que uma circunstância como a da al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93 (no caso, tráfico em estabelecimento prisional), com forte pendor objectivo e ligada à ilicitude, impede a que, no caso de ser afastada se declare consideravelmente diminuída a mesma ilicitude”[4], julgando procedente recurso do Ministério Público, revogou a decisão recorrida, alterando a qualificação jurídica para o crime de tráfico agravado. No Ac. de 13.09.2018, versando sobre situação em que o recorrente, recluso, levava consigo canabis no regresso ao EP, foi condenado por tráfico agravado, confirmou-se a qualificação jurídica, sustentando que, da leitura do art. 24º alª h) do DL n.º 15/93, “resulta com toda a clareza a especial preocupação do legislador em dissuadir, mediante a agravação significativa da pena, a disseminação de estupefacientes em certos lugares, não tanto por desrespeito pelo funcionamento e disciplina dos serviços em causa, mas sim em atenção à população que os frequenta”. “No caso dos estabelecimentos prisionais, que é o que agora interessa a agravação dos factos derivará (,,,) da adequação do facto à disseminação das drogas entre os reclusos”. Por isso, “a ação deve em princípio ser integrada na citada al. h) do art. 24º”. Entendeu-se que “a situação que está ínsita na al. h) do art. 24.º é a de uma disseminação com certa escala entre os reclusos, não um ato isolado ou excecional de venda ou cedência a um recluso. A qualificação que aquele preceito prevê implica uma atividade sucessiva por um número indeterminado de reclusos, ainda que eventualmente restrita, como as condições de reclusão normalmente impõem, ou, pelo menos, a detenção de uma quantidade de estupefaciente bastante para tal efeito”. Alinhado na interpretação que rejeita a automaticidade da agravação, recusa a variante extrema, expendendo: “difícil já será defender que em situações excecionais o facto, mesmo que ocorrido em estabelecimento prisional, possa ser integrado no crime do art. 25.º. Com efeito, um crime qualificado pela ilicitude poder ser de menor gravidade parece ser uma contradição nos termos”[5]. Admitindo-se que o tráfico de muito baixa importância ou dimensão no qual concorre um facto agravante, possa, muito excecionalmente e no limite, não ser punido no âmbito da moldura agravada, entende-se não poder, de modo nenhum, ser desqualificado e punido como tráfico de menor gravidade. Este Supremo Tribunal – e coletivo – tem vindo a sustentar que a verificação de uma circunstancia qualificativa obsta ao privilegiamento do crime fundado na considerável diminuição da ilicitude. Como evidencia a jurisprudência citada e o acórdão recorrido seguiu, seria um intolerável absurdo que o tribunal, não somente desconsiderasse completamente um facto que o legislador tipificou como indicador da gravidade considerável da ilicitude de um crime agravado, como seria um patente desrespeito da vontade e do espirito do legislador, expressamente plasmado na letra da lei, que o tribunal pudesse substituir ao critério daquele, a sua “vara de medir” o grau de gravidade da ilicitude dos factos, mesmo por cima da verificação, em cada caso, de circunstâncias agravantes tipificadas. Assim sucederia no caso dos autos se prosperasse a pretensão da recorrente de ser punido por tráfico de menor gravidade. Improcede, pois, por infundada, esta pretensão do recorrente.
v. excecionalidade do desagravamento: Desestimada a reclamada desqualificação resta, neste segmento, apreciar se os “pedaços de canabis (resina), com o peso total líquido de 20,985 gramas, e que daria para ser dividida em 55 doses diárias individuais” que o recorrente tinha consigo destinando-a a ser vendida aos e consumida pelos reclusos do EP de ... não é tão quantiosa nem tem efeito psicotrópico tão viciante e prejudicial para a saúde da população prisional que possa sobrelevar o facto agravante – tráfico de estupefaciente em estabelecimento prisional. A resposta, adianta-se, é – só podia ser - negativa porque, ao que supra se expôs sobre o bem jurídico protegido e aqui se retoma, acresce que nenhum dos argumentos aduzidos pelo recorrente assume densidade excecional para que pudesse subsumir-se a situação em causa, apenas ao tipo base. Por outras palavras, para que pudesse considerar-se excessivamente injusta a punição do arguido pelo concreto crime cometido. E não pode considerar-se excessiva a qualificação desde logo porque a quantidade - quer em peso (sensivelmente 21 gramas), como também em doses (55 doses individuais) -, encontrada ao arguido numa só apreensão tem dimensão suficiente para ser vendida a, e consumida por número expressivo de reclusos daquele EP. Que é um estabelecimento prisional de pequena capacidade – facto do domínio público. Depois, como bem se motiva no acórdão recorrido e o Digno Procurador-Geral Adjunto realça, não é expetável que qualquer recluso num EP possa ter consigo grandes quantidades de estupefacientes pela forte vigilância sobre os ingressos e reingressos, as visitas e as não raras revistas pessoais e às habitações (vulgo: