RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
FUNCIONÁRIO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
CONDENAÇÃO
ABSOLVIÇÃO CRIME
ADMISSIBILIDADE
Sumário


I - O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada em julgado.
II - A revisão de uma decisão judicial firme traduz-se sempre numa violação da segurança do caso julgado que só pode justifica-se para reparar uma grave injustiça ofensiva da liberdade e dos direitos individuais.
III - O regime do recurso de revisão, qualificado como extraordinário, admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica –art.11º do CC.
IV - O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos constitucional ou legalmente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.
V - O acórdão que fixa jurisprudência é legalmente definido como ato judicial decisório escrito – art. 97.º do CPP -, no qual o STJ conhece do mérito de um recurso extraordinário que foi submetido ao seu veredito. É um ato um ato processual judicial jurisdicional.
VI - Não é, obviamente, um facto material que possa integrar os elementos constitutivos de um qualquer crime ou contraordenação.
VII - Nem, evidentemente, elemento de prova, definindo esta como coisa, dado ou elemento que, documentando factos ou que aportando informação sobre realidades da vida sejam capazes de demonstrar um acontecimento pretérito.
VIII - AUJ posterior ao trânsito em julgado de decisão condenatória não integra a situação tipificada no art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em conferência, acorda:



A -  RELATÓRIO:

a) a condenação:

Na secção criminal da instância central... – Juiz ..., no processo comum com intervenção do tribunal coletivo supra identificado, mediante pronuncia, foi julgado o arguido:

- AA, de 71 anos e os demais sinais dos autos

e, por acórdão de 15 de junho de 2015, condenado:

- como autor material de um crime de peculato p. e p. pelo, art° 375°, n° 1 e 73°, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e

- em cúmulo jurídico destas, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, com execução suspensa por igual período de tempo, com regime de prova.

Foi também condenado a pagar à demandante civil “C...”, IPSS, de utilidade publica, a quantia de €49.831,00 (quarenta e nove mil oitocentos e trinta e um euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos em consequência da conduta do arguido.

Foi ainda condenado nas custas processuais.

Impugnou a decisão condenatória, recorrendo perante a 2ª instância.

O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 29.11.2016, negando provimento ao recurso, confirmou a decisão condenatória.

A decisão condenatória transitou em julgado em 19.01.2017, conforme vem certificado nos autos.

b) o recurso:

Por requerimento apresentado nos autos em 28.01.2021, apresentou o vertente recurso extraordinário de revisão, invocando o disposto nos artigos 449º n.º 1 alínea d) e 450º do nº 1 alínea b), ambos do Código Processo Penal.

Remata a alegação com as seguintes conclusões:

1. no entender do recorrente, encontram-se verificados os requisitos que permitem a revisão de sentença transitada em julgado, devido à descoberta de novos factos, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o que se mostra susceptível de alterar o decidido, facto que só chegou ao seu conhecimento após o julgamento - cfr artº 449º nº 1 alínea d) do Código de Processo Penal.

2. Factualidade que gera graves dúvidas sobre a justiça da condenação que foi imposta ao recorrente

3. Pelo que, deverá ser aceite o presente recurso de revisão de molde a repor a verdade e, consequentemente, assim se realizar a justiça.

Arrolou as seguintes testemunhas:

BB – … em ...;

CC – …, … … em ...;

DD –…. … …. em ....

Peticiona a admissão do recurso “por se verificarem os pressupostos legais para a sua admissão, seguindo-se os ulteriores termos (…) com as consequências legalmente previstas”.

c) resposta do M.º P.º:

O Ministério Público na 1ª instância respondeu, defende a autorização da revisão.

d) informação do tribunal:

O Tribunal da condenação, considerando o fundamento do recurso, decidiu dispensar a inquirição das testemunhas indicadas.

Em vez de informação nos termos do  art. 454.º do CPP, pronunciou-se sobre o mérito do recurso, considerando-o infundado “pois que foram aplicadas as normas em vigor à data da pratica dos factos, inexistindo (à data) qualquer outro diploma ou jurisprudência obrigatória que fosse em sentido contrário e sendo a condenação confirmada igualmente por Tribunal Superior”.

e) parecer do M.º P.º no STJ:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal na vista a que alude o artigo 455.º n.º 1 do CPP, em douto parecer pronuncia-se pela negação da revisão “por inverificados os pressupostos previstos no art. 449º do CPP, designadamente na alínea d) do seu nº 1”, uma vez que não se alicerça na invocação de novos factos ou meios de prova.

Em síntese conclusiva argumenta:

“O recorrente não vem invocar existência de quaisquer novos factos ou meios de prova.

 Vem fazer apelo ao decidido no AUJ nº 3/2020, publicado no DR em 18.05.2020.

Porém, o acórdão uniformizador de jurisprudência é isso mesmo -  uniformiza valoração jurídica de factos -, não constituindo de per si “factos” ou “novos factos”. Consubstancia uma interpretação jurídica, com a eficácia prevista no art. 445º do CPP”.


*


O recorrente (arguido nos autos) tem legitimidade para requerer a revisão da sua condenação por decisão judicial transitada em julgado (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP). O recurso encontra-se motivado e está instruído (artigos 451.º, n.º 3, e 454.º do CPP). Este Supremo Tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP) para apreciar o pedido de autorização da rescisão do acórdão condenatória. Nada obstando, pois, ao conhecimento do recurso.

