Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
IMPUGNAÇÃO DA PERFILHAÇÃO
CADUCIDADE
PRAZO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário
I – Nos artigos 1786.º n.º 1 al. a) e 1826.º n.º1, ambos do C.Civil consagra-se a regra pater ris est quem nuptias demonstrant. II – Todavia a paternidade presumida do marido da mãe pode ser impugnada nos termos dos artigos 1838.º e segs. do C.Civil. III – O reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efectua-se por perfilhação ou decisão judicia em acção de investigação. Mas a perfilhação que não corresponda à verdade material é impugnável em juízo, sendo que tal acção não está sujeita a qualquer prazo, é imprescritível.
Texto Integral
Proc. n.º 249/19.2T8BAO.P1 – 3ª Secção (Apelação)[1] - 1355
Acordam no Tribunal da Relação do Porto I.
B… instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra C…, D…, E…, F… e G….
Pediu que se mande esclarecer a paternidade dos réus D…, E…, F… e G…, ilidindo-se, quanto aos três últimos, a presunção estabelecida pelo artigo 1826.º do CC, e, caso se confirme que o autor não é pai daqueles réus, ou de algum deles, que se anule a perfilhação realizada e se mande cancelar o respectivo averbamento no registo de nascimento.
Como fundamento, alegou, em síntese:
- Manteve com a ré C… um relacionamento íntimo e amoroso, tendo esta, no início do mesmo, engravidado, o que culminou no nascimento, a 24.09.96, do réu D…;
- A 29.12.97, casou catolicamente com aquela ré, tendo, após, nascido os réus E…, F… e G…, a 02.02.99, 07.11.00 e 18.06.04, respectivamente;
- O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 21.09.09 e, nos últimos anos de casamento, as relações sexuais entre si e a ré C… raras vezes tinham lugar, atentas as desculpas por esta invocadas, o que provocava discussões entre o casal;
- Por diversas vezes, foi alertado, por vizinhos e amigos, para o facto de a ré C… “andar com outros homens”, o que já sucedia em momento anterior ao casamento de ambos, não sendo os réus D…, E…, F… e G… seus filhos;
- Na sequência de tais avisos, seguiu a ré C…, descobrindo que esta se havia encontrado com outro homem, o que a própria, após ser confrontada pelo autor, admitiu;
- No decurso do processo de divórcio, a ré C… já encontrava a residir, naquela que foi a habitação de ambos, com outro homem.
Os réus contestaram, tendo os réus C…, F… e G… invocando a excepção de caducidade, para tanto, alegando, em síntese, que, face ao acervo factual alegado pelo autor – que remontará, no limite, ao dia 21.09.09, data da dissolução do acima referido casamento –, o seu direito de accionar se encontra caducado.
O autor respondeu à excepção, invocando a inconstitucionalidade dos prazos de caducidade previstos na lei.
De seguida, foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção peremptória de caducidade e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
O autor recorreu, formulando, em síntese, as seguintes
CONCLUSÕES
1ª – O recorrente não partilha da interpretação feita pelo M.º Juiz a quo, pelo que entende que a acção em causa tem-se por tempestiva, pois padece de inconstitucionalidade a fixação de qualquer prazo de caducidade, nomeadamente o da redacção dada ao artigo 1842.º do CC, mesmo após as alterações introduzidas pela Lei 14/09, de 01.04, entendendo, consequentemente, que deve ser dada prevalência absoluta ao direito à identidade pessoal, e, ao direito ao desenvolvimento da personalidade (direitos constitucionalmente consagrados, e constantes nos artigos 26.º n.º 1, 36.º n.º 1, e, 18.º n.º 2 da CRP, sobre eventuais valores de segurança e da certeza jurídica.
2ª – O recorrente pretende a impugnar a paternidade, defendendo um direito à descoberta da verdade biológica, com vista a ilidir a presunção de paternidade, estabelecida pelo artigo 1826.º n.º 1 do CC.
3ª – O recorrente entende, na senda do que vem sendo o entendimento dos Tribunais Superiores, que se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação temporal, o presumido pai, por maioria de razão, também o poderá fazer, sob pena de discriminação, e consequente violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, no artigo 13.º da CRP.