camaratas). Controlo apertado e vigilância, por norma mais constantes nos estabelecimentos prisionais pequenos como é aquele onde o crime de tráfico agravado foi cometido pelo recorrente, onde os movimentos de suspeitos ilícitos mais facilmente assumem visibilidade. É, evidentemente, que o tribunal terá de medir e valorar as quantidades traficadas à luz das regras específicas do meio carcerário e em obediência ao critério do legislador vertido na norma agravante concretamente aplicável. E não pelo “rasão” do tráfico exercido no meio social comum. Sem dúvida que a quantidade apreendida ao arguido assume dimensão num local fechado, fortemente vigiado, com movimentações permanentemente controladas, podendo atingir um numero significativo - chegar até 55 - de consumidores. Número de compradores e de vendas potenciais pelo mesmo traficante que obstam a que a quantidade possa definir-se de “pouca monta”, em função daquele concreto meio carcerário e, - o que é decisivo -, que pudesse excluir-se a especial perigosidade para a saúde física e moral, o bem-estar e a reinserção social dos indivíduos ali recluídos, a que o legislador conferiu proteção acrescida, agravando o tráfico cometido em EP. Consequentemente, não se verificam no caso circunstancias especiais ou excecionais que pudessem justificar a conclusão de o tráfico em apreço não dever punir-se no âmbito da ampla moldura penal estabelecida no art.º 24º al.ª h) do DL n.º 15/92 de 22 de janeiro. Improcede, por conseguinte, também a pretensão desagravante do recorrente.
b) da atenuação especial: O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal defende a confirmação do agravamento do tráfico cometido pelo recorrente no EP de .... Contudo invocando o princípio da proporcionalidade das penas, pronuncia-se pela atenuação especial à luz do regime consagrado nos arts. 72º e 73º do Cód. Penal, propondo que a pena se reduza para 4 anos e 8 meses de prisão.
i. pressupostos: A atenuação especial da pena legal, ou com mais propriedade, da moldura penal especialmente atenuada de um crime, é uma “válvula de segurança” para funcionar “quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva[6]. Estabelece o art. 72º n.º 1 do Cód. Penal que, “para além dos casos expressamente previstos”, a substituição da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente por uma moldura especialmente atenuada, só pode dar-se quando no caso concreto existam circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores que ainda não tenham operado e “que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. Como acentua J. Figueiredo Dias “o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências de prevenção[7]”. No Ac. de 7/09/2016, deste Supremo Tribunal sustenta-se que o aditamento da necessidade da pena “veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção[8].” Sucedendo à atenuação extraordinária da pena consagrado no Código Penal de 1852 e também no precedente de 1886, a atenuação especial da pena prevista no art.º 72º citado, continua reservada para os «casos extraordinários ou excecionais». Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, a pena determina-se dentro da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente. Doutrina e jurisprudência coincidem em que não é suficiente a verificação num determinado caso, das circunstancias indicativamente enunciadas pelo legislador ou outras de igual densidade para que o tribunal deva atenuar especialmente a pena estabelecida na norma citada. Decisiva é “a imagem global do facto, a gravidade do crime como um todo”[9] ou a desnecessidade da pena pela acentuada diminuição das exigências de prevenção geral de integração. Critério decisivo é que essas ou outras circunstâncias concorrentes, pela sua especial intensidade, configurem um caso de gravidade, tão acentuadamente diminuída, seja ao nível da ilicitude ou da culpa, seja ao nível da necessidade da pena, que escapa à previsão do tipo de ilícito que o legislador definiu e que, por isso, seria injusto punir dentro da sua já prevenidamente muito ampla moldura penal (de tal modo que em muitos casos, como sucede no homicídio tentado a moldura máxima é cerca de sete vezes a moldura mínima). O legislador, no art.º 72º n.º 2 do Cod. Penal, indicou, exemplificativamente, algumas circunstâncias que, concorrendo num determinado caso, podem levar a constatação dos pressupostos enunciados – acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, ou desnecessidade da pena -, e a que a pena com que deva sancionar-se o agente de um crime se determine, não dentro da respetiva moldura penal, mas no âmbito de uma moldura extraordinariamente atenuada. Circunstâncias, necessariamente contemporâneas ou intrínsecas ao facto, que podem levar ao preenchimento, em cada caso, da primeira clausula geral especialmente atenuativa são: a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida. Entre as circunstancias, necessariamente posteriores e exógenas ao facto, que podem levar à conclusão pela acentuada diminuição da necessidade da pena num caso concreto