Em razão do atual estado de emergência dispensaram-se os vistos.

O processo foi à conferência.

Cumpre decidir.


B -  FUNDAMENTAÇÃO:

1. a decisão revidenda:

 A condenação do recorrente nos termos inicialmente enunciados fundou-se na seguinte materialidade julgada provada (na parte que aqui releva):

1.° O arguido AA foi:

- Presidente ... pelo menos desde o início do ano de 2003 até Janeiro de 2008;

- Presidente ... no mesmo período temporal;

- Tesoureiro ... entre 1996 e 2007.

E Provedor …... desde Janeiro de 2008.

2.° BB foi Provedor ...... entre Dezembro de 2002 e Dezembro de 2007.

3.° A Santa Casa da Misericórdia…… (doravante referida apenas pela sigla "SCM...") é uma instituição particular de solidariedade social, de cariz religioso, que beneficia do estatuto de utilidade pública.

4.° A Casa Nossa Senhora…... (doravante referida apenas pela sigla "CNS…") e o Lar da Criança…. (doravante referida apenas pela sigla "LC…") são igualmente instituições particulares de solidariedade social, com utilidade pública.

5.° Ora, no âmbito dos cargos que detinham na Santa Casa e invocando a melhoria da gestão da "SCM..." e do Hospital da pertença da "SCM...", o arguido AA (Tesoureiro) e BB (Provedor) lograram que a "SCM..." criasse duas sociedades comerciais, para as quais foram nomeados - desde início e até final - gerentes com remunerações atribuídas.

Taís sociedades são a "SAUDECÓRDIA - Hospital da Misericórdia, Unipessoal Lda." e a "SERVICÓRDIA - Restauração e Serviços, Unipessoal Lda.".

6.° Ambas as sociedades foram constituídas no dia 18 de Julho de 2003, com um capital social de 50.000,00€ cada uma, e sob a forma jurídica de Sociedades Unipessoais por Quotas, sendo a Santa Casa da Misericórdia a única sócia e participante exclusiva no capital social de ambas.

7.° Para o efeito, o arguido AA (Tesoureiro) e BB (Provedor) levaram a alteração dos estatutos da "SCM..." à Assembleia-Geral no dia 2 de Maio de 2003, dando uma nova redacção ao art. 3.75, o qual passou a ter a seguinte redacção:

"Para prossecução dos seus fins, a Santa Casa da Misericórdia…… poderá ainda livremente constituir e/ou adquirir participações de capital em sociedades comerciais, ou reguladas por leis especiais".

8.° Todavia, tal alteração estatutária não foi aprovada nem autenticada pela autoridade eclesiástica competente (no caso, o Bispo  ...).

9.° Porém, as referidas sociedades vieram a dar avultados prejuízos e cessaram a respectiva actividade no giro comercial.

10.° As dificuldades financeiras das empresas "Servicórdia" e da "Saudecórdia" tiveram consequências na tesouraria da sua única accionista, a "SCM...", dado que foram as injecções de capital da S...que permitiram a sobrevivência daquelas sociedades, desde a sua criação.

11.° De facto, as duas empresas nunca pagaram as rendas dos espaços, beneficiaram de empréstimos directos da "SCM..." e de pagamentos a fornecedores que esta efectuou em nome daquelas, atingindo em 2008, em empréstimos  e pagamentos  a fornecedores, um valor acumulado de 2.469.545,45€.

12.° De modo a suportar os investimentos que foram feitos na criação e desenvolvimento daquelas sociedades e depois a cobrir os prejuízos que se vinham acumulando, uma vez que a "SCM...", única sócia, não dispunha de liquidez para tanto, decidiu o arguido AA (Tesoureiro ……) utilizar para tanto capitais que pertenciam às IPSS "CNS..." e "LC...", nas quais ocupava o cargo de Presidente da Direcção.

13.° Para tanto, o arguido AA invocou e convenceu os respectivos associados da "CNS..." e "LC...", perante as Assembleias-Gerais, que ocorreriam benefícios para essas instituições se participassem no capital social da ""Saudecórdia - Hospital da Misericórdia………, Unipessoal, Lda».

Aduzindo que essas vantagens consistiam no facto de os associados, trabalhadores, utentes e familiares, que faziam parte das instituições ("CNS..." e "LC...") passarem a. usufruir de "largos benefícios na prestação de cuidados de saúde na área das consultas de especialidade, meios de 'diagnóstico, fisioterapia e internamentos, do Hospital da Misericórdia …...., através do cartão Saudecórdia/NovaSaúde " ("vide" as actas da Assembleia-Geral do final de 2004/início de 2005).

14.° Por isso, também alteraram os respectivos estatutos - mediante Assembleia-Geral, a "CNS..." em 3 de Abril de 2005 e o "LC..." em 8 de Abril de 2005 - que passaram a mencionar que:

"Para prossecução dos seus fins, a ("CNS..." ou "LC...") poderá ainda livremente constituir e/ou adquirir participações de capital em sociedades comerciais ou reguladas por leis especiais".

15.° Todavia, nenhum benefício para tais instituições, associados, trabalhadores ou utentes se veio a concretizar. De facto, os tratamentos, internamentos e consultas hospitalares de que necessitaram continuaram ser feitos no Centro Hospitalar ……..ou outro.

16.° Nem tão-pouco a "CNS..." e a "LC..." vieram a participar no capital social da " Saúdecórdia " que nunca alterou a sua natureza de sociedade unipessoal.