4ª – Assim, entende o recorrente que a disposição constante no artigo 1842.º n.º 1 al. a) do CC, quando interpretada no sentido em que prevê um prazo que limita a possibilidade do presumido pai propor, a todo o tempo, acção de impugnação de paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias, através das quais possa concluir que não é o pai biológico, é inconstitucional por violação do direito à tutela judicial efectiva, e, bem assim, como os direitos constitucionalmente consagrados, nomeadamente, o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal, e, o direito a constituir família, constantes nos artigos 26.º n.º 1, 36.º n.º 1, e 18.º n.º 2 da CRP.
5ª – Mais entende o recorrente que tal limitação temporal imposta pelo artigo 1842.º n.º 1 al. a) do CC, mesmo após a alteração introduzida pela Lei 14/09, constitui uma salvaguarda desproporcional dos valores dos valores de certeza e segurança jurídica, que visam evitar a permanência de uma duvida a respeito da filiação, por períodos demasiadamente longos, pelo que não potenciam o respeito pelo direito à identidade, consagrado pelo disposto no artigo 26.º n.º 1 da CRP, afigurando-se, como tal, inconstitucional a disposição constante no artigo 1842.º n.º 1 al. a) do CC, razão pela qual, no entender do recorrente, não deveria proceder a excepção peremptória de caducidade.
6ª – Assim, com base na argumentação supra referida, conclui-se pela inconstitucionalidade do artigo 1842.º n.º 1 al. a) do CC, por manifesta violação dos princípios e normas constitucionais supra referidas, devendo ser declarada a inconstitucionalidade da norma sindicada no caso concreto, determinando a tempestividade da acção.
7ª – Acresce que, sendo a perfilhação que não corresponde à verdade é impugnável, a todo o tempo, mesmo depois da morte do perfilhado, conforme consta do disposto no artigo 1859.º do CC, afigura-se inaceitável há luz da CRP, as limitações temporais, impostas pelo artigo 1842.º do CC, sob pena de violação do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP.
8ª – No que respeita ao réu D…, o recorrente conclui que, mesmo seguindo o entendimento do Tribunal a quo, o prazo para propositura da acção de impugnação, não caducou, pois, neste caso concreto, estamos perante a impugnação da paternidade estabelecida por reconhecimento (perfilhação), impugnação esta que pode ser intentada a todo o tempo, conforme consta da disposição constante no artigo 1859.º do CC, motivo pelo qual não deveria o 2.º réu ter sido absolvido do pedido.
9ª – Assim, em face à argumentação supra exposta, conclui-se que o Tribunal a quo procedeu à aplicação ao caso concreto da disposição constante no artigo 1842.º do CC, ao invés, da disposição contida no artigo 1859.º do Código Civil, motivo pelo qual deverá a acção ter-se por tempestiva, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
O MINISTÉRIO PÚBLICO também contra-alegou, em representação do ausente, pugnando igualmente pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
* II. O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. B… e C… casaram no dia 29.11.97, tendo o respectivo casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em julgado a 28.10.09.
2. D… nasceu a 24.09.96 e encontra-se registado como filho de B… e C….
3. E… nasceu a 02.02.99 e encontra-se registado como filho de B… e C….
4. F… nasceu a 07.11.00 e encontra-se registada como filha de B… e C….
5. G… nasceu a 18.06.04 e encontra-se registado como filho de B… e C….
6. A presente acção foi intentada em juízo pelo autor a 09.10.19, tendo este alegado factos pretensamente ocorridos até ao ano de 2009.
* III.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação do apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – são as seguintes:
- Se não caducou o direito do autor à impugnação da paternidade por a norma do artigo 1842.º, n.º 1, al. a) do CC ser inconstitucional;
- Caso tal não se entenda, se, ainda assim, não caducou o direito do autor relativamente ao réu D… por, neste caso, se estar perante uma situação de impugnação de perfilhação, que é imprescritível, face ao disposto no artigo 1859.º do CC.
1. Inconstitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 1, al. a) do CC
Diz o artigo 1786.º, n.º 2 do CC que a paternidade se presume em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento.
Por seu turno, diz o artigo 1826.º, n.º 1 do mesmo Diploma que se presume que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe.
Consagra-se, ali, a regra pater is est quem nuptias demonstrant: a atribuição da paternidade ao marido assenta na forte probabilidade de ele ser autor da procriação, segundo juízos objectivos de experiência; é o que resulta da normalidade de o pai ser o marido da mãe.