são: c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. A verificação de qualquer das circunstâncias não desencadeia, por si só, a atenuação especial da moldura penal, Não funcionam automaticamente. A verificação de alguma daquelas circunstâncias pode, ou não, demonstrar em cada caso concreto a correspondente cláusula geral, que essa sim faz operar a atenuação especial. Por outro lado, nenhuma circunstância pode ser valorada mais que uma vez. Está expressamente proibida a dupla valoração de qualquer circunstância que tiver operado já, em si mesma ou conjuntamente com qualquer outra. ii. no caso: Não só não vêm apontada nem provada facticidade suscetível de preencher alguma das circunstancias atenuativas especiais exemplificativamente enunciadas, como sempre estaria excluída a cláusula geral consistente na acentuada diminuição da ilicitude do tráfico, pelas razões anteriormente apontadas. Realçou-se que a aplicação do regime da atenuação especial assenta na diminuição acentuada, não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção. Conforme se expôs, está completamente fora de cogitação poder concluir-se pela considerável diminuição da ilicitude do facto. Quanto à culpa resultou provado ter o arguido agiu com dolo direito e intenso (“agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei”). Excluída fica, assim, a possibilidade de poder considerar-se ter agido com acentuada diminuição da culpa. Finalmente, o histórico criminal do arguido (que cumpria pena única de 7 anos de prisão e tem quase uma dezena de condenações) e o constante do respetivo relatório social, evidencia as prementes necessidade de prevenção especial e, consequentemente, a necessidade de uma pena também com importância por ter cometido o crime de tráfico no estabelecimento prisional. Os factos provados inviabilizam, assim, que o caso concreto possa considerar-se extraordinário, que sai fora das situações normais e comuns, que está à margem dos cânones da previsão normal do legislador. Afastando-se, assim, a concorrência das cláusulas gerais conducentes à atenuação especial da pena. Acrescenta-se que temos por muito difícil que nos crimes de tráfico possa atenuar-se especialmente a pena. Sumariamente porque o crime se qualifica pela verificação de factos que exponenciam a ilicitude do facto. Se desqualifica quando a ilicitude da “atividade global” se apresente consideravelmente diminuída. Porque na qualificação bem como na desqualificação não intervêm considerações atinentes à culpa do agente. Ainda porque a necessidade de exercer um efeito dissuasor da prática de tais infrações, isto é, as necessidades de prevenção especial positiva, são muito vivas. E, finalmente, porque o legislador previu expressamente as situações em que a pena pode ser especialmente atenuada – cfr. art. 31º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro. Acrescenta-se anda que a aduzida proporcionalidade ou justa medida da pena funciona necessariamente dentro da moldura penal do crime cometido. Improcede, pois, a atenuação especial da moldura penal, proposta do Digno Procurador-Geral Adjunto. |
c) da medida da pena:
O recorrente reclama a redução da pena aplicada, mas unicamente através do desagravamento do crime de tráfico e, mesmo assim, tão-somente por via da reclamada subsunção ao tráfico de menor gravidade. Dito de outro modo, nada esgrime contra a individualização da pena decretada no âmbito da moldura penal do crime de tráfico agravado.
Nada constando das conclusões – que definem o objeto do recurso e delimitam os poderes de cognição do tribunal ad quem -, quanto à medida da pena imposta ou que pretendesse ver aplicada pela prática do crime de tráfico agravado p. e p. pelos arts. 21º n.º 1 e 24º al.ª h) do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, - crime por que vem condenado e se confirma -, ficou o recurso sem objeto, neste segmento.
É uniforme neste sentido a jurisprudência deste Tribunal, como dá nota e reafirma o Ac. de 17/10/2018, no qual se decidiu: “não tendo sido mencionada ao longo da motivação e não constando das conclusões qualquer referência a medida das penas, incluída a pena única, o STJ não pode apreciar a justeza da medida fixada no que respeita à pena conjunta”.
No mesmo sentido decidiu este mesmo Tribunal (e coletivo) no Ac. de 11/03/2020 e reafirmou no Ac. de 29/04/2020, ambos proferidos no Proc. 753/18.0JABRG.G1.S1.
E mais recentemente no Ac. de 10/03/2021, proferido no proc. 330/19.8GBPVL.G1.S1.
Ainda que pareça abundante, realça-se a autonomia, para efeitos de recurso, especificamente, à luz do disposto no art.º 403º n.ºs 1 e 2 al.ª d) e f) do CPP, da questão da culpabilidade e da qualificação jurídica, relativamente à questão da determinação da sanção. Aliás, em perfeita consonância com o regime estabelecido nos art.ºs 368º (“questão da culpabilidade” – entre as quais se inclui a de apreciar e decidir se “se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime” ou seja, a qualificação jurídica dos factos) e 369º (“questão da determinação da sanção”), ambos do CPP.