17.° Não obstante, ambas as IPSS'S transferiram quantias monetárias para a "SCM..." (mediante cheques assinados pelo arguido AA) que esta utilizou para suportar os prejuízos que as duas empresas vieram a provocar.

18.° E parte dessas transferências iniciou-se antes de aos associados da "CNS..." e "LC..." terem sido comunicadas as referidas vantagens, bem como, antes de terem sido alterados os estatutos da "CNS..." e do "LC...".

19.° Assim, a "CNS..." entregou à "SCM..." os seguintes valores por meio dos cheques sacados sobre a Caixa de Crédito Agrícola, Santander Totta e a Caixa Geral de Depósitos e de resgate de títulos (Axa seguros):

a) No decurso do ano de 2004, com início em 29 de Março, p valor global de 285.607,90;

b) No decurso do ano de 2005, com início em 25 de Fevereiro, o valor global de 182.927,83€;

c) No ano de 2007, com início em 15 de Janeiro, o valor global de 60.814,03€;

o que perfaz o valor total de 529.349,76€.

A quantia de 529.349,76 foi devolvida pela "SCM..." à "CNS...", em tranches, tendo sido concluída em Setembro de 2009, e sem o pagamento de quaisquer juros.

20.° Por sua vez, o "LC…" entregou à "SCM…" os seguintes valores por meio de cheques sacados sobre a CGD:

a) No decurso do ano de 2004, com início em 30 de Setembro, o valor global de 70.000,00€;

b) No decurso do ano de 2005, com início em 30 de Março, o valor global de 180.000,00€;

c) No ano de 2006, em 27 de Dezembro, o valor de 25.000,00€;

d) No ano de 2007, em 6 de Março, o valor de 25.000,00€

o que perfaz o valor total de 300.000,00€.

A quantia de 300.000,00€ foi devolvida pela "SCM..." ao "LC…", em tranches, tendo sido concluída em Março de 2010, e sem o pagamento de quaisquer juros, sendo que o "L…" a eles renunciou.

21.° Assim, a totalidade das quantias entregues pelas IPSS "CNS…" e "LC…" à "SCM..." foram depositadas nas contas desta e registadas na sua contabilidade, não tendo qualquer das instituições "CNS..." e CL..." feito qualquer entrega à sociedade comercial " Saudecórdia".

22.° Para praticar tais factos, o arguido AA aproveitou-se da acumulação dos cargos de Presidente….., Presidente ….. e Tesoureiro …… e, simultaneamente, de gerente das duas empresas criadas (Saudecórdia e Servicórdia).

23.° O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem proibidas e punidas por lei a suas condutas..

Sabia que actuava enquanto titular dos cargos que detinha nas referidas instituições particulares de solidariedade social.

Sabia igualmente que utilizava indevidamente as faculdades inerentes a esses cargos e que violava os deveres funcionais que sobre ele impendiam, nomeadamente os deveres de zelar pelos interesses dessas instituições e garantir o seu cumprimento, quando procedeu às transferências dos dinheiros das IPSS "CNS..." e "LC..." para valer às dificuldades da "SCM..." onde era tesoureiro.

O arguido sabia também que não havia sido obtida autorização da autoridade eclesiástica para criarem as referidas empresas na dependência da "SCM..." em consequência da alteração de estatutos desta.

24.° A empresa "Ruf... - agência de serviços e contabilidade" foi constituída em 1979 e, à data dos factos (entre 2003 e 2008), tinha como sócios o arguido AA, DD (mulher do arguido) e EE; eram gerentes, o arguido AA e a sua mulher.

25.° A R…... prestou serviços de contabilidade, processamento de salários e aconselhamento fiscal a todas as cinco instituições (SCM…., CNS…., LC…, Saudecórdia e Servicórdia), muito embora as três IPSS tivessem, à data dos factos acima descritos, Técnicas Oficiais de Contas (TOC) contratadas.

26.° DD (mulher do arguido AA), era TOC no .., e FF (filha do arguido AA), TOC ..., era TOC na ....

Quanto às empresas Saudecórdia e Servicórdia, apesar da contratação da empresa "R.....", foi também a TOC…...- FF - quem procedeu à entrega das declarações fiscais da Servicórdia e da Saudecórdia, em todos os anos de actividade daquelas duas sociedades.

27.° Os valores pagos pelas 5 instituições à "R..." por tais avenças (entre 2004 a 2009,posto que os valores relativos a 2003 não foram concretamente apurados), sem IVA, são os que seguem.

Os valores de 2009 apenas abrangem o período de Janeiro a Outubro.

Instituições200420052006200720082009TOTAL
Casa N.S. ….4.800,0€5.040,00€5.0040,oo€7.200,00€1.200,00€ 23.280,00€
L..4.800,00 €5.040,00€5.040,00€7.200,00€7,200,00€6.000,00€35.280,00€
S...4.800,006.040,00€5.040,00€7.200,00€3.600,00€ 25.680,00€
Sa...6,000,006.ooo,oo€6.000,00€ 3.600,00€6.000,00€27.600,00€
Se...6.000,00 €6.000,00 €6.000,00€ 18,000,00€
26.400,00 €27.120,00 €27.120,00 €21.600,00 €15.600,00€12.000,00€129.840,0€

2. a revisão extraordinária de decisão condenatória:

a) o caso julgado penal:

A decisão judicial[1], a partir do momento em que não pode ser contestada ou impugnada através dos procedimentos ordinários legalmente previstos, torna-se firme, regulando definitivamente o caso concreto na ordem jurídica. Na expressão de Manuel de Andrade, a sentença constitutiva (que julga procedente uma ação) transitada em julgado (caso julgado material) traz o direito para a evidência[2].