Como sublinham Pereira Coelho e Guilherme Oliveira[2], "a atribuição da paternidade fundada nas regras de experiência e num juízo de probabilidade exprime-se juridicamente através de uma autêntica presunção legal, e a profunda exigência de verdade neste domínio grave do estado das pessoas e a circunstância de os juízos de probabilidade que geram a presunção legal admitirem, por sua própria natureza, um risco de erro, levam a que consideremos esta presunção iuris tantum, para que se admita livremente a prova do contrário do facto presumido.".
Esta paternidade presumida é a paternidade verdadeira, enquanto não for provado o contrário, ilidindo-se a presunção em que assenta; deve constar, obrigatoriamente, do registo de nascimento do filho, não sendo admitidas menções que o contrariem, salvo o disposto nos artigos 1828.º e 1832.º do CC (artigo 1835.º, n.º 1 do mesmo Diploma).
A paternidade presumida do marido da mãe pode ser impugnada nos termos previstos nos artigos 1838.º e seguintes do CC.
Resulta da factualidade provada que os réus E…, F… e G… nasceram na constância do casamento entre o autor e a ré C…, pelo que, quanto aos mesmos, a presente acção se configura como uma acção de impugnação de paternidade presumida, instaurada pelo marido da mãe, e, como tal, sujeita ao prazo de caducidade previsto no artigo 1842.º, n.º 1, al. a) do CC.
Prevê aquele preceito um prazo de caducidade de três anos, contados desde que o marido da mãe teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade.
Tendo o próprio autor alegado que tinha conhecimento de tais circunstâncias em data anterior a 2009 e tendo a presente acção sido instaurada em 09.10.19, o seu direito à impugnação da paternidade dos filhos nascidos na constância do casamento só não caducou se se entender que a citada norma da al. a) do n.º 1 do artigo 1842.º está ferida de inconstitucionalidade.
Na apreciação da questão da inconstitucionalidade da referida norma, escreveu-se o seguinte na fundamentação de direito do despacho saneador recorrido:
“Isto posto, importa que nos detenhamos na análise da invocada excepção de caducidade. Perscrutados os autos, rapidamente se alcança que nos encontramos perante uma acção de impugnação da paternidade. Trata-se, no dizer de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, de uma acção com vista a possibilitar a correcção de uma atribuição legal e automática de paternidade que se julgue não corresponder ao vínculo real de parentesco que decorre dos direitos fundamentais à integridade e à identidade pessoal consagrados, respetivamente, nos artigos 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º1, ambos da CRP, na medida em que o conhecimento da ascendência verdadeira é um aspecto da personalidade individual e uma condição de gozo pleno daqueles direitos fundamentais – vd. mencionados autores, in “ Curso de Direito da Família”, Volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da Filiação Adopção, com a colaboração de Rui Moura Ramos, Coimbra Editora, 2006, pág. 124. De resto, foi para evitar o reconhecimento de vínculos manifestamente fictícios, isto é, sem apoio na realidade biológica, que a Reforma de 1977 ao Código Civil de 1966 introduziu alterações profundas na acção de impugnação, reconhecendo, expressamente, a legitimidade activa do filho e da mãe casada para impugnar a presunção “pater is est” [cfr. artigo 1839, n.º 1 do CC], e alargando o prazo de caducidade e a forma de o contar [cfr. artigo 1842.º do CC]. Neste conspecto, importa referir que a problemática da (im)prescritibilidade das acções para reconhecimento de paternidade e impugnação da paternidade presumida veio a ser, entre nós, objecto de uma ampla discussão doutrinária e jurisprudencial, que desembocou em duas linhas essenciais de orientação, como doutamente nos é explanado no Acórdão do STJ, de 08.02.2018 (revista n.º 5434/12.5TBLRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto: “De um lado, emergiu uma corrente inovadora, já significativa em 1977, a sustentar que o direito à identidade biológica como dimensão dos direitos fundamentais à identidade e à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, robustecidos pela garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, assentes nos artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como o direito de constituir família (art.º 36.