Pelo que, improcedendo, como improcede a pretensão substantiva atinente à qualificação jurídica do crime de tráfico, resta sem objeto a questão da correção e justeza da pena judicial que lhe foi aplicada. Ausência de contestação a que não será, seguramente, estranha a circunstância de a pena imposta no acórdão recorrido – 5 anos e 6 meses de prisão - se aproximar do limiar mínimo da moldura penal do crime cometido pelo recorrente (punido com a pena de 5 a 16 anos de prisão).
Aplicado este regime normativo ao caso, é incontestável que a questão do desagravamento e do privilegiamento do tráfico é perfeitamente autónoma, distinta da questão da determinação da medida da pena aplicada ao crime de tráfico agravado.
O recorrente descurou que a improcedência da reclamada alteração da qualificação jurídica dos factos deixava incólume a pena aplicada pelo crime de tráfico agravado.
Improcedendo – como efetivamente improcedeu – a reclamada alteração da qualificação jurídica do crime, confirmando-se, como se confirma, a condenação pelo tráfico agravado p. e p. pelo art. 21º n.º 1 e 24º al.ª h) do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro e nada tendo o recorrente alegado e concluído quanto à pena decretada ou que pretendesse ver aplicada pela prática do referido crime, não resta senão concluir que a dosimetria da correspondente pena que lhe foi imposta pelo Tribunal recorrido, é questão não suscitada. Consequentemente, não estando incluída no objeto do recurso, não pode reexaminar-se.
De todo o modo, o Tribunal recorrido, para individualizar a pena de prisão decretada ponderou os fatores legalmente firmados. Desde logo as fortes necessidades de prevenção geral positiva e negativa, demandadas pelo tráfico de estupefacientes. Ponderou também a quantidade e qualidade do estupefaciente traficado pelo recorrente. E bem assim, o “vastíssimo leque de antecedentes criminais pela prática de crimes de roubo, furto simples e qualificado, condução sem habilitação legal, furto de uso de veículo e ofensa à integridade física qualificada, tendo-lhe sido aplicadas penas de multa, penas substitutivas de prisão e penas de prisão efetiva” e o percurso vivencial do arguido.
Ponderou ainda que “o arguido o arguido não revela sentido crítico, tem dificuldades na resolução de problemas, é influenciável e mantém uma postura passiva no sentido da procura de soluções para alterar o seu atual circunstancialismo de vida, denotando, ainda, dificuldades ao nível cognitivo e revela défices em termos de pensamento consequencial, sendo assim elevadas as necessidades de prevenção especial”.
Situando-se a pena em que o recorrente vem condenado em medida -5 anos e 6 meses de prisão -, praticamente no limiar mínimo da moldura penal aplicável (que é de 5 anos de prisão), não comporta intervenção corretiva.
d) da pena suspensa:
O recorrente, pugnando pelo desagravamento e de, de passo, pela desqualificação do crime de tráfico, visava, essencialmente, que não lhe fosse imposta pena não efetiva de prisão, reclamando a aplicação de pena de substituição.
Nos termos do art. 50º n.º 1 do Cód. Penal, pressuposto formal da suspensão da execução da pena aplicada é que tenha sido fixada em medida não superior a 5 anos de prisão.
Vindo o recorrente condenado em pena com medida concreta superior a 5 anos de prisão, que se confirma, não se verifica o assinalado requisito. Pelo que, inverificado o inultrapassável pressuposto formal, falece de sentido esta pretensão do recorrente.
Improcede, assim, totalmente o recurso do arguido.
IV. DECISÃO:
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, decide:
a) julgar improcedente o recurso do arguido, confirmando o acórdão recorrido;
b) condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs – art. 513º n.º 1 do CPP, art.º 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Supremo Tribunal de Justiça, 19 de maio de 2021.
Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)
Atesto o voto de conformidade do C.º Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[10] .
Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)
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[1] Convenção de Viena de 1971 sobre as Substancias Psicotrópicas,.
[2] Artigo 3º n.º 4 al.ª a) “As Partes tornam a prática de qualquer das infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 deste artigo passível de sanções proporcionais à sua gravidade, tais como pena de prisão ou outras penas privativas de liberdade, multa e perda de bens”.
[3] Direito Penal, As consequências Jurídicas do Crime, pag. 199/200.
[4] Proc. 02P376 in www.dgsi.pt (acórdão por unanimidade, assinado por 4 Juízes Conselheiros)
[5] Proc. 184/17.9JELSB.L1.S1, 3ª sec. in www.dgsi.pt.
[6] J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 302.
[7] Ibidem, pag. 305.
[8] Proc. 232/14.4JABRG.P1.S1, 3ª secção, in www-dgsi.pt.
[9] As Consequências cit., pag. 312.
[10] Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.