Sem caso julgado nenhuma decisão judicial seria exequível, nunca o processo atingiria o seu fim.

Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis literis, na Constituição da República, ele decorre de vários preceitos do texto constitucional (artigos 29º, nº 4 e 282º, n.º 3) e é considerado como subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garante da certeza jurídica. As exceções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco[3].

O Código de Processo Penal não contém qualquer normativo do qual possa extrair-se, diretamente, a definição do trânsito em julgado das sentenças penais. Remete-nos – art. 4º - para o direito adjetivo subsidiário, para o Código de Processo Civil. Neste diploma, o art. 628º estabelece: “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”.

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto”[4].

No entender de J. Figueiredo Dias também a segurança é um dos fins prosseguidos pelo processo penal, “O que não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se poderia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos têm de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser, só, no fundo, a força da tirania[5].

Para J. Alberto dos Reis, “o recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas susceptíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”[6].

O instituto do caso julgado é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais[7], evitando a contradição prática de decisões.

A favor do caso julgado em processo penal, invoca-se também o efeito nefasto da reabertura em relação ao coarguido e às vítimas, que seria potenciado pelas circunstâncias emergentes do distanciamento em relação ao material probatório derivado da passagem do tempo.

b) o recurso de revisão:

Na expressão de M. Cavaleiro de FerreiraA irrecorribilidade das decisões judiciais irrevogáveis tem por efeito a sua definitividade e a sua exequibilidade. Quer dizer, esgotou-se no respectivo processo quanto à matéria da decisão o poder jurisdicional, e ficou autorizada a execução da decisão[8]”.

Contudo o princípio res judicata pro veritate habetur não confere ao caso julgado, ainda que erga omnes, uma presunção juris et de jure, de que a decisão consagra justiça absoluta, perenemente irreparável, e por isso irrevogável”.

A revisão, qualquer que seja a sua génese, será sempre uma violação da segurança do caso julgado que é justificada em razões de justiça[9].

Todavia, socorrendo-nos das justificações do Tribunal Supremo de Espanha: “o problema político-social que se produz pelo facto de que sendo as decisões judiciais um ato humano não se deve cerrar o passo definitivamente à consideração de que possam estar equivocadas. O intérprete do sistema legal tem que sopesar se num momento determinado o valor da segurança jurídica deve sobrepor-se ao valor da justiça. Um Estado democrático deve buscar saídas e soluções para resolver os problemas que afetam a liberdade e os direitos individuais[10].

O recurso extraordinário de revisão, assenta na ideia de que as sentenças judiciais condenatórias firmes, embora esmagadoramente correspondam à verdade prático-jurídica, todavia podem não ser infalíveis, mas também não podem estar permanentemente abertas a qualquer reapreciação. É, na essência, um remédio que, atentando contra o efeito preclusivo do caso julgado e a inerente segurança e paz, cuida de manter o equilibro necessário entre o valor da certeza jurídica que lhe é imanente e a justiça material.

Por isso que, somente se admite a revisão quando o Supremo Tribunal se depara com um caso de condenação notoriamente equivocada, enquadrável em algumas das situações que o legislador taxativamente erigiu como podendo justificar a revogação da sentença condenatória transitada em julgado.

O recurso ordinário da sentença eleva a tramitação a outra etapa do processo penal, a fase destinada ao reexame da decisão.

O recurso extraordinário de revisão não tem por objeto a reapreciação da decisão judicial transitada. Não é uma fase normal de impugnação da sentença penal. É um procedimento autónomo especialmente dirigido a obter novo julgamento e, por essa via, rescindir una sentença condenatória firme.

No entendimento seguido no Ac. n.º 376/2000 do Tribunal Constitucional, “no novo processo não se procura a correção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou com a decisão revidenda, porque para a correção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário”, “os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são indício indispensável à admissibilidade de um erro judiciário carecido de correção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento[11].

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), Protocolo 7, no artigo 3º (direito a indemnização em caso de erro judiciário) alude a “condenação penal definitiva” “ulteriormente anulada” “porque um facto novo ou recentemente revelado prova que se produziu um erro” de julgamento. E no artigo 4º estatui-se que a sentença definitiva não impede “a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento”.

Nesta linha, a Constituição da República, no artigo 29º, (n.º 5), “obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto[12] e (n.º 6) atribui à pessoa injustamente condenada o direito à revisão da sentença, nos termos que a lei prescrever

A violação do caso julgado, permitida pela Constituição da República, e pela CEDH, visa a salvaguarda do elementar direito à liberdade e o direito a uma condenação justa de acordo com as regras constitucionais e do processo penal.

Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário[13] e no regime, substantivo e procedimental, especial. Por isso, somente os fundamentos firmados pelo legislador podem legitimar a admissão da revisão da condenação transitada em julgado. Regime normativo excecional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica –art.11º do Código Civil.