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental) é incompatível com o cerceamento, através de prazos de caducidade, do único meio de efetivar esse direito e que é a acção judicial. Nessa linha, considera-se, em síntese, que as razões de segurança jurídica, de ordem social e patrimonial, em torno da instituição familiar e em prol da estabilidade das relações de parentesco, e sobretudo de salvaguarda da reserva de intimidade da vida privada do investigado em que radicam tais prazos de caducidade não assumem, na actualidade, importância que deva ser equiparada ou sobreposta ao interesse inalienável do cidadão na sua filiação biológica. De outro lado, perfilha-se uma orientação, de certo modo tributária da doutrina subjacente às soluções consagradas no Código Civil de 1966, no sentido de que o exercício dos referidos direitos fundamentais não deve ser irrestrito a ponto de sacrificar interesses de ordem pública e de natureza pessoal que se vão consolidando ao longo do tempo, para mais ante a inércia injustificada dos interessados no reconhecimento da verdade biológica da filiação, devendo, por isso, ser compatibilizados os interesses conflituantes através do estabelecimento de prazos de caducidade razoáveis”. Ora, a norma cuja constitucionalidade é questionada pelo autor B… no âmbito dos presentes autos é, precisamente, a constante do artigo 1842.º, nº 1, al. a) do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, no segmento em que estabelece que a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo marido, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade. A questão da conformidade constitucional das normas que estabelecem prazos de caducidade foi suscitada particularmente a propósito da acção de investigação de paternidade. Com efeito, após a prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de 10.01.2006 (processo n.º 885/2005), que declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”, passou a discutir-se se a mesma era também aplicável às acções de impugnação de paternidade sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante propostas pelo marido, pela mãe ou pelo filho (precisamente a norma constante do artigo 1842.º, n.º 1, als. a), b) e c) do CC), tendo surgido, então, duas correntes jurisprudenciais: (i) uma corrente [sufragada, entre outros, nos Acórdãos n.º 609/2007, de 11.12.2007 (processo nº 563/07) e n.º 279/2008, de 14.05.2008 (processo nº 756/07)], defendeu que as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, valiam também para a disposição contida no artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil. E, sustentando que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, decidiu pela “inconstitucionalidade da norma prevista no art. 1842º, nº 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26º, nº1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa”. ii) ao passo que a outra corrente [sufragada, entre outros, no Acórdão n.º 589/07, de 28.11.2007 (processo nº 473/07)],pronunciou-se no sentido de que “não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida, quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu condicionalismo de vida”. Entretanto, a Lei n.º 14/2009, de 01.04 veio alargar os prazos de caducidade para a propositura da acção de investigação, estabelecidos nos artigos 1817.º, n.ºs 1 e 2, e 1842.º, n.º 1, acabando esta última tese por se afirmar no Tribunal Constitucional. Nesta linha, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 593/2009, de 18.11.2009 (processo n.º 783/09), decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842º, nº1, alínea a) do Código Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”. Pronunciaram-se, de resto, nesse mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão n.º 179/10, de 12.05.2010 (processo nº 432/08), o Acórdão n.º 446/2010, de 23.11.2010 (processo n.º 195/10), o Acórdão n.º 39/11, de 25.01.2011 (processo n.º 650/10) e o Acórdão n.º 449/2011, de 11.10.2011 (processo n.º 898/10). Com efeito, é hoje entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as acções de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo. Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a admitir a sujeição das acções de estabelecimento da filiação a prazos fixados nos ordenamentos internos dos Estados Contratantes, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa nem representem um ónus exagerado ou que dificulte excessivamente o estabelecimento da verdade biológica – vd. arestos do TEDH citados por Remédio Marques, in artigo doutrinário intitulado “O Prazo de Caducidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil e a Cindibilidade do Estado Civil: o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 24/2012 – A (in)constitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 e a sua aplicação às acções pendentes na data do seu início de vigência, instaurada antes e depois da publicação do acórdão n.º 3/2006”, in Textos de Direito da Família para Francisco Pereira Coelho, sob a coordenação de Guilherme de Oliveira, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, página 167. Feita esta incursão pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional e procurando tomar posição sobre qual das teses a adoptar, no caso dos autos, importa, desde logo, realçar que se é certo que a lei civil portuguesa não adoptou a regra da “imprescritibilidade” do direito de impugnação da paternidade presumida, não menos certo é que, após as alterações introduzidas aos prazos de caducidade do direito de investigar a paternidade e do direito de impugnação da paternidade presumida pela Lei n.