Como se sustenta no Ac. de 26-09-2018, deste Supremo Tribunal, “do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”.

c) regime legal:

Em execução daquele comando constitucional (e do referido preceito da CEDH), o Código de Processo Penal, consagra, e regula o recurso extraordinário de revisão, estabelecendo no artigo 449º (fundamentos e admissibilidade da revisão) n.º 1 do CPP:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

Por sua vez, o art. 451º (“formulação do pedido), n.º 2 exige que do requerimento conste a exposição circunstanciada dos fundamentos da revisão e a indicação dos meios de prova em que se possa amparar.

Exige-se também que o requerimento venha instruído com cópia autenticada da decisão revidenda e a certificação do seu trânsito em julgado (n.º 3)

Não se admitindo testemunhas que não tenham sido inquiridas no processo, a não ser justificando que se ignorava a sua existência à data da condenação ou que estiveram impossibilitadas de depor –art. 453º n.º 2 do CPP.

Com o requerimento, apresentado no tribunal da condenação, inicia-se o procedimento destinado à verificação dos requisitos formais e dos pressupostos substantivos para poder ser formulado um juízo rescindente, da competência exclusiva do STJ.

O juízo rescindente só pode ser formulado e, consequentemente, autorizado novo julgamento, se proceder algum dos fundamentos constitucional ou legalmente previstos para que o caso julgado tenha de ceder perante a grave injustiça da condenação.

Não estando presente todos os requisitos ou não existindo ou não se demonstrando os fundamentos invocados, ou se, alicerçando-se em novos factos ou novos elementos de prova, visa corrigir a medida da pena, a revisão deve ser negada –art. 456º.

Sendo autorizada, inicia-se a fase do juízo rescisório a processar na 1ª instância territorialmente competente.

d)  antinomia condenação-absolvição:

O fundamento previsto na al.ª d) do n.º 1 do art. 449º do CPP (invocado pelo requerente e, por conseguinte, único que importa ao vertente recurso), exige desde logo a descoberta de “novos factos ou meios de prova”.

E exige ainda que os novos factos ou meios de prova, por si sós ou combinados com os que foram apreciados no processo, “suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Norma cuja redação provem e se mantem inalterada desde o texto original, inspirada no artigo 673.º, n.º 4, do Código de Processo Penal de 1929, que tinha a seguinte redação:

“4. Se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciadas no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado”.

Entendia-se então que “a suspeita grave de injustiça da decisão, no sentido da violação da lei substantiva, não pod[ia] fundamentar a revisão”.

Sustenta-se na doutrina e tem sido adotado na jurisprudência o entendimento de que a alínea d) “tem um campo de aplicação bastante divergente deste seu antecedente, muito mais amplo, pois enquanto aquele n.º 4 exigia que os novos factos ou elementos de prova constituíssem graves presunção de inocência do condenado, basta agora que eles suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. A disposição atual tem, é certo, a limitação do n.º 3, determinante da inadmissibilidade do pedido de revisão com o único fim de corrigir a medida da pena. Mesmo assim, ficam agora a caber no âmbito legal casos que a lei anterior não comportava, como o de posteriormente à condenação se descobrir que o arguido era inimputável ou tinha imputabilidade diminuída à data da condenação (…) e o de diferente enquadramento dos factos”[14].

Entendimento seguido também por G. Marques da Silva, que aponta os mesmos exemplos[15].

Alguma jurisprudência tem ido no sentido de que naquele fundamento não está apenas em causa a presunção de inocência do arguido, bastando que os novos factos ou documentos suscitem grave dúvida sobre a justiça da condenação.

Mas há também quem entenda que, no essencial, o fundamento em apreço traduz a ideia ventilada pelos autores espanhóis Emílio Orbaneja e Vicente Quemada, citados por Simas Santos e Leal Henriques[16] no sentido de que a revisão só deve caber quando esteja em causa a relação condenação-absolvição.

Interpretação adotada por este Supremo Tribunal, nomeadamente no Ac. de 13/03/2003[17] e no Ac. de 20/11/2003[18]. Para ser admitida a revisão não é suficiente a descoberta de novos factos ou elementos de prova. Exige-se que, por si sós ou conjugados com os factos apurados no julgamento ou as provas aí apreciadas, demonstrem ou indiciem fortemente a inocência do condenado. Interpretação reafirmada no Ac. STJ de 24/01/2018, onde se sustentou: “não releva o facto e/ou meio de prova capaz de lançar alguma dúvida sobre a justiça da condenação. A lei exige que a dúvida tenha tal consistência que aponte seriamente para a absolvição do recorrente como a decisão mais provável[19].

No direito comparado, o código de processo penal de alguns países que nos são próximos, enunciando também como um dos fundamentos da revisão, a descoberta de novos factos ou meios de prova, exige-se que evidenciem que o condenado devia ter sido absolvido.

Exigência que não implica a subversão do sistema de carga probatória. Na fase do juízo rescindente, não se discute a acusação, existe já uma sentença condenatória firme que fixou os factos, transpondo-os da realidade histórica para o domínio da juridicidade. No processo penal, o arguido, para alcançar a revisão da sentença, não tem que demonstrar perante o Tribunal de recurso que não cometeu os factos por que foi condenado ou de que por eles não é responsável. Mas também não é bastante que indique quaisquer novos factos ou novas provas. Pretendendo eliminar ou reverter uma situação judicialmente estabelecida e juridicamente estabilizada no domínio do direito (visando a desconstituição da condenação decretada[20], na feliz expressão da jurisprudência dos supremos tribunais brasileiros), enquanto requerente da revisão de uma condenação firme, exige-se-lhe que apresente novos factos ou provas que, por si sós ou conjugadas com outras provas produzidas no julgamento, sejam de molde a infirmar objetivamente os factos provados, a desvaloriza-los completamente ou que tornem manifestamente insuficientes as provas em que se fundou a condenação. A presunção de inocência cessa com o trânsito em julgado da condenação – art. 32º n.º 2 da Constituição da República. Para readquirir essa presunção, a Constituição e o processual penal, no compromisso imanente com a verdade material das decisões judiciais, não impõem que o condenado prove que os factos não aconteceram ou de que por eles não culpável. Demandam, isso sim, que o condenado apresente novos dados de facto ou meios de prova que demonstram grave insuficiência cognitiva da decisão em matéria de facto. Tal sucederá quando são levados ao conhecimento do tribunal factos anteriores suficientemente acreditados, que interessando ao objeto da causa e podendo influir no sentido da decisão em matéria de facto, não podia ter conhecido ou meios de prova cuja existência se ignorava e que se revelam com força probatória adequada a infirmar os factos provados que sustentam a condenação. 

Não se admitindo, no nosso regime, a revisão com fundamento na injustiça da medida da pena, resta campo limitado para outros substratos factuais ou probatórios que não venham a traduzir-se, in fine, na absolvição do condenado com notório equívoco ou erro palmar e patente ou, ao menos, no regresso à situação jurídica anterior à decisão transitada em julgado (a revogação da suspensão da execução da pena de prisão tem suscitado divergências[21]).

O nosso legislador também não prevê a revisão da decisão judicial com fundamento no erro de julgamento[22]. Nem, fora dos casos expressamente previstos, em vícios do procedimento devido[23].

Seja como for, inscrevendo-se o direito à revisão extraordinária da condenação no elenco dos direitos fundamentais dos cidadãos injustamente condenados, a segurança e a paz jurídicas devem ceder, excecionalmente, perante a necessidade de, em situações de patente e grave injustiça legalmente catalogadas, reafirmar o valor da justiça de modo a que a sentença transporte para os autos e traduza no processo a realidade da vida. Nas palavras de M. Cavaleiro de Ferreira, no processo penal, “a justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações. O direito não pode querer e não quer a manutenção de uma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais, a garantia dum mal invocando prestígio ou infalibilidade do juízo humano, à custa da postergação de direitos fundamentais do cidadão, transformados cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada … da lei e do direito”[24]. Contudo, a relativização do caso julgado, não pode postergar completamente o valor da segurança e a paz jurídica, constitucionalmente garantidos através do instituto do caso julgado.

No entendimento do Tribunal Constitucional exposto no Ac. 376/00 de 13/07/2000:

O recurso de revisão é estruturado na lei processual penal em termos que não fazem dele uma nova instância, surgida no prolongamento da ou das anteriores. O núcleo essencial da ideia que preside à instituição do recurso de revisão, precipitada na alínea d) do nº 1 do artigo 449º do CPP, reside na necessidade de apreciação de novos factos ou de novos meios de prova que não foram trazidos ao julgamento anterior.

Trata-se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar.

Compreende-se a esta luz que a lei não seja permissiva, ao ponto de banalizar e consequentemente desvalorizar a revisão, transformando-a na prática em recurso ordinário, endo-processual neste sentido – a revisão não pode ter como fim único a correção da medida concreta da pena (nº 3 do artigo 449º) e tem de se fundar em graves dúvidas lançadas sobre a justiça da condenação. É nesta ordem de considerações que a Constituição consagra no nº 6 do artigo 29º o direito dos cidadãos injustamente condenados, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença". Esta é a norma constitucional que mais próxima e diretamente disciplina a matéria, (…).

Deste modo, como se assinalou, a abertura e amplitude da revisão da sentença condenatória não pode deixar de ser informada pela ideia de excecionalidade, aplicável apenas a casos de injustiça intolerável ou por gravidade excessiva, Só assim se poderá manter, na medida do possível, o necessário equilíbrio entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança jurídica.

e) novos factos ou meios de prova:

Salientou-se que, com o fundamento em apreço – invocação da al.ª d) - podem sustentar a rescisão da sentença condenatória novos factos ou meios de prova que, necessariamente, infirmem ou modifiquem os factos que motivam a condenação.

Não satisfaz aquele requisito a invocação de quaisquer factos ou de outras provas nem a mera invocação de factos novos, ou tampouco basta a sua hipotética verosimilhança. Ademais da novidade, têm de estar suficientemente acreditados, isto é, resultarem convincentemente demonstrados. No processo penal, os factos adquirem-se através das provas. Aqui, a alegação de factos sem provas, diretas ou indiretas que os demonstrem, - por si só (autonomamente) ou combinados com outros que hajam sido apreciados no processo - não tem a potencialidade de elevar ao nível da crise grave (qualificada) a força da res judicata.

Do mesmo modo, não basta a apresentação de quaisquer novas provas. Somente fundamentam a rescisão da sentença firme, provas que, ademais da novidade, aportem dados que infirmem os factos que nesta se julgaram provados e que legitimam a condenação.

Para além de os factos ou meios de prova deverem ser novos é ainda necessário que eles, por si ou em conjugação com os já apreciados no processo, sejam de molde a criar graves e fundadas dúvidas sobre a justiça da condenação. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; terá de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade”, tendo os novos factos e/ou provas de assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida.