º 14/2009, de 01.04, o Tribunal Constitucional atestou a conformidade constitucional do regime actualmente em vigor. É, também, essa a nossa posição, isto é, entendemos que a norma acima aludida não enferma de qualquer inconstitucionalidade. Com efeito, estamos em crer que, nesta matéria, o interesse da segurança jurídica, enquanto elemento essencial de um Estado de Direito, nomeadamente o direito do pretenso pai e da sua família em não ver indefinidamente protelada uma situação de incerteza, eventualmente por uma atitude desinteressada do titular do direito, não pode ser ignorado. Nesta medida, parece-nos que o estabelecimento de prazos de caducidade constitui limitação adequada, necessária e proporcional do direito à identidade pessoal para satisfação do interesse da segurança jurídica. Assim, se, por um lado, não se ignora a importância e a necessidade de tutela do direito à identidade pessoal (artigo 26.º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), nomeadamente ao conhecimento das origens genéticas, enquanto direito fundamental, por outro lado, cremos que aquele direito tem de ser articulado com outros direitos, também merecedores de tutela jurídica, como a paz da família conjugal do investigado e o direito à reserva da vida privada deste – vd., neste mesmo sentido e a título de exemplo, os acórdãos do STJ, de 03.05.2018 (processo n.º 158/15.4T8TMR.E1.S1) e de 20/06/2013 (processo n.º 3460/ 11.0TBVFR.P1.S1), bem como as acórdãos do TRP de 01.04.2014 (processo n.º 2936/12.7TBMTS.P1), de 03.12.2012 (processo n.º 3460/11.0TBVFR.P1). Destarte, somos da opinião de que o legislador, ao fixar os prazos de caducidade constantes do artigo 1842.º do CC, não desrespeitou qualquer tutela do direito fundamental à identidade pessoal, limitando-se a conjugar aquele com outros interesses também merecedores de tutela jurídica. Como acima já deixámos escrito, é inegável a necessidade de tutela do direito ao estabelecimento do vínculo da filiação, no entanto este não é um direito absoluto insusceptível de harmonização com outros valores conflituantes. A fixação de prazos de caducidade surge, precisamente, como um mecanismo escolhido pelo legislador para concretizar aquela harmonização, concedendo assim protecção a outros valores constitucionalmente relevantes e diminuindo, de forma adequada, necessária e proporcional, o direito à identidade pessoal. Retomando o caso concreto. Na petição inicial apresentada em juízo, o autor, para fundamentar a sua pretensão, alegou apenas, inequivocamente, factualidade ocorrida até ao ano de 2009, altura a que remonta a dissolução do casamento que havia contraído com a 1.ª ré. Desse modo, atendendo a que a presente acção foi desencadeada a 09.10.2019, há muito que já haviam decorrido os três anos desde o conhecimento das circunstâncias alegadas – acima sumariamente relatadas - para efeitos do disposto no artigo 1842.º, n.º 1, al. a) do CC. Na verdade, em face do alegado, sem dificuldade se alcança que o autor há muito que podia e devia ter feito funcionar os mecanismos legais de impugnação do vínculo da filiação, em relação a uma realidade biológica que sempre foi do seu conhecimento, evitando um prolongamento injustificado de uma situação de indefinição. Ora, o decurso do prazo de caducidade extingue o direito de cujo exercício se trate, no caso o direito de impugnação judicial da paternidade. Neste ponto, refira-se que a caducidade, enquanto figura extintiva de direitos, se trata de uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, que importa a absolvição do pedido – cfr. artigos 576.º, n.º 3 e 579.º, ambos do CPC. (…).”.
Como se vê, acolheu-se no despacho saneador recorrido a orientação maioritária do Tribunal Constitucional no sentido de considerar que a norma do artigo 1842.º, n.º 1, al. a) do CC (na redacção actual, introduzida pela Lei 14/09, de 01.04), ao estabelecer um prazo de caducidade de três anos, contados nos termos ali previstos, para a acção de impugnação de paternidade quando esta é instaurada pelo marido da mãe, não padece de inconstitucionalidade material.
Ali se citam os mais recentes arestos do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, bem como desta Relação, concluindo-se, com apoio em tais decisões, e ainda na doutrina, que o estabelecimento do referido prazo de caducidade não viola as normas dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1 da CRP, ou seja, não constitui uma restrição intolerável dos direitos, liberdades e garantias, nem ofende os direitos à identidade pessoal e a constituir família.
Concordamos inteiramente com o entendimento expresso no despacho saneador recorrido, nada mais se nos oferecendo dizer que não seja redundante e, consequentemente, inútil.
Tendo em conta o teor das conclusões do autor, diremos apenas que aquele entendimento também não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, não gerando diferença de tratamento entre as pessoas a quem a lei atribui legitimidade para as acções de investigação e de impugnação de paternidade.