Descobrirem”, do verbo descobrir, tem o significado de por a descoberto, destapar, encontrar, tanto para o que é verdadeiramente novo como também o que já existia e de que só agora se adquiriu conhecimento.

Novos” são os factos ou elementos de prova vistos pela primeira vez, que eram inéditos, desconhecidos.

A expressão “descobrirem novos” pressupõe que os factos ou elementos de prova foram conhecidos depois da sentença e, por isso, não podiam ter sido aportados ao processo até ao julgamento, seja porque antes não existiam, seja porque, embora existindo, somente foram descobertos depois.

Como se sustenta no citado Ac. STJ de 26/09/2018:

I - Quanto à novidade dos factos e/ou dos meios de prova, o STJ entendeu, durante anos e de forma pacífica que os factos ou meios de prova deviam ter-se por novos quando não tivessem sido apreciados no processo, ainda que não fossem ignorados pelo arguido no momento em que foi julgado.

II - Porém, nos últimos tempos essa jurisprudência foi sendo abandonada e hoje em dia pode considerar-se solidificada ou, pelo menos, maioritária, uma interpretação mais restritiva do preceito, mais adequada, do nosso ponto de vista, à natureza extraordinária do recurso de revisão e, ao fim e ao cabo, à busca da verdade material e ao consequente dever de lealdade processual que impende sobre todos os sujeitos processuais. Assim, “novos” são tão só os factos e/ou os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

Por sua vez, no Ac. de 12/5/2005 do Tribunal Constitucional expende-se:

Há‑de, pois, tratar-se de “novas provas” ou “novos factos” que, no concreto quadro de ato em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção, verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos novos factos, seja por outros motivos aceitáveis – que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação e prova de um quadro de facto “novo” ou a exibição de “novas” provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão revidenda.

Não se trata, portanto, de elementos probatórios que permitam novas argumentações a favor da inocência do condenado, mas de autênticas novas provas que desvirtuando totalmente as provas que motivaram a condenação, fazem duvidar gravemente da sua justiça material. Tampouco se trata de uma nova oportunidade para reapreciar os elementos probatórios que o tribunal de instância e/ou de recurso já tiveram em conta.

Como se sustenta-se no Ac. de 3/12/2014, deste Supremo (e secção), exigem-se “novas provas” que, no concreto quadro factual, se revelem tão seguras que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar, não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a prova de um quadro de facto novo ou a exibição de novas provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão[25].

Em síntese, são, dois e cumulativos os parâmetros da admissibilidade da revisão com fundamento na al.ª d) do n.º 1 do art. 449º do CPP:

-que os factos ou provas apresentados não existiam ou se, se existentes, desconheciam e, portanto, não puderam apresentar-se e, consequentemente, ser tidos em conta na sentença;

-que por si sós ou conjugados e confrontados com provas produzidas na audiência evidenciem, acima de qualquer dúvida razoável, a grave injustiça da condenação.

Discutida tem sido a aferição da novidade dos factos e dos meios de prova. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal a corrente maioritária, - seguida entre outros, no recente Ac. de 10/02/2021 desta 3ª secção – sustenta (com sublinhado de realce): Louvando-nos, brevitatis causa, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, processo 41/05.1 GAVLP-C.S1, de 12.03.2014,  factos novos serão «os factos e os meios de prova desconhecidos pelo recorrente ao tempo do julgamento e que não tenham podido ser apresentados e apreciados na decisão”.

f)  no caso:

Vejamos se o vertente recurso satisfaz os parâmetros da pretendida revisão do acórdão que, transitado em julgado, firmou na ordem jurídica e judiciária a narrativa dos acontecimentos sobre que versou a decisão e, consequentemente, a condenação do arguido aqui recorrente nos termos inicialmente plasmados.

O recorrente ampara a pretensão rescindente invocando unicamente o AUJ n.º 3/2020, deste Supremo Tribunal, datado de 13 de fevereiro de 2020, publicado no Diário da República n.º 96/2020, Série I de 2020-05-18, no qual se fixou a seguinte jurisprudência:

«O conceito de 'organismo de utilidade pública', constante da parte final da actual redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social, cujo estatuto consta hoje do Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14 de Novembro, alterado pela Lei n.º 76/2015, de 28 de Julho.»

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa eliminar dissidio que vem grassando na jurisprudência dos tribunais superiores sobre a interpretação de uma norma ou complexo normativo. Atualmente, o acórdão uniformizador, pondo termo ao conflito, não tem força de lei (já teve, na época dos Assentos). A interpretação que o STJ assim fixa não tem efeitos retroativos, para além do processo onde foi tirado e de outros nos quais este Supremo Tribunal tenha reconhecido, anteriormente, oposição de julgados. Nos restantes processos tem a eficácia nas decisões que venham a proferir-se a partir da data da publicação em diário da República.

Em qualquer caso, o acórdão que fixa jurisprudência é legalmente definido como ato judicial decisório escrito – art. 97º do CPP -, no qual o STJ conhece do mérito de um recurso extraordinário que foi submetido ao seu veredito. É um ato jurídico, especificamente um ato processual judicial jurisdicional final.

É, pois, inquestionável que a interpretação de uma norma ou complexo normativo jurisprudencialmente fixada não se integra, de modo nenhum, na situação tipificada no art.º 449º n.º 1 al.ª d) do CPP.

Não é, obviamente, matéria de facto, não é um facto material que possa integrar os elementos constitutivos de um qualquer crime ou contraordenação.

Não é, evidentemente, elemento de prova, definindo esta como coisa, dado ou elemento que documentando factos ou que aportando informação sobre realidades da vida sejam capazes de demonstrar um acontecimento pretérito.

Está, pois, completamente fora de cogitação qualificar e, por conseguinte, admitir que um qualquer AUJ possa considerar-se novo facto (material) ou novo elemento probatório (facto ou coisa).

Nenhuma dúvida razoável pode subsistir que um AUJ não estava na vontade nem no espirito do legislador processual penal, como não encontra qualquer abertura na letra da lei, para que possa considerar-se novo facto ou novo elemento de prova, de modo a poder fundamentar a rescisão de decisão penal condenatória.

Ao invés, do regime do recurso extraordinário de jurisprudência, como realça a Digna Procuradora-Geral Adjunta, decorre que a jurisprudência fixada tem a sua eficácia limitada ao próprio processo onde foi tirado, em outros em que já tenha sido reconhecida pelo STJ oposição de julgados sobre a mesma questão de direito e, no demais, apenas para futuro, conforme resulta expressamente do disposto no art.º 445º do CPP.

A previsão normativa que, - somente por analogia forçada -, mais se poderia aproximar da fundamentação do recorrente seria a vertida na alínea f) do n.º 1 do art. 449º do CPP.

Mas, como temos sublinhado invariavelmente, no domínio dos recursos extraordinários, atenta a sua excecionalidade, a analogia não é permitida. Se o legislador não inclui os AUJ no catálogo das situações que legitimam a revisão das condenações não foi, seguramente, por esquecimento.

Evidentemente que a resolução das divergências que grassam na jurisprudência dos tribunais superiores através da fixação de jurisprudência em recurso extraordinário não pode fundamentar o desencadeamento exitoso do recurso, também extraordinário, de revisão de condenações firmes, porque anteriormente transitadas em julgado.

Conclui-se assim, que no caso, não só inexistem novos factos e novos meios de prova, como também nem sequer o fundamento invocado pelo recorrente é de molde a poder configurar a situação tipificada no art.º 449º n.º 1 al.ª d) ou qualquer outra das catalogadas na mesma norma adjetiva.

Não se verificando os pressupostos exigidos pelo art. 449.º n.º 1 do CPP para poder ser admitida a revisão, designadamente com o fundamento previsto na alínea d) do mesmo normativo, expressamente invocado pelo arguido, carece, manifestamente, de fundamento bastante, o vertente recurso extraordinário de revisão. Não podendo admitir-se a peticionada rescisão da decisão condenatória revidenda.

C. DECISÃO:

Termos em que o Supremo Tribunal de Justiça, em conferência da Secção Criminal, acorda em:

a)  Negar a revisão da condenação nestes autos do recorrente.

b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.

c) Em obediência ao disposto no art.º 456º do CPP, condenar o recorrente a pagar 9 UCS


*


Lisboa, 19 de Maio de 2021


Nuno A. Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[26] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro presidente da secção)


________

[1] Nos termos do art. 449º do CPP, para efeitos de revisão “à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo”.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, pag. 335.
[3] J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., 2ª reimpressão. Coimbra, 3003, Edições Almedina, pag, 265.
[4] A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpressão), Almedina, 1983, pág. 302.
[5] Direito Processual Penal, 1º vol. pag 44.
[6] Código de Processo Civil Anotado, 1984 (reedição), volume V, pág. 158.
[7] Eduardo Correia, ob citada, pag. 403.
[8] Curso de Processo Penal, III, edição da AAFDL, 1963, págs. 35.
[9] J. H. Santos Cabral, “A relação entre as decisões dos tribunais internacionais e as decisões dos tribunais supremos - efeito directo e reabertura do processo”, pag. 9 e pag. 17.
[10] Sentencia de 22/11/1996.
[11] DRE II série de 13/12/2000.
[12] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4º ed., pag. 497.
[13] Extraordinário é o que é fora do comum, raro, que sucede em circunstancias excecionais.
[14] M. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pag. 845.
[15] Curso de Processo Penal, III, pag. 388.
[16] Recursos em Processo Penal, p. 215
[17] Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano 2003, tomo I, p. 231.
[18] em www.dgsi.pt
[19] proc. n.º 3/12.2GAVVC-B.S1, 3ª sec , www.dgsi.pt/jstj.
[20] Através do recurso de «revisão», também denominada “ação de revisão criminal”.
[21] No Ac. STJ de 25/05/2016, proc. 459/08.8POLSB-A.S1 (in www. dgsi.pt) decidiu-se: “O despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão, que o recorrente pretende que seja revisto, não põe fim ao processo, limitando-se a dar sequência à condenação antes proferida, pelo que é insuscetível de revisão”.
[22] Na decisão da matéria de facto – por ex., o tribunal fixa um acontecimento que não existiu – ou na resolução da questão de direito – maxime:, errada subsunção jurídica dos factos provados, ou, em geral,  erro na aplicação do direito ao caso concreto.
[23] Por ex.: nulidades da sentença.
[24] Scientia Iuridica, tomo XIV, n.ºs 75/76, pag. 520/521.
[25] Proc. 798/12.3GCBNV-B.S1 in www.dgsi.pt
[26]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.