Efectivamente, o Tribunal Constitucional também se tem pronunciado no sentido da constitucionalidade material da norma do artigo 1817.º, n.º 1 do CC (ex vi artigo 1873.º do mesmo Diploma), na redacção actual, que estabelece um prazo de 10 anos, a contar da maioridade ou emancipação do investigante, para a propositura da acção de investigação[3].
Tem, assim, de se concluir que caducou o direito do autor a impugnar a paternidade a paternidade presumida relativamente aos réus E…, F… e G….
2. Aplicação ao réu D… do disposto no artigo 1859.º do CC
Resulta da factualidade provada que o réu D… nasceu antes do casamento do autor com a ré C….
Já vimos que, nos casos de filiação fora do casamento, a paternidade se estabelece pelo reconhecimento (artigo 1786.º, n.º 2 do CC).
O reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efectua-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação (artigo 1847.º do CC).
A perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo (n.º 1 do artigo 1859.º do CC).
“A lei reporta-se à impugnação da perfilhação, mas isto vale para todos os efeitos como impugnação da paternidade. Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, p. 131) explica: “Embora a expressão tenha entrado nos hábitos, e seja cómoda, não me parece rigoroso dizer que a «perfilhação é impugnável»: com efeito, a perfilhação é só um meio de estabelecer a paternidade e a impugnação dirige-se, precisamente, contra o resultado obtido, que se supõe falso. O que se impugna é a paternidade estabelecida por via de perfilhação (…).”[4]
Como se sintetizou no Ac. do STJ de 12.05.98[5], o fundamento da acção de impugnação de perfilhação, previsto no artigo 1859.º, n.º 1 do CC, consiste apenas na falta de conformidade entre a paternidade biológica e a paternidade declarada.
Conforme resulta do disposto no n.º 2 do citado artigo 1859.º, a acção de impugnação da paternidade que foi estabelecida por reconhecimento (ou seja, mediante perfilhação) não está sujeita a qualquer prazo, é imprescritível.
“(…) José da Costa Pimenta (Filiação, p. 137) esclarece: “Compreende-se que assim seja em homenagem à verdade biológica, pois esta é o critério e fundamento da filiação fora do casamento, mais que na filiação matrimonial, em que o peso da instituição «casamento» se faz sentir (…). O legislador terá querido que o filho por falsa perfilhação pudesse sempre encontrar a sua verdadeira família”. Neste particular a solução legal é diferente da solução adotada para a impugnação da paternidade presumida do marido da mãe, pois que neste último caso a ação está submetida a prazo (art. 1842.º do CCivil)[2. Aparentemente, a ratio desta diversidade de regimes funda-essencialmente se no propósito de estabilizar rapidamente a família conjugal (v. Pereira Coelho e Guilherme Moreira, Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, p. 190).].”[6].
Assim, na presente acção de impugnação de paternidade visa-se impugnar a paternidade presumida do autor em relação aos réus E…, F… e G…, e a paternidade reconhecida por perfilhação em relação ao réu D….
E, no que respeita ao réu D…, o direito do autor não caducou, por imperativo do n.º 2 do artigo 1859.º do CC.
Procedem, assim, as conclusões do autor, nesta parte, pelo que a excepção de caducidade terá de ser julgada improcedente em relação àquele réu, devendo os autos prosseguir contra o mesmo os termos adequados.
* IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se, em parte, o despacho saneador recorrido e, em consequência:
A) Julga-se improcedente a excepção de caducidade em relação ao réu D…, e, consequência, determina-se que os autos prossigam os termos adequados contra este réu;
B) Mantém-se o que foi decidido em relação aos réus E…, F… e G….
Custas em ambas as instâncias pelo autor e pelo réu D… na proporção de ½.
***
Porto, 27 de Maio de 2021
Deolinda Varão (revendo posição anteriormente assumida sobre a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 2, al. a) do CC)
Freitas Vieira
Carlos Portela (revendo posição anteriormente assumida sobre a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 2, al. a) do CC)
_____________________________________ [1] Acção Comum – Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Juízo de Competência Genérica de Baião [2] Curso de Direito da Família, Vol. II, Tomo I (2006), pág. 94. [3] Cfr. os Acs. n.º 401/11, de 22.09.11, DR-2ª Série, de 03.11.11 e n.º 247/12, de 22.05.12, DR-2ª Série, de 25.06.12. [4] Ac. do STJ de 12.11.19, www.dgsi.pt, nota 1. [5] CJ/STJ-02-II-98. [6] Ac. citado na